RECURSO
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
PERDA DE BENEFÍCIO DO PRAZO
DEVEDOR INSOLVENTE
RESOLUÇÃO CONDICIONAL
Sumário

I) Se a parte nas alegações focou com objetividade a sua discordância sobre o decisão impugnada e tomou uma posição conclusiva de discordância em questões essenciais que referenciou, o Tribunal de recurso está em condições de conhecer do objeto do recurso, não sendo caso de prolação do despacho de convite a que se reporta o n.º 3 do artigo 639.º do CPC, por não ocorrer, relativamente à falta de inclusão nas conclusões de impugnação da matéria de facto pretendida incluir nos factos provados da decisão recorrida, deficiência, complexidade ou obscuridade recursória que o justifique, nem a situação a que se reporta a parte final do n.º 3 do mesmo normativo.
II) Trata-se, antes, de uma questão que contende com o cumprimento, pela apelante, dos ónus de impugnação a que se refere o n.º 2 do artigo 640.º do CPC e, que, por isso, não determina tal despacho de aperfeiçoamento.
III) Não identificando a apelante nas conclusões da apelação quais os concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados, nem os concretos meios probatórios, constantes do processo, que imporiam decisão diversa da recorrida, nem, igualmente, a decisão alternativa que, em concreto e factualmente, devesse ser proferida, deve ser rejeitado o recurso referente à impugnação da matéria de facto, por inobservância dos ónus de impugnação contidos nas alínea a), b) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC.
IV) Nos termos do artigo 782.º do CC, a perda do benefício do prazo tem caráter pessoal, só afetando o devedor, não se comunicando nem a terceiros garantes da obrigação, nem a codevedores, conjuntos ou solidários.
V) Neste sentido, a perda do benefício do prazo resultante da insolvência de um só dos devedores, quando a dívida seja solidária, não se estende aos outros co-obrigados, desde que não tenha sido estipulada convenção em contrário ou não se verifique, também quanto a eles, causa determinante dessa perda.
VI) Trata-se, contudo, de norma de natureza supletiva, admitindo-se como possível que, por convenção das partes, de acordo com o princípio da liberdade contratual, consagrado no artigo 405.º do CC, a perda do benefício do prazo se estenda aos coobrigados ou aos terceiros.
VII) Não tendo ocorrido perda do benefício do prazo conferido a favor do devedor, o credor só poderá exigir do garante ou do coobrigado o imediato pagamento da totalidade da dívida, antecipadamente, se previamente o tiver interpelado, com essa cominação, para pôr termo à mora, pagando as quantias em dívida vencidas pelo decurso do prazo contratual para elas estipulado.
VIII) Estipulando-se nos contratos de mútuo dos autos que, “sem prejuízo das demais faculdades que legal ou contratualmente lhe caibam poderá o Banco resolver o presente contato e considerar imediatamente vencidas todas as obrigações e responsabilidades dele emergentes quando ocorra qualquer uma das seguintes circunstâncias: (…) c) esteja em curso contra o Mutuário qualquer execução, penhora, arresto ou qualquer providência que implique limitações à livre disponibilidade dos bens (…)” e quando ocorra, “d) a execução, o arresto, a penhora ou qualquer outra forma de apreensão judicial do imóvel hipotecado; (…), h) a declaração de falência do mutuário ou, independentemente disso, a verificação de uma substancial alteração da sua situação económica ou financeira (…)”, o mutuante poderia considerar imediatamente vencidas as obrigações dos mutuários – perdendo estes o benefício do prazo constituído a seu favor – nas situações nelas identificadas, nomeadamente, nos casos de ocorrer a declaração de insolvência do mutuário ou de ter lugar alguma providência que determinasse limitações à livre disponibilidade dos bens objeto de hipoteca.
IX) Tendo a mutuante optado, ilegitimamente (porque sem causa que o legitimasse), por não debitar da conta bancária da embargante as prestações que se venceram em 01-07-2019 e as subsequentes, assinalando, apenas em 29-10-2019, que a situação de insolvência do co-mutuário determinava, na sua perspetiva, o vencimento imediato de todas as prestações de responsabilidade dos mutuários, fê-lo, num momento em que se encontrava já em mora relativamente à cobrança das prestações por conta da embargante, não tendo procedido à sua tempestiva cobrança, não obstante a mutuária dispôr, às datas de vencimento das correspondentes prestações, de saldos positivos para o efeito, incorrendo na situação de mora creditória, a que se refere o artigo 813.º do CC.
X) A resolução contratual promovida, nesse quadro, pela mutuante, porque infundada, é ineficaz face à embargante.

Texto Integral

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
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1. A presente execução para pagamento de quantia certa foi instaurada em 18-12-2019 pelo Banco Santander Totta, S.A. (tendo sido habilitada, como cessionária daquele, a embargada FONTEOS, S.A., por sentença de 24-10-2022) contra WR, tendo sido apresentado como título executivo dois “Contratos de Mútuo com hipoteca”, celebrados por escritura pública e respetivos documentos complementares.
O então exequente alegou no requerimento executivo, no campo intitulado “Factos”, o seguinte:
“I. Dos Contratos de Mútuo com hipoteca.
1. Em 28 de Janeiro de 2002 o Exequente concedeu a LL (Insolvente) e VR dois empréstimos:
a) um destinado a aquisição de habitação ao abrigo do Regime Geral de Credito para aquisição de habitação própria permanente, no montante de € 99.759,57 (noventa e nove mil setecentos e cinquenta e nove euros e cinquenta e sete cêntimos) – vide contrato junto como doc. 1.
b) outro destinado a fazer face a compromissos financeiros, no montante de €44.891,81 (quarenta e quatro mil oitocentos e noventa e um euros e oitenta e um cêntimos) -vide contrato junto como doc.2.
2. Os empréstimos foram integralmente disponibilizados e utilizados nessa data, tendo os Mutuários deles se confessado devedores.
3. O prazo de pagamento dos empréstimos era de 360 (trezentas e sessenta) prestações mensais, sucessivas e constantes de capital e juros, vencendo-se a primeira no último dia do mês subsequente o da assinatura dos presentes contratos e as restantes em igual dia dos meses seguintes.
4. Para titular o bom e integral pagamento do capital, juros e demais encargos, foram constituídas duas hipotecas sobre a fracção autónoma designada pela letra “E”, descrita na 1.ª CRP de Oeiras sob o n.º … e inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o art.º …, freguesia de Porto Salvo, concelho do Oeiras, estando as hipotecas registadas a favor do exequente.
5. As últimas prestações, em ambos os contratos, foram pagas em 24 de Julho de 2019, não tendo sido pagas quaisquer das subsequentes.
6. O Mutuário LL foi declarado e nessa medida o Exequente por cartas datadas de 29 de Outubro de 2019 informa os mutuários do vencimento das obrigações – vide docs. 3, 4, 5 e 6.
7. O exequente por cartas datadas de 13 de Novembro de 2019 resolve os contratos de empréstimo e interpela a mutuária não insolvente ao pagamento, o que não sucedeu – vide Docs. 7 e 8.
8. À presente data (12.12.2019), está em dívida o valor total de € 75.344,36 (setenta e cinco mil trezentos e quarenta e quatro euros e trinta e seis cêntimos) como a seguir se discrimina:
a) Para o Contrato de crédito identificado em a):
Capital ………………€ 50.739,23 (cinquenta mil setecentos e trinta e nove euros e vinte e três cêntimos);
Juros à data da resolução do contrato (13.11.2019) ………€ 631,93 (seiscentos e trinta e um euros e noventa e três cêntimos);
Juros à taxa contratada de 1,059% acrescida da sobretaxa de mora de 3% (de 14.11.2019 a 12.12.2019) …………€ 157,99 (cento e cinquenta e sete euros e noventa e nove cêntimos);
Imposto de selo ………€ 31,60 (trinta e um euros e sessenta cêntimos);
Despesas.......... € 52,56 (cinquenta e dois euros e cinquenta e seis cêntimos);
b) Para o Contrato de crédito identificado em b):
Capital ………………€ 23.392,87 (vinte e três mil trezentos e noventa e dois euros e oitenta e sete cêntimos);
Juros à data da resolução do contrato (13.11.2019) ………€ 252,33 (duzentos e cinquenta e dois euros e trinta e três cêntimos);
Juros à taxa contratada de 1,059% acrescida da sobretaxa de mora de 3% (de 14.11.2019 a 12.12.2019) …………€ 72,84 (setenta e dois euros e oitenta e quatro cêntimos);
Imposto de selo ………€ 13,01 (treze euros e um cêntimos);
9. Pretende o credor ser ressarcido do montante em dívida de € 75.344,36 (setenta e cinco mil trezentos e quarenta e quatro euros e trinta e seis cêntimos) acrescido de juros vincendos e demais encargos e despesas que faça para ser ressarcido dos seus créditos incluindo despesas judiciais e extrajudiciais, beneficiando os mesmos de hipoteca”.
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2. Por despacho de 26-01-2021 (fls 80) foram liminarmente admitidos os embargos deduzidos pela executada - tendo a exequente deduzido contestação.
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3. Por despacho de 27-09-2021 (fls 100) foi dispensada a audiência prévia, saneada a causa (relegando-se para a sentença a apreciação das exceções de mora da credora, ilicitude das resoluções, e incumprimento do DL 74-A/17), fixados o objeto do litígio e o valor da causa, selecionados os temas da prova, e apreciados os requerimentos probatórios.
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4. Teve lugar audiência de discussão e julgamento, com produção probatória.
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5. Na sequência, em 03-02-2023, foi proferida sentença que julgou procedentes os embargos e declarou extinta a execução.
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6. Não se conformando com a referida sentença, dela apela a embargada, tendo formulado as seguintes conclusões:
“A. Em 28 de Janeiro de 2002 o Exequente concedeu a LL (Insolvente) e VR dois empréstimos, os quais constituem título executivo na presente execução;
B. Conforme decorre da clausula décima do documento complementar, o exequente originário poderia resolver unilateralmente o contrato, nos termos e para os efeitos da clausula décima em determinadas situações, designadamente, caso houvesse lugar a apreensão do imóvel, o que veio a suceder nos autos de insolvência no co mutuário LL, ou caso houve lugar a uma situação de falência, ora insolvência, o que, veio a suceder dado que um dos co mutuários se tornou insolvência cfr. provado nos autos;
C. Permitindo os contratos a resolução dos negócios em determinadas situações, e considerando-se as resoluções como provadas, uma vez vindo esses requisitos a concretizar-se, não pode a resolução ser considerada ilícita, devendo assim a resolução ser considerada licita”.
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7. A embargante apresentou contra-alegações considerando que não merece provimento o recurso, concluindo que:
“I. Tal como foi apresentado, o recurso não pode, desde logo, ser apreciado por este Venerando Tribunal da Relação por inobservância do disposto no n.° 2 do artigo 639.° do CPC, não cumprindo devidamente a recorrente o ónus que sobre si impende de alegar e de formular conclusões inteligíveis.
Com efeito,
II. Pese embora a recorrente faça menção, nas suas ale[…]gações, de que "entende (...) que devem considerar-se provados os seguintes factos", não impugna a decisão quanto à matéria de facto, nem concretiza ou fundamenta a escassa alegação que faz quanto aos factos, sendo certo que a recorrente acaba por circunscrever o objecto do seu recurso a uma única questão de Direito (ou, assim nos parece ser de concluir, atenta confusa alegação expendida): a de saber se o primitivo credor poderia ter resolvido o contrato de mútuo com a embargante em virtude da insolvência do seu co-mutuário.
III. Sendo que o que, na verdade, determinou a procedência dos embargos apresentados pela aqui recorrida foi a verificação de mora do credor (que, exclusivamente por sua iniciativa, deixou de receber o pagamento das prestações dos créditos, estando a conta bancária da recorrida devidamente provisionada para o efeito) e não colocando a recorrente, na presente instância de recurso, em causa a verificação da mora de sua responsabilidade, quer através dos factos, quer através do Direito aplicado na Sentença.
IV. A alegação e conclusões apresentadas pela recorrente são, assim, manifestamente deficientes, carecendo de aperfeiçoamento nos termos do disposto no n.° 3 do artigo 638.° do CPC, com as devidas consequências.
Todavia, desde já pode a recorrida concluir o seguinte:
V. Como não podia deixar de ser, a aqui recorrida concorda integralmente com o teor da douta sentença a quo, quer quanto aos factos, quer quanto ao Direito.
VI. Isto porquanto, por um lado, a declaração de insolvência de um dos mutuários não implica a resolução do contrato de mútuo in totum com o outro mutuário solidário. Com efeito, Tem vindo a ser entendimento jurisprudencial que: «(...) IV - A perda do benefício do prazo resultante da insolvência de um só dos devedores, quando a dívida seja solidária, não se estende aos outros co-obrigados, desde que não tenha sido estipulada convenção em contrário ou não se verifique, também quanto a eles, causa determinante dessa perda.» - cfr. Ac. STJ de 18/01/2018, proferido no âmbito do processo n.° 123/14.9TBSJM-A.P1.S2 e disponível em www.dgsi.pt (com negrito nosso);
VII. Como, por outro lado, o que se verifica in casu é uma verdadeira mora do credor que, simplesmente, deixou de debitar na conta da recorrida, conta esta devidamente provisionada para o efeito como resulta da prova e integra a decisão de facto (não impugnada pela recorrente), as prestações que se venceram a partir de Julho de 2019, sendo, assim, inadmissível a resolução contratual e o vencimento antecipado de todas as prestações do crédito em virtude da declaração de insolvência do co-mutuário da embargante, ora recorrida.
VIII. Pelo que bem andou o douto Tribunal a quo ao proferir a Sentença que determinou a extinção da execução, devendo a mesma ser confirmada por este Venerando Tribunal da Relação.”.
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8. O recurso foi liminarmente admitido, por despacho proferido em 09-06-2023.
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9. Foram colhidos os vistos legais.
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2. Questões a decidir:
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).
Em face do exposto, identificam-se as seguintes questões a decidir:
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I) Questões prévias:
A) Do não cumprimento pela apelante do disposto no artigo 639.º, n.º 2, do CPC e da prolação de despacho de aperfeiçoamento, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 638.º do CPC.
B) Delimitação do objeto do recurso.
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II) Mérito do recurso:
C) Se a decisão recorrida – que julgou procedentes os embargos – deve ser revogada?
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3. Fundamentação de facto:
São elementos processuais relevantes para a apreciação do recurso, conforme resultam dos autos, os elencados no relatório, sendo que, na decisão recorrida, foram elencados como provados os seguintes factos:
1- Em 28-I-02 ‘Banco Santander Totta S.A.’, LL e ora embargante outorgaram os “COMPRA E VENDA, MÚTUO COM HIPOTECA E MANDATO” e “MÚTUO COM HIPOTECA” juntos com o requerimento executivo (cujos teores se dão aqui por reproduzidos).
2- Em V-19 a primitiva exequente debitou, na conta da embargante as duas prestações (359,05€ e 166,37€) relativas aos contratos supra - e indicou os montantes a vencer em 30-VI-19 (359,05€ e 166,36€).
3- Em 1-VII-19 a primitiva exequente debitou as duas prestações supra - e não indicou os montantes das prestações a vencer no mês seguinte.
4- Em 1-VII-19 LL foi declarado insolvente (fls 88v-89).
5- Após 1-VII-19 a primitiva exequente não voltou a debitar valores de prestações na conta da embargante - indicando, no final do extracto de VII- 19 um ‘Saldo Disponível Final’ de -73.984,63€.
6- A conta da embargante onde eram debitados os pagamentos das prestações apresentava os seguintes saldos (positivos): em 1-VII-19, 1.220,28€; em 23-VII-19, 147,47€; em 1-VIII-19, 777,47€; em 9-IX-19, 1.333,42€; em 3- X-19, 1.949,66€; em 1-XI-19, 1.318,79€; em 2-XII-19, 1.861,17€; em 2-I-20, 2.218,77€; em 3-II-20, 2.784,62€; em 31-III-20, 4.485,29€; em 23-IV-20, 4.828,01€.
7- Em 29-X-19 a primitiva exequente enviou à ora embargante, que as recebeu, as cartas juntas com o requerimento executivo e a fls 89v a 91 (cujos teores se dão aqui por reproduzidos) — referentes a “Declaração de insolvência / vencimento das obrigações do insolvente”.
8- Em 13-XI-19 a primitiva exequente enviou à ora embargante as cartas juntas com o requerimento executivo e a fls 91v a 93 (cujos teores se dão aqui por reproduzidos) - relativas a “Resolução contratual e interpelação para pagamento de dívida(s)”, e onde se lê: “Mostra(m)-se vencida(s) e não paga(s) as obrigações(s) emergentes da(s) operação(ões) abaixo identificada(s) (...). Pelo exposto, ao abrigo da(s) respetiva(s) cláusula(s) sobre ‘Mora e incumprimento’, o Banco Santander Totta S.A. considera resolvida(o)(s) a(o)(s) operação(ões)/contrato(s) em apreço e, consequentemente, totalmente vencida(s) e imediatamente exigível(is) a totalidade da(s) obrigações (...). (…)”
9- Em 7-XII-21 a primitiva exequente recebeu, do produto da venda no processo de insolvência de metade do imóvel penhorado nos presentes autos, 60.979,74€ - considerando em dívida, em 21-III-22, 21.660,39€ (relativos ao ‘MUTUO COM HIPOTECA’).
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4. Fundamentação de Direito:
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I) Questões prévias:
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A) Do não cumprimento pela apelante do disposto no artigo 639.º, n.º 2, do CPC e da prolação de despacho de aperfeiçoamento, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 638.º do CPC.
Na resposta apresentada, a apelada invocou, nomeadamente, que a apelação não pode ser apreciada concluindo que ocorreu “inobservância do disposto no n.° 2 do artigo 639.° do CPC, não cumprindo devidamente a recorrente o ónus que sobre si impende de alegar e de formular conclusões inteligíveis”, alegando que, esta, embora “faça menção, nas suas ale[…]gações, de que "entende (...) que devem considerar-se provados os seguintes factos", não impugna a decisão quanto à matéria de facto, nem concretiza ou fundamenta a escassa alegação que faz quanto aos factos, sendo certo que a recorrente acaba por circunscrever o objecto do seu recurso a uma única questão de Direito (ou, assim nos parece ser de concluir, atenta confusa alegação expendida): a de saber se o primitivo credor poderia ter resolvido o contrato de mútuo com a embargante em virtude da insolvência do seu co-mutuário”, “… não colocando a recorrente, na presente instância de recurso, em causa a verificação da mora de sua responsabilidade, quer através dos factos, quer através do Direito aplicado na Sentença”, concluindo que, a alegação e conclusões da apelante são “assim, manifestamente deficientes, carecendo de aperfeiçoamento nos termos do disposto no n.° 3 do artigo 638.° do CPC”.
Tal questão poderá contender com a apreciação do objeto do recurso, devendo ser conhecida a título prévio.
Conforme refere Luís Filipe Espírito Santo (Recursos Civis: O Sistema Recursório Português. Fundamentos, Regime e Actividade Judiciária. Lisboa: CEDIS, 2020, pp. 33-34, consultado em: https://cedis.fd.unl.pt/wp-content/uploads/2020/09/Recursos-Civis-min.pdf): “O sucesso do recurso cível baseia-se, essencialmente, numa peça processual inicial que, apresentada juntamente com o requerimento de interposição de recurso, contém as alegações de recurso.
Trata-se da exposição alargada dos motivos que justificam, segundo a óptica do recorrente, que o tribunal de recurso opte por posição diversa da adoptada na instância inferior, concluindo pela errada valoração de facto ou pela violação das normas legais aplicáveis à situação sub judice, e que altere, modificando, o sentido da decisão recorrida.
Estas alegações de recurso terminam obrigatoriamente com a formulação das conclusões das alegações (ou melhor dito, das conclusões do corpo das alegações), as quais delimitam o objecto do respectivo conhecimento por parte do tribunal superior.
Trata-se basicamente da concretização do ónus de síntese conclusiva que é colocado sobre os ombros do recorrente e que o mesmo deverá satisfazer com o máximo zelo, clareza e escrúpulo.
Por um lado, esta obrigação processual introduz clareza e transparência na discussão da temática do objecto do recurso: a instância superior fica a saber, de forma ordenada, quais as questões essenciais que lhe compete apreciar, não as podendo descurar, e estabelecendo-se desse modo, com nitidez e utilidade, o foco de incidência do juízo do tribunal ad quem; por outro, o recorrido poderá exercer cabalmente o contraditório que lhe assiste, na medida em que sabe qual a parte da motivação do recurso verdadeiramente relevante e decisiva, a que terá de responder, não se distraindo com as considerações retóricas, marginais e acessórias, que germinam livremente nas orlas da divagação jurídica, por vezes entusiástica e inflamada”.
Vejamos:
O n.º 1 do artigo 637.º do CPC estatui que os recursos de interpõem por meio de requerimento, dirigido ao Tribunal que proferiu a decisão recorrida e nele é indicada a espécie, o efeito e o modo de subida do recurso interposto.
O n.º 2 do artigo 637.º do CPC estabelece, por seu turno, que o “requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade; quando este se traduza na invocação de um conflito jurisprudencial que se pretende ver resolvido, o recorrente junta obrigatoriamente, sob pena de imediata rejeição, cópia, ainda que não certificada, do acórdão fundamento”.
Importa referir, a respeito do n.º 2 do artigo 637.º do CPC que, fora dos casos em que deve ter lugar, sob pena de rejeição do recurso, a indicação do fundamento específico de recorribilidade – o que sucede nos casos do recurso de revista excecional (artigo 672.º, n.º 2) e do recurso para uniformização de jurisprudência (artigo 692.º, n.º 1), em que a condição de recorribilidade da decisão advém de uma norma particular a consentir no recurso – nas demais situações e, concretamente, em sede de recurso de apelação, não é imperioso o apelante indicar algum específico fundamento de recorribilidade.
Por sua vez, decorre dos n.ºs. 1 e 2 do artigo 639.º do CPC que:
“1-O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
3 – Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas não se tenha procedido às especificidades a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada (…)”.
Conforme deriva dos normativos transcritos, o requerimento de interposição de recurso deve satisfazer determinadas condições formais, apresentando a respetiva fundamentação e o pedido.
Como refere, em geral, Rui Pinto (O Recurso Civil. Uma Teoria Geral; AAFDL, Lisboa, 2017, p. 236), “no requerimento o recorrente deve cumprir os ónus básicos de alegação e formulação das respetivas conclusões – i.e., os fundamentos específicos do pedido – conforme os artigos 637º nº 2 e 639º, e terminar no pedido de revogação, total ou parcial, de uma decisão judicial”.
E, noutro local (Manual do Recurso Civil; Vol. I, AAFDL, Lisboa, 2020 p. 293), concretiza o mesmo Autor que: “Dentro das alegações, há uma função lógica que apenas cabe às conclusões: individualizar o objeto do recurso, ao indicar o(s) fundamento(s) específico(s) da recorribilidade (cf. artigo 673.º nº 2) e, sendo o caso, o segmento decisório concretamente impugnado (cf. o artigo 635º nº 4). Daí ser pacífico o entendimento da jurisprudência de que é pelas conclusões que o recorrente delimita, efetivamente, o objeto do recurso. Simetricamente, a presença das conclusões permite a “viabilização do exercício do contraditório, de modo a não criar dificuldades acrescidas à posição da outra parte, privando-a de elementos importantes para organizar a sua defesa, em sede de contra-alegações” (STJ 26-5-2015/Proc. 1426/08.7TCSNT.L1.S1 (HÉLDER ROQUE)”.
As conclusões da motivação de recurso têm de habilitar o tribunal superior a conhecer das pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, seja no plano de facto, seja no plano de direito e sempre com a formulação das conclusões que resumem as razões do pedido.
Assim, o ónus de concluir obtém-se pela indicação resumida dos fundamentos por que se pede a alteração ou anulação da sentença ou despacho. Mais simplesmente, as conclusões traduzem uma enunciação abreviada dos fundamentos do recurso, que devem ser congruentes, claros e precisos.
É que, “no contexto da alegação o recorrente procura demonstrar esta tese: que o despacho ou sentença deve ser revogado, no todo ou em parte. É claro que a demonstração desta tese implica a produção de razões ou fundamentos. Pois bem: essas razões ou fundamentos são primeiro expostos, explicados e desenvolvidos no curso da alegação; hão-de ser, depois, enunciados e resumidos, sob a forma de conclusão, no final da minuta” (assim, Alberto dos Reis; Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, Coimbra, 1984, p. 359).
As conclusões são, pois, a enunciação resumida dos fundamentos do recurso.
“Para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir logicamente do arrazoado feito na alegação. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação” (assim, Alberto dos Reis; Código de Processo Civil Anotado, volume V, reimpressão, Coimbra, 1984, p. 359).
A lei impõe a indicação especificada dos fundamentos do recurso nas conclusões, para que o tribunal conheça, com precisão, as razões da discordância em relação à decisão recorrida.
Conforme se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-06-2013 (Pº 483/08.0TBLNH.L1.S1, rel. GARCIA CALEJO): “O recorrente deve terminar as suas alegações de recurso com conclusões sintéticas (onde indicará os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida). Essas conclusões devem ser idóneas para delimitar de forma clara, inteligível e concludente o objecto do recurso, permitindo apreender as questões de facto ou de direito que o recorrente pretende suscitar na impugnação que deduz e que o tribunal superior cumpre solucionar. Não devem valer como conclusões arrazoadas longas e confusas em que se não discriminam com facilidade as questões invocadas”.
Na mesma linha, decidiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-03-2017 (Pº 1297/12.9T2AMD-A.L1-2, rel. PEDRO MARTINS) que: “Se as conclusões de um recurso não são a síntese daquilo que foi dito no corpo das alegações (art. 639/1 do CPC), mas matéria nova não discutida neste corpo, não há conclusões que devam ser tidas em consideração. E também não existem conclusões relevantes se em nenhuma delas consta a indicação dos fundamentos por que se pede a alteração da decisão (art. 639/1 do CPC)”.
Esse ónus de concluir compete exclusivamente ao recorrente – conforme decorre do n.º 1 do artigo 639.º do CPC - e tem a finalidade útil e garantística de permitir que não existam dúvidas de interpretação acerca dos motivos que o levam a impugnar a decisão recorrida.
As conclusões nada têm de inútil ou de meramente formal, constituindo, por natureza e definição, a forma de indicação explícita e clara da fundamentação das questões equacionadas pelo recorrente como motivadoras do recurso e destinam-se, à luz da cooperação devida pelas partes, a clarificar o debate, quer para exercício do contraditório, quer para enquadramento da decisão.
As conclusões exercem a importante função de delimitação do objeto do recurso, daí que deva ser clara a identificação do que se pretende obter junto do tribunal de recurso, por contraposição, com a decisão recorrida.
Sintetizando os aspetos mais relevantes, refere João Aveiro Pereira (“O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil”, 2018, pp. 32-33, consultado em: http://www.trl.mj.pt/PDF/Joao%20Aveiro.pdf) que:
“1. As conclusões das alegações são ilações ou deduções lógicas terminais de um raciocínio argumentativo, propositivo e persuasivo, em que o alegante procura demonstrar a consistência das razões que invoca contra a decisão recorrida. Porque são o resultado e não o desenvolvimento do raciocínio alegatório, as conclusões têm necessária e legalmente de ser curtas, claras e objectivas, para que não deixem dúvidas quanto às questões que o tribunal ad quem deve e pode conhecer.
2. O ónus de concluir cumpre-se também com a indicação das disposições violadas, do sentido com que deveriam ter sido aplicadas ou, em caso de erro sobre a norma, aquela que o recorrente entende que devia ter sido aplicada (…)”.
“Todavia, é com inusitada frequência que se verificam situações irregulares: alegações deficientes, obscuras, complexas ou sem as especificações exigidas pelo n.º . São triviais as situações em que as conclusões não passam da mera reprodução (total ou parcial) dos argumentos anteriormente apresentados, sem qualquer preocupação de síntese, como se o volume ou a quantidade das conclusões fosse sinónimo de qualidade ou como se houvesse necessidade de assegurar, por essa via, a delimitação do objeto do processo e a apreciação pelo tribunal ad quem de todas as questões suscitadas” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 768, nota 5).
A jurisprudência dos tribunais superiores tem apreciado diversas situações onde se questiona a validade e admissibilidade das conclusões apresentadas, de que são exemplos, as seguintes decisões:
- Acórdão do STJ de 16-12-2020 (Pº 2817/18.0T8PNF.P1.S1, rel. TOMÉ GOMES): “O ónus de formulação de conclusões recursórias tem em vista uma clara delimitação do objeto do recurso mediante enunciação concisa das questões suscitadas e dos seus fundamentos, expurgadas da respetiva argumentação discursiva que deve constar do corpo das alegações, em ordem a melhor pautar o exercício do contraditório, por banda da parte recorrida, e a permitir ao tribunal de recurso uma adequada e enxuta enunciação das questões a resolver. “A falta de conclusões” a que se refere a alínea b), parte final, do n.º 2 do artigo 641.º do CPC, como fundamento de rejeição do recurso, deve ser interpretada num sentido essencialmente formal e objetivo, independentemente do conteúdo das conclusões formuladas, sob pena de se abrir caminho a interpretações de pendor subjetivo. Assim, a reprodução do corpo das alegações nas conclusões não se traduz na falta destas, impondo-se, quando muito, o convite ao aperfeiçoamento das mesmas, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 639.º do CPC. De todo o modo, a orientação no sentido de fazer equivaler a reprodução integral do corpo das alegações nas conclusões - que aqui não se acolhe - não deverá prescindir de uma aferição casuística em ordem a ponderar, à luz do principio da proporcionalidade, a repercussão que essa reprodução, mais ou menos integral, possa acarretar, em termos de inteligibilidade das questões suscitadas, em sede do exercício do contraditório e da delimitação do objeto do recurso por parte do tribunal”;
- Acórdão do STJ de 02-05-2019 (proc. nº 7907/16.1T8VNG.P1.S1, rel. BERNARDO DOMINGOS):  “A reprodução nas “conclusões” do recurso da respectiva motivação não equivale a uma situação de alegações com “falta de conclusões”, de modo que em lugar da imediata rejeição do recurso, nos termos do art. 641º, nº 2, al. b), do NCPC, é ajustada a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, com fundamento na apresentação de conclusões complexas ou prolixas, nos termos do art. 639º, nº 3, do NCPC.”;
- Acórdão do STJ de 07-03-2019 (Pº 1821/18.3T8PRD-B.P1.S1, rel. ROSA TCHING): “A reprodução nas “conclusões” do recurso da respetiva motivação não equivale a uma situação de alegações com “falta de conclusões”, inexistindo, por isso, fundamento para a imediata rejeição do recurso, nos termos do art. 641º, nº 2, al. b) do Código de Processo Civil. Uma tal irregularidade processual mais se assemelha a uma situação de apresentação de alegações com o segmento conclusivo complexo ou prolixo, pelo que, de harmonia com o disposto no artigo 639º, nº 3 do Código Processo Civil, impõe-se a prolação de despacho a convidar a recorrente a sintetizar as conclusões apresentadas.”;
- Acórdão do STJ de 19-12-2018 (proc. nº 10776/15.5T8PRT.P1.S1, rel. HENRIQUE ARAÚJO): “I - A reprodução da motivação nas conclusões do recurso não equivale à falta de conclusões, fundamento de indeferimento do recurso – art. 641.º, n.º 2, al. b), do CPC. II - Neste caso, impõe-se prévio convite ao recorrente para aperfeiçoar as conclusões, no sentido de lhes conferir maior concisão – art. 639.º, n.º 3, do CPC.”;
- Acórdão do STJ de 27-11-2018 (Pº 28107/15.2T8LSB.L1.S1, rel. JÚLIO GOMES): “I. Quando as conclusões de um recurso são a mera reprodução, ainda que parcial, do corpo das alegações, não se pode, em rigor, afirmar que o Recorrente não deu cumprimento ao ónus previsto no artigo 641.º, n.º 2, alínea b) do CPC. II. Em tal circunstância não há que rejeitar imediatamente o recurso, podendo convidar-se ao seu aperfeiçoamento, por força do disposto no n.º 1 do artigo 659.º do CPC.”;
- Acórdão do STJ de 02-05-2018 (Pº 687/14.7TTMTS.P1.S1, rel. RIBEIRO CARDOSO): “Impõe o art. 639º, nºs 1 e 3 do CPC um ónus ao recorrente - a formulação de conclusões sintéticas, e um dever ao tribunal - o convite ao aperfeiçoamento das conclusões, designadamente sintetizando-as, quando sejam prolixas e, nessa medida, complexas. Não definindo o legislador a forma que deve revestir a síntese das alegações, limitando-se a referir que consistem na indicação sintética dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, o não conhecimento do recurso fundamentado na falta de síntese das conclusões, apenas deve ter lugar em casos muito limitados e flagrantemente violadores do dever de síntese”;
- Acórdão do STJ de 06-07-2017 (Pº 297/13.6TTTMR.E1.S1, rel. GONÇALVES ROCHA): “I - A reprodução nas conclusões do recurso da respectiva alegação não equivale a uma situação de falta de conclusões, estando-se antes perante um caso de conclusões complexas por o recorrente não ter cumprido as exigências de sintetização impostas pelo nº 1 do artigo 639º do CPC. II - Assim, não deve dar lugar à imediata rejeição do recurso, nos termos do artigo 641º, nº 2, alínea b) do CPC, mas à prolação de despacho de convite ao seu aperfeiçoamento com fundamento na apresentação de conclusões complexas ou prolixas, conforme resulta do nº 3 do artigo 639º do mesmo compêndio legal.”;
- Acórdão do STJ de 25-05-2017 (Pº 2647/15.1T8CSC.L1.S1, rel. ANA PAULA BOULAROT): “I - A reprodução nas conclusões do recurso da respectiva motivação não equivale a uma situação de alegações com falta de conclusões. II - Nestas circunstâncias, não há lugar à prolação de um despacho a rejeitar liminarmente o recurso, impondo-se antes um convite ao seu aperfeiçoamento, nos termos do nº3 do artigo 639º do CPCivil, atenta a sua complexidade e/ou prolixidade.”;
- Acórdão do STJ de 13-10-2016 (Pº 5048/14.5TENT-A.E1.S1, rel. OLIVEIRA VASCONCELOS): “I - Do facto de as conclusões serem uma repetição das alegações do recurso não se pode retirar que aquelas conclusões não existam, mas apenas que não assumem a forma sintética legalmente imposta pelo art. 639.º, n.º 1, do CPC. II - Perante tal irregularidade, deve o tribunal convidar o recorrente a aperfeiçoar as conclusões no sentido de proceder à sua sintetização, com respeito pelo objeto do recurso que ficou definido nas alegações originais, nos termos do n.º 3 do citado normativo.”;
- Acórdão do STJ de 18-02-2016 (Pº 558/12.1TTCBR.C1.S1, rel. ANTÓNIO LEONES DANTAS): “Nas conclusões da alegação do recurso de apelação em que impugne matéria de facto deve o recorrente respeitar, relativamente a essa matéria, o disposto no n.º 1 do artigo 639.º do Código de Processo Civil, afirmando a sua pretensão no sentido da alteração da matéria de facto e concretizando os pontos que pretende ver alterados”;
- Acórdão do STJ de 09-07-2015 (Pº 818/07.3TBAMD.L1.S1, rel. ABRANTES GERALDES): “A reprodução nas “conclusões” do recurso da respectiva motivação não equivale a uma situação de alegações com “falta de conclusões”, de modo que em lugar da imediata rejeição do recurso, nos termos do art. 641º, nº 2, al. b), do NCPC, é ajustada a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, com fundamento na apresentação de conclusões complexas ou prolixas, nos termos do art. 639º, nº 3, do NCPC.”
- Acórdão da Relação de Guimarães de 24-09-2020 (Pº 2781/18.6T8VCT-A.G1, rel. JOSÉ ALBERTO MARTINS MOREIRA DIAS): “Verificando-se que nas alegações de recurso o apelante, após a explanação da motivação do recurso, conclui essa motivação com a expressão: “ Termos em que…”, passando após a fazer uma súmula das razões pelas quais recorre e a expor o sentido da pretensão que solicita lhe seja reconhecida pelo tribunal ad quem e indicando os dispositivos legais que suportam essa sua pretensão, a falta de conclusões é meramente aparente”;
- Acórdão da Relação do Porto de 27-01-2020 (Pº 2817/18.0T8PNF.P1, rel. JORGE SEABRA): “A reprodução integral e ipsis verbis do anteriormente vertido no corpo das alegações, ainda que intitulada de “conclusões”, não pode ser considerada para efeitos do cumprimento do dever de apresentação de conclusões do recurso nos termos estatuídos no artigo 639.º, n.º 1 do CPC. Equivalendo essa reprodução à falta total de conclusões deve o recurso ser rejeitado nos termos estatuídos no artigo 641.º, nº 2, al. b), do CPC., não sendo de admitir despacho de aperfeiçoamento”;
- Acórdão da Relação do Porto de 13-01-2020 (Pº 3381/18.6T8PNF-A.P1, rel. MIGUEL BALDAIA DE MORAIS): “I - Em consonância com o regime plasmado na lei adjetiva, as conclusões das alegações correspondem às ilações ou deduções lógicas terminais de um raciocínio argumentativo, propositivo e persuasivo, em que o alegante procura demonstrar a consistência das razões que invoca contra a decisão recorrida. II - Porque são o resultado e não o desenvolvimento do raciocínio alegatório, as conclusões têm, pois, necessária e legalmente de ser curtas, claras e objetivas. III - Daí que a reprodução praticamente integral e ipsis verbis do anteriormente alegado no corpo das alegações, ainda que apelidada de “conclusões” pela apelante, não pode ser considerada para efeito de válido cumprimento do dever de apresentação das conclusões recursivas. IV - Tal comportamento processual, equivalendo à ausência de conclusões, dará lugar ao não conhecimento do recurso de acordo com o que se dispõe no artigo 641º, nº 1 al. b) do Código de Processo Civil, não cabendo convite ao aperfeiçoamento no sentido de lograr suprir a inobservância desse ónus”;
- Acórdão da Relação de Guimarães de 24-01-2019 (Pº 3113/17.6T8VCT.G1, rel. EUGÉNIA MARIA MOURA MARINHO DA CUNHA): “1. Verificando-se a falta, em peça processual da alegação de recurso de apelação, das “conclusões”, a que alude o nº1, do art. 639º, do CPC (indicação sintética das questões colocadas pelo recorrente, que define e delimita o objeto do recurso), os apelantes têm de suportar a consequência do incumprimento do ónus de as formular - a rejeição do recurso, em obediência ao consagrado na al. b), do nº2, do art. 641º, de tal diploma; 2. A deficiência, obscuridade ou complexidade das conclusões das alegações de recurso - passíveis de despacho de aperfeiçoamento - são vícios de conclusões, que pressupõem a existência de esboço de síntese dos fundamentos do recurso; 3. Ocorre efetiva, real e absoluta falta de objeto do recurso-as “conclusões”, definidas na lei adjetiva como indicação sintética dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão – e não mero vício, na situação de a apelante, embora usando tal título ao finalizar a alegação de recurso de apelação, reproduzir ipsis verbis e integralmente o antecedente corpo das suas alegações, pois que tal inútil eco do já dito nenhuma síntese dos invocados fundamentos revela. E o esboço de síntese não se verifica em nominadas “conclusões” que apenas repetem, com insignificantes alterações de pormenor na redação e agrupamento, o teor integral do corpo das alegações; 4. Aquela consequência (rejeição do recurso) justifica-se nesta situação de falta de rigor, sem que tal se mostre desproporcional nem excessivo, pois que, tendo a parte o ónus de formular as definidas conclusões, sem o que se decorrem, automaticamente, os efeitos gravosos da rejeição do recurso (em materialização do princípio da auto-responsabilização das partes), a mesma nem sequer um esboço de esforço nesse sentido desenvolveu”;
- Acórdão da Relação de Coimbra de 08-06-2018 (Pº 1840/16.4T8FIG-A.C1, rel. RAMALHO PINTO): “I – O artº 639º, nº 1 do nCPC impõe ao recorrente dois ónus: o ónus de alegar e o ónus de formular conclusões. II – O recorrente cumpre o ónus de alegar apresentando a sua alegação onde expõe os motivos da sua impugnação, explicitando as razões por que entende que a decisão está errada ou é injusta, através de argumentação sobre os factos, o resultado da prova, a interpretação e aplicação do direito, para além de especificar o objectivo que visa alcançar com o recurso. III – Deve, todavia, terminar a sua minuta com a indicação resumida, através de proposições sintéticas, dos fundamentos, de facto e/oude direito, por que pede a alteração ou a anulação da decisão recorrida. IV – As conclusões do recurso que versem matéria não tratada nas alegações são totalmente irrelevantes. V – A não apresentação de conclusões recursivas tem como efeito imediato o puro e simples indeferimento do requerimento de recurso”; e
- Acórdão da Relação de Lisboa de 07-12-2016 (Pº 141/14.7T8SXL.L1-2, rel. ONDINA CARMO ALVES): “A reprodução integral, mediante aquilo que se pode designar por “copy-past” do anteriormente alegado no corpo das alegações, ainda que apelidada pelo recorrente de “Conclusões”, não pode ser considerada para efeito do cumprimento do dever de apresentação das conclusões do recurso (proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação), nem podem ser consideradas deficientes (motivação insuficiente, contraditória, incongruente ou mesmo excessiva), obscuras ou complexas, equivalendo, ao invés, à ausência de conclusões, pois é igual a nada dizer, repetir o que antes se disse na motivação, o que sempre dará lugar à rejeição do recurso, nos termos do artigo 641º, nº 1, alínea b) do CPC”.
A propósito do que caracteriza de “peripécias relacionadas com as conclusões das alegações de recurso e dos custos que elas implicam para o sistema judiciário”, remata Miguel Teixeira de Sousa (Blog do IPPC, registo de 03-04-2020, consultado em https://blogippc.blogspot.com/2020/04/jurisprudencia-2019-210.html) que: “ninguém pode "atirar a primeira pedra":
-- A jurisprudência, porque, com decisões, de carácter puramente formal, que se recusaram a apreciar algumas questões suscitadas nos recursos com argumento de que não constavam das conclusões, os tribunais deram azo a que os advogados, segundo a conhecida "jurisprudência das cautelas", alargassem as conclusões muito para além do razoável;
-- A advocacia, porque os advogados continuam a não cumprir o que a lei impõe, que é -- lembre-se -- a indicação, de forma sintética, dos fundamentos por que se pede a alteração ou a anulação da decisão impugnada (art. 639.º, n.º 1, CPC)”.
A falta de alegações ou de conclusões não admite aperfeiçoamento e determina a liminar rejeição do recurso – cfr. artigo 641.º, n.º 2, al. b) do CPC – ou o seu não conhecimento pelo Tribunal de recurso – cfr. artigo 652.º, n.º 1, al. b) do CPC.
Revertendo estas considerações para o caso em apreço, verifica-se que a recorrente apresentou requerimento de interposição de recurso, que acompanhou de alegações, tendo terminado tais alegações com as conclusões supra transcritas.
Encontra-se expresso o requerimento de impugnação/revogação da decisão recorrida pelo Tribunal de recurso e, também, a razão sucinta da impugnação.
Por outro lado, decorre da previsão das alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 639.º do CPC que, versado o recurso matéria de direito, as conclusões devem, entre outras indicações, conter “as normas jurídicas violadas”, “o sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas” e “invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Invoca a recorrida, que, embora a recorrente entenda deverem considerar-se provados determinados factos, não aporta conclusões inteligíveis, porque não impugnou a recorrente a decisão quanto à matéria de facto, sendo as conclusões deficientes e carecendo de despacho de aperfeiçoamento.
Sucede que, nas alegações do apelante divisam-se conclusões onde se faz referência a que, ao contrário do decidido pelo Tribunal recorrido, deverá considerar-se a resolução contratual a que procedeu a recorrente como lícita, em razão da previsão de resolução unilateral nas situações que refere e que considera terem-se verificado.
É certo que, para além destas menções, não faz o recorrente outras menções.
Contudo, conforme resulta do exposto e das conclusões acima transcritas, é claramente apreensível qual o fundamento em que assenta a impugnação deduzida pela apelante – contestando a decisão de mérito proferida.
A este propósito, importa referir, a respeito de questão de outra natureza (processual penal), mas com inegável abrangência a uma qualquer impugnação recursória, o Tribunal Constitucional teve já ocasião de declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, da norma constante do artigo 412.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência (cfr. Acórdão n.º 320/2002, Processo n.º 754/01, publicado no D.R., n.º 231/2002, Série I-A, de 07-10-2002, pp. 6715-6719).
De facto, nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 412.º do CPP, prescrevia-se - em termos semelhantes àqueles que ocorrem no âmbito do processo civil - que, versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; c) Em caso de erro na determinação da norma jurídica aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
Ora, também relativamente ao artigo 639.º do CPC é de ponderar semelhante interpretação legal.
De facto, o propósito do legislador ao enunciar os princípios constantes deste artigo, foi o de vincular os recorrentes a fornecer, nos recursos que interponham, a indicação, em moldes percetíveis, não só do que pretendem, como das disposições legais que afirmam terem sido violadas pela decisão impugnada.
Ora, resultando das conclusões do apelante qual o fundamento em que assenta a impugnação deduzida, a rejeição do recurso, com fundamento na ausência de especificação ou expressa menção das normas violadas, do sentido com que tais normas deveria ser interpretadas e aplicadas, bem como, no caso de erro na determinação da norma aplicável imputado ao tribunal recorrido, da norma jurídica que, em alternativa, deveria ter sido aplicada, seria desconforme com a Constituição, porque assentaria numa leitura estritamente formal do consignado nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 639.º do CPC.
Assim, se a parte nas alegações focou com objetividade a sua discordância sobre a decisão que impugna e tomou uma posição conclusiva de discordância relativamente a questões essenciais que referenciou, o Tribunal de recurso está em condições de conhecer do objeto do recurso (no sentido exposto, ainda que, no precedente regime recursório, mas entendimento plenamente aplicável ao preceito em vigor, vd. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-1999, Pº 66/99, de 06-05-2003, Pº 03A720, rel. BARROS CALDEIRA e de 22-04-2009, Pº 08S3083, rel. VASQUES DINIS).
Conforme se concluiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-05-1991 (Pº 041924, rel. SÁ NOGUEIRA): “As falhas dos aspectos puramente formais de ossatura das mesmas motivações - encerramento da motivação pelas conclusões, subordinação destas a artigos, e inclusão nelas da indicação das normas violadas - não tem relevo suficiente para conduzir a rejeição do recurso quando sejam facilmente cognoscíveis, pela própria motivação, quais as conclusões e quais as normas que se reputam violadas pela decisão de que se recorre”.
“Os casos de rejeição do requerimento de interposição de recurso estão taxativamente previstos no n.º 2 do artigo 641.º e neles não se encontra incluída a falta de observância destes requisitos. Fora das (únicas) situações previstas como sendo fundamento de rejeição imediata do recurso, qualquer falha no cumprimento dos requisitos assinalados ao requerimento constituirá apenas uma irregularidade processual que ou se entende poder condicionar a apreciação do recurso, caso em que deverá ser mandada sanar, ou é mesmo irrelevante para o conhecimento do recurso e não carece sequer de ser suprida, podendo o processo avançar mesma com essa falha” (assim, o citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03-04-2014, Processo 4949/10.4TBVFR.P1, relator ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA).
Não se afigura que, em face do exposto, o recurso deva ser rejeitado, não ocorrendo a situação a que se reporta o artigo 641.º, n.º 2, al. b) do CPC, uma vez que as conclusões encontram-se presentes na alegação recursória, só devendo ser rejeitado o recurso por falta de conclusões se estas forem totalmente inexistentes, o que não sucede se as mesmas se encontram presentes.
Do mesmo modo, apreciada a peça processual que contém a alegação recursória, não se afigura existir motivo que justifique a prévia prolação do despacho de convite a que se reporta o n.º 3 do artigo 639.º do CPC, pois, atento o referido, não ocorre situação de deficiência ou obscuridade recursória que o justifique.
Com efeito, a pretensão da apelante de inclusão na decisão recorrida, como provada, de determinada factualidade, não transposta para as conclusões recursórias, não determina a deficiência das conclusões recursórias (nas quais a apelante indicou apenas visarimpugnar a fundamentação de direito da decisão recorrida) passível de despacho de aperfeiçoamento nos termos do n.º 3 do artigo 639.º, do CPC, uma vez que, não determina a consideração de deficiência, obscuridade, complexidade ou ausência de especificações do n.º 2 do artigo 639.º do CPC, nos casos em que as mesmas se mostrem obrigatórias, que justifiquem a prolação de um tal despacho. Trata-se, antes, de uma questão que contende com o cumprimento, pela apelante, dos ónus de impugnação a que se refere o n.º 2 do artigo 640.º do CPC e, que, por isso, não determina tal despacho de aperfeiçoamento.
Em suma: Se a parte nas alegações focou com objetividade a sua discordância sobre o decisão impugnada e tomou uma posição conclusiva de discordância em questões essenciais que referenciou, o Tribunal de recurso está em condições de conhecer do objeto do recurso, não sendo caso de prolação do despacho de convite a que se reporta o n.º 3 do artigo 639.º do CPC, por não ocorrer, relativamente à falta de inclusão nas conclusões de impugnação da matéria de facto pretendida incluir nos factos provados da decisão recorrida, deficiência, complexidade ou obscuridade recursória que o justifique, nem a situação a que se reporta a parte final do n.º 3 do mesmo normativo.
Trata-se, antes, de uma questão que contende com o cumprimento, pela apelante, dos ónus de impugnação a que se refere o n.º 2 do artigo 640.º do CPC e, que, por isso, não determina tal despacho de aperfeiçoamento.
Assim, conforme se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-02-2021 (Pº 16926/04.0YYLSB-B.L1.S1, rel. JORGE DIAS), a respeito da impugnação do recurso da matéria de facto: “O recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões- Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil., pág. 165. No recurso sobre a matéria de facto se as conclusões forem deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não contemple o estatuído no art. 640, o relator não tem o dever de convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, na parte afetada. Ou seja, quando o recurso da matéria de facto se apresenta deficiente, sem dar cumprimento ao disposto no art. 640 do CPC, não há lugar a despacho de convite ao aperfeiçoamento”.
Conclui-se, pois, inexistir motivo para o não conhecimento do recurso, com fundamento na violação do disposto no artigo 639.º, n.º 2, do CPC, inexistindo motivo para a prolação de despacho de aperfeiçoamento, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 638.º do CPC.
*
B) Delimitação do objeto do recurso.
Estatuem os n.ºs 1 e 2 do artigo 662º do Código de Processo Civil, sobre os poderes vinculados da Relação, o seguinte:
“1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
2- A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.
Para que a reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso ocorra deve, previamente, o recorrente/apelante, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir os ónus a seu cargo, plasmados no artigo 640.º do CPC, o qual dispõe que:
“1 -Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2-No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Assim, aos concretos pontos de facto, concretos meios probatórios e à decisão deve o recorrente aludir na motivação do recurso (de forma mais desenvolvida), sintetizando-os nas conclusões.
As exigências legais referidas têm uma dupla função: Delimitar o âmbito do recurso e tornar efetivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois, só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
O recorrente deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-03-2014, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, relator ALBERTO RUÇO).
Os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (cfr. o Acórdão do STJ de 28-04-2014, P.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, relator ABRANTES GERALDES).
Não cumprindo o recorrente os ónus do artigo 640º, n.º 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no artigo 639.º, n.º 3 do CPC (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-06-2014, P.º n.º 1458/10.5TBEPS.G1, relator MANUEL BARGADO).
Dever-se-á usar de maior rigor na apreciação da observância do ónus previsto no n.º 1 do artigo 640.º do CPC (de delimitação do objecto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus do n.º 2 (destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exata das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO).
O ónus atinente à indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação, com exatidão, só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob ---pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. Acs. do STJ, de 26-05-2015, P.º nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE, de 22-09-2015, P-º nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, relator PINTO DE ALMEIDA, de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO e de 19-01-2016, P.º nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, relator SEBASTIÃO PÓVOAS).
A apresentação de transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, relatora MARIA DOS PRAZERES BELEZA), o mesmo sucedendo com o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (cfr. Ac. do STJ de 28-05-2015, P.º n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1, relator GRANJA DA FONSECA).
Nas conclusões do recurso devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação, bastando que os demais requisitos constem de forma explícita da motivação (neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES, de 01-10-2015, P.º nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, relatora ANA LUÍSA GERALDES, de 11-02-2016, P.º nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, relator MÁRIO BELO MORGADO).
Note-se, todavia, que atenta a função do tribunal de recurso, este só deverá alterar a decisão sobre a matéria de facto se concluir que as provas produzidas apontam em sentido diverso ao apurado pelo tribunal recorrido. Ou seja: “I. Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II: Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017, Processo 6095/15T8BRG.G1, relator PEDRO DAMIÃO E CUNHA).
A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Contudo, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Processo 6871/14.6T8CBR.C1, relator MOREIRA DO CARMO), sob pena de se praticar um acto inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).
Como resulta do n.º 1 do já citado artigo 640.º do CPC, no caso de impugnação sobre a decisão de facto, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados, bem como, os concretos meios de prova que impunham diversa decisão, indicando a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre tais questões de facto.
De acordo com o previsto no n.º 2 do mesmo artigo, quando os meios de prova invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, cabe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso na parte respetiva, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso (sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes).
Quanto ao cumprimento deste ónus impugnatório, o mesmo deve, tendencialmente, fazer-se nos seguintes moldes: “(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, Processo 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Do mesmo modo, se entendeu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26-04-2018 (processo 1716/15.2T8BGC.G1, relatora MARIA DA PURIFICAÇÃO CARVALHO) escrevendo-se o seguinte:
“1. O art.º 640.º do C.P.C. enumera os ónus que ficam a cargo do recorrente que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto, sendo que a cominação para a inobservância do que aí se impõe é a rejeição do recurso quanto à parte afectada.
2. Ao impor tal artigo um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a matéria de facto, com fundamento na reapreciação da prova gravada, o legislador pretendeu evitar que o impugnante se limite a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em primeira instância.
3. Ao cumprimento do ónus da indicação dos concretos meios probatórios não bastará somente identificar os intervenientes, efectuar uma apreciação do que possam ter dito ou impugnar de forma meramente genérica os factos em causa, devendo antes precisar-se, em primeiro lugar, detalhadamente cada um dos pontos da matéria de facto constante da decisão proferida colocados em crise, indicando-se depois, relativamente a cada um deles, as passagens concretas e determinadas dos depoimentos em que se funda a impugnação que impõem decisão diversa (e não que meramente a possibilitariam) e procurando-se localizar, ao menos de forma aproximada, o início e termo de tais passagens por referência aos suportes técnicos, conforme o preceituado no referido n.º4.
4. Se o recorrente não cumpre tais deveres, não é exigível ao Tribunal que aprecia o recurso que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique concretos erros de julgamento da peça recorrida que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes”.
Refira-se, no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28-06-2018 (Processo 123/11.0TBCBT.G1, rel. JORGE TEIXEIRA) concluindo que: “Tendo o recurso por objecto a reapreciação da matéria de facto, deve o recorrente, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivá-lo através da indicação das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, determinam decisão dissemelhante da que foi proferida pelo tribunal “a quo”. Nestas situações, não podendo o Tribunal da Relação retirar as consequências que a impugnação da matéria de facto, deve entender-se que essa omissão impõe a rejeição da impugnação do pertinente recurso, por não cumprimento dos ónus estabelecidos no art. 640º do CPC e consequente inviabilização do cumprimento do princípio do contraditório por parte do recorrido, quando a esses pontos da matéria de facto não concretizados”.
Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-09-2012 (processo 245/09.8 GBACB.C1, relator BRÍZIDA MARTINS): “O recorrente que queira impugnar a matéria de facto tem que (…) indicar, dos pontos de facto, os que considera incorretamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência”.
Assim, pode concluir-se que, “como decorre do art. 640.º do CPC o recorrente não satisfaz o ónus impugnatório quando omite a especificação dos pontos de facto que entende terem sido incorrectamente julgados, uma vez que é essa indicação que delimita o objecto do recurso” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-09-2018, Pº 2611/12.2TBSTS.L1.S1, rel. SOUSA LAMEIRA).
De todo o modo, de harmonia com o princípio da prevalência da substância pela forma a que se refere o artigo 6.º do vigente CPC (cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil, Vol. I, Almedina, 2018, p. 32, nota 5), tem-se admitido que, se da conjugação da motivação e das conclusões é viável a percepção de quais os pontos da matéria de facto impugnados, não deverá ter lugar a rejeição da impugnação: “Na verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640º do CPC, os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal. Tendo a recorrente identificado, no corpo das alegações e nas conclusões, os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, identificando e transcrevendo parcialmente os depoimentos das testemunhas, em conjugação com a prova documental, que, no seu entender, impõem decisão diversa e retirando-se da leitura das alegações e conclusões, qual a decisão que deve ser proferida a esse propósito, mostra-se cumprido, à luz da orientação atrás referida, o ónus de impugnação previsto no artigo 640º do CPC” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-2020, Pº 274/17.8T8AVR.P1.S1, rel. ILÍDIO SACARRÃO MARTINS, na linha do Acórdão do mesmo Tribunal de 12-07-2018, Pº 167/11.2TTTVD.L1.S1, rel. FERREIRA PINTO).
Sobre a indicação concreta de meios de prova que se pretendem utilizar, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-09-2018 (Processo 15787/15.8T8PRT.P1.S2, rel. GONÇALVES ROCHA) decidiu que: “A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, exige que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos”.
E, conforme se concluiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015 (Processo 405/09.1TMCBR.C1.S1, rel. MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA), não observa o ónus legalmente exigido, “o recorrente que identifica os pontos de facto que considera mal julgados, mas se limita a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado”.
Quanto ao ónus previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, a jurisprudência tem entendido uniformemente, o seguinte:
- “Limitando-se o Recorrente a afirmar, tanto na alegação como nas conclusões, que, face aos concretos meios de prova que indica, “se impunha uma decisão diversa”, relativamente às questões de facto que impugnara, deve o recurso ser rejeitado quanto à impugnação da matéria de facto, por não cumprimento do ónus processual fixado na alínea c), do n.º 1 do artigo 640º, do CPC” (cfr., o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-01-2019, Pº 126528/16.6YIPRT.P1, rel. CARLOS PORTELA); e
- “Limitando-se o Recorrente a afirmar, tanto na alegação como nas conclusões, que, face aos concretos meios de prova que indica, “se impunha uma decisão diversa”, relativamente às questões de facto que impugnara, deve o recurso ser rejeitado quanto à impugnação da matéria de facto, por não cumprimento do ónus processual fixado na alínea c), do n.º 1, do artigo 640º, do CPC” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-06-2018, Pº 1474/16.3T8CLD.C1.S1, rel. FERREIRA PINTO).
Finalmente – refira-se – que, conforme se deu nota no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-06-2018 (Pº 552/13.5TTVIS.C1.S1, rel. PINTO HESPANHOL): “A rejeição da impugnação da decisão sobre a matéria de facto prevista no n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil não está dependente da observância prévia do princípio do contraditório. Para que a Relação conheça da impugnação da matéria de facto é imperioso que o recorrente, nas conclusões da sua alegação, indique os concretos pontos de facto incorretamente julgados, bem como a decisão a proferir sobre tais pontos de facto”.
Estas as linhas gerais em que se baliza a reapreciação da matéria de facto na Relação.
Ora, no caso, a impugnante – na motivação das alegações do recurso que apresentou – enunciou determinada factualidade que, em seu entender, deveria ser considerada como provada, mas, a impugnação em questão, embora significando uma declaração de vontade da apelante no sentido da impugnação da matéria de facto aquilatada pelo Tribunal recorrido, por não observar os ónus de impugnação consignados nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, não passa de “mera manifestação de inconsequente inconformismo”, sobre o resultado probatório alcançado pelo Tribunal.
Conforme refere Abrantes Geraldes, (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pp. 199-200) impõe-se a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto”, designadamente quando se verifique “(…) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados; (…) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); (…) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação (…)”, concluindo que, a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Conforme se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-04-2023 (Pº 4696/15.0T8BRG.G1.S1, rel. JOÃO CURA MARIANO), “a não indicação nas conclusões das alegações do recurso de apelação dos concretos pontos da matéria de facto que se pretende impugnar permite a rejeição imediata do recurso nessa parte”.
Não identificando a apelante nas conclusões da apelação quais os concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados, nem os concretos meios probatórios, constantes do processo, que imporiam decisão diversa da recorrida, nem, igualmente, a decisão alternativa que, em concreto e factualmente, devesse ser proferida, deve ser rejeitado o recurso referente à impugnação da matéria de facto, por inobservância dos ónus de impugnação contidos nas alínea a), b) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC.
O supra exposto conduz, inelutavelmente, a que deva ser rejeitado o recurso, nos segmentos em que visou colocar em crise a matéria de facto aquilatada pelo Tribunal recorrido, circunscrevendo-se o objeto do recurso à apreciação da impugnação da matéria de direito deduzida na decisão recorrida.
*
II) Mérito do recurso:
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C) Se a decisão recorrida – que julgou procedentes os embargos – deve ser revogada?
Considerando a factualidade apurada na decisão recorrida, vejamos se existe motivo para a revogação da sentença proferida, nos moldes preconizados pela apelante.
Designadamente, alegou a recorrente que os factos provados em 4, 7 e 8 determinam a conclusão de que a resolução contratual operada é lícita, pelo que não procede argumento que dê consistência à tese – perfilhada na decisão recorrida - da mora do credor.
Vejamos:
O processo executivo alicerça-se no título executivo, no documento que lhe serve de base (cfr. art. 703.º do CPC), cabendo ao exequente instruir o requerimento executivo com cópia ou o original do título executivo (cfr. art. 724.º, n.º 4, CPC).
Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva - art. 10.º, n.º 5, do CPC.
Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 3.ª edição, p. 33): “O título executivo constitui pressuposto de caráter formal da ação executiva, destinado a conferir à pretensão executiva um grau de certeza reputado suficiente para consentir a subsequente agressão patrimonial aos bens do devedor. Constitui, assim, a base da execução, por ele se determinando o tipo de ação e o seu objeto, assim como a legitimidade ativa e passiva para a ação”.
As espécies de títulos executivos estão enunciadas no artigo 703.º do CPC, entre eles se encontrando, entre outros, “os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação” (cfr. al. b) do n.º 1 do referido preceito legal).
Conforme se dá conta no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-02-2023 (Pº 1088/09.4TBCTX-A.E1.S1, rel. ISAÍAS PÁDUA), “os contratos dos quais resulte a convenção de prestações futuras ou a previsão de constituição de obrigações futuras só podem servir de base à execução e ser dotados de força executiva se (cumulativamente):
a) Constarem de documento exarado ou autenticado por notário ou (se tal o documento tiver sido exarado a partir da alteração que foi introduzida ao revogado CPC61 pelo DL nº. 116/08 de 04/07 ou já na vigência do nCPC) por outras entidades ou profissionais com competência para tal;
b) Se prove que alguma prestação foi realizada para a conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes;
c) Que essa prova conste de documento passado em conformidade com as cláusulas constantes daquele documento base ou, sendo ele omisso a esse respeito, de documento revestido de força executiva própria;
d) E que os referidos documentos de prova acompanhem o requerimento executivo”.
No caso em apreço, os títulos dados à execução são dois contratos intitulados “COMPRA E VENDA, MÚTUO COM HIPOTECA E MANDATO” e “MÚTUO COM HIPOTECA”, ambos celebrados em 28-01-2002, dos quais resulta terem sido mutuadas, por instituição bancária – de que a ora exequente é sucessora – determinadas quantias, aí indicadas, aos mutuários (Luís Lino – entretanto, declarado insolvente - e a ora executada), obrigando-se estes a restituir o capital mutuado e juros, em prestações, nos termos contratualmente estipulados.
Como se viu, no requerimento executivo, alegou a exequente que os empréstimos foram integralmente disponibilizados e utilizados, tendo os mutuários deles se confessado devedores, mais tendo sido alegado que, para titular o bom e integral pagamento do capital, juros e demais encargos, foram constituídas duas hipotecas sobre a fração autónoma designada pela letra “E”, descrita na 1.ª CRP de Oeiras sob o n.º 466 e inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o art.º 2751, freguesia de Porto Salvo, concelho do Oeiras, estando as hipotecas registadas a favor do exequente, sucedendo, contudo, que os mutuários não pagaram as prestações devidas (as últimas prestações, em ambos os contratos, foram pagas em 24 de Julho de 2019, não tendo sido pagas quaisquer das subsequentes).
A executada, embargando, veio invocar, nomeadamente, que não é verdade que exista incumprimento contratual da sua parte, sempre tendo provisionado a conta bancária para o efeito e que a declaração de insolvência de um dos mutuários não implica a resolução do contrato de mútuo com o outro mutuário solidário, pelo que, o banco exequente não podia resolver os contatos e exigir judicialmente, pela presente ação executiva, o pagamento antecipado da quantia mutuada à embargante e, que, ainda que assistisse ao exequente o direito de resolução nos termos do artigo 91. do CIRE, nos termos do D.L. n.º 74-A/2017, de 23 de junho, a executada opõe-se a tal resolução.
Efetuado o julgamento dos autos, a decisão recorrida começou por decidir a questão de saber se as resoluções contratuais levadas a efeito pela exequente foram lícitas.
Para tanto, expenderam-se na sentença recorrida as seguintes considerações:
“(…) Não há dúvida que o n° 1 do artigo 91° do C.I.R.E. dispõe que “A declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva.” - não sendo igualmente certo que tal perda de benefício do prazo seja extensível a co-obrigados não insolventes.
É também certo que embargante e insolvente contraíram (duas) obrigações solidárias - valendo a regra do n° 1 do artigo 526° do Código Civil: “Se um dos devedores estiver insolvente ou não puder por outro motivo cumprir a prestação a que está adstrito, é a sua quota-parte repartida proporcionalmente entre todos os demais, incluindo o credor de regresso e os devedores que pelo credor hajam sido exonerados da obrigação ou apenas do vínculo da solidariedade.”.
Assim, a quota-parte do insolvente deveria ser assumida pela ora embargante - o que, de facto, já sucedia, pois o valor total das duas prestações era debitado na conta desta na primitiva exequente (conforme explicou a testemunha SS.).
Não se justifica, assim, a resolução declarada pela primitiva exequente, na medida em que não existia mora da embargante, mas, sim, da credora - que optou por deixar de debitar as prestações (conforme contratado).
Apesar das referências da embargada à regra do artigo 91° do CIRE, o certo é que não foi esse o motivo da resolução, e que o motivo invocado para a resolução (“mora ou incumprimento”), não existia, nem se podiam aplicar as cláusulas invocadas (Décima/a) e Nona/UM dos documentos complementares) - pelo que se conclui que tais declarações de resolução (ponto 8) são ineficazes em relação à embargante - mantendo-se o benefício do prazo (e a mora da credora).
As regras do DL 74-A/17 não são aplicáveis, uma vez que os contratos são anteriores à sua entrada em vigor.”.
Insurge-se a embargada, ora apelante, contra este entendimento considerando que as resoluções contratuais operadas se devem haver por lícitas.
Vejamos:
Nos termos do artigo 90.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (aprovado pelo D.L. n.º 53/2004, de 18 de março e, abreviadamente, CIRE), o exercício dos créditos sobre a insolvência é disciplinado da seguinte forma: “Os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência”.
Por seu turno, estabelece o artigo 91.º do CIRE o seguinte:
“Artigo 91.º
Vencimento imediato de dívidas
1 - A declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva.
2 - Toda a obrigação ainda não exigível à data da declaração de insolvência pela qual não fossem devidos juros remuneratórios, ou pela qual fossem devidos juros inferiores à taxa de juros legal, considera-se reduzida para o montante que, se acrescido de juros calculados sobre esse mesmo montante, respectivamente, à taxa legal, ou a uma taxa igual à diferença entre a taxa legal e a taxa convencionada, pelo período de antecipação do vencimento, corresponderia ao valor da obrigação em causa.
3 - Tratando-se de obrigação fraccionada, o disposto no número anterior é aplicável a cada uma das prestações ainda não exigíveis.
4 - No cômputo do período de antecipação do vencimento considera-se que este ocorreria na data em que as obrigações se tornassem exigíveis, ou em que provavelmente tal ocorreria, sendo essa data indeterminada.
5 - A redução do montante da dívida, prevista nos números anteriores, é também aplicável ainda que tenha ocorrido a perda do benefício do prazo, decorrente da situação de insolvência ainda não judicialmente declarada, prevista no n.º 1 do artigo 780.º do Código Civil.
6 - A sub-rogação nos direitos do credor decorrente do cumprimento pelo insolvente de uma obrigação de terceiro terá lugar na proporção da quantia paga relativamente ao montante da dívida desse terceiro, actualizado nos termos do n.º 2.
7 - O disposto no número anterior aplica-se ao direito de regresso face a outros condevedores.”.
Conforme salienta Luís Menezes Leitão (Direito da Insolvência; 8.ª ed., Almedina, 2018, p. 181), “[a] declaração de insolvência tem efeitos consideráveis sobre os créditos. Efectivamente, a razão de ser do processo de insolvência é a de fazer com que todos os credores do mesmo devedor exerçam os seus direitos no âmbito de um único processo e o façam em condições de igualdade (par conditio creditorum), não tendo nenhum credor quaisquer outros privilégios ou garantias, que não aqueles que sejam reconhecidos pelo Direito da Insolvência, e nos precisos termos em que este os reconhece”.
Assim, compreende-se que, a declaração de insolvência produza o vencimento imediato de todas as obrigações do insolvente, com exceção dos créditos suspensivamente condicionados.
A razão de ser do vencimento antecipado das obrigações do insolvente não subordinadas a condição suspensiva “prende-se com a falta de confiança dos credores na solvabilidade do devedor, bem como com a necessidade de verificar e liquidar a massa insolvente de uma só vez” (assim, Luís Menezes Leitão, ob. e loc. cits.), no âmbito de uma finalidade genérica de “estabilização geral do passivo do devedor” (assim, Catarina Serra; Lições de Direito da Insolvência; Almedina, 2019, p. 217).
Conforme refere Gonçalo Andrade e Castro (“Efeitos da declaração de insolvência sobre os créditos”, in Direito e Justiça, Vol. XIX, Tomo II, Universidade Católica Editora, 2005, p. 281), “[o] imediato vencimento de todas as obrigações do insolvente está em consonância com o disposto no art.º 780.º, n.º 1, do Código Civil e é, como assinala a doutrina, uma exigência incontornável da celeridade e operatividade do próprio processo de insolvência, enquanto processo de execução universal que afecta todos os credores”.
Decorre, em geral, do n.º 1 do artigo 777.º do CC que, na falta de estipulação ou de disposição especial da lei, o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, assim como o devedor pode, a todo o tempo, exonerar-se dela.
O prazo tem-se por estabelecido a favor do devedor, quando se não mostre que o foi a favor do credor, ou do devedor e do credor conjuntamente – cfr. artigo 779.º do CC.
Estabelece, todavia, o n.º 1 do artigo 780.º do CC que, “estabelecido o prazo a favor do devedor, pode o credor, não obstante, exigir o cumprimento imediato da obrigação, se o devedor se tornar insolvente, ainda que a insolvência não tenha sido judicialmente declarada, ou se, por causa imputável ao devedor, diminuírem as garantias do crédito ou não forem prestadas as garantias prometidas”.
Assim, verificadas determinadas circunstâncias, não obstante o prazo ser conferido, em primeira linha, em benefício do devedor, o credor poderá exigir antecipadamente o cumprimento da obrigação, não tendo que esperar a ocorrência de tal prazo, caso em que ocorrerá uma situação de perda do benefício do prazo.
Tal sucederá, nomeadamente, no caso de o devedor se tornar insolvente. Antes da declaração de insolvência, verificada situação de insolvência do devedor, regerá o artigo 780.º, n.º 1, do CC, enquanto que, depois da declaração judicial de insolvência, “não ocorre apenas uma perda do benefício do prazo, mas sim o vencimento imediato de todas as obrigações do devedor insolvente (artigo 91.º, n.º 1, do CIRE)” (assim, Ana Afonso, em anotação ao artigo 780.º do CC, no Comentário ao Código Civil; Direito das Obrigações – Das obrigações em geral; Universidade Católica Editora, 2018, p. 1068).
No artigo 781.º do CC estabelece-se, por seu turno, que se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de qualquer delas importará o vencimento de todas, regime que, em determinadas circunstâncias está sujeito a requisitos diversos, como sucede com o disposto no artigo 934.º do CC (a respeito da venda a prestações), no D.L. n.º 133/2009, de 2 de junho, com as alterações conferidas pelo D.L. n.º 74-A/2017, de 23 de junho (a respeito do regime jurídico do crédito ao consumo).
Para além destas disposições tem interesse convocar, ainda, o previsto no artigo 782.º do CC, que regula sobre a “perda do benefício do prazo em relação a coobrigados e terceiros” dispondo do seguinte modo: “A perda do benefício do prazo não se estende aos coobrigados do devedor, nem a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia”.
Nos termos deste artigo 782.º do CC, a perda do benefício do prazo tem caráter pessoal, só afetando o devedor, não se comunicando nem a terceiros garantes da obrigação, nem a codevedores, conjuntos ou solidários.
“Isto significa que, verificada uma das hipóteses de perda do benefício do prazo previstas nas normas antecedentes, o credor pode exigir ao devedor o cumprimento imediato da obrigação, mas terá de esperar pelo tempo estipulado para reclamar a realização da prestação aos outros condevedores ou a terceiros garantes da obrigação” (assim, Ana Afonso, em anotação ao artigo 782.º do CC, no Comentário ao Código Civil; Direito das Obrigações – Das obrigações em geral; Universidade Católica Editora, 2018, p. 1072).
Neste sentido, “a perda do benefício do prazo resultante da insolvência de um só dos devedores, quando a dívida seja solidária, não se estende aos outros co-obrigados, desde que não tenha sido estipulada convenção em contrário ou não se verifique, também quanto a eles, causa determinante dessa perda” (assim, Ac. do STJ de 18-01-2018, Pº 123/14.9TBSJM-A.P1.S2, rel. HENRIQUE ARAÚJO; em semelhante sentido, o Ac. do TRC de 15-01-2019, Pº 2757/15.5T8VIS-A.C1, rel. MARIA JOÃO AREIAS).
Trata-se, contudo, (o disposto no artigo 782.º do CC) de norma de natureza supletiva, admitindo-se como possível que, por convenção das partes, de acordo com o princípio da liberdade contratual, consagrado no artigo 405.º do CC, a perda do benefício do prazo se estenda aos coobrigados ou aos terceiros.
Todavia, tem-se considerado que não representam tal efeito – de renúncia ao benefício do prazo - nem a cláusula que admite a renúncia do fiador ao benefício de excussão prévia (cfr. neste sentido, v.g., o Ac. do TRC de 03-07-2012, Pº 1959/11.8T2OVR-A.C1, rel. CARLOS QUERIDO; os Acs. do TRP de 26-10-2020, Pº 7137/16.2T8PRT-C.P1, rel. AUGUSTO DE CARVALHO e de 08-06-2022, Pº 9659/17.9T8PRT-A.P1, rel. ANA LUCINDA CABRAL e o Ac.do TRL de 11-07-2019, Pº 819/15.8T8SNT-B.L1-6, rel. ANTÓNIO SANTOS), nem a previsão de “cláusula contratual que estabelece que a falta de pagamento de alguma das prestações por parte do mutuário importa a imediata exigibilidade de todas as responsabilidades” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-10-2021, Pº 7418/12.4T2SNT-A.L1-2, rel. NELSON BORGES CARNEIRO).
Daqui decorre que, não tendo ocorrido perda do benefício do prazo conferido a favor do devedor, o credor só poderá exigir do garante ou do coobrigado o imediato pagamento da totalidade da dívida, antecipadamente, se previamente o tiver interpelado, com essa cominação, para por termo à mora, pagando as quantias em dívida vencidas pelo decurso do prazo contratual para elas estipulado (considerando-se que não é bastante, para esse efeito, a citação do garante na ação executiva contra si instaurada pelo credor com vista a obter dele o pagamento da totalidade de tal crédito - vd, neste sentido, entre outros, o Ac. do STJ de 11-05-2022, Pº 1511/19.0T8STB-A.E1.S1, rel. ISAÍAS PÁDUA, o Ac. do TRG de 17-12-2019, Pº 4959/18.3T8GMR-A.G1, rel. ALCIDES RODRIGUES e o Ac. do TRL de 30-05-2023, Pº 5855/19.2T8FNC.L1-7, rel. ANA RODRIGUES DA SILVA).
Sobre os termos em que deve ser interpretada a estipulação contratual, refere-se no Acórdão do TRP de 12-01-2021 (Pº 4388/19.1T8LOU-A.P1, rel. ALEXANDRA PELAYO) que: “Não se apurando a vontade real do declarante, expressa em cláusula contratual, a declaração deve valer com o sentido que um declaratário normal (medianamente instruído, diligente e sagaz), colocado na posição do declaratário efetivo, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele, atendendo a todas as circunstâncias do caso concreto”.
Revertendo estas considerações e considerando-as no caso dos autos, vemos que, relativamente ao contrato de mútuo da quantia de € 44.891,81, consta da Cláusula 9.ª do documento complementar anexo à correspondente escritura que, “sem prejuízo das demais faculdades que legal ou contratualmente lhe caibam poderá o Banco resolver o presente contato e considerar imediatamente vencidas todas as obrigações e responsabilidades dele emergentes quando ocorra qualquer uma das seguintes circunstâncias:
(…) c) esteja em curso contra o Mutuário qualquer execução, penhora, arresto ou qualquer providência que implique limitações à livre disponibilidade dos bens (…)”.
Por seu turno, relativamente ao mútuo da quantia de € 99.759,57, estabelece a Cláusula 10.ª do documento complementar anexo a tal escritura que, “sem prejuízo das demais faculdades que legal ou contratualmente lhe caibam poderá o Banco resolver unilateralmente o contato e considerar imediatamente vencidas todas as obrigações e responsabilidades dele emergentes quando ocorra qualquer uma das seguintes circunstâncias:
(…) d) a execução, o arresto, a penhora ou qualquer outra forma de apreensão judicial do imóvel hipotecado; (…)
h) a declaração de falência do mutuário ou, independentemente disso, a verificação de uma substancial alteração da sua situação económica ou financeira (…)”.
Decorrem destas estipulações contratuais que o mutuante poderia considerar imediatamente vencidas as obrigações dos mutuários – perdendo estes o benefício do prazo constituído a seu favor – nas situações nelas identificadas, nomeadamente, nos casos de ocorrer a declaração de falência (insolvência, na atual terminologia normativa) do mutuário ou de ter lugar alguma providência que determinasse limitações à livre disponibilidade dos bens objeto de hipoteca.
Ora, nessa linha, verificada a situação de insolvência do mutuário Luís Lino, o mutuante, então Banco Santander Totta, promoveu o envio a este da carta de 29-10-2019, onde invocando o disposto no artigo 91.º do CIRE, considerou vencidas as obrigações do insolvente. E em semelhantes moldes, remeteu à ora embargante, cartas datadas de 29-10-2019, na qual se escreveu, identificando as operações em causa, o seguinte:
“(…) O Banco Santander Totta, S.A. (BST) foi notificado de que a(s) pessoa(s) abaixo mencionada(s), foi(foram) delcara(s) INSOLVENTE(S).
Nos termos do art. 91 do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, a declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente.
Pelo exposto, mostra(m)-se vencida(s) e não paga(s) as obrigações(s) emergentes da(s) operação(ões), abaixo identificada(s), com os montantes em dívida, também abaixo identificado(s), de que V. Exa(s) é(são) responsável(eis) pela liquidação, atenta a posição contratual que têm(êm) na(s) mesma(s).
Pela presente, V. Exa(s) fica(m) interpelado(s) para o pagamento das responsabilidades em causa, ao Banco Santander Totta, S.A. (BST), com os respetivos juros, impostos e despesas.
Em caso de não pagamento o BST aguardará 10 dias e depois será forçado a recorrer aos meios de recuperação previstos na lei, nomeadamente à via judicial (…)”.
Ora, resulta do disposto no artigo 81.º, n.º 1, do CIRE que, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.
Da sentença de insolvência do mencionado Luís Lino – disponível em https://www.citius.mj.pt/portal/consultas/consultascire.aspx - consta no ponto 6 da mesma a determinação de apreensão, para entrega à administradora da insolvência, dos elementos da contabilidade do insolvente e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos.
Assim, declarada a insolvência de Luís Lino, ocorrendo causa de apreensão dos bens do insolvente, igualmente se encontrava verificada – nos termos das cláusulas 9.ª, n.º 1, al. c) e 10.ª, n.º 1, al. d) – causa que determinava, nos termos dos contratos celebrados, o vencimento de todas as obrigações deles emergentes, não só as que decorriam para o insolvente, mas também, as que acarretassem para a co-mutuária, a ora apelada/embargante, poder-se-ia ser levado a concluir que existia motivo para a resolução contratual subsequentemente promovida pela mutuante.
Contudo, afigura-se-nos que inexiste motivo para assim concluir.
De facto, decorre dos factos apurados o seguinte:
-Em V-19 a primitiva exequente debitou, na conta da embargante as duas prestações (359,05€ e 166,37€) relativas aos contratos supra - e indicou os montantes a vencer em 30-VI-19 (359,05€ e 166,36€).
- Em 1-VII-19 a primitiva exequente debitou as duas prestações supra - e não indicou os montantes das prestações a vencer no mês seguinte.
- Em 1-VII-19 Luis Hélder Silva Lino foi declarado insolvente (fls 88v-89).
- Após 1-VII-19 a primitiva exequente não voltou a debitar valores de prestações na conta da embargante - indicando, no final do extracto de VII- 19 um ‘Saldo Disponível Final’ de -73.984,63€.
- A conta da embargante onde eram debitados os pagamentos das prestações apresentava os seguintes saldos (positivos): em 1-VII-19, 1.220,28€; em 23-VII-19, 147,47€; em 1-VIII-19, 777,47€; em 9-IX-19, 1.333,42€; em 3- X-19, 1.949,66€; em 1-XI-19, 1.318,79€; em 2-XII-19, 1.861,17€; em 2-I-20, 2.218,77€; em 3-II-20, 2.784,62€; em 31-III-20, 4.485,29€; em 23-IV-20, 4.828,01€.
Ora, verifica-se que a mutuante só em 29-X-19 enviou à ora embargante, que as recebeu, as cartas juntas com o requerimento executivo e a fls 89v a 91 (cujos teores se dão aqui por reproduzidos) — referentes a “Declaração de insolvência / vencimento das obrigações do insolvente”, acima transcritas.
Verifica-se, efetivamente, que, a mutuante optou, ilegitimamente (porque sem causa que o legitimasse), por não debitar da conta bancária da embargante as prestações que se venceram em 01-07-2019 e as subsequentes, assinalando, apenas em 29-10-2019, que a situação de insolvência de Luís Lino determinava, na sua perspetiva, o vencimento das prestações de responsabilidade dos mutuários.
Contudo, como se vê, fê-lo, num momento em que se encontrava já em mora relativamente à cobrança das prestações por conta da embargante, não tendo procedido à sua tempestiva cobrança, não obstante a mutuária dispor, às datas de vencimento das correspondentes prestações, saldos positivos para o efeito.
De acordo com o disposto no artigo 813.º do CC, “o credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os atos necessários ao cumprimento da obrigação”.
“A delimitação do conteúdo do conceito “motivo justificado” não é pacífica na doutrina, sendo certo que a adoção de um entendimento mais restrito conduz a uma maior proteção do devedor enquanto a adoção de um entendimento mais amplo se apresenta como mais favorável ao credor. ANTUNES VARELA, 1997: 152, GALVÃO TELLES, 1997: 314, ALMEIDA COSTA, 2009: 1080, e MENEZES LEITAO, 2018: 243-244, consideram existir motivo justificado quando o credor recusa a prestação ou omite a colaboração com base em razões objetivas atinentes ao objeto, ao conteúdo, ao tempo ou ao lugar da prestação, designadamente, se se tratar de prestação parcial, de prestação defeituosa, de prestação antes do vencimento (com prazo a favor do credor), de prestação a ser realizada em lugar diferente do acordado, de prestação infungível a ser realizada por terceiro, ou seja de uma prestação que apresente desconformidade em relação às regras legais em matéria de cumprimento (…)” (assim, Mónica Duque, em anotação ao artigo 813.º do CC, no Comentário ao Código Civil; Direito das Obrigações – Das obrigações em geral; Universidade Católica Editora, 2018, p. 1179).
Ora, nenhuma razão objetiva existiu para a mutuante proceder à resolução contratual, concretizada pelo envio das missivas datadas de 13-11-2019.
Ou seja: A mutuante, injustificadamente, não aceitou a prestação disponibilizada em conta pela embargante, que dispunha do saldo necessário para o efeito, nos termos sobreditos, após a declaração de insolvência de Luís Lino, situação que se manteve até ao momento em que remeteu a este e à embargante as cartas datadas de 29-10-2019 e as subsequentemente remetidas.
Conforme salienta Paulo Mota Pinto, “a resolução sem fundamento é, pois, ineficaz” (excecionando este Autor da sanção de ineficácia, tão só, os contratos em relação aos quais o resolvente tinha o direito de pôr termo ao contrato mediante denúncia discricionária ou sem necessidade de invocação de um motivo, caso em que, se poderá equiparar-se a declaração de resolução sem fundamento a uma denúncia sem pré-aviso – em igual sentido, vd. Nuno Manuel Pinto Oliveira; Princípios de direito dos contratos, Coimbra Editora, Maio 2011, pp. 893-897 – hipótese que, no caso dos autos, não ocorre), “por não possuir fundamento e o resolvente não ser titular do correspondente direito potestativo. […] da tentativa de exercício de um direito de que se não era titular não pode resultar qualquer efeito extintivo da relação contratual” - cfr. Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Coimbra Editora, 2008, nota 4861, pp. 1674 e 1677).
Em face do exposto, bem decidiu a decisão recorrida ao considerar que não se justificava a produção de efeitos da resolução declarada pela mutuante, “na medida em que não existia mora da embargante, mas, sim, da credora – que optou por deixar de debitar as prestações (conforme contratado)”.
Como também se refere na decisão recorrida, a circunstância de nas missivas de 29-10-2019 se mencionar o dispositivo do artigo 91.º do CIRE é inócua para alterar esta conclusão, pois, não foi, de facto, esse o motivo da resolução contratual e, consequentemente, deve ter-se a comunicação deste facto como ineficaz relativamente à embargante, que mantém o benefício do prazo e a causa de procedência dos embargos, nos termos que foram assinalados na decisão recorrida.
Em conclusão, podem alinhar-se as seguintes proposições conclusivas:
- Nos termos do artigo 782.º do CC, a perda do benefício do prazo tem caráter pessoal, só afetando o devedor, não se comunicando nem a terceiros garantes da obrigação, nem a codevedores, conjuntos ou solidários;
- Neste sentido, a perda do benefício do prazo resultante da insolvência de um só dos devedores, quando a dívida seja solidária, não se estende aos outros co-obrigados, desde que não tenha sido estipulada convenção em contrário ou não se verifique, também quanto a eles, causa determinante dessa perda;
- Trata-se, contudo, de norma de natureza supletiva, admitindo-se como possível que, por convenção das partes, de acordo com o princípio da liberdade contratual, consagrado no artigo 405.º do CC, a perda do benefício do prazo se estenda aos coobrigados ou aos terceiros;
- Não tendo ocorrido perda do benefício do prazo conferido a favor do devedor, o credor só poderá exigir do garante ou do coobrigado o imediato pagamento da totalidade da dívida, antecipadamente, se previamente o tiver interpelado, com essa cominação, para pôr termo à mora, pagando as quantias em dívida vencidas pelo decurso do prazo contratual para elas estipulado;
- Estipulando-se nos contratos de mútuo dos autos que, “sem prejuízo das demais faculdades que legal ou contratualmente lhe caibam poderá o Banco resolver o presente contato e considerar imediatamente vencidas todas as obrigações e responsabilidades dele emergentes quando ocorra qualquer uma das seguintes circunstâncias: (…) c) esteja em curso contra o Mutuário qualquer execução, penhora, arresto ou qualquer providência que implique limitações à livre disponibilidade dos bens (…)” e quando ocorra, “d) a execução, o arresto, a penhora ou qualquer outra forma de apreensão judicial do imóvel hipotecado; (…), h) a declaração de falência do mutuário ou, independentemente disso, a verificação de uma substancial alteração da sua situação económica ou financeira (…)”, o mutuante poderia considerar imediatamente vencidas as obrigações dos mutuários – perdendo estes o benefício do prazo constituído a seu favor – nas situações nelas identificadas, nomeadamente, nos casos de ocorrer a declaração de insolvência do mutuário ou de ter lugar alguma providência que determinasse limitações à livre disponibilidade dos bens objeto de hipoteca;
- Tendo a mutuante optado, ilegitimamente (porque sem causa que o legitimasse), por não debitar da conta bancária da embargante as prestações que se venceram em 01-07-2019 e as subsequentes, assinalando, apenas em 29-10-2019, que a situação de insolvência do co-mutuário determinava, na sua perspetiva, o vencimento imediato de todas as prestações de responsabilidade dos mutuários, fê-lo, num momento em que se encontrava já em mora relativamente à cobrança das prestações por conta da embargante, não tendo procedido à sua tempestiva cobrança, não obstante a mutuária dispôr, às datas de vencimento das correspondentes prestações, de saldos positivos para o efeito, incorrendo na situação de mora creditória, a que se refere o artigo 813.º do CC;
- A resolução contratual promovida, nesse quadro, pela mutuante, porque infundada, é ineficaz face à embargante.
Inexiste, pois, motivo para a revogação do decidido.
*
A apelação deverá, pois, ser julgada improcedente, com manutenção da decisão recorrida.
*
De acordo com o estatuído no n.º 2 do artigo 527.º do CPC, o critério de distribuição da responsabilidade pelas custas assenta no princípio da causalidade e, apenas subsidiariamente, no da vantagem ou proveito processual.
Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. “Vencidos” são todos os que não obtenham na causa satisfação total ou parcial dos seus interesses, sendo que, conforme se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2017 (Pº 1509/13.1TVLSB.L1.S1, rel. TOMÉ GOMES), cujo entendimento se subscreve: “O juízo de procedência ou improcedência da pretensão recursória não é aferível em função do decaimento ou vencimento parcelar respeitante a cada um dos seus fundamentos, mas da respetiva repercussão na solução jurídica dada em sede do dispositivo final sobre essa pretensão”.
Em conformidade com o exposto, a responsabilidade tributária inerente incidirá sobre a apelante/embargada, que decaiu integralmente no presente recurso - cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.
*
5. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem o tribunal coletivo desta 2.ª Secção Cível, em julgar improcedente a apelação deduzida e, em consequência, em manter a decisão recorrida.
Custas a cargo da apelante/embargada.
Notifique e registe.
*
Lisboa, 23 de novembro de 2023.

Carlos Castelo Branco
Orlando dos Santos Nascimento
António Moreira