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ACIDENTE DE TRABALHO
TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO
FACTOS ADMITIDOS POR ACORDO
Sumário
I – Resulta da redacção dos arts. 111.º e 112.º, nº 1, do CPT, que esta apenas vincula as partes relativamente aos pontos directamente abordados e acordados pelas partes e não para além destes II - Se ficou em aberto a matéria respeitante à forma como ocorreu o acidente, v.g. se na sua origem esteve a violação de regras de segurança por parte do sinistrado, parece não fazer sentido que essa discussão tenha de ficar restringida ao que alegou o sinistrado (através do Ministério Público) na tentativa de conciliação (e que tampouco logrou aceitação por parte da seguradora).
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães
I – RELATÓRIO
AA, com os sinais dos autos, figura nesta acção, sob a forma de processo especial emergente de acidente de trabalho, como sinistrado/autor, correndo agora a acção, aberta que foi a fase contenciosa, contra a seguradora “Companhia de Seguros EMP01..., S.A.” e a empregadora “EMP02..., Lda”, ambas também nos autos melhor identificadas.
Na fase conciliatória do processo não foi obtido o acordo (integral) das partes, tendo ficado a constar, no que ora releva, do auto de tentativa de conciliação:
“I-Descrição do acidente [efectuada pelo Ministério Público no âmbito da proposta de acordo que apresentou, naturalmente de acordo com o relatado pelo sinistrado] No dia 1 de Abril de 2020, cerca das 14 40 horas, o sinistrado quando se encontrava a trabalhar numa habitação, sita na ..., ..., a exercer as funções de técnico de instalação de telecomunicações, sob as ordens, direcção e fiscalização da sociedade "EMP02..., ..." ao instalar fibra ótica, numa casa de habitação, caiu ao chão, e na sequência da queda ficou com falhas de memória, o que lhe provocou as lesões e sequelas descritas na perícia médica de fls. 74 a 76, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os legais efeitos, que se consolidaram clinicamente em 26/09/2020 e que lhe determinaram os períodos de incapacidades temporárias indicados naquela perícia e a IPP de 4,5%.”
“II— retribuição do sinistrado:
(…) III — prestações
(…)”
[Posição do] IV-Sinistrado
“Aceita a descrição do acidente e a sua caraterização como de trabalho, o nexo de causalidade entre tais lesões e o acidente e a retribuição anual ilíquida de 10.044,34€ Não aceita os períodos de incapacidades temporárias, a data da alta constantes da perícia médica , nem a a IPP de 4,5% atribuída pelo GML Por isso. não aceita conciliar-se nos termos supra propostos.”
[Posição da] V-seguradora:
“Aceita que lhe foi participado o acidente em causa nos autos Mais aceita que a entidade empregadora tinha transferido a responsabilidade infortunistica laboral pelo salário anual de 10.044,34€ ( 635,00€ x 14 meses +104,94€x 11 meses) Não aceita qualquer responsabilidade pelas consequências do acidente, uma vez que o mesmo se deveu a violação das normas de segurança por parte do sinsitrado, razão pela qual recusou, desde início, o acidente Por isso. não aceita conciliar-se nos termos supra propostos. nada aceitando pagar ao sinistrado.”
“Seguidamente, pelo Magistrado do Ministério Público foi proferido o seguinte: -DESPACHO= Uma vez que a seguradora assume a responsabilidade pela retribuição anual constante da proposta e imputa a violação das regras de segurança ao sinistrado, dispensa-se a intervenção da entidade empregadora na presente diligência. (…)”
Na petição inicial que apresentou o autor/sinistrado demandou quer a mencionada seguradora (1.ª ré) quer a identificada entidade empregadora (2.ª ré), alegando, em suma, como fundamento para demandar, e responsabilizar, esta segunda ré que a mesma o destacou para efectuar o trabalho que levava a cabo aquando do acidente desacompanhado de qualquer outro trabalhador, sendo que esse trabalho tinha de ser executado por duas pessoas, desde logo para montar o equipamento de segurança, pedindo a final que a ré empregadora seja condenada a pagar-lhe as prestações infortunísticas, tudo nos valores que liquida e calculadas de forma agravada a pensão e a indemnização por incapacidade temporária, e ainda o valor de € 40.000,00 a título de indemnização por danos morais.
Na contestação que esta ré apresentou, e conforme síntese feita pelo Tribunal recorrido e que se acolhe, veio “pugnar pela sua absolvição, alegando que apesar do autor agora vir imputar a esta ré a violação de regras de segurança, conforme resulta do auto de conciliação, nem a ré seguradora o fez, imputando a violação dessas regras ao autor. Mais alega que, por isso, foi a ora ré entidade patronal descartada de qualquer responsabilidade e dispensada da diligência de conciliação. Alega, ainda, que a ré entidade patronal apesar de estar presente na tentativa de conciliação foi dispensada de participar.”
Foi então proferido despacho saneador de onde consta, e na parte que agora importa, a seguinte decisão (ora recorrida):
“Em sede de contestação, veio a ré entidade patronal, pugnar pela sua absolvição, alegando que apesar do autor agora vir imputar a esta ré a violação de regras de segurança, conforme resulta do auto de conciliação, nem a ré seguradora o fez, imputando a violação dessas regras ao autor. Mais alega que, por isso, foi a ora ré entidade patronal descartada de qualquer responsabilidade e dispensada da diligência de conciliação. Alega, ainda, que a ré entidade patronal apesar de estar presente na tentativa de conciliação foi dispensada de participar. Cumpre apreciar e decidir. A fase contenciosa do processo especial para efetivação de direitos emergentes de acidentes de trabalho é aberta quando no final da fase contenciosa se não alcance acordo sobre todos os elementos necessários à reparação do acidente. Caso a divergência se prenda apenas com a questão da incapacidade, o processo seguirá a tramitação simplificada prevista nos artigos 138.º, n.º 2 e 140.º, n.º 1, ambos do Código de Processo do Trabalho. Caso existam divergências quanto a outros aspetos – como a existência ou caracterização do acidente, a retribuição auferida pelo sinistrado, a existência, validade e âmbito de seguro de acidentes de trabalho, o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente – haverá lugar à apresentação de petição inicial, nos termos do disposto nos artigos 117.º, n.º 1, alínea a) e 119.º do Código de Processo do Trabalho. Não obstante o alegado pela ré entidade patronal quanto ao sinistrado ter aceite que a entidade empregadora, do auto de tentativa de conciliação resulta claro que não ocorreu qualquer aceitação por parte do sinistrado. Na verdade, a seguradora é que não aceitou a responsabilidade, uma vez que entendeu que o acidente se deveu a violação das normas de segurança por parte do sinistrado, razão pela qual recusou, desde o início, o acidente. Daqui resulta que a descrição do acidente não foi aceite pela seguradora, o que implica que os factos a tal descrição são controvertidos e podem ser objeto desta fase processual, permitindo, assim, ao autor imputar a responsabilidade pela violação das regras de segurança à entidade patronal. Queremos com isto dizer que, em face do auto de não conciliação em causa, ficou perfeitamente delimitado o âmbito da questão a discutir na fase contenciosa, ou seja, os factos atinentes à dinâmica do acidente, entendendo-se que tal permite que agora o autor impute tal responsabilidade à entidade patronal, caso contrário seria aceitar que o autor aceitou a sua responsabilidade na violação das regras, o que não é manifestamente a situação dos autos. Atendendo às considerações tecidas, os factos atinentes à imputação à ré entidade patronal de violação das regras de segurança serão levados aos temas de prova, improcedendo a exceção suscitada pela mesma ré. Custas pela entidade patronal. Notifique.”
Inconformada com esta decisão, dela veio a ré empregadora interpor o presente recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam com as seguintes conclusões (transcrição):
“1. A douta decisão em mérito não apreciou os fundamentos invocados pela ora Apelante na sua Contestação, sendo certo que, ao contrário do que é referido, o facto de não poder o Apelado discutir na fase contenciosa a eventual ocorrência de violação de regras de segurança por parte da entidade empregadora, não implica que este aceite a sua responsabilidade na violação das regras de segurança…
2. Como sabemos, na tentativa de conciliação, presidida pelo Ministério Público, este promove o acordo de harmonia com os direitos consignados na lei, tomando por base os elementos fornecidos pelo processo.
3. Perante essa proposta ou as partes estão de acordo, aceitando-o, ou não estão de acordo, rejeitando-o.
4. Nos casos de falta de acordo, face ao estatuído no artigo 112º do CPT, deve constar nos autos o seguinte: Consignação dos factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve acordo ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída.
5. Não havendo acordo, passa-se para a fase contenciosa, a qual, de acordo com o disposto no artigo 119º do CPT, quando a questão da discordância entre as partes não é a questão da incapacidade ou não é só essa, a fase contenciosa tem o seu início com a petição inicial, em que o sinistrado, doente ou respectivos beneficiários formulam o pedido, expondo os seus fundamentos (artigo 117º, nº 1, alínea a) do CPT), contra a entidade responsável, seguindo-se a citação (artigo 128º do CPT), a contestação (artigo 129º do CPT).
6. Pode-se dizer que a fase contenciosa destina-se apenas a provocar uma decisão judicial que supere o litígio que subsiste.
7. É no auto de conciliação que globalmente se equacionam todos os pontos decisivos à determinação dos direitos do sinistrado, conforme resulta dos artigos 111º e 112º do CPT, seja no caso de acordo, seja na falta dele.
8. Na fase contenciosa apenas se pode exercitar os pontos ou factos por que o pedido não logrou acordo na fase conciliatória, ou seja, aqueles que ficaram por dirimir na fase conciliatória e que obstaram ao acordo total, à plena reparação, relativamente à pretensão e direitos que o sinistrado reclamou.
9. Do confronto daqueles normativos (artigos 111º e 112º do CPT) podemos concluir que não é possível a posterior discussão de questões acordadas em auto de conciliação, nem o posterior conhecimento de questões não apreciadas nem referidas nesse auto.
10. Os efeitos delimitadores da tentativa de conciliação no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho limitam a reclamação ou a proibição de questões que aí não foram suscitadas.
11. Como é bom de ver do teor do “Auto de Tentativa de Conciliação” de 8.10.2021, a fls…, e relativamente à descrição do acidente, a única questão que inviabilizou a conciliação foi o facto de a seguradora entender que o mesmo “se deveu a violação das normas de segurança por parte do sinistrado”!!!!
12. Face do Auto de não conciliação em causa, ficou perfeitamente delimitado o âmbito da questão a discutir na fase contenciosa, qual seja a de saber se a eclosão do evento infortunístico resultou da violação de regras de segurança por parte do sinistrado.
13. A não ser assim, esvaziar-se-ia de conteúdo a função que a lei visa com a tentativa de conciliação que, como se disse se destina, em caso de desacordo a delimitar as questões a discutir e decidir na fase contenciosa do processo.
14. É pois claro e evidente que, em face do teor do auto de conciliação, estava vedado ao Autor (bem assim como à R. seguradora!) discutir na fase contenciosa se ocorreu por parte da entidade empregadora violação das regras de segurança.
15. Acresce que, como se extrai do teor do Auto, o sinistrado/A. não reclamou qualquer quantia a título de danos morais, pelo que também lhe está vedado que venha agora em sede contenciosa reclamar pretensas compensações a título de danos morais.
16. A este respeito pronunciou-se o Ac. RC, de 6.3.2003, Proc. 3683/2002.dgsi.Net e BTE, 2ª série, n.ºs 4-5-6/2005, p. 707, citado por Abílio Neto, in Código de Processo de Trabalho Anotado, 4ª ed., pág. 238:
I - É no auto de conciliação que globalmente se equacionam todos os pontos decisivos à determinação dos direitos do sinistrado, como deflui do preceituado nos arts.111.º e 112.º do CPT, ao imporem expressamente o conteúdo dos autos, seja no caso de acordo, seja na falta dele.
II – Apenas se podem exercitar na fase contenciosa os pontos ou factos por que o pedido não logrou acordou ou aceitação plena na fase conciliatória, ou seja aqueles que ficaram por dirimir na fase conciliatória e que obstaram ao acordo total, à plena reparação, relativamente à pretensão e direitos que o sinistrado reclamou.
III – Se durante a fase conciliatória a questão do direito do sinistrado a indemnização por danos morais, não foi equacionada, nem se hipotizou, nem discutiu que o acidente tivesse ocorrido por culpa da entidade patronal, não pode agora o recorrente, pretextar a causa de pedir e formular, com base nela, o pedido de condenação da co-ré patronal numa quantia a título de danos morais.
17. Ora, facilmente se constata que nesse auto em parte alguma o Apelado/Sinistrado ou a R. Seguradora imputam à aqui Apelante/entidade empregadora a violação de regras de segurança!
18. Na realidade, um dos conteúdos obrigatórios do Auto de Tentativa de Conciliação é precisamente a indicação da entidade responsável., sendo certo que Ministério Público, sinistrado e seguradora entenderam que a entidade empregadora não era responsável, e apesar de se encontrar presente, foi dispensada, não participou, nem se pronunciou sobre as questões visadas nessa diligência.
19. O Apelado (e a R. seguradora) conformaram-se com estes factos e estas decisões.
20. Pelo que constitui até um manifesto abuso de direito, na forma de um claro venire contra factum proprio, vir na sua petição esquecer tudo o que ficou consignado nesse auto, as posições que aí assumiu, e alterar agora a sua versão dos factos, vindo alegar que o acidente teve origem na violação das regras de segurança por parte da sua entidade empregadora.
21. Consequentemente, e como se referiu, considerando que o Apelado não pode discutir na fase contenciosa a eventual ocorrência de violação de regras de segurança por parte da entidade empregadora, é manifesta a improcedência do pedido que contra a mesma deduz.
22. A douta decisão sub judice violou, nomeadamente, o preceituado nos arts. 111º, 112º e 117º do CPT.”
O autor recorrido apresentou contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso.
Alinhou as seguintes conclusões:
“a) A interpretação que a Recorrente faz dos artigos 1110 e 112° do Código de Processo do Trabalho colide com o princípio da irrenunciabilidade e indisponibilidade dos créditos provenientes do direito à reparação emergente de acidente de trabalho consagrado no artigo 78° da Lei 98/2009, de 4 de Setembro.
b) Se o A. entender que existe fundamento para a responsabilidade da entidade empregadora por violação de regras de segurança, vedar-lhe o exercício do direito de fazer valer tal pretensão com o argumento de que nada disse a esse respeito na tentativa de conciliação seria fazer equivaler este silêncio a uma renúncia.
c) A irrenunciabilidade consagrada no artigo 78° da Lei 98/2009, de 4 de Setembro estende-se também à questão da determinação da entidade responsável pela reparação, não podendo o titular do direito à reparação prescindir do direito de que porventura possa ser titular em relação a alguma das entidades que pudessem eventualmente vir a ser responsabilizadas.
d) É inadmissível a renúncia aos direitos emergentes de acidente de trabalho, quer directa, quer indirectamente, através da falta de reclamação na aludida tentativa de conciliação.
e) A tentativa de conciliação apenas vincula as partes quanto às matérias directamente abordadas e acordadas pelas mesmas, o que manifestamente não é o caso.
f) Não sendo licita a renúncia aos créditos resultantes do acidente, não pode o A. ser impedido de fazer valer o direito à reparação que entende assistir-lhe em relação à R. empregadora com o argumento de que não o reclamou em sede de tentativa de conciliação.
g) Ao exercer um direito legitimo, o qual é irrenunciável e indisponível, não se pode considerar que o R. age com abuso de direito.”
Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida, foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação e pela Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.
Tal parecer mereceu resposta por parte da recorrente, reafirmando o bem fundado do recurso.
Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.
II OBJECTO DO RECURSO
Delimitado que é o âmbito do recurso pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas (artigos 608.º n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 640.º, todos do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87.º n.º 1 do CPT), enuncia-se então a única questão que cumpre apreciar:
a) Pode o autor/sinistrado demandar a entidade empregadora com fundamento em o acidente ter sido provocado por essa ré? III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos relevantes para a decisão da causa são os que resultam do relatório supra. IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO
Como resultas do transcrito despacho recorrido, neste foi entendido que, “(…) em face do auto de não conciliação em causa, ficou perfeitamente delimitado o âmbito da questão a discutir na fase contenciosa, ou seja, os factos atinentes à dinâmica do acidente, entendendo-se que tal permite que agora o autor impute tal responsabilidade à entidade patronal (…)”.
Em essência, é a bondade deste raciocínio que está em causa.
Vejamos.
O artigo 111.º do CPT, inserido da Subsecção que regula a fase conciliatória do processo emergente de acidente de trabalho e doença profissional, dispõe:
“Conteúdo dos autos de acordo Dos autos de acordo constam, além da identificação completa dos intervenientes, a indicação precisa dos direitos e obrigações que lhes são atribuídos e ainda a descrição pormenorizada do acidente e dos factos que servem de fundamento aos referidos direitos e obrigações.”
Estabelecendo o artigo 112.º do mesmo Código que:
“Conteúdo dos autos na falta de acordo 1 - Se se frustrar a tentativa de conciliação, no respectivo auto são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída. 2 - O interessado que se recuse a tomar posição sobre cada um destes factos, estando já habilitado a fazê-lo, é, a final, condenado como litigante de má fé.”
Interpretando o alcance destes – e em particular do último - artigos, tem-se defendido que é imprescindível que sejam consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, e não meros conceitos e/ou conclusões que eventualmente se pudessem extrair desses factos.
Até porque, estes mesmos factos devem ser tidos como assentes em sede de despacho saneador (art. 131.º/1 c) do CPT), a fim de serem tomados em consideração na sentença (art. 135.º do CPT).
Assim e por ex. acórdão desta RG de 30.11.2022[1], de cujo sumário consta: “No auto de tentativa de conciliação em fase conciliatória, não havendo acordo, e tendo em vista delimitar o objeto do litígio, devem constar os factos elencados no artigo 112.º do Código de Processo do Trabalho sobre os quais tenha havido ou não acordo.
Não constituem factos, podendo ser discutida a respetiva matéria na fase contenciosa, juízos de valor, conclusões ou conceitos jurídicos. (…)”
Já no acórdão do STJ de 14.12.2006[2] se explanava:
“Daí que se possa afirmar, como no Acórdão deste Supremo de 30 de Outubro de 1996 (6), que, “[n]a tentativa de conciliação as partes devem pronunciar-se sobre os vários pormenores factuais que podem interessar à decisão da causa, obrigando o agente do Ministério Público a quem compete a direcção da fase conciliatória, a deixar consignado em auto os factos sobre que houve acordo das partes, consignando também aqueles em que não acordaram”. O acordo ou desacordo dos interessados que deve constar do auto é, portanto, o que incide sobre factos (7), e não sobre juízos de valor, conclusões ou qualificações jurídicas. Afirmar ou negar a caracterização de um desastre como acidente de trabalho supõe a elaboração de um juízo de valor que envolve o enquadramento de realidades factuais num conceito jurídico – o conceito legal de acidente de trabalho. “(8) O acordo ou desacordo, como manifestação de vontade e declaração de ciência sobre factos, que deve constar do auto por imposição das normas que regulam a tentativa de conciliação, não contempla, portanto, a aceitação ou recusa da caracterização do acidente – que é uma questão de qualificação jurídica “(9). –, mas tão só o reconhecimento, ou não, de um evento e suas circunstâncias, cabendo ao julgador, segundo o brocardo da mihi factum, dabo tibi jus, proceder à qualificação adequada. Assim, a mera aceitação, na tentativa de conciliação, da caracterização do acidente como de trabalho, não obsta a que se discuta a questão da caracterização do acidente na fase contenciosa do processo. Ao elaborar o despacho de condensação processual – fixando os factos assentes e quesitando os que considere deverem integrar a base instrutória – o juiz quer no processo civil, quer no processo laboral, deve seleccionar os factos da vida real com relevo para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito (11), abstendo-se de nele inserir conceitos de direito ou outra matéria conclusiva. De harmonia com o disposto no artigo 131.º, n.º 1, alínea c), do CPT/99, o juiz deve, no momento da prolação daquele despacho, considerar “assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação”. Já o n.º 1 do artigo 134.º do CPT/81 dizia que “[f]indos os articulados, o processo é concluso ao juiz para proferir despacho saneador em que considerará assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação e nos articulados”. Diversamente, o artigo 129.º, n.º 1, do CPT/63, dispunha que “será o processo concluso ao juiz, que proferirá despacho saneador em que considerará assentes as questões sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação”. Também aqui o legislador evoluiu no sentido de clarificar que o que deve ser especificado, com base no teor do auto de tentativa de conciliação são apenas os factos aceites pelas partes naquele acto, e não, pontos ou questões. Se dos factos pode concluir-se pela existência de um acidente que deva caracterizar-se como de trabalho, ou que o não deva, assim o tribunal o deve considerar, extraindo as correspondentes consequências desta conclusão jurídica na decisão do caso concreto (12).”
Também Alberto Leite Ferreira[3] escreveu que “(…) o acordo ou o desacordo incide sobre factos”, no que mais recentemente é secundado por João Monteiro[4] que defende que “O acordo ou o desacordo dos interessados que deve constar do auto de tentativa de conciliação é, pois, o que incide sobre factos, e não sobre juízos de valor, conclusões ou qualificações jurídicas.”
Não deixa também de ser maioritário (cremos, face à jurisprudência publicada) o entendimento de que a consignação no auto de não conciliação dos factos sobre os quais tenha havido acordo, “referindo-se expressamente se houve ou não acordo”, destina-se a sanear as questões que na fase contenciosa do processo podem ser suscitadas ou, pelo contrário, devem considerar-se «questões arrumadas».
Sirva de ex. o Ac. RC de 25-10-2019[5], constando do respectivo sumário:
“(…)VIII - É no auto de conciliação que globalmente se equacionam todos os pontos decisivos à determinação dos direitos do sinistrado, conforme resulta dos artigos 111º e 112º do CPT, seja no caso de acordo, seja na falta dele. IX - Do confronto dos artigos 111º e 112º do CPT podemos concluir que não é possível a posterior discussão de questões acordadas em auto de conciliação, nem o posterior conhecimento de questões não apreciadas nem referidas nesse auto. X - Os efeitos delimitadores da tentativa de conciliação no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho limitam a reclamação ou a proibição de questões que aí não foram suscitadas.”
Na fundamentação deste acórdão escreveu-se:
“É verdade, tal como alega a recorrente, com suporte na jurisprudência que cita, que quer o acordo ou desacordo na tentativa de conciliação incide ou versa sobre factos. (…) No caso em análise, ao contrário de referido pela recorrente, o auto de não conciliação não se limitou a consignar conceitos jurídicos. Na verdade se, com referência ao acidente, as expressões “originado única e exclusivamente por actuação culposa da entidade patronal” e “violação de regras de segurança da responsabilidade da entidade patronal”, constituem um conceito jurídico e um juízo de valor susceptíveis de concretização factual, logo no mesmo auto se concretiza ou factualiza em que consistiu a culpa da EP traduzida na violação de regras de segurança, e que residiu “no facto de existir falta de delimitação das vias de circulação na zona onde circulam máquinas e peões”. E esta foi a razão, bem concreta, pela qual não houve conciliação, ficando perfeitamente delimitado a questão a dirimir em fase contenciosa. Queremos com isto dizer que, em face do auto de não conciliação em causa, ficou perfeitamente delimitado o âmbito da questão a discutir na fase contenciosa, qual seja a de saber se a eclosão do evento infortunístico resultou da violação de regras de segurança pela EP. por esta não ter delimitado as vias de circulação na zona onde circulam máquinas e peões. A não ser assim, esvaziar-se-ia de conteúdo a função que a lei visa com a tentativa de conciliação que, como se disse se destina, em caso de desacordo a delimitar as questões a discutir e decidir na fase contenciosa do processo[2]. Tudo para dizer que em face do teor do auto de conciliação estava vedado à seguradora discutir na fase contenciosa a descaracterização do acidente (no caso em razão de alegada violação pelo sinistrado das condições de segurança estabelecidas pelo empregador. V. artºs 16 a 21 da contestação).”
Sendo que também em recente acórdão da RE[6], e na síntese do respectivo sumário, se defendeu que:
“(…)III- Não sendo possível o acordo total, o conteúdo do auto de conciliação destina-se a delimitar o objeto do litígio, a dirimir na fase contenciosa. IV- Deste modo, não é possível a posterior discussão de questões acordadas no auto de conciliação, nem é possível o posterior conhecimento de questões não apreciadas ou referidas nesse auto. V- Se, na tentativa de conciliação, ocorrida na fase conciliatória, jamais foi apreciada ou referida a questão da eventual ocorrência do acidente por falta de observação das regras de segurança ou saúde no trabalho pela entidade empregadora ou pela empresa utilizadora de mão de obra, ficou precludida a possibilidade de a mesma ser invocada e debatida na fase contenciosa do processo, por não integrar o objeto do litígio delimitado pela não conciliação.”
Na respectiva fundamentação, que tem por base uma situação fáctica similar à discutida nos presentes autos, discorreu-se:
“Do transcrito infere-se que a seguradora não aceitou conciliar-se, nomeadamente, por entender que o acidente ocorreu por violação das normas de segurança por parte do sinistrado[4]. Na tentativa de conciliação jamais foi apreciada ou referida a questão da eventual ocorrência do acidente por falta de observação das regras de segurança ou saúde no trabalho pela entidade empregadora ou pela empresa utilizadora de mão de obra – cfr. artigo 18.º da LAT.[5] [6] Ora, não tendo tal questão sido apreciada ou referida naquela diligência, ficou precludida a possibilidade de a mesma ser invocada e debatida na fase contenciosa do processo, por não integrar o objeto do litígio delimitado pela não conciliação. Como tal, a exceção perentória invocada pela Apelante no articulado que apresentou deve proceder, porque se verifica um facto impeditivo para a sua responsabilização pela reparação do acidente. A consequência de tal procedência é a absolvição do pedido – artigo 576.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.”
Também Viriato Reis[7] afina pelo mesmo diapasão, defendendo que “(…) não sendo possível o acordo total, a tentativa de conciliação destina-se a delimitar o objeto do litígio, a dirimir na fase contenciosa.”
Assim também Carlos Alegre quando escreveu[8] que “A parte que não se concilia é, por essa forma [refere-se ao disposto no n.º 2 do art. 114.º do CPT então em vigor, a que corresponde o n.º 2 do art. 112.º do actual CPT], forçada a dizer os motivos da sua recusa. O alcance desta exigência é muito importante, não só porque reduz o litígio aqueles pontos que hão-de ser objecto da acção na fase contenciosa, uma vez que todos os restantes sobre os quais tenha havido acordo, se consideram como definitivamente assentes e como tais hão-de figurar no despacho saneador e ser tomadas em conta na sentença final.”
No nosso ver este entendimento tem de ter na sua base um claro acordo das partes quanto aos factos que se reconduzem a uma questão que se pretende considerar «arrumada», pois, como tem sido defendido em diversos arestos da RP[9], e concordamos, “(…) resulta da redacção dos referidos arts. 111º e 112º, nº 1, do CPT, esta apenas vincula as partes relativamente aos pontos directamente abordados e acordados pelas partes e não para além destes.”
Feito este enquadramento, retomemos a situação concreta.
Ora, confrontando o que consta do auto – com especial enfoque nos factos aceites por sinistrado e seguradora - e o que estipula a lei, nos sobreditos termos, constata-se que houve acordo das partes quanto à existência do acidente; retribuição do sinistrado; existência do contrato de seguro cobrindo o valor da retribuição.
Embora expressamente a discordância da seguradora tenha incidido, apenas, na invocação de que o acidente se deveu “a violação das normas de segurança por parte do sinistrado” (descaracterização do acidente), não pode sequer dizer-se que aceitou a caracterização genética do acidente como de trabalho pois, verdadeiramente, e ao contrário do que sucede relativamente à posição do sinistrado, não consta do auto que tenha aceitado a “descrição do acidente”, mas apenas que “Aceita que lhe foi participado o acidente em causa nos autos”.
Isto é, na fase contenciosa do processo pode seguramente discutir-se a factualidade atinente ao próprio acontecer do acidente, e não apenas os factos alegados pela seguradora atinentes à sua descaracterização como acidente de trabalho.
Se todo o iter do acidente, v.g. quanto ao seu deflagrar e às eventuais circunstâncias [relevantes] que o rodearam, tivesse ficado definido – em termos de narração factual - em sede de tentativa de conciliação, e aceite pelos interessados, não teríamos dúvidas em afirmar que se tratava de «questão arrumada» (e quer dos factos resultasse que se tratava de um «simples» acidente de trabalho, de um acidente com agravamento da responsabilidade, ou deles resultasse a descaracterização do acidente), mas tal acordo não ocorreu.
Se ficou em aberto, como efectivamente é o caso, podendo discutir-se nesta fase, a matéria respeitante à forma como ocorreu o acidente, v.g. se na sua origem esteve a violação de regras de segurança por parte do sinistrado, parece não fazer sentido que essa discussão tenha de ficar restringida ao que alegou o sinistrado (através do Ministério Público) na tentativa de conciliação (e que tampouco logrou aceitação por parte da seguradora), e não possa abranger factos tendentes a demonstrar que o acidente ocorreu por culpa da entidade empregadora (conquanto em sede de tentativa de conciliação não tenha sido colocada a questão da responsabilidade (agravada) da empregadora e o sinistrado alegue estes factos “ex novo").
A esta conclusão não obsta o facto de a entidade empregadora ter sido “dispensada” de intervir na tentativa de conciliação presidida pelo Ministério Público.
Nessa diligência não lhe foi efectivamente imputada qualquer responsabilidade pela reparação do acidente, em alguma medida que fosse, donde não se justificar que tomasse posição.
Todavia, esse facto não impede que, sendo admissível a sua (eventual) responsabilização na fase contenciosa do processo, como se afigura ser o caso, seja também demandada na petição inicial e, em conformidade, formulado pedido contra si.
A recorrente invoca a excepção peremptória do abuso de direito, na forma de um venire contra factum próprio, por parte do autor/recorrido, alegando que este veio alterar agora a sua versão dos factos, alegando que o acidente teve origem na violação das regras de segurança por parte da sua entidade empregadora.
O artigo 334.º do CC, sob a epígrafe Abuso do direito, prevê efectivamente que é “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Como bem se sintetizou em recente Ac. do TRE[10], “Existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apodicticamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante (…)”.
Ora, e voltando ao caso presente, não parece que o autor/recorrido, ao alegar agora factualidade tendente a, na sua perspectiva, responsabilizar a empregadora pela ocorrência do acidente esteja a agir em abuso de direito.
Em primeiro lugar não veio alegar uma versão dos factos que contraria aquela que consta do auto de tentativa de conciliação; o que acontece é que, invoca agora outra factualidade – v.g. que o trabalho que executava aquando do acidente tinha de ser executado por duas pessoas, sendo que sozinho não conseguia montar e aplicar o equipamento de segurança, tendo-o a empregadora destacado para fazer esse trabalho desacompanhado de qualquer outro trabalhador - que não consta daquela inicial descrição do acidente que pretende seja também considerada, a fim de demonstrar a responsabilidade, agravada, da recorrente/empregadora.
Por isso que não se verifica um venire contra factum próprio, nem se surpreenda aqui uma actuação de má-fé por parte do recorrido.
Ademais, e até porque estão em causa direitos indisponíveis, não se detecta atropelo ao fim social ou económico do direito. V - DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
Custas da apelação a cargo da recorrente.
Notifique.
Guimarães, 23 de Novembro de 2023
Francisco Sousa Pereira (relator)
Vera Maria Sottomayor
Maria Leonor Barroso (com dispensa de visto)
[1] Proc. 2173/18.7T8GMR.G1, Antero Veiga, www.dgsi.pt [2] Proc. 06S789, Vasques Dinis, www.dgsi.pt [3] Código de Processo do Trabalho Anotado, Coimbra Editora, 4.ª edição, pág. 527; [4] Fase conciliatória do processo para a efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho – Enquadramento e tramitação, Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 87, CEJ – Coimbra Editora, pág. 165; pode ver-se ainda no mesmo sentido José Joaquim F. Oliveira Martins, Código de Processo do Trabalho Anotado e Comentado, Almedina – CJ, pág. 167. [5] Proc. 5068/17.8T8LRA-A.C1, Felizardo Paiva, www.dgsi.pt [6] Ac. RE de 14-09-2023, Proc. 383/21.9T8STR-B.E1, Paula do Paço, www.dgsi.pt [7] O processo por acidentes de trabalho: algumas particularidades, Prontuário de Direito do Trabalho, CEJ, 2022 – II, pág. 358. [8] Processo Especial de Acidentes de Trabalho, Almedina, pág.s 92 e 150. [9] V., a título de exemplo, Ac.s RP de 15-12-2021, Proc. 2658/20.5T8VNG-A.P1, Rui Penha, e de 04.11.2019, Proc. 1989/16.3T8AVR.P1, Paula Leal de Carvalho, www.dgsi.pt [10] Ac. RE 9/2/2023, Proc. 1791/19.0T8LLE.E1, Tomé de Carvalho, www.dgsi.pt