GARANTIA BANCÁRIA
TÍTULO EXECUTIVO INSUFICIENTE
PENHOR FINANCEIRO SOBRE SALDO DE CONTA BANCÁRIA
NÃO CUMPRIMENTO DE PRESTAÇÕES EM CUMPRIMENTO DA GARANTIA BANCÁRIA
Sumário

I - A par de requisitos formais ou extrínsecos de exequibilidade, relacionados com o título executivo enquanto documento conferente de um grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da ação executiva, existem requisitos, ditos intrínsecos, materiais ou substanciais, que também condicionam a exequibilidade do direito, inviabilizando, na sua falta, a satisfação coativa da obrigação.
II - Se o Banco reclamante beneficia da garantia de penhor financeiro sobre o saldo de uma conta de depósito da titularidade do executado relativamente às quantias que tenha sido chamado a prestar a favor do beneficiário no âmbito de uma garantia bancária autónoma on first demand, que celebrou com o executado, mas nada foi chamado a prestar e nada prestou em cumprimento da garantia bancária, não beneficia de título executivo suficiente para deduzir reclamação com base no penhor do saldo, desde logo por falta de crédito exigível.
[elaborado pela sua relatora nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil (cfr. artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho) – aproveitando a parte do sumário do citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7-04-2022, transponível para o objeto do presente recurso]

Texto Integral

Apelação/Processo nº 16973/22.0T8PRT-A.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo do Trabalho do Porto, Juiz 2
4ª Secção


Relatora: Germana Ferreira Lopes
1ª Adjunta: Paula Leal de Carvalho
2ª Adjunta: Teresa Sá Lopes




Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO
Banco 1..., SA apresentou reclamação de créditos por apenso ao processo de execução em que é exequente AA e executada A..., SA.
Alegou, em substância, que:
Celebrou com a Executada/Reclamada um contrato de prestação de uma garantia bancária autónoma e à primeira solicitação a favor da sociedade B..., SA, ao abrigo do qual o Banco reclamante prestou, a pedido da Executada e a favor daquela Beneficiária, a garantia bancária (N00...624) no valor de €7.587,20, em 27 de maio de 2020, conforme contrato que juntou (Doc. 1 junto com a reclamação de créditos).
Para garantia das responsabilidades resultantes do referido contrato de garantia bancária, a sociedade Executada, em 27 de maio de 2020, celebrou com o Banco Reclamante o contrato de garantia (n.º ...22/20) que junta, através do qual constituiu a favor do Banco Reclamante, o penhor de depósito bancário no montante de €7.587,20 depositado na conta nº ...49 do Banco, pelo prazo de 183 dias renováveis em nome do prestador de garantia, conforme contrato que juntou (cláusula 3ª do contrato – Doc. 2 junto com a reclamação de créditos).
O Banco é credor da sociedade Executada da quantia de €7.587,20, crédito garantido por penhor sobre o saldo penhorado na execução, existente na referida conta bancária.
Declarou a Reclamante pretender que seja reconhecido e verificado o que considera ser o seu crédito, no montante de € 7.587,20, acrescido dos juros e imposto de selo, vincendos, até efetivo e integral pagamento, a ser graduado de acordo com a preferência legal que lhe assiste (penhor), sobre o saldo bancário penhorado, para ser pago pelo produto da mesma.

Não foi deduzida oposição à reclamação.
Por sentença de 23-03-2023, foi julgada improcedente a referida reclamação de créditos apresentada pelo Banco 1..., SA, em síntese, com os seguintes fundamentos:
«(…)
Resulta dos autos que, para garantia do integral e pontual pagamento das obrigações assumidas pelo Banco, no contrato de garantia bancária celebrado a favor da Executada, A..., SA., o Banco reclamante celebrou com a executada, um contrato de penhor de conta bancária de que a última é titular, no valor de €7.587,20. Está também alegado e provado que o montante em causa foi objecto de penhora a 23-11-2022, configurando a verba 3 do respectivo auto de penhora.
(…)
Como tal, a exequibilidade do penhor, pela sua própria natureza e finalidade, está vinculada à alegação e prova, pelo Banco Reclamante, de que cumpriu, com o pagamento de alguma prestação, a favor da sociedade beneficiária, credora da executada, no âmbito da garantia bancária autónoma que prestou. Sem o pagamento de alguma quantia ao abrigo daquele contrato, sem disposição patrimonial, não há qualquer crédito vencido e exigível que possa justificar execução do penhor. Se nunca foi accionada a garantia bancária e o Banco não respondeu conforme as obrigações que nela assumiu, não pode accionar a garantia do penhor contra a devedora executada. Como resulta do contrato, o penhor foi constituído para garantir o integral e pontual pagamento das obrigações assumidas pelo Banco.
Desta feita, (…) não se demonstrando a exigência de pagamento pelo beneficiário da garantia bancária e a efectivação desse pagamento pelo garante, este não é titular de qualquer crédito sobre o dador dessa ordem (o garantido).
Resumindo, porquanto o Banco 1..., SA não alegou, nem demonstrou que teve de pagar o montante de €7.587,20 que estava titulado pela garantia bancária, não pode o Tribunal considera-lo credor da executada/reclamada A..., SA, pelo que, falecendo este pressuposto o ora credor reclamante não se pode arrogar titular de qualquer direito de crédito sobre a executada., pois, como se disse, o Banco reclamante não alegou nem demonstrou o accionamento da garantia bancária, com o pagamento de qualquer quantia em seu cumprimento.
De notar que, ainda que o contrato de garantia bancária e o contrato de penhor, juntos pelo Banco 1..., SA, pudessem preencher os elementos extrínsecos de exequibilidade desses títulos executivos, não fazem prova da exigibilidade do crédito reclamado, por não se poder afirmar que a reclamante tivesse desembolsado a quantia reclamada ou qualquer outra a que o penhor servisse de garantia. Sem a demonstração da existência do crédito (garantido), não há crédito exigível nem título executivo suficiente ou perfeito.
Atendendo a tudo o que ficou dito, sendo o pressuposto de exequibilidade de conhecimento oficioso, julgo improcedente a presente reclamação de créditos apresentada pelo Banco 1..., SA, porquanto não dispõe de título executivo suficiente para reclamar crédito em causa no presente apenso.».

Inconformada com esta decisão a Reclamante interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes CONCLUSÕES, que se transcrevem:
«1. A douta sentença de fls…, que julgou improcedente a reclamação de créditos apresentada pelo Banco Recorrente, não fez correta interpretação dos factos nem adequada aplicação do direito.
2. O Banco Recorrente, por apenso à execução, que o Exequente AA move contra A..., S.A, reclamou os seus créditos, no montante global de Eur.7.587,20 (sete mil, quinhentos e oitenta e sete euros e vinte cêntimos), relativamente a uma Garantia Bancária – n.ºN00...624 -, a pedido da sociedade A..., S.A, no valor de Eur.7.587,20 (sete mil, quinhentos e oitenta e sete euros e vinte cêntimos), a favor da B..., S.A.
3. Por força dessa garantia, o Banco obrigou-se à entrega incondicional e sem quaisquer restrições, ao Beneficiário, das importâncias que este lhe solicitasse, até ao valor global mencionado supra, sem que este tenha, em algum momento, de justificar o seu pedido.
4. A garantia bancária em análise permanece, atualmente, em vigor, e é plenamente válida, uma vez que não foi fixado nenhum prazo certo de caducidade.
5. Tendo o Recorrente prestado uma garantia bancária, em nome e a pedido de A..., S.A, poderá, ainda, o Banco vir a ser chamado a honrar a garantia em vigor.
6. Considerando que a garantia prestada pelo Banco Recorrente se mantém ativa, bem como a garantia do crédito a ela subjacente até à satisfação integral do seu crédito, é legítima a reclamação de créditos deduzida.
7. Ademais, para garantia das responsabilidades resultantes do referido contrato de garantia bancária, a sociedade Executada, em 27 de maio de 2020, celebrou com o Banco Recorrente o Contrato de Garantia (n.º ...22/20), através do qual constituiu, a favor do Banco Recorrente, penhor sobre o depósito bancário, no montante de Eur.7.587,20, depositado na conta ...49.
8. De acordo com o artigo 666.º do Código Civil, o penhor confere ao credor pignoratício o direito de se pagar do seu crédito (e juros) com preferência, relativamente aos outros credores do devedor, pelo valor de determinada coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou “outros direitos não suscetíveis de hipoteca”, do património deste último ou de terceiro.
9. Por isso, ao ter sido julgada improcedente a reclamação de créditos apresentada pelo aqui Banco Recorrente, fica prejudicada a garantia que este detém sobre o património da sociedade Executada.
10. Isto porque, não sendo admitida a Reclamação de Créditos, o saldo bancário sobre o qual foi constituído penhor a favor do aqui Recorrente vai responder pelo ressarcimento da dívida do Exequente, quando, na verdade, face à garantia prestada, e fruto da vontade das partes, deveria responder pela dívida do aqui Recorrente, no caso de a garantia bancária vir a ser honrada, com injustificado benefício do Exequente.
11. O resultado acaba por ser profundamente injusto, uma vez que o Garante, no caso o ora Recorrente, fica privado da sua garantia, mantendo-se, na mesma, a obrigação de pagamento ao Beneficiário da garantia no cumprimento do contrato de garantia bancária.
12. Afigura-se, portanto, profundamente injusto que o mesmo tipo de crédito - no caso, uma garantia bancária sob condição -, reclamada no âmbito de um processo executivo e em processo de insolvência, tenha um tratamento diferente e uma definição jurídica distinta.
13. Pelo que não se aceita, nem se compreende, o diferente tratamento de uma garantia bancária sob condição reclamada no âmbito de um processo executivo e num processo de insolvência, o que, aliás, coloca em causa a própria segurança jurídica.
14. Não obstante o exposto, entendeu o Douto Tribunal a quo que o Recorrente nada pagou por força da garantia bancária invocada, pelo que nenhum crédito tem sobre a sociedade Executada, em razão do apenas teria direito ao reembolso se, e quando, vier a pagar ao Beneficiário da garantia, não podendo, por isso, receber, antes desse efetivo pagamento, o reembolso, sob pena de vir a receber um valor que nunca terá de desembolsar.
15. Apesar de ser um crédito sob condição, o crédito prestado sob a forma de garantia bancária consubstancia uma obrigação de crédito da sociedade Executada, porque a garantia bancária prestada é irrevogável e com pagamento on first demand ao Beneficiário.
16. Dispõe o n.º 7 do artigo 788.º do Código de Processo Civil: “O credor é admitido à execução, ainda que o crédito não esteja vencido; mas se a obrigação for incerta ou ilíquida, torná-la-á certa ou líquida pelos meios de que dispõe o exequente.”
17. Considerando ainda o n.º 3 do artigo 791. º do Código de Processo Civil: “Quando algum dos créditos graduados não esteja vencido, a sentença de graduação determina que, na conta final para pagamento, se efetue o desconto correspondente ao benefício da antecipação.”
18. Pelo que, na interpretação correta e útil do regime legal, o crédito com condição suspensiva deve equiparar-se ao crédito não vencido, aplicando o supracitado normativo, fazendo-se o respetivo desconto pela antecipação.
19. Assim sendo, na ação executiva, este tipo de crédito deveria sempre ser admitido como crédito sob condição, nos termos do artigo 791º, nº 3, do Código de Processo Civil.
20. Como tal, deve ser aplicado o regime previsto nos artigos 788.º a 791.º do Código de Processo Civil, no entendimento que deve ser reconhecida a existência do crédito sob condição, in casu a garantia bancária prestada pelo ora Recorrente nas condições reclamadas
21. Face ao exposto, a decisão sob censura fez incorreta interpretação do condicionalismo fáctico subjacente e adequada interpretação e aplicação do Direito impendente, designadamente das disposições legais supracitadas, que violou, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que determine a procedência da Reclamação de Crédito apresentada pelo Banco Recorrente, com todas as consequências legais.
Nestes termos, e nos que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, dando provimento ao presente recurso de apelação e revogando a sentença a quo, e em consequência determinando a procedência da Reclamação de Créditos apresentada pelo Banco Recorrente, farão como sempre, inteira e sã
JUSTIÇA!».

Não foram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi admitido pelo Tribunal a quo como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
O Exmº Srº Procurador-Geral-Adjunto, neste Tribunal da Relação, teve vista do processo, exarando posição no sentido de estar vedado ao Ministério Público a possibilidade de emitir parecer, por inaplicabilidade do artigo 87.º, n.º 3, do Código de Processo do Trabalho.
No uso dos poderes previstos nas alíneas b) e d) do artigo 652.º do Código de Processo Civil, foi determinada a devolução/baixa do processo ao Tribunal a quo para o efeito da fixação do valor da causa – refª citius 17230329.
Nessa sequência, o Tribunal a quo fixou o valor da causa no despacho refª citius 451789719, que foi notificado às partes e não mereceu oposição.
Foram colhidos os vistos, após o que o processo foi submetido à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

*

II - OBJECTO DO RECURSO
Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões da apelação da Reclamante, acima transcritas, (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 637.º n.º 2, 1ª parte e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicáveis por força do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho), e pelo que for de conhecimento oficioso ainda não decidido com trânsito em julgado, coloca-se à apreciação deste Tribunal da Relação a seguinte questão:
Apurar se o crédito reclamado beneficia de título executivo suficiente e, consequentemente, se tal crédito deve ser reconhecido e graduado.
*
III - FUNDAMENTAÇÃO
1 - Os factos que importam à decisão a proferir decorrem do relatório que antecede, podendo ser sintetizados, nos seguintes termos:
- O Banco 1..., SA prestou uma garantia autónoma a terceiro, por ordem da Executada (garantia junta com a reclamação de créditos como doc. 1), garantia que está por sua vez contra-garantida por um penhor sobre a conta bancária penhorada nos autos de execução (contrato de garantia junto com a reclamação de créditos como doc. 2);
- A garantia autónoma não foi accionada;
- O Banco 1..., SA não pagou nada por conta da mesma.
Tendo em conta os indicados documentos juntos pela Reclamante, que não foram colocados em crise, bem como o disposto no artigo 607.º, n.º 4, e 663.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (diploma legal a que se reportam as demais disposições infra a referenciar, desde que o sejam sem menção expressa em sentido adverso), haverá que ter em conta ainda a seguinte factualidade:
- Consta da Garantia Bancária N...624 (junta como doc. 1) o seguinte:
«O Banco 1..., SA (…), (doravante designado por “Banco”) em nome e a pedido de A..., SA (…) (doravante designado por o “Ordenante”), declara prestar a favor da B..., SA (…), (doravante designada por “Beneficiário”), uma garantia bancária autónoma, irrevogável e à primeira solicitação, no valor de Eur. 7.587,20 (sete mil, quinhentos e oitenta e sete euros e vinte cêntimos), correspondente ao depósito definitivo, destinada a garantir o bom e integral cumprimento das obrigações assumidas pelo Ordenante no contrato de “Inspeção e Ensaios de Carga aos Equipamentos de Elevação e Movimentação do Centro de Produção do Douro”, ao abrigo do Acordo Quadro n.º 04/17/OMFP, celebrado com o Beneficiário, regulado nos termos da legislação aplicável (o “Contrato”).
Por força desta garantia, o Banco obriga-se à entrega incondicional e sem quaisquer restrições, ao Beneficiário, das importâncias que este lhe solicitor, até ao valor global acima referido, sem que o Beneficiário tenha de justificar o pedido.
O Banco compromete-se a pagar ao Beneficiário as importâncias que este lhe exigir em conformidade com o parágrafo anterior, procedendo a esse mesmo pagamento no prazo de 3 (três) dias úteis após a receção do primeiro pedido escrito que este lhe faça.
O Banco aceita e reconhece não poder deixar de proceder ao pagamento das quantias solicitadas sob qualquer pretexto ou fundamento, nomeadamente de não estar demonstrada a mora, o incumprimento ou o cumprimento defeituoso por parte do Ordenante.
O Banco não poderá assim opor ao Beneficiário quaisquer meios de defesa de que o Ordenante possa prevalecer-se em face dele, Beneficiário, nem poderá apreciar a legalidade, o mérito ou quaisquer outras circunstâncias subjacentes aos pedidos efetuados, nem os motivos ou fundamentos invocados, renunciando, assim, expressamente e sem reservas, ao direito de contester a validade, legalidade ou garantia com qualquer crédito que tenha ou, eventualmente, venha a ter sobre o Beneficiário ou sobre o Ordenante.
Esta garantia permanecerá válida até que o Beneficiário comunique por escrito ao Banco o respetivo cancelamento, e manter-se-á em vigor até tal comunicação, independentemente de qualquer alteração que possa ocorrer relativamente ao Ordenante incluindo, designadamente, suspensão ou cessação de atividade, dissolução, liquidação ou insolvência.
Quaisquer questões referentes a esta garantia serão resolvidas de acordo com a legislação portuguesa, sendo o foro competente o de Lisboa, com renúncia expressa de qualquer outro.
Lisboa, 27 de maio de 2020
Banco 1..., SA”.
- Consta do Contrato de Garantia n.º ...22/20 (junto como doc. 2) o seguinte:
«Entre o
Banco e
A..., SA (…), adiante designado por Cliente.
o cliente também designado por Prestador de Garantia do Penhor sobre Depósitos Bancários,
É celebrado o presente contrato de constituição de garantia (o «Contrato»), que se rege pelas seguintes condições particulares e gerais:
Condições Particulares
1. Crédito Garantido:
Garantia Bancária n.º N00...524, no Montante Máximo Global de 7.667,20 EUR.
2. Comunicações:
(…)
Cliente(s)
A..., SA (…)
3. Garantias de Crédito:
- Livrança subscrita pelo Cliente
- Penhor de depósito bancário no montante de 7.587,20 EUR, depositado na conta nº ...49 do Banco, pelo prazo de 183 Dia(s), renovável(eis) em nome do(s) Prestador(es) de Garantia(s);
(…)».
*
2 – A questão enunciada – mérito do recurso
Segundo a Recorrente, reclamante, Banco 1..., SA, deve ser revogada a sentença, sendo reconhecida a existência do seu crédito sob condição. Argumenta, em substância, que: a garantia bancária que prestou permanece, atualmente, em vigor, e é plenamente válida, pelo que o Banco poderá vir a ser chamado a honrar a garantia em vigor; mantêm-se ativa a referida garantia, bem como a garantia do crédito a ela subjacente até à satisfação integral do seu crédito, o que legítima a reclamação de créditos deduzida; é profundamente injusto que o mesmo tipo de crédito - no caso, uma garantia bancária sob condição -, reclamada no âmbito de um processo executivo e em processo de insolvência, tenha um tratamento diferente e uma definição jurídica distinta, o que coloca em causa a própria segurança jurídica; na interpretação correta e útil do regime legal, o crédito com condição suspensiva deve equiparar-se ao crédito não vencido, apelando ao disposto nos artigos 788.º n.º 7 e 791.º, n.º 3, para sustentar a admissibilidade do respetivo crédito, com aplicação do preceituado neste último normativo (fazendo-se o respetivo desconto pela antecipação).
Diremos, desde já adiantando a conclusão, que consideramos não assistir razão à Recorrente, não procedendo a respetiva argumentação e inexistindo razões para alterar a decisão recorrida que, aliás, adota uma posição que se perfila como maioritária na nossa jurisprudência e que sufragamos.
Vejamos porquê.
Constitui entendimento pacífico que um dos pressupostos específicos da ação executiva, é que o dever de prestar conste de um título, o título executivo. Trata-se de um pressuposto de caráter formal, sem o qual inexiste o grau de certeza que o sistema tem como necessário à realização coativa de uma determinada prestação (ou do seu equivalente). O título executivo terá, pois, que oferecer a segurança mínima reputada suficiente quanto à existência do direito de crédito que se pretende executar. O título executivo constitui a base da execução, por ele se determinando “o fim e os limites da ação executiva» (artigo 10.º, n.º 5 e 6).
Do mesmo passo, é pacífico na doutrina e jurisprudência que, a par de requisitos formais ou extrínsecos de exequibilidade relacionados com o título executivo enquanto documento conferente de um grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da ação executiva, existem requisitos, ditos intrínsecos, materiais ou substanciais, que também condicionam a exequibilidade do direito, inviabilizando, na sua falta, a satisfação coativa da pretensão. Tal acontece, por exemplo, quando a prestação não seja certa, exigível e líquida, ou ainda, quando ocorre ato extintivo ou modificativo da obrigação. A falta, não suprida, de qualquer destas condições materiais da prestação - tal como a ausência de outros requisitos do mesmo género - obsta à exequibilidade e constitui fundamento legal de oposição à execução, nos termos do artigo 729.º, n.º 1, alínea e) e 731.º.
Como resulta inequivocamente do artigo 713.º, sob a epígrafe “requisitos da obrigação exequenda”, pressupõe-se uma obrigação certa, exigível e líquida, pelo que sem a verificação de tais requisitos intrínsecos ou materiais, ocorre a sobredita inviabilização.
Nesta consonância, quando não constem do título os requisitos da certeza, exigibilidade e liquidez da obrigação exequenda, devem ser preenchidos pelo exequente através dos procedimentos previstos nos artigos 714.º a 716.º.
O artigo 788.º, n.º 1., dispõe que só o credor de garantia real sobre os bens penhorados pode reclamar, pelo produto destes, o pagamento dos respetivos créditos, sendo que a primeira parte do n.º 2 do mesmo preceito acrescenta que a reclamação tem por base um título exequível.
Daqui decorre que, também em sede da reclamação e graduação de créditos, o título executivo se perfila como um verdadeiro pressuposto de caráter formal - a reclamação tem por base um título exequível (artigo 788.º, n.º 2) -, cuja falta ou insuficiência determina a improcedência da reclamação de créditos [neste sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-03-2021, processo n.º 6528/18.9.T8GMR-A.G1.S1, Relatora Conselheira Maria da Graça Trigo, disponível in www.dgsi.pt].
O credor é admitido à execução, ainda que o crédito não esteja vencido; mas se a obrigação for incerta ou ilíquida, terá que recorrer aos meios de que dispõe o exequente para a tornar certa ou líquida (artigo 788.º, n.º 7).
A reclamação de créditos pressupõe, pois, que:
- o credor disponha de garantia real sobre os bens penhorados;
- o credor disponha de um título executivo;
- a obrigação seja certa, líquida e exigível.
Descendo ao caso dos autos, resulta dos mesmos que: a Reclamante celebrou com a Executada/Reclamada um contrato de prestação de uma garantia bancária autónoma e à primeira solicitação a favor da sociedade B..., SA, ao abrigo do qual o Banco reclamante prestou, a pedido da Executada e a favor daquela beneficiária, a garantia bancária (N00...624) no valor de € 7.587,20; para garantia do integral e pontual pagamento das obrigações assumidas pelo Banco, naquele contrato de garantia bancária, a Reclamante celebrou com a Executada, um contrato de garantia através do qual constituiu a favor da Reclamante, o penhor de depósito bancário no montante de € 7.587,20 depositado na conta nº ...49 do Banco; o montante em causa foi objecto de penhora a 23.11.2022, configurando a verba 3 do respectivo auto de penhora.
Não subsistem dúvidas que a garantia prestada pela Reclamante consiste numa garantia autónoma e, mais concretamente, dada a qualidade de entidade bancária da mesma, numa garantia bancária autónoma.
No sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-06-2021 [processo n.º 15932/16.6T8LSB-A.L1.S1, Relatora Conselheira Rosa Tching, disponível in www.dgsi.pt], sintetiza-se, em traços gerais, a natureza do contrato de garantia bancária autónoma, aí constando o seguinte:
«I. O contrato de garantia bancária autónoma, é um contrato atípico, inominado, admitido no nosso sistema jurídico ao abrigo do princípio da liberdade contratual previsto no artigo 405º, do Código Civil.
II. Define-se como sendo o contrato, mediante o qual o garante, normalmente um banco, obriga-se a pagar a um terceiro beneficiário certa quantia, verificado o incumprimento de um contrato-base por parte do mandante ou ordenante (devedor desse contrato), sem que o garante possa opor ao beneficiário (credor no contrato base) quaisquer exceções reportadas ao contrato fundamental, a menos que constem, expressamente, do próprio texto da garantia ou haja prova inequívoca e irrefutável de dolo, má fé, de abuso de direito, de que o contrato-base foi cumprido; de que houve resolução do contrato-base por facto não imputável ao devedor ou ainda de que houve incumprimento do beneficiário, quer por ter declarado de que não está em condições de cumprir ou por ter modificado unilateralmente os termos do contrato.
III. Diferentemente do que acontece na garantia bancária simples, em que o beneficiário só pode exigir o cumprimento da obrigação do garante desde que prove o incumprimento da obrigação do devedor ou a verificação do circunstancialismo que constitui pressuposto do nascimento do seu crédito face ao garante, na garantia bancária automática ou à primeira solicitação (on first demand) não é exigível essa prova, visto que o garante, ao primeiro pedido do beneficiário, está obrigado a entregar imediatamente a este a quantia pecuniária fixada.(…)».
Na prática bancária, temos duas vertentes ou modalidades de contrato de garantia bancária autónoma, a saber: a garantia bancária simples e a garantia bancária automática ou à primeira solicitação (também designada on first demand).
No caso, estamos perante uma garantia bancária autónoma e à primeira solicitação.
Por sua vez, o penhor - garantia invocada na reclamação -, de acordo com o disposto no artigo 666.º, n.º 1, do Código Civil, confere ao credor pignoratício o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou “outros direitos não suscetíveis de hipoteca”, pertencentes ao devedor ou a terceiro.
Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7-04-2022 [processo n.º 8872/14.5T8PRT-A.P1, Relator Desembargador Filipe Caroço, disponível in www.dgsi.pt], que foi seguido pela decisão recorrida e que aqui também acompanhamos, por concordarmos com a respetiva linha argumentativa e posição sufragada, o penhor é «um direito real de garantia (qualificação discutível no caso de penhor de direitos) cujo conteúdo consiste no poder que confere ao seu titular “de, mediante um ato de disposição, realizar à custa desta (a coisa ou o direito), sem que se torne necessária a cooperação do seu proprietário, ou mesmo contra a sua vontade, determinado valor”, com preferência face aos “credores comuns do respetivo proprietário, bem como sobre os credores que disponham também sobre ela de uma garantia, mas de grau inferior.[14].
Em regra, a execução do penhor faz-se por via executiva.
O credor pignoratício deve cobrar o crédito empenhado logo que este se torne exigível (art.º 685º do Código Civil).».
No caso em análise, estamos perante um penhor que incide sobre depósito bancário.
Relativamente ao tipo de penhor aqui em causa, refere, L. Miguel Pestana de Vasconcelos [in Direito das Garantias, Almedina, 2010, págs. 287/288]: «Uma figura que se desenvolveu no âmbito da prática bancária foi a de penhor de uma conta bancária. Assim, um sujeito que tem uma quantia depositada num banco e que, nessa medida, é titular do crédito à sua restituição, pode constituir um penhor sobre esse crédito a favor de um terceiro ou mesmo do próprio banco, devedor da referida quantia. O banco torna-se, dessa forma, titular de um penhor sobre um crédito de que é ele próprio devedor. Em caso de incumprimento da obrigação garantida, o banco satisfaz-se pela própria quantia aí depositada.».
A qualificação jurídica do penhor de conta bancária não tem sido uniforme na doutrina e na jurisprudência, sendo que na jurisprudência atual a propensão é para a respetiva qualificação como penhor de direitos (cfr. artigo 679.º do Código Civil), na modalidade de penhor de créditos.
De qualquer modo, com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 105/2004 de 8 de maio, o penhor de conta bancária deverá ser configurado como um penhor financeiro, desde que verificados os pressupostos ali previstos.
O penhor sobre aplicações financeiras está previsto no identificado Decreto-Lei, que regula os contratos de garantia financeira, como o contrato de penhor financeiro, incorporando na ordem jurídica interna a Diretiva nº 2002/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 6 de junho, relativa aos acordos de garantia financeira. O diploma legal em referência contém algumas das especialidades em relação ao regime geral do penhor previsto nos artigos 666.º e seguintes do Código Civil (cfr. máxime os artigos 9.º, n.º 1, e 11.º, n.º 1, als. a) e b), do citado Decreto-Lei).
Ora, no caso, a obrigação de pagamento da quantia reclamada, assumida pelo Banco reclamante com a emissão da garantia bancária, está sujeita a uma condição suspensiva, expressamente prevista no n.º 3 do artigo 666.º do Código Civil.
Nos termos do artigo 270.º do Código Civil, as partes podem subordinar a um acontecimento futuro e incerto a produção dos efeitos do negócio jurídico, dizendo-se suspensiva essa condição.
Tal significa que, não ocorrendo essa condição, o negócio não produz os efeitos jurídicos previstos pelas partes contratantes.
Nessa decorrência, como certeiramente se escreve no citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7-04-2022, sendo perfeitamente transponível para o caso em apreciação, «[a] exequibilidade do penhor, pela sua própria natureza e finalidade, estava vinculada à alegação e prova, pelo Banco reclamante, de que cumpriu, com o pagamento de alguma prestação, a favor da sociedade Beneficiária, credora da Executada, no âmbito da garantia bancária autónoma que prestou. Sem o pagamento de alguma quantia ao abrigo daquele contrato, sem disposição patrimonial, não há qualquer crédito vencido e exigível que possa justificar execução do penhor. Se nunca foi acionada a garantia bancária e o Banco não respondeu conforme as obrigações que nela assumiu, não pode acionar a garantia do penhor contra a devedora executada. Como resulta do contrato, o penhor foi constituído para garantir o integral e pontual pagamento das obrigações assumidas pelo Banco.
Sem a demonstração da exigência de pagamento pelo beneficiário da garantia bancária e a efetivação desse pagamento pelo garante, este não é titular de qualquer crédito sobre o dador dessa ordem (o garantido). Não alegando, nem demonstrando, o reclamante, a verificação dessa condição, é inquestionável que não é titular de qualquer direito de crédito sobre a executada.
O penhor destinou-se a garantir potenciais créditos do BANCO ... que, na realidade, não seriam exigíveis se a executada não entrasse em incumprimento com a beneficiária da garantia bancária e, por isso, não fosse acionada a garantia autónoma.
Ora, não tendo a reclamante alegado e demonstrado o acionamento da garantia bancária, com o pagamento de qualquer quantia em seu cumprimento, não se constituiu a seu favor qualquer crédito cujo pagamento o penhor garantisse; não é titular de qualquer crédito exigível à luz do contrato de penhor.
O contrato de garantia bancária e o contrato de penhor, juntos pela reclamante aos autos de relação de créditos podem preencher os elementos extrínsecos de exequibilidade desses títulos executivos, mas falta, no caso, a prova da exigibilidade do crédito reclamado, por não se poder afirmar que a reclamante tivesse desembolsado a quantia reclamada ou qualquer outra a que o penhor servisse de garantia. Sem a demonstração da existência do crédito (garantido), não há crédito exigível nem título executivo suficiente ou perfeito[16].
Note-se que a não exigibilidade que aqui está em causa não está relacionada com a falta de vencimento da obrigação, mas com a verificação da condição suspensiva da obrigação. Como ensina Lebre de Freitas[17], a prestação não é exigível quando, não tendo ocorrido o vencimento, este não está dependente de mera interpelação, como é o caso em que a constituição da obrigação foi sujeita a condição suspensiva e ainda não se verificou. E sublinha: “O conceito de exigibilidade não se confunde com o de vencimento nem com o de mora do devedor.”
A exequibilidade do crédito é um elemento constitutivo do direito do exequente/reclamante à cobrança coerciva do seu crédito.».
Sublinhe-se que a verificação deste pressuposto de exequibilidade é de conhecimento oficioso (artigos 726.º, n.º 2, alínea a), 791.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2, parte final).
No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-11-2011 [Relator Desembargador Pedro Martins, disponível in www.dgsi.pt], que versa sobre situação idêntica à dos presentes autos, expõe-se o seguinte:
«(…)desconsiderando a questão do vencimento do crédito, o credor reclamante que aqui está em causa é um credor que, em princípio, teria de estar em condições de poder lançar mão de uma execução com base num título exequível, o que, por sua vez, pressupõe também uma obrigação exequenda, isto é, uma obrigação que seja certa, exigível (de novo sem prejuízo da questão do vencimento) e líquida (art. 713 do CPC).
O artigo 715/1 do CPC, sob a epígrafe, entre o mais, de ‘obrigação condicional’, dispõe: Quando a obrigação esteja dependente de condição suspensiva […], incumbe ao credor alegar e provar documentalmente, no próprio requerimento executivo, que se verificou a condição […]. E acrescenta o n.º 2: Quando a prova não possa ser feita por documentos, o credor, ao requerer a execução, oferece de imediato as respectivas provas.
Portanto, uma obrigação que esteja dependente de uma condição suspensiva que ainda não se verificou não é uma obrigação exequível e por isso não pode ser objecto de uma reclamação de créditos.».
No caso dos autos, a reclamante Banco 1..., SA, não alegou, nem demonstrou o acionamento da garantia bancária - ou seja, que teve que pagar o montante reclamado de € 7.587,20 que estava titulado pela garantia bancária, reconhecendo, ao invés, que não o fez no recurso apresentado -, pelo que não se constituiu a seu favor qualquer crédito cujo pagamento o penhor garantisse. A Reclamante não é titular de qualquer crédito exigível à luz do contrato de penhor, na medida em que não se pode afirmar que a Reclamante tivesse desembolsado a quantia reclamada ou qualquer outra a que o penhor servisse de garantia.
Assim, e sem a demonstração da existência do crédito (garantido), não há crédito exigível nem título executivo suficiente ou perfeito.
Saliente-se que não colhe a argumentação da Reclamante no sentido de que o crédito com condição suspensiva deve equiparar-se ao crédito não vencido, apelando ao disposto nos artigos 788.º n.º 7 e 791.º, n.º 3, para sustentar a admissibilidade do respetivo crédito, com aplicação do preceituado neste último normativo (fazendo-se o respetivo desconto pela antecipação).
Importa ter presente que, quando o artigo 788.º, n.º 7, fala em “ainda que o crédito não esteja vencido”, não engloba, nem pode englobar, as situações de créditos sujeitos a condição suspensiva.
Sobre esta questão se debruçou o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-11-2022 [processo n.º 503/07.6TCSNT-B, Relator Desembargador Adeodato Brotas, disponível na já citada base de dados].
Este Acórdão começa por referir que o garante, no âmbito do contrato de garantia bancária autónoma, não tem qualquer direito de crédito sobre o dador da ordem antes da verificação do caso material de garantia – que funciona como a circunstância de eventualidade que desencadeia a potencialização de uma eficácia preexistente - e que, por isso, nem sequer se pode falar num direito de crédito sob condição suspensiva.
Nesse seguimento, conclui que o credor reclamante antes dessa verificação não tem um direito de crédito sobre o dador da ordem pela quantia correspondente ao valor assumido na garantia bancária que prestou a favor da beneficiária, não podendo assim ser-lhe reconhecido qualquer crédito no âmbito da reclamação de créditos.
Mais conclui que a esta mesma conclusão se chegaria se se entendesse que o garante possui um crédito sob condição suspensiva sobre o dador da ordem, analisando para o efeito o artigo 788.º, n.º 7, na perspetiva da possibilidade de aí serem englobadas as situações de créditos sujeitos a condição suspensiva, o que rejeitou, com uma fundamentação que merece a nossa inteira concordância e que passamos a transcrever:
«Corresponde à verdade que nos termos do art.º 865º nº 7 do CPC/95, aplicável aos autos – de resto com redacção igual à do art.º 788º nº 7 do CPC/13, invocado na sentença e nas alegações de recurso – “O credor é admitido à execução ainda que o crédito não esteja vencido; …”. E, que a consequência dessa admissão de reclamação de créditos ainda não vencidos é, nos termos do art.º 868º nº 3 do CPC/95 (igual ao art.º 791º nº 3 do CPC/13), “…a sentença de graduação determinará que, na conta final para pagamento, se efectue desconto correspondente ao benefício da antecipação.”
Tentemos perceber a razão de ser deste preceito.
Porque é que a norma manda que se desconte o valor correspondente ao benefício da antecipação?
Porque a reclamação de créditos ocorre antes do tempo em que deveria ocorrer a prestação do devedor, coloca-se, assim, o problema do interusurium.
O interusurium relaciona-se com o cumprimento antecipado, e resolve-se distinguindo-se se o prazo de cumprimento/tempo da prestação, é estabelecido a favor do credor ou a favor do devedor.
Quando o prazo ou termo é estabelecido a favor do devedor, importa distinguir entre a dívida de capital e de juros. No caso da dívida de capital, apesar de a reclamação ser feita antes do termo do prazo de vencimento, o devedor, não obstante, não pode deixar de pagar o montante de capital. No caso da dívida de juros, o devedor não tem de pagar a parte de juros relativa ao tempo ainda não decorrido. (Cf. Nuno Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, 2011, pág. 385 e segs). Percebe-se, assim, o porquê do art.º 868º nº 3 CPC/95 (art.º 791º nº 3 CPC/13).
Mas quando a norma fala em “…ainda que o crédito não esteja vencido.” (art.º 865º nº 7 CPC/95 ou 788º nº 7 do CPC/13) será que engloba situações de créditos sujeitos a condição suspensiva?
Entendemos que não e vejamos porquê.
Do art.º 802º do CPC/95 (e o art.º 713º CPC/13) decorre que o título executivo deve demonstrar uma obrigação que seja certa, líquida e exigível.
A exigibilidade é a qualidade substantiva da obrigação que deva ser cumprida de modo imediato e incondicional após a interpelação do devedor. Tal qualidade não é processual, mas substantiva: a verificação do facto do qual depende o cumprimento – interpelação pelo credor, decurso do prazo de vencimento, ocorrência de condição realização da contraprestação. (Rui Pinto Ação Executiva, 2018, AAFDL, pág. 230). A exigibilidade integra a causa de pedir da execução, a certeza e a liquidez consubstanciam a qualidade da determinação do pedido. “A lei distingue procedimentalmente a execução: (i) de obrigações com prazo; (ii) de obrigações condicionais ou dependentes de contraprestação; (iii) e de obrigações puras. A sua análise permitirá entender por que a exigibilidade da obrigação não coincide sempre com o vencimento da obrigação; pode haver obrigação ainda não vencida mas exigível – a obrigação pura – e pode haver obrigação vencida, mas ainda não exigível – a obrigação vencida, mas em que o credor esteja em mora” (Rui Pinto Ação Executiva, 2018, AAFDL, pág. 233).
Quanto às obrigações com prazo a favor do devedor apenas são exigíveis no termo do prazo, nos termos do art.º 805º nº 2 al. a) do CC, ressalvados casos de perda de benefício do prazo nos termos dos art.ºs 780º e 781º do CC.
Se a prestação da obrigação estiver dependente de condição suspensive ou de prestação simultânea por parte do credor ou de terceiro, incumbe ao exequente proceder à demonstração do facto externo da exigibilidade: a verificação da condição, ou de que efectuou ou ofereceu a sua prestação.
Nas obrigações puras, a prestação da obrigação vence-se com a interpelação (art.º 805º nº 1 do CC). Nas obrigações sujeitas a prazo certo, a prestação da obrigação vence-se no termo do prazo.
Ora, exigibilidade e vencimento são conceitos não totalmente coincidentes. Em termos rigorosos, o vencimento está relacionado com o tempo da prestação; enquanto que a exigibilidade é, como se referiu, a qualidade substantiva da obrigação que deva ser cumprida de modo imediato e incondicional após a interpelação do devedor.
Como vimos, quando a lei, no art.º 865º nº 7 do CPC/95 (e 788º nº 7 do CPC/2013) se refere à possibilidade de o credor reclamar o seu crédito “…ainda que o crédito não esteja vencido.”, reporta-se, somente, ao vencimento e não às outras circunstâncias determinativas da inexigibilidade da obrigação. Justamente por ser assim, Amâncio Ferreira (Curso de Processo de Execução, 6ª edição, pág. 286 e seg.) diz: “O credor que pretenda reclamar o seu crédito na execução deve gozar de garantia real sobre os bens penhorados e dispor de título exequível (art.º 865º nºs 1 e 2). Se a obrigação não for certa ou líquida, o credor deve torna-la certa ou líquida, ou actuando da mesma forma que o exequente em situação idêntica (art.º 865º nº 7 2º parte).
Diversamente do que ocorre com o crédito exequendo, não necessita de se encontrar vencido o crédito do credor concorrente (art.º 865º nº 7. 1ª parte). Mantendo-se a situação aquando da prolação da sentença de graduação, deve o juiz determinar, em concessão do interusurium, que, na conta final para pagamento, se proceda ao desconto correspondente ao benefício da antecipação (art.º 868º nº 3).
A verificação de outra situação de inexigibilidade da obrigação, não identificada com a falta de vencimento, não autoriza a reclamação do crédito.” (sublinhado nosso).
É o que sucede no caso dos autos, visto que a causa de inexigibilidade do crédito não resulta da falta de vencimento mas da falta de verificação da condição suspensiva.
De resto, a confirmar que o nº 7 do art.º 865º se reporta somente a situações de não vencimento em sentido técnico está o art.º 868º nº 3 que manda proceder ao interusurium: desconto do valor correspondente ao benefício da antecipação do vencimento
Em suma, também por aqui se concluiria que o credor reclamante, Banco, SA, não tem direito a reclamar o crédito dos 74.640€ pela garantia bancária que prestou, a favor da CM de Sintra.».
Um crédito ainda não vencido não é, pois, um crédito sob condição suspensiva, nem é equiparável ao mesmo, na medida em que um crédito não vencido já é eficaz, enquanto um crédito sob condição suspensiva não o é (artigo 270.º, n.º 1, do Código Civil).
Acresce que, num crédito sob condição suspensiva, ainda não verificada, não se pode colocar, sequer, a questão do vencimento antecipado.
Por último, importa dizer que não colhe igualmente a argumentação da Reclamante no sentido da alegada injustiça e colocação em causa da própria segurança jurídica, decorrente do distinto tratamento do mesmo tipo de crédito, conforme seja reclamada no âmbito de um processo executivo e em processo de insolvência.
A Reclamante está a reportar-se ao disposto no artigo 50.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, versão atualizada – a seguir designado por CIRE.
Estão em causa processos distintos, que são regulados de forma igualmente distinta pelo legislador.
Refira-se que na insolvência existe um regime específico dos créditos condicionais que acautela a natureza condicional do direito correspondente.
Com efeito, no âmbito da insolvência o crédito condicional nunca será pago sem a certeza de que a condição se verificará, tal como resulta do regime previsto no artigo 181.º do CIRE [vide Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, Quid Juris, 3ª edição, págs. 666-669].
No processo de insolvência, se a condição não estiver preenchida aquando do rateio final as quantias depositadas e a elas relativas são rateadas pelos demais credores, conforme decorre do artigo 181.º do CIRE.
Ademais, não vislumbramos como pode ser aplicável ao processo executivo o mecanismo do artigo 181.º, n.º 1, do CIRE, e muito menos as soluções das alíneas a) e b) do n.º 2 do mesmo normativo.
O regime previsto para a execução comum (execução singular), ao contrário do sustentado pela Reclamante, não tem nada de injusto.
De facto, o que não se afigura admissível é que alguém possa vir cobrar de um crédito que neste momento não existe, nem sequer se sabe se alguma vez virá a existir.
Nesta sede, são impressivas as interrogações colocadas no citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-11-2021, e que são perfeitamente transponíveis para a presente situação:
«A que propósito é que o B-SA poderia receber o pagamento por um crédito que não se sabe se algum dia virá a ter eficácia, ou seja, por um reembolso que não se sabe se alguma vez corresponderá a um desembolso?
Como diz a sentença recorrida e é uma evidência, o B-SA apenas terá direito ao pagamento do reembolso se e quando vier a pagar alguma coisa à beneficiária da garantia. Como está dependente de uma condição, que pode não se vir a verificar, o B-SA não pode receber, antes disso, o reembolso, sob pena de ficar com o valor correspondente sem causa para isso, ou, dito de outro modo, de ficar enriquecido injustamente (é reembolsado de algo que não desembolsou).
E se, depois, o B-SA entendesse que não podia ficar com o pagamento para o caso de não ocorrer a condição suspensiva (isto é, para o caso de o beneficiário da garantia nunca accionar a garantia bancária), devolvê-lo-ia quando? Cinco, dez ou vinte anos depois, quando tivesse a certeza que a garantia nunca seria accionada?».
É que resultaria incompreensível, como se aponta no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9-02-2009 [processo n.º 495/05.6TBSJM, Relator Desembargador Vieira e Cunha, disponível in www.dgsi.pt] «que alguém se pudesse cobrar de um crédito que, em rigor, não se sabe se alguma vez se chegará a constituir (embora se admita a possibilidade de que tal aconteça, o que em nada modifica o juízo antecedente).».
Sobre situações equiparáveis à dos autos e no sentido da posição sufragada, podem ver-se os Acórdãos supra citados e, bem assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-02-2012 [processo n.º 8817/09.4YYPRT-C.P1, Relator Desembargador Pinto de Almeida] e os Acórdãos do Tribunal de Lisboa de 21-03-2012 [processo n.º 287/10.0TTPDL-A.L1-4, Relator atual Juiz Conselheiro José Eduardo Sapateiro] e de 24-02-2011 [processo n.º 5510/09.1TVLSB-D.L1-2, Relatora Desembargadora Lúcia Sousa], todos disponíveis in www.dgsi.pt. Nesse mesmo sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7-11-2012, proferido no âmbito do referido processo n.º 287/10.0TTPDL-A.L1-4, Relator Conselheiro Pinto Hespanhol, que confirmou o Acordão recorrido de 21-03-2012, disponível na mesma base de dados.
Em conclusão, entendemos que a Reclamante não dispõe de título executivo suficiente para deduzir reclamação com base no penhor do saldo, desde logo por falta de crédito exigível, sendo de manter a decisão recorrida.
Improcede, pois, a apelação.
Quanto a custas, havendo improcedência do recurso, as custas do recurso ficam a cargo da Recorrente (artigo 527º do Código de Processo Civil).
***

IV – DECISÃO
Em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Notifique.

(texto processado e revisto pela relatora, assinado eletronicamente)


Porto, 30 de outubro de 2023
Germana Ferreira Lopes
Paula Leal de Carvalho
Teresa Sá Lopes