CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
LIBERDADE CONTRATUAL
SEGURO DE CRÉDITOS
CONTRATO DE ADESÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
DEVER DE ESCLARECIMENTO PRÉVIO
EXCLUSÃO DE CLÁUSULA
Sumário


I. É válido o contrato classificado pelas partes como de prestação de serviços, cujo clausulado foi em grande parte previamente elaborado por uma das partes sem intervenção da outra, e em que, além do mais, a parte proponente se vincula a realizar estudos sobre a viabilidade económica e financeira de uma empresa terceira e a partilhar essa informação com a outra mediante retribuição e se obriga a pagar determinada percentagem do valor da facturação de mercadoria fornecida pela outra parte a essa empresa em caso de incumprimento;
II. O dever do contraente que predispõe as cláusulas de um contrato de adesão de esclarecer a outra parte dos aspectos nela compreendidos só abrange aqueles pontos cuja aclaração se justifique, sobre eles se impondo a prestação dos esclarecimentos que lhe sejam solicitados pela outra parte contratante;
III. É válida a cláusula do contrato resultante da negociação entre as partes em que foi acordado que o contrato vigoraria pelo período de um ano e que a ré garantiria o pagamento de 80% (oitenta por cento) do valor da facturação entre a autora e a empresa terceira com o limite de 180.000,00 euros, em caso de incumprimento;
IV. Tal cláusula, cuja redação não suscitou dúvidas às partes, deve ser interpretada como limitativa da responsabilidade da ré ao valor da facturação global da mercadoria fornecida pela autora durante o período acordado e em situação de incumprimento no termo da vigência do contrato;
V. Não tendo sido objecto de qualquer negociação nem explicada à outra parte a cláusula do contrato que permitiria à ré efectuar a cobrança de créditos da autora após a cessação da vigência do contrato tal cláusula deve ter-se por excluída do contrato.

Texto Integral

EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam no Supremo Tribunal de Justiça os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção (Cível)


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RELATÓRIO

Parte I – Introdução

1) Darksea, Indústria de Calçado, Ld.ª intentou ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra Urios Portugal Unipessoal, Ld.ª, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 43.528,00 (quarenta e três mil, quinhentos e vinte e oito euros), acrescida de juros de mora vencidos à taxa legal e de juros vincendos à mesma taxa desde a citação e até efetivo e integral pagamento e em sanção pecuniária compulsória não inferior a € 50,00 (cinquenta euros) por cada dia de incumprimento da sentença que vier a ser proferida.

Alegou, em síntese, ter celebrado contrato com a ré através do qual esta se obrigou, nomeadamente, na sequência de um denominado “Estudo Garantido”, a assegurar o pagamento de uma dívida de terceiro de que a autora era credora e que a ré não cumpriu a obrigação a que então se vinculou.

2) A ré apresentou contestação, invocando, além do mais, o integral cumprimento do contrato que serve de fundameno ao pedido da autora e os termos em que o fez, segundo a sua interpretação do clausulado, face às circunstâncias de facto alegadas pela autora.

A ré deduziu pedido ainda reconvencional, pedindo a condenação da autora a pagar-lhe a quantia de € 10.00,00 (dez mil euros), acrescida dos respectivos juros de mora à taxa legal.

3) Dispensada que foi a audiência prévia teve lugar a audiência final na sequência do que foi proferida sentença em primeira instância que:

- Julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 38.528 (trinta e oito mil quinhentos e vinte e oito euros), acrescida dos juros de mora à taxa legal aplicável às obrigações de que sejam titulares as empresas comerciais, vencidos desde 12 de março de 2021, até integral pagamento e fixando a sanção pecuniária compulsória nos termos do artigo 829.º-A n.º 4 do Código Civil.

- Julgou improcedente o pedido reconvencional.

4) Inconformada a ré interpôs recurso de apelação, visando a modificação da decisão sobre a matéria de facto e questionando, em sede de aplicação do direito aos factos que considera provados, o fundamento da sua condenação e da absolvição da autora do pedido reconvencional.

O Tribunal da Relação do Porto, por seu acórdão de 28 de março de 2023 decidiu julgar a apelação parcialmente procedente, mantendo o elenco dos factos apurados em primeira instância, mas, revogando a sentença recorrida, julgar a acção improcedente e a reconvenção parcialmente procedente, condenando a autora a pagar à ré reconvinte a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), acrescida dos respectivos juros comerciais a partir da notificação do pedido reconvencional.


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Parte II – A Revista

5) De tal acórdão interpôs a autora recurso de revista, concluindo as suas alegações pela seguinte forma:

“1 – A matéria de facto dado por assente na Primeira Instância veio confirmada pelo douto Acórdão do Tribunal da Relação.

2 – Com base em tal matéria assente e no soçobrar dos vícios apontados à decisão de Primeira Instância haveria apenas que confirmar tal decisão.

3 – Aliás, com base em tal matéria de facto assente e em grande parte resultado da leitura do Acórdão agora recorrido, a aqui Recorrente, qualquer normal destinatário do Acórdão, facilmente concluiria pela confirmação da decisão proferida em Primeira Instância;

4 – Tanto assim é que o Acórdão posto em crise conclui estarmos perante um contrato de adesão, cujas cláusulas compete ao seu proponente explicar de forma capaz e suficiente para que o aderente forme de forma adequada a sua vontade.

5 – Ficou demonstrado (matéria de facto assente) que as cláusulas do contrato de adesão não foram explicadas por insuficiência evidente da aqui Recorrida, a quem competia fazê-lo;

6 – Assim sendo tais cláusulas não podem ser consideradas com o sentido que lhes dá a Recorrida, e bem ao contrário devem ser desconsideradas.

7 – Não obstante, e num salto lógico verdadeiramente incompreensível e inalcançável o Acórdão Recorrido, desaplica o Regime das Cláusulas Contratuais Gerais para aplicar ao caso concreto a Teoria da Impressão do Destinatário, fazendo uma inadequada aplicação de direito à matéria de facto assente e apurada.

8 – Ainda assim, dizendo-se incapaz de chegar a uma conclusão segura por via da aplicação da Teoria da Impressão do destinatário, conclui que para decidir a questão se faria uso daquela que parece a solução mais equilibrada.

9 – Vá lá adivinhar-se porquê, porque não é explicado como se alcança essa solução mais equilibrada, e erradamente entende o Tribunal Recorrido ser a versão da Recorrida.

10 – O curioso é que com tal solução, faz verdadeiramente o pino concluindo em sentido contrário de quase tudo o que verte no Acórdão,

11 – Premiando a culpada pela falta de clareza e falta de explicação das clausulas que redige e impõe, e pela “inadequada” convicção que cria na Recorrente, interpretando a seu favor a cláusula que decide o litígio.

12 – Esta é não a solução mais equilibrada, mas um verdadeiro premiar do infrator.

13 – Deve, pois, o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que confirme integralmente a decisão proferida em Primeira instância.

Foram violadas a disciplina ínsita no Decreto-Lei 446/85, o art.º 26º da Constituição da República Portuguesa, os artigos 236º a 238º, 283º a 285 e 405º do Código Civil.”

6) Por sua vez a ré / recorrida apresentou articulado de resposta às alegações de revista que concluiu da forma seguinte:

“1. Uma cláusula que constitui o “nó górdio” dos presentes autos, que é o núcleo essencial do conteúdo contratual e que é facto assente que resultou de negociação entre as partes contratantes está excluída do âmbito de aplicação do RCCG pois não houve mera adesão ao seu conteúdo nem o mesmo foi previamente elaborado pela Recorrida.

2. Por essa razão, essa cláusula nunca poderia ser considerada como não escrita, como entende a ora Recorrente.

3. Independentemente disso, se, por absurdo, a mesma cláusula contratual fosse excluída, teria o efeito de tornar a P. I. inepta, uma vez que também constitui o núcleo da sua causa do pedir.

4. A pretensão da Recorrente/Autora de excluir a cláusula do contrato que constitui a sua própria causa do pedir (conclusão 6.ª in fine das alegações de recurso, suportada pela motivação correspondente) fere a própria alegação de recurso com uma contradição insanável.

5. Ao contrário do que entende a Autora/Recorrente, que insiste sempre no RCCG, o Tribunal de Primeira Instância e a Relação aplicam o mesmo regime jurídico da interpretação e integração previsto no Código Civil, nos seus artigos 236.º a 238.º.

6. A diferença é que a 1.ª Instância aplica a norma do artigo 236.º do CC e a Relação aplica a norma do artigo 237.º do Código Civil.

7. Porém, o Tribunal de 1.ª Instância aplicou a norma do artigo 236.º por se ter socorrido de elementos que não poderia ter utilizado para a interpretação, como sejam factos que não foram alegados pelas partes nem dados como assentes.

8. Por outro lado, a 1.ª Instância não levou em linha de conta a natureza inconciliável dos interesses das partes e o sentido – que se poderá considerar igualmente defensável – que ambas atribuem às suas posições, baseadas em elementos de igual força. O que significa que o Tribunal de 1.ª Instância teria chegado à mesma conclusão que a Relação, se não tivesse utilizado elementos que não poderia utilizar na interpretação e se tivesse tido em conta as razões inconciliáveis de cada uma das partes.

9. Aplicando o artigo 237.º do Código Civil ao caso dos autos, o entendimento da Recorrente é que pagou € 7.776,00 à Recorrida e tem o direito a receber € 133.528,00 e o entendimento da Recorrida é que essa obrigação é de apenas € 90.000,00. Pelo que resulta claro que o “maior equilíbrio de prestações” é o entendimento que diminua o prejuízo da Recorrida, sendo que a Recorrente nunca receberá menos de € 90.000,00.

10. Por último, quanto ao pedido reconvencional, por um lado, a própria Autora/Recorrente sempre admitiu abrir mão do montante correspondente; ademais, tal pedido é suportado pela causa do pedir que o justifica e não apenas pela cláusula excluída.

7) Sendo o objecto dos recursos definido pelas conclusões dos recorrentes, para além do que for de conhecimento oficioso, importa decidir no caso sub judice qual é, em função dos factos apurados, o sentido a dar à cláusula “4. Observações” das Condições Particulares do contrato celebrado entre as partes no que tange ao limite nela previsto e ao modo como deve ser apurado o montante através dele garantido pela ré.

Abordar-se-á igualmente a questão do mérito do pedido reconvencional face à exclusão do texto do contrato celebrado da cláusula “4. Gestão de Cobranças”, inserta nas Condições Gerais.

Colhidos que foram os Vistos dos Senhores Juízes Conselheiros que intervêm no julgamento, cumpre apreciar e decidir, ao que nada obsta.


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FUNDAMENTAÇÃO

Parte I – Os Factos

1) São os seguintes os factos considerados provados tal como descritos no acórdão recorrido:

A) A Autora dedica-se com intuito lucrativo ao comércio e indústria de calçado e de artigos de couro e pele, importação e exportação.

B) A Ré dedica-se com escopo lucrativo a prestação de serviços de consultoria, apoio e estudos garantidos no âmbito da atividade de gestão de negócios e risco comercial, análise e avaliação de crédito, assim como à comercialização de informação comercial e gestão de cobranças e recebimentos.

C) No exercício das respetivas atividades, a Autora e a Ré celebraram um contrato que denominaram de contrato de prestação de serviços – “Estudos Garantidos” (Cfr doc n.º 1 junto com a petição inicial).

D) O contrato iniciou a sua vigência em 19 de fevereiro de 2020.

E) Nos termos da cláusula décima segunda das condições gerais do contrato em discussão nos autos (…) foi estipulado que “para dirimir quaisquer litígios emergentes da execução do presente contrato, as partes acordam entre si estabelecer como competente o foro do Tribunal Judicial da Comarca de ..., dada a sede social da URIOS”.

F) A ré tem sede social no concelho de ..., que pertence à Comarca de....

G) O contrato tinha, entre outros, por objeto o serviço de “Estudos Garantidos”, nos termos do qual, em caso de incumprimento por parte da empresa S..., era garantido pela Ré à Autora o pagamento de uma percentagem correspondente a 80%, sobre o valor das faturas (excluindo o IVA) emitida pela Autora à sociedade S..., entre 19 de fevereiro de 2020 e 18 de fevereiro de 2021, com o limite de € 180.000,00 – cfr cláusula 4.ª das condições particulares.

H) No exercício da sua atividade comercial, a autora emitiu as seguintes faturas à sua cliente S...:

- Fatura n.º 58 no montante de € 5.886,20;

- Fatura n.º 65 no montante de € 11.169,00;

- Fatura n.º 66 no montante de € 7.884,00;

- Fatura n.º 67 no montante de € 44.346,00;

- Fatura n.º 68 no montante de € 26.009,50;

- Fatura n.º 73 no montante de € 51.843,00;

- Fatura n.º 77 no montante de € 62.526,50;

- Fatura n.º 78 no montante de € 572,00, de 20 de março de 2020;

- Fatura n.º 81 no montante de € 23.233,00, de 27 de março de 2020.

l) Por conta das faturas assim emitidas recebeu e deu quitação dos seguintes montantes:

- Recibo n.º 60.006 – 76, no montante de € 20.000,00;

- Recibo n.º 60.045 – 76, no montante de € 20.000,00;

- Recibo n.º 60.177 – 86, no montante de € 20.00,00;

- Recibo n.º 70.003 – 92, no montante de € 20.000,00.

J) Foi ainda emitido um estorno respeitante a um recebimento de:

- Estorno n.º 60.246, no montante de 20.000,00.

L) Não foram pagos à Autora € 179.914,00 (Cfr doc nº 2 junto com a petição inicial).

M) A Autora de tal facto deu nota à aqui Ré, interpelando-a, por carta recebida a 9 de julho de 2020, para que desse cumprimento ao que vem previsto no contrato entre ambas celebrado (Cfr doc n.º 3 junto com a petição inicial).

N) A Ré, no dia 12 de março de 2021 e ao abrigo do sobredito contrato, liquidou a quantia de € 100.000,00 a favor da Autora (Cfr docs n.º 4 e 5 juntos com a petição inicial)

O) Em 18 de março de 2020, o valor global faturado pela Autora à sociedade S... ultrapassou os € 180.000,00, atingindo, nessa data, o montante de € 209.664,20 (Cfr Extrato junto com a sua petição inicial sob documento 2)

P) Foi após 18 de março de 2020 que a S... efetuou três pagamentos diretamente à Autora, num valor total de € 55.000,00, conforme se discrimina:

- € 20.000,00, em 03 de junho de 2020;

- € 20.000,00, em 23 de junho de 2020;

- € 15.000,00, em 02 de julho de 2020.

R) A S... pagou diretamente à Autora a quantia de € 10.000,00 (Cfr doc junto sob o n.º 2 com a contestação)

S) A Autora não comunicou à Ré o referido pagamento.

T) Ao menos quanto ao valor/montante/quantia limite(s) da faturação a garantir (€ 180.000) e percentagem desta garantia (80%), bem como quanto a “remuneração” e “período de vigência”, todos constantes das condições particulares, de páginas 1 e 2 do contrato junto sob o documento número 3 com a petição inicial, houve negociação entre as partes, fixando-se consensualmente aquelas referências.

U) O mais ali constante (de páginas 1 e 2), bem como as condições gerais de páginas 3 e 4 do mesmo contrato, encontrava-se já redigido/pré-impresso pela Ré, limitando-se o legal representante da Autora a apor a respetiva assinatura e rubrica na totalidade das páginas do documento que se constitui como o contrato intitulado de “prestação de serviços”.

V) A Autora (o seu legal representante) ficou ciente, por lhe ter sido explicado/comunicado antes ainda da outorga/assinatura do contrato, sem que, contudo, lhe tenha sido comunicado ou esclarecido o teor ou conteúdo mesmo da cláusula 4ª das condições gerais juntas sob o documento 3 com a contestação, de que, quanto a facturas garantidas/pagas pela Ré, esta ficaria com o direito a fazer da devedora a cobrança respectiva.


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2) Foram considerados não provados os seguintes factos:

1 – O legal representante da Autora limitou-se a apor a sua assinatura no contrato pré-impresso e no local onde lhe foi dito que o fizesse, sem que condição alguma fosse discutida.

2 – O contrato e os seus termos foram negociados ponto a ponto entre as partes.

3 – Quanto à cláusula 4ª das condições particulares, a Autora foi informada que o limite ali referido de € 180.000 o era com referência ao volume de faturação durante o tempo de duração do contrato, que não ao limite do valor a satisfazer ou reembolsar…

4 – E por isso que a garantia emergente do contratado serviço referido em G) cessava logo que atingida a faturação-limite.

5 – À Autora foi antes explicado que, definido um plafond anual, seriam garantidos 80% dos fornecimentos feitos nesse período, como contrapartida do pagamento de um “prémio”.

6 – Para além ou para lá do provado em V), a Autora foi esclarecida de que os pagamentos pela entidade a que respeitava o contrato e relativos a faturas abrangidas pelo serviço “estudos garantidos” estavam incluídos pela cláusula geral intitulada “gestão de cobranças”, sob o ponto 4 das condições gerais juntas com o doc. sob o n.º 3 com a petição.

7 – Com o que, atento o ponto 4.3. das condições gerais contratadas, não haveria lugar à restituição pela Ré à Autora de montante cobrado pela Ré, se o valor recuperado não excedesse o valor da garantia.


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3) Por se revelar de interesse para a decisão transcrevem-se de seguida as duas cláusulas em foco nas decisões impugnadas.

a) Na parte relativa às Condições Particulares do contrato (primeira página do intitulado Contrato de Prestação de Serviços):

“4. Observações

Serviço Estudos Garantidos: em caso de incumprimento, é garantido ao beneficiário o pagamento de uma percentagem correspondente a 80% sobre o valor da(s) fatura(s) emitidas por Darksea – Indústria de Calçado, Ld.ª à entidade objeto do estudo, entre 19/02/2020 e 18/02/2021, com o limite de € 180.000.

EmpresaNIPCMontantePrazo%
S......57180.000€12 meses80%

b) Na parte relativa às condições gerais:

“Condições gerais

(…)

4. Gestão de Cobranças

4.1 – O serviço de Gestão de Cobranças consiste na realização de contactos meramente administrativos a devedores indicados pelo Cliente, com vista a recuperar determinados créditos titulados por faturas, desde que tais créditos sejam constituídos ao abrigo de um contrato validamente celebrado entre o credor e o devedor.

4.2. Durante o período da gestão administrativa da URIOS, o Cliente obriga-se a não mandatar ou ordenar terceiros para o mesmo efeito, salvo autorização expressa dada pela URIOS.

3. No caso de créditos recuperados no âmbito do serviço “Estudos Garantidos” apenas serão restituídos ao Cliente os montantes que excedam a percentagem garantida.”

Mais se consigna que o pagamento referido na alínea R) dos Factos provados ocorreu por transferência bancária em 15 de março de 2021.


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Parte II – O Direito

1) A presente acção foi interposta com base no incumprimento de um contrato classificado pelas partes como de “prestação de serviços” e no contexto do qual a ora ré se obrigou a realizar “Estudos de Solvabilidade”, “Estudos Garantidos” e “Gestão de Cobranças” em relação à sociedade francesa S... e sobre a situação financeira e solvabilidade da sociedade a quem a autora se propunha efectuar fornecimentos de mercadoria por si produzida.

Em resultado da celebração de tal contrato e relativamente ao serviço “Estudos Garantidos” a ré comprometeu-se perante a autora, mediante a remuneração que foi acordada, a garantir o pagamento de 80% do valor da mercadoria fornecida (IVA excluído) àquela sociedade francesa e objecto de faturação durante um ano, entre 19 de fevereiro de 2020 e 18 de fevereiro de 2021, em caso de incumprimento, tendo sido estabelecido o limite máximo desse montante em 180.000,00 (cento e oitenta mil euros).

A divergência entre as partes, tal como tratada nas instâncias, centra-se na interpretação a dar à Cláusula “4. Observações” inserida nas condições particulares do contrato que prevê esse valor máximo, divergindo elas no entendimento sobre se o valor limite ali estabelecido se refere ao valor da facturação em dívida – em caso de incumprimento a ré seria responsável por pagar 80% do valor da faturação não ultrapassando esta o limite máximo de 180.000,00 euros – (como entende a ré), ou ao valor do montante / reembolso garantido a suportar pela ré – em caso de incumprimento a ré seria responsável por pagar até 180.000,00 euros, sendo o valor garantido correspondente a 80% do valor da facturação global.

2) Atento o princípio da liberdade contratual previsto no artigo 405.º do Código Civil nenhuma dúvida fundada se nos coloca em relação ao enquadramento jurídico e validade do contrato celebrado pelas partes em que a obrigação relevante de assegurar a satisfação do crédito da autora surge associada à realização pela ré de “Estudos de Solvabilidade” coligidos em Base de dados a que a autora teria acesso, a “Estudos Garantidos” que permitiriam à ré obrigar-se a garantir a qualidade de um relatório de crédito ou a solvabilidade de uma determinada entidade durante um determinado período de tempo e na gestão de cobranças.

Em termos simples a ré, em função dos dados em seu poder sobre a situação económico-financeira de uma determinada empresa terceira, assumiu a obrigação de pagar à autora parte do montante global dos créditos que não fossem satisfeitos por essa empresa no contexto do relacionamento comercial entre ambas.

Ainda que atípico e com traços de um contrato de seguro de crédito ou de “gestão de risco de incumprimento”, não deixa de ser um contrato de prestação de serviços em que a obrigação de pagamento de parte do valor das mercadorias fornecidas aparece associada à avaliação de risco de crédito a efectuar com base na partilha de informação sobre a viabilidade económica de empresa terceira cliente da outra parte.

Ora dentro dos limites da lei as partes podem fixar livremente o conteúdo dos contratos e celebrar contratos atípicos, inserindo neles as cláusulas que entenderem.

Pelo que nenhum obstáculo existe à validade do contrato celebrado entre as partes e objecto dos presentes autos.

3) Por outro lado, e tal como foi decidido pelas instâncias, estamos em presença de um típico contrato de adesão sujeito ao regime das cláusulas contratuais gerais (Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de outubro) em que o clausulado final resultou de uma proposta inicial da ré que, na sua generalidade, não foi sujeita a discussão relevante, ainda que tenha sido moldado parcialmente pela vontade concreta das partes (Factos T), U) e V) do elenco dos factos provados atrás descritos).

4) No que tange à questão da interpretação do teor da Cláusula 4 das Condições Particulares do contrato releva, porém, de modo particular a circunstância de ele ter sido negociado, pelo menos, no que toca à definição do montante máximo garantido pela ré em caso de incumprimento da cliente da autora e da percentagem sobre o valor das facturas emitidas pela entidade terceira, as quais foram consensualmente fixadas.

5) E se é certo que não vem provado que a autora, no âmbito das negociações sobre o teor da Cláusula 4 das Condições Particulares, foi informada que o limite era fixado por referência ao volume da facturação e não ao valor garantido, não o é menos que a própria definição de um determinado valor máximo, garantido ou a suportar, que foi de facto negociado, pressupõe, no contexto da comunicação negocial e na lógica do consenso obtido, uma clarificação mínima sobre o conteúdo da prestação contratual da outra parte.

Não era seguramente indiferente para nenhuma das partes – até porque esse era o cerne do objecto do contrato – a concretização do benefício a garantir ou a suportar, nem é crível que alguma das partes ignorasse a relevância para a outra da definição do benefício que lhe advinha ou da obrigação que assumia.

6) O dever do contraente que predispõe as cláusulas de um contrato de adesão de esclarecer a outra parte dos aspectos nela compreendidos só abrange aqueles pontos cuja aclaração se justifique, sobre eles se impondo a prestação dos esclarecimentos que lhe sejam solicitados pela outra parte contratante.

Não vem provado que o valor base da incidência da percentagem da dívida da cliente da autora tenha suscitado qualquer dúvida – e ela era possível face à sua redação – no contexto das negociações de que resultou o consenso sobre o teor da “Cláusula 4. Observações” das Condições Particulares do contrato celebrado ou que tenham sido solicitados esclarecimentos sobre o seu alcance.

7) Pode assim dizer-se que a “Cláusula 4. Observações” das Condições Particulares, ora em discussão não pode – como também decidiram as instâncias – considerar-se excluída do contrato pelo facto de a interpretação que a ré tinha pressuposta – só garantir 80% da dívida da cliente da autora se a facturação não excedesse 180.000,00 euros – tendo correspondência no texto, não ter sido, tanto quanto resulta dos factos assentes, debatida durante as negociações havidas.

De resto o pedido da autora radica na celebração do contrato em apreciação, com especial incidência na obrigação da ré consignada nessa cláusula, embora assente numa diferente interpretação sobre a forma de apurar o valor da obrigação da ré nela consignada.

E a ré também demonstrou aceitar estar vinculado ao cumprimento de tal cláusula.

8) O que está verdadeiramente em causa é a interpretação do sentido do acordo estabelecido entre as partes e expresso no contrato escrito por elas celebrado.

Sobre essa matéria a decisão das instâncias divergiram, apesar de ambas terem aplicado o regime de integração e interpretação da declaração negociais constante do Livro I (Parte Geral), Título II (Das Relações Jurídicas), Subtítulo III (Dos Factos Jurídicos) – Capítulo I – Negócio Jurídico – Secção I (Declaração Negocial) – Subsecção IV (Interpretação e Integração) nos artigos 236.º e seguintes do Código Civil.

A sentença proferida em primeira instância, por apelo ao artigo 236.º n.º 1 do Código Civil e à teoria da impressão do destinatário, teve por adequada a interpretação segundo a qual a declaração negocial emitida pela ré deveria ser entendida no sentido de a garantia ser concedida em relação a 80% do valor máximo de 180.000,00 euros facturado à entidade terceira e não pago dentro do período temporal acordado.

Por sua vez o acórdão da Relação fez aplicação do artigo 237.º do Código Civil, salientando as dúvidas insanáveis sobre a interpretação da declaração negocial das partes indo em busca da solução que mais potenciasse o equilíbrio das prestações contratuais.

9) Tanto quanto se alcança numa abordagem mais atenta, não existe uma divergência fundamental entre as partes em relação ao texto da cláusula em questão no que se refere à obrigação da ré garantir o pagamento de 80% do valor global da facturação até ao limite de 180.000,00 euros, verificado que fosse o incumprimento pela devedora da obrigação de pagamento do valor da mercadoria fornecida no período compreendido entre 19 de fevereiro de 2020 e 18 de fevereiro de 2021.

De tal interpretação não parece divergir a ré nas conclusões das suas alegações no recurso de apelação.

Ambas as partes aceitam, em concordância aliás com uma leitura possível do teor literal da “Cláusula 4. Observações” das Condições Particulares do contrato celebrado, que o valor limite de 180.000,00 euros, se reporta ao valor da facturação.

O valor do montante reclamado pela autora parte dessa realidade e outra não parece ser a leitura da ré.

10) É certo que a ré defende que a sua obrigação cessaria após ter sido atingido esse limite máximo de 180.000,00 euros de facturação e que não é responsável pelo risco que a apelada decidiu assumir com o fornecimento de mercadoria à entidade terceira para além desse limite.

E tem inteira razão no que se refere à inexistência de garantia em relação à facturação que exceda o limite acordado.

A sua responsabilidade só existe em relação a 80% do valor total da facturação, até ao limite de 180.000,00 euros, efectuada pela autora à entidade terceira francesa identificada no contrato entre 19 de fevereiro de 2020 e 18 de fevereiro de 2021.

Mas do contrato celebrado não se extrai que à autora fosse vedado fornecer mercadorias para além desse limite, naturalmente sem a correspondente cobertura da garantia contratual prestada pela ré.

11) Numa outra vertente, não resulta do contrato que, atingindo a facturação da mercadoria fornecida o valor máximo acordado de 180.000,00 euros, o contrato cessaria, imediata e automaticamente, os seus efeitos, mormente extinguindo a prestação contratual da ré dentro do limite de facturação estabelecido e em caso de incumprimento da entidade devedora.

12) Que relevo atribuir então, em concreto, ao estabelecimento de um limite máximo para a facturação enquanto valor de referência para o cálculo do montante garantido?

É aqui que ganham alguma pertinência as dúvidas assinaladas no Acórdão do Tribunal da Relação, sobre o teor da cláusula em apreciação.

Sendo a facturação de valor superior ao limite máximo fixado pelas partes o cálculo do montante garantido deve fazer-se tendo em conta o valor da facturação efectivamente emitida e correspondente à mercadoria fornecida, encontrando-se o valor do incumprimento – sobre o qual vai incidir a percentagem do crédito garantida – através da dedução a esse montante das quantias comprovadamente pagas?

Nesse caso o que a cláusula limitaria não era a facturação, mas o montante do crédito garantido.

Ou nessas circunstâncias deve antes atender-se ao valor da facturação máxima concretamente acordada encontrando-se o montante do crédito não satisfeito – sobre o qual vai incidir a percentagem de crédito não satisfeito garantida – através da dedução ao limite estabelecido pelas partes das quantias comprovadamente pagas pela credora?

13) O pedido da autora assenta na primeira hipótese de solução: Estando por liquidar do total da mercadoria fornecida e facturada em valor superior, a quantia de 179.914,00 euros, a autora fez incidir sobre esse valor de créditos não satisfeito a percentagem de 80%, sem ponderar os valores entretanto pagos pela credora, mas levando em conta o valor já pago pela ré.

Defendeu esta que ao valor máximo da facturação acordada deveriam ser deduzidas as quantias entretanto pagas pela credora (180.000,00 euros – 55.000,00 euros = 125.000,00 euros), do que resultava estar apenas obrigada a garantir à autora o pagamento de 100.000,00 euros correspondente a 80% do valor garantido e em situação de incumprimento no final do período de vigência do contrato.

14) Na economia do contrato celebrado entre as partes o valor máximo da facturação assumiu relevância particular, sendo a partir dele e do limite de garantia estabelecido que as partes puderam formar a sua vontade de contratar, bem sabendo a autora que a facturação de mercadoria que excedesse esse valor não ficava, em caso de incumprimento, a coberto da garantia acordada e a ré que a percentagem acordada desse limite máximo de facturação constituía o tecto da sua obrigação que poderia baixar ou desaparecer em função do incumprimento da devedora terceira.

15) Desse modo, correndo o risco de satisfação dos créditos da autora quanto aos fornecimentos que excedessem o valor da garantia acordada por sua exclusiva conta e não podendo ter-se por indiferente para a decisão de contratar por parte da ré a gestão do risco contratual com base nesse pressuposto de garantia de 80% de 180.000,00 euros de facturação, haverá sempre que ponderar se foram ou não efectuados pagamentos que pudessem diminuir o risco de incumprimento a partir desse dado objectivo de referência.

Ou seja, tomando posição, o valor dos pagamentos efectuados pela credora não podem deixar de ser equacionados para determinação do valor do crédito garantido e em situação de incumprimento, tomando como referência o valor limite da facturação elegível acordado e não o valor o valor dos fornecimentos efectivamente facturados que o excedam.

16) Ora vem provado que a facturação dos fornecimentos feitos pela autora à sociedade S... ultrapassou os € 180.000,00 euros em 18 de março de 2020 e que, após essa data, a mencionada sociedade efectuou directamente três pagamentos à autora no valor global de 55.000,00 euros.

A entrega de tais valores durante a vigência do contrato interferiu directamente com o valor do incumprimento da S..., diminuindo-o, e com a consequente garantia prestada pela ré correspondente a 80% do valor máximo da facturação.

E sendo na data do termo do contrato celebrado o valor do incumprimento da credora da autora, para efeitos de aplicação da clausula 4 das Condições Particulares, de cerca de 125.000,00 euros (180.000,00 euros – 55.000,00 euros = 125.000,00 euros) a ré cumpriu a sua obrigação ao pagar à autora a quantia de 100.000,00 euros, isto é, tanto quanto era devido de acordo com os termos do contrato na data em que ele deixou a vigorar.

17) De onde se conclui, em sintonia com o acórdão recorrido, ainda que com fundamentação parcialmente diversa acerca do enquadramento jurídico da obrigação da ré nos termos em que ela foi reconhecida, que a ré cumpriu a sua prestação e pagou aquilo a que estava obrigada pelo contrato de prestação de serviços a que os autos aludem, não tendo fundamento a pretensão da autora, ora revistante, de revogação do acórdão recorrido e sua substituição pela sentença proferida em primeira instância.

18) E que dizer quanto ao pedido reconvencional?

O pedido foi julgado improcedente na primeira instância porque tinha o seu fundamento numa cláusula das Condições Gerais do contrato celebrado que dele tinha sido excluída.

Ainda assim a sentença deduziu o valor recebido pela autora ao valor que condenou a ré a pagar à autora.

Fê-lo com o seguinte fundamento acolhido em segunda instância:

“Excluída nos termos acima adiantados a cláusula geral sob a menção de “gestão de cobranças” do contrato reciprocamente outorgado, falece a causa de pedir da reconvenção, precisamente o incumprimento dessa obrigação pela Autora.

De todo o modo, nos termos gerais de direito, o assente recebimento determina a necessária redução do valor a pagar pela Ré, sob pena de locupletamento indevido, posto que reduzido pelo pagamento o valor do crédito não satisfeito a garantir.”

19) Em segunda instância, porém, apesar de se manter a exclusão da cláusula em que o pedido reconvencional assentava a sua causa de pedir, foi o pedido reconvencional julgado parcialmente procedente por se considerar que o recebimento pela autora em 15 de março de 2021 por transferência de conta da entidade credora não era estranho ao objecto da reconvenção.

“A obrigação de pagamento do dito montante de 10.000€ pela Ré encontra plena justificação nas razões apontadas na decisão recorrida, de resto aceites pela própria Autora.

No entanto, os fundamentos da dita obrigação não podem de todo considerar-se estranhos à reconvenção deduzida pela Ré, e como tal à respetiva causa de pedir e pedido.”

20) Poderia, de facto, considerar-se a dedução do valor recebido pela autora, à semelhança do que sucedeu com as quantias pagas pela credora da autora em junho e julho de 2020 e tidas em conta no cálculo do valor em incumprimento, caso tal pagamento tivesse ocorrido no período de vigência do contrato, isto é, até 18 de fevereiro de 2021, data a partir da qual o contrato deixou de produzir efeitos entre as partes.

Tendo o pagamento ocorrido em data posterior (em 15 de março de 2021 e já depois do cumprimento da garantia por parte da ré) sem que se demonstre qualquer intervenção prévia da ré que o provocasse, o invocado direito da ré a esse valor teria necessariamente que assentar no reconhecimento por via contratual do direito da ré a proceder à cobrança do crédito da autora e a fazer coisa sua os valores cobrados se eles excedessem a percentagem de crédito garantida tal como previsto na cláusula “4. Gestão de Cobranças” das Condições Gerais que as instâncias excluíram do contrato celebrado.

21) Do que vem de ser dito se extrai que a ré não logrou demonstrar o fundamento do pedido reconvencional, impondo-se absolver a autora do pedido contra ela deduzido pela ré.

22) Em jeito de conclusão se dirá que a revista deve ser julgada parcialmente procedente, sendo confirmado o acórdão recorrido quanto à absolvição da ré do pedido formulado pela autora e revogado na parte em que julgou parcialmente procedente o pedido reconvencional, sendo a autora dele integralmente absolvida nesta instância.

As custas inerentes ao recurso de revista são da responsabilidade da autora e da ré na proporção que globalmente se fixa em 4/5 (quatro quintos) para a autora e de 1/5 (um quinto) para a ré, porque se considera ser dessa medida o respectivo decaimento (artigos 527.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil e artigo 1.º do Regulamento das Custas Processuais).


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DECISÃO

Termos em que acordam em julgar parcialmente procedente a revista interposta pela autora Darksea – Indústria de Calçado, Ld.ª e, em conformidade:

- Confirmar o acórdão recorrido na parte em que julgou improcedente o pedido formulado na ação dele absolvendo a ré Urios Portugal, Unipessoal, Ld.ª;

- Revogar o acórdão recorrido na parte em que julgou parcialmente procedente o pedido reconvencional;

- Julgar improcedente o pedido reconvencional, dele absolvendo a autora Darksea – Indústria de Calçado, Ld.ª.

- Condenar a autora e a ré nas custas da revista na proporção que se fixa em 4/5 (quatro quintos) para a autora e de 1/5 (um quinto) para a ré.


Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 16 de novembro de 2023

Manuel José Aguiar Pereira (Relator)

Jorge Manuel Leitão Leal

António Pedro de Lima Gonçalves