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ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
NECESSIDADE
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
Sumário
I - Nas situações em que foi decretado o divórcio, não existindo acordo, o cônjuge que pretenda atribuição da casa de morada de família deve lançar mão do processo especial previsto no artigo 990º do CPC. II - A atribuição da casa de morada de família não existindo filhos deve fazer-se ao cônjuge com maior necessidade da mesma não devendo configurar situação de ajuste de contas entre os cônjuges. III - Só em caso de igualdade entre ambos os elementos do extinto casal se deve procurar a diferença a partir de outros factos como os culposos. IV - Está-se perante um processo de jurisdição voluntária em que o julgador não está vinculado a critérios de legalidade estrita podendo proferir a decisão que lhe parecer mais justa e equilibrada em face dos interesses em conflito, bem assim, como investigar livremente os factos (artigos 987º nº 2 e 990º nº 3 do CPC). V - Se ambos os elementos do casal denunciam prática recíproca de agressões tendo sido instaurados dois processos crime, o tribunal para valorar a violência doméstica deve investigar, mesmo que oficiosamente, o estado ou o decidido nestes processos.
Texto Integral
Proc. n.º 3043/22.0T8GDM-A.P1
Sumário artigo 663º nº 7 do CPC
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
AA demandou BB, requerendo que lhe seja atribuído o direito de residir na casa de morada de família sita na Rua ..., ..., ..., ... ..., com carater definitivo, procedendo-se à transmissão do direito ao arrendamento, que se encontra em nome do Requerido.
Alega o divórcio do casal, a falta de meios para arrendar outra casa, pois só tem 189 euros de subsidio de rendimento social, o estado de saúde débil, a idade cerca de 60 anos, e ser vítima de violência doméstica.
O requerido apresentou contestação.
Sustenta que é o titular do arrendamento desde 1998 e que também foi vítima de violência doméstica por parte da Autora, que tem 84% de incapacidade, 400 euros mensais de pensão de reforma.
A SENTENÇA ATRIBUIU À REQUERENTE A UTILIZAÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA ACIMA IDENTIFICADA.
É a seguinte a fundamentação de facto: São Factos provados:
1. A Autora e o Réu contraíram casamento civil em 14 de Janeiro de 2020, quando a requerente tinha 57 anos de idade e o requerido tinha 69 anos de idade;
2. Fizeram-no sob o regime Imperativo da Separação de Bens. 3. Do relacionamento/casamento de ambos não existem filhos.
4. Requerente e Requerido sempre tiveram residência conjugal da casa sita na Rua ..., ..., ..., ..., sendo esta habitação arrendada à Camara Municipal ....
5. A Requerente e o Requerido encontram-se separados de facto desde 30 de maio de 2022, na sequência de agressões físicas e psicológicas perpetradas pelo Requerido para com a Requerente, agressões estas que a obrigaram a fugir de casa.
6. Este comportamento de insultos acompanhado de comportamentos violentos fisicamente, já haviam acontecido anteriormente.
7. A Requerente intentou Processo de Divorcio, não existindo quaisquer laços afetivos ou de diálogo no presente momento, apenas um relacionamento de medo por parte da Requerente em relação ao Requerido, divórcio entretanto decretado por sentença proferida no processo principal em 22.02.2023. 8. A requerente viu-se obrigada a abandonar a casa de morada de família, por receio de novas agressões por parte do Requerido, mas não tem outro lugar para onde ir viver.
9. Devido às circunstâncias, ficou acolhida numa Casa Abrigo, ainda não tendo regressado, à data da PI, ao lar por o Requerido não se encontrar a cumprir as medidas de coação que lhe foram aplicadas no Proc. 438/22.2PEGDM, da 2ª secção do DIAP do Porto, que incluem o seu afastamento da Requerente saindo da casa de morada de família, para que esta aí possa regressar.
10. A Requerente é pessoa doente, sofrendo de perturbação depressiva-ansiosa resistente, há vários anos.
11. Sofre ainda de perturbações de pânico, em contexto de violência doméstica perpetrada pelo marido.
12. Estas patologias limitam-na no seu dia-a-dia, nomeadamente na sua capacidade de atenção e retenção, bem como na interação social.
13. Neste momento aufere rendimento social de inserção no valor mensal de 189,00€.
14. Também sofre de patologia osteoarticular degenerativa, já tendo sido operada à coluna vertebral.
15. Esta doença é uma doença crónica que danifica a cartilagem e os tecidos circundantes e caracteriza-se por dor, rigidez e perda da função.
16. A casa de morada de família, que é uma casa camarária em que a renda tem em consideração o valor dos rendimentos de quem nela habita.
17. O Requerido também apresentou queixa na polícia contra a Requerente por violência doméstica, dando origem ao processo n.º 448/22.0PEGDM, tendo-lhe sido atribuído o Estatuto de Vítima especialmente vulnerável.
18. O Requerido vive na residência de família desde data não concretamente apurada.
19. Desde 1977, o Requerido anda em tratamento periódico no serviço de medicina física e reabilitação, apresentava sinais de atrofia neurogénea nos vários segmentos dos membros inferiores e superiores, de evolução prolongada, com integridade da condução nervosa e com predomnio proximal, sugerindo processo do tipo Kugelberg-Welander.
20. O Requerido é seguido no Hospital 1... desde 1998, com o diagnóstico de doença de Kugelberg-Welander, caraterizada por atrofia muscular espinhal, na sua forma juvenil III, com diagnóstico precoce, seguido no Hospital 2..., no Serviço de Neurologia.
21. Esta patologia de caracter progressivo, caracterizou-se pelo défice de força muito marcado ao longo destes anos, pela fadiga, mesmo para as tarefas de vida diária simples.
22. Esta doença determinou uma incapacidade profissional, para qualquer atividade, dificuldade com a sua atividade a nível de autocuidados, situação que foi sempre agravada pela depressão reativa grave que o Requerido apresenta, como consequência da sua incapacidade e agravada pela idade precoce em foi detetada pela permanente necessidade de assistência hospitalar e tratamento fisiátrico.
23. Foi atribuído ao Requerido uma incapacidade permanente global de 84% (oitenta e quatro por cento).
24. O requerido está reformado e aufere uma pensão mensal de cerca de €400,00.
25. No âmbito do processo criminal por violência doméstica em que é arguido, foi aplicada ao requerido, em 13.06.2022, a medida de coação de proibição de contactos por qualquer meio com a vítima bem como de frequentar os locais onde a vítima se venha a encontrar nomeadamente a sua residência e local de trabalho, com a aplicação de meios técnicos de controlo à distância (vigilância electrónica) e bem assim afastamento da residência de morada de família, medida esta a executar apenas quando se mostrarem reunidas as condições por parte da segurança social para encontrar residência alternativa para o mesmo.
26. No referido processo uma vez que, pese embora tenha ficado ciente das medidas de coação a que foi sujeito, o requerido persistia em não abandonar a residência comum, em incumprimento da medida de coação de afastamento que lhe fora imposta em Junho de 2022, não permitindo assim que a vítima, a aqui requerente, regressasse ao seu domicílio e impondo que a mesma permanecesse, contra sua vontade, acolhida numa instituição, não se tendo aquele mostrado minimamente cooperante e receptivo a qualquer alternativa habitacional ou acolhimento, alternativas que lhe foram apresentadas pela Segurança Social, foi-lhe concedido, em 13.12.2022, um prazo de quinze dias para cumprir a medida de coacção imposta, ficando solenemente advertido de que caso não cumpra a medida de coação seria agravada.
27. Nessa sequência, o requerido afastou-se da residência.
28. O requerido está actualmente internado no Hospital 3....
29. No referido processo, por despacho de 08.02.2023, considerando o acima exposto e o facto de “terem sido apresentadas ao arguido inúmeras alternativas habitacionais, nomeadamente ERPI (estrutura residencial para pessoas idosas – lar) perfeitamente adequadas ao seu estado de saúde”, foi mantida a medida de coação anteriormente decretada.
30. A requerente trabalhou em limpezas, actividade que, em razão dos seus problemas de saúde osteoarticulares, tem actualmente dificuldade em exercer, por implicar esforços físicos.
31. Nem a requerente nem o requerido têm familiares que os possam alojar em termos definitivos. Factos não provados
Com interesse para a decisão não se demonstraram quaisquer outros factos alegados.
A SENTENÇA ATRIBUIU À REQUERENTE A UTILIZAÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA ACIMA IDENTIFICADA, COM COMUNICAÇÃO AO SENHORIO, NOS TERMOS DO DISPOSTO NO ARTIGO 1105º , Nº 3, DO CC.
Desta sentença apelou o requerido que lavrou as seguintes conclusões:
O Requerido tem 72 anos de idade, vive sozinho, com dificuldades financeiras. É reformado, com uma
incapacidade permanente global de 84 %, auferindo, a título de pensão mensal cerca de 400,00 euros, único rendimento mensal de que dispõe para garantir a sua sobrevivência, não tem familiares que o possam ajudar/apoiar, recebe mantimentos/alimentos dos variados Bancos de Ajuda.
A Requerente, por sua vez, tem apenas 60 anos de idade, aufere rendimento social de inserção no valor mensal de 189,00 euros, não padece de qualquer incapacidade permanente global, no entanto, conta com o apoio e amparo da sua família (nomeadamente as Suas irmãs, sobrinhas e cunhados).
Embora a situação patrimonial de ambos seja débil, apesar de tudo, a da Requerente é mais favorável. Além disso, é relevante o facto de o Requerido já habitar a casa, que passou a ser morada de família, antes de contrair casamento com a Requerente ou mesmo antes de viver junto com a Requerente.
Deste modo, e em conclusão, dir-se-á o seguinte: o direito ao arrendamento da casa de morada de família deve ser atribuído ao cônjuge ou ex-cônjuge que mais precise dela, a premência da necessidade é, assim, o fator principal a atender, quanto à situação patrimonial dos cônjuges ou ex-cônjuges, trata-se de saber quais são os rendimentos e proventos de um e outro, uma vez decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, assim como os respetivos encargos, haverá que considerar ainda as demais razões atendíveis, nomeadamente a idade e o estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, pelo que, face ao exposto, deve a casa de morada de família ser atribuída ao Requerido.
A Requerente sustentou o acerto da sentença e ainda que ao Requerido foram apresentadas outras alternativas de residência ao aqui recorrente, nomeadamente, colocação em estrutura residencial para pessoas idosas e o mesmo recusou.
Nada obsta ao mérito
O OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as matérias que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635º, n.º 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do código de processo civil).
Atentas as conclusões da recorrente a única questão a decidir é a de saber se a sentença errou ao atribuir a casa de morada de família à Requerente.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Dá-se por reproduzida a fundamentação supra.
FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
1.
A consagração de uma proteção legal da casa da morada da família apareceu regulada pela primeira vez no Código Civil com as alterações introduzidas pelo DL n.º 496/77, de 25/11, em vigor desde 01/04/1978 (cfr. artigo 176.º desse diploma legal). Tratando-se de casa arrendada, o regime da transmissão do arrendamento encontrava-se regulado pela Lei n.º 2030, de 22/06/1948.
Neste particular, não pode deixar de se salientar a Recomendação do Conselho da Europa n.º R (81) 15, de 16 de outubro de 1981 (apud A transmissão da casa de morada de família Sandra Cristina Martins Morgado Marques Dissertação de Mestrado Coimbra 2014 in https://www.oa.pt/upl/%7B198b13e5-ab4f-47aa-80e3-5e9268214f88%7D.pdf) dispõe que para os casos de divórcio a legislação nacional deve fixar as condições para que possa ser atribuída a um dos cônjuges a habitação familiar, com todos ou parte dos objetos familiares. Essa atribuição de ocupação da habitação pode ser exclusiva ao cônjuge, bem como para o mesmo aí residir com outras pessoas, mormente os filhos, cabendo ao tribunal ou outra autoridade competente examinar todas as circunstâncias e em particular os interesses da família no seu conjunto.
O princípio n.º 3 estabelece que “o direito à ocupação da habitação familiar poderá ser concedido em exclusivo a um dos cônjuges. O princípio n.º 7 estabelece que um dos cônjuges poderá obter a atribuição exclusiva de todos ou parte dos chamados objetos do lar.
Em concretização destes princípios é definido, que a decisão pode traduzir-se em atribuir: “i. um direito exclusivo provisório de ocupação: poderá ser concedido a título de medida temporária de curto prazo para proteger os interesses de um dos cônjuges antes de ser tomada uma decisão definitiva respeitante ao direito de ocupação, por exemplo para excluir um cônjuge que tenha ameaçado o outro de violência doméstica ou efetivamente a tenha empregue;
ii. um direito exclusivo de ocupar o alojamento por um período determinado: poderá tratar-se de um período determinado (por exemplo até que os filhos atinjam a maioridade ou por um ano) ou qualquer outro período (por exemplo a duração da educação dos filhos). O direito de ocupação poderá ser revisto ulteriormente, quando as circunstâncias de vida dos cônjuges mudarem. O cônjuge que fica investido no direito de ocupar a habitação por um prazo determinado poderá ter de indemnizar o seu cônjuge (por exemplo pagando uma soma precisa ou uma renda);
iii. um direito exclusivo sobre a propriedade ou sobre o direito ao arrendamento: o tribunal poderá ordenar uma transferência de toda ou parte da propriedade ou a transferência do arrendamento de um cônjuge para o outro. No entanto, aquele que ficar ocupante poderá ter de indemnizar o seu cônjuge (pontos 21 e 22 da exposição de motivos).
No que concerne ao Princípio 7, afirma-se que este prevê a possibilidade de um cônjuge ou ex-cônjuge ”obter ao menos o direito de utilizar os objetos do lar, no todo ou em parte, durante um período limitado ou ilimitado» e refere-se igualmente que o tribunal ou autoridade competente «pode examinar todas as circunstâncias do caso e nomeadamente os interesses da família no seu conjunto e as necessidades de cada um dos seus membros” (Nuno Salter Cid A Proteção Da Casa De Morada De Família No Direito Português pp 359/360.
A concretização da referida recomendação encontra-se plasmada, no plano substantivo, nos artigos 1793.º e 1105.º, ambos do CC e no plano adjetivo no artigo 990.º do CPC.
2.
A casa de morada da família também encontra proteção no artigo 1682.º-A, n.º 2 do CC ao impor o consentimento de ambos os cônjuges para a sua alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a mesma, ainda que seja um bem próprio de um dos cônjuges. Igual proteção se verifica no artigo 1682.º-B do CC, ao dispor que relativamente à casa de morada da família, carecem do consentimento de ambos os cônjuges, a resolução, a oposição à renovação ou à denúncia do contrato de arrendamento pelo arrendatário, a revogação do arrendamento por mútuo consentimento, a cessão da posição de arrendatário, o subarrendamento ou o empréstimo, total ou parcial.
Também se verifica essa proteção no artigo 1673.º do CC ao exigir aos cônjuges a escolha, por comum acordo, da residência da família. Em caso de morte de um dos membros da família, verifica-se a proteção da casa de morada da família no artigo 1106.º e artigos 2103.º- A a 2103.º-C, todos do CC. (Na união de facto há a considerar o disposto nos artigos 5º, e 5º da Lei 7/2001 de 11/05).
3.
Nas situações em que foi decretado o divórcio, não existindo acordo, o cônjuge que pretenda atribuição da casa de morada de família deve lançar mão do processo especial previsto no artigo 990º do CPC.
Nos termos do artigo 990.º, n.º 3, 1.ª parte do CPC, haja ou não contestação, o juiz decide depois de proceder às diligências necessárias.
Está-se perante um processo de jurisdição voluntária em que o julgador não está vinculado a critérios de legalidade estrita podendo proferir a decisão que lhe parecer mais justa e equilibrada em face dos interesses em conflito. É o que resulta do artigo 987.º, do Código de Processo Civil, que dispõe que “Nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna”. Neste sentido Ac. TRG de 25/05/2010 (PEREIRA DA ROCHA) 3554/05.1TBVCT-B.G1 www.dgsi.pt “A providência de atribuição da casa de morada de família a um dos ex-cônjuges, embora sujeita ao princípio do pedido, tem natureza de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes, em consequência do que o ónus de alegação pelos interessados dos factos necessários à decisão da providência, bem como a sua prova, possam ser oficiosamente supridos, podendo também o tribunal decidir o seu mérito por critérios de oportunidade e de conveniência e não por critérios de legalidade estrita” .
4.
No que respeita aos fundamentos da decisão acentua-se no acórdão deste Tribunal de 29-09-2022 (Filipe Caroço) 17360/21.2T8PRT.P1 que “Extrai-se do art.º 1105º nºs 1 e 2, do Código Civil, que em caso de divórcio, incidindo o arrendamento sobre a casa de morada de família, aquele direito é, na falta de acordo dos cônjuges quanto à sua transmissão, decidido pelo tribunal, para o que terá em consideração “a necessidade de cada um, os interesses dos filhos e outros fatores relevantes”.
Solução semelhante foi encontrada pelo legislador para as situações em que há de dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges a casa de morada da família quando esta se inclui no património comum do casal ou seja um bem próprio de um do outro cônjuge, “considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal”. Muito embora o art.º 1793º do Código Civil, que regula essa situação, não se refira expressamente à possibilidade de serem atendidos “outros factores relevantes” aludidos no referido nº 2 do art.º 1105º, tem-se a jurisprudência e a doutrina inclinado no sentido de que o advérbio “nomeadamente” tem um pendor exemplificativo, podendo o juiz levar em conta outros fatores justificados como relevantes na atribuição da casa de morada da família, para além das “necessidades de cada um dos cônjuges e do interesse dos filhos do casal”.
Já no âmbito da vigência do RAU, Pereira Coelho entendia que apesar da formulação usada no art.º 1793º, nº 1, Código Civil, diferir da do art.º 84º, nº 2, do RAU, não se via razão para que sejam diferentes os fatores ou coeficientes a ter em conta numa e noutra hipótese ( Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, I, 2001, 2ª ed., 660 e seg).
A solução encontrada no âmbito do NRAU (Lei 6/2006 de 27.02), eliminando a culpa no divórcio enquanto fator até então expressamente ponderável na atribuição do direito em causa (cf. art.º 84º, nº 2, do RAU ( Decreto-lei nº 321-B/90, de 15 .10), como indicam P. de Lima e A. Varela (Código Civil Anotado, 2ª edição revista, 1992, IV, pág. 570), vai no sentido de que a omissão não foi puramente acidental, pois não se trata de um “ajuste de contas” desencadeado pela crise do divórcio, que a lei queira resolver ainda com base na culpa do infrator, mas de uma necessidade provocada pela separação definitiva dos cônjuges, que a lei procura satisfazer com os olhos postos na instituição familiar. E o primeiro fator que a lei manda naturalmente considerar para o efeito é o da atual necessidade de cada um dos cônjuges, tendo em conta também, se for caso disso, a posição que cada um deles fica a ocupar, depois da dissolução do casamento, em face do agregado familiar. O segundo fator atendível, dentro da solução flexível adotada por lei, é o do interesse dos filhos do casal (proximidade do estabelecimento do ensino que frequentam, do local em que trabalham, etc.). Não há nenhuma ordem rígida de prioridade entre os dois fatores ou entre qualquer deles e outras circunstâncias atendíveis.”
5.
“O propósito da lei será o de assegurar que, decretado o divórcio ou a separação, a casa de morada de família possa ser utilizada pelo cônjuge ou ex-cônjuge a quem for mais justo atribuí-la tendo em conta as necessidades de um e de outro” ( Pereira Coelho, RLJ, 122º, pg. 137 apud Ac. do TRP de 01/02/2011, (Cecília Agante) 298/06.0TMMTS-B.P1 acessível em www.dgsi.pt)
Em anotação ao Ac. do STJ de 02/04/1987, in R.L.J., ano 122, pgs. 120 ss. o Prof Pereira Coelho tentou fixar um critério geral de fatores de atendibilidade para a atribuição do direito ao arrendamento igualmente aplicáveis como fatores de atendibilidade para a atribuição da casa de morada da família prescritos no artigo 1793.º do CC, tendo chegado à conclusão de que em face da nova redação do artigo 1105º nº 2 do CC: (i)- inexiste uma hierarquia entre os fatores a ponderar; (ii) a lei sacrificou deliberadamente o interesse do senhorio ao interesse da proteção da casa de morada da família; (iii) a casa deve ser atribuída ao cônjuge ou ex-cônjuge que mais precise dela, sendo irrelevantes a culpa pela separação ou divórcio;. (iv) na apreciação da necessidade da casa releva a situação patrimonial dos cônjuges havendo que apurar-se os rendimentos e proventos de cada um e os respetivos encargos, nomeadamente a obrigação de alimentos de um cônjuge ao outro bem como aos filhos;(v) quanto ao interesse dos filhos, atender-se-á se é importante para aqueles viverem na casa que foi do casal com o progenitor guardião; (vi)- outras razões atendíveis são as que resultem da idade e estado de saúde de algum dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de cada um, a eventual disponibilidade do casal ou de um deles de dispor de outra casa onde possa residir;(vii) de escasso interesse, a circunstância de um dos cônjuges poder ser ou ter sido acolhido por familiares que não estejam obrigados a recebê-lo, só o fazendo por mera tolerância.
Nuno de Salter Cid (ob cit pp 339), defende que deve atender-se aos bens e direitos que componham o património dos cônjuges ou ex-cônjuges e que quando a lei fala do interesse dos filhos do casal, não se refere só aos filhos daqueles mas aos menores que habitam ou habitavam com aqueles. “Não se trata, efetivamente de um resultado do ajuste de contas desenvolvido pela crise do divórcio, mas de uma necessidade provocada pela separação definitiva dos cônjuges, que a lei procura satisfazer com os olhos postos na instituição familiar” Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, IV, pg. 570.
6.
Que a casa de morada de família deve ser atribuída ao ex cônjuge que mais precise dela e só perante uma situação de igualdade deve atender-se a outros critérios decidiu, o acórdão do TRG de 24/01/2008, (AUGUSTO CARVALHO) 2372/07-2 onde se pode ler: “O direito ao arrendamento da casa de morada de família deve ser atribuído ao cônjuge ou ex-cônjuge que mais precise dela;. a premência da necessidade é o fator principal a atender; quanto à «situação patrimonial» dos cônjuges ou ex-cônjuges, trata-se de saber quais são os rendimentos e proventos de um e outro, uma vez decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, assim como os respetivos encargos; haverá que considerar ainda as demais «razões atendíveis»: a idade e o estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de um ou outro, o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer a sua residência, etc.; o importante é a necessidade ou a premência da necessidade, cabendo aqui ajuizar da posição pessoal e patrimonial que mais vulnerabilizada ficou, em consequência do divórcio. 2.Só quando as necessidades de ambos os cônjuges ou ex-cônjuges forem iguais ou sensivelmente iguais haverá lugar para considerar a culpa que possa ser ou tenha sido efetivamente imputada a um e outro na sentença de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens”, e no mesmo sentido, na Relação de Guimarães, o acórdão de 3/12/2009 (ISABEL ROCHA) 4738/03.2TBVCT.G1; do TRP de 7/10/2010 (AMARAL FERREIRA) 90/05.0TBMDR-B.P1 e de 1/2/2011 (citado supra).
7.
Daqui para os autos.
Resulta dos factos provados sobre os números 1, 3, 13, 23, 24 e 30, que os interessados contraíram casamento, entre si, em janeiro de 2020, tendo à data, ele, 69 anos e ela 57 anos, e que a Requerente aufere o rendimento social de 189,00 mensais enquanto o requerido tem uma reforma mensal de 400,00 euros.
Tratam-se de duas pessoas com escassos recursos económicos que sobrevivem na pobreza e que não têm condições para angariar rendimentos, atenta a sua idade e bem assim a sua saúde especialmente precária no caso dele que tem 84% de incapacidade e precária no caso dela que sofre de doença ostearticular degenerativa na coluna vertebral que lhe dificulta esforços físicos (vde pontos da matéria de facto nºs 10, 14, 15, 19, 20, 21, 22).
8.
No que respeita às condições de saúde o Requerido apresenta uma situação muito mais frágil que a Requerente, já que o seu elevado grau de incapacidade (84%), resultante das suas limitações físicas evidencia perda de função e de força com limitação pessoal para as tarefas diárias e até ao nível de auto cuidado ( cfra factos provados: “21. Esta patologia de caracter progressivo, caracterizou-se pelo défice de força muito marcado ao longo destes anos, pela fadiga, mesmo para as tarefas de vida diária simples” e “22. Esta doença determinou uma incapacidade profissional, para qualquer atividade, dificuldade com a sua atividade a nível de autocuidados, situação que foi sempre agravada pela depressão reativa grave que o Requerido apresenta, como consequência da sua incapacidade e agravada pela idade precoce em foi detetada pela permanente necessidade de assistência hospitalar e tratamento fisiátrico”,
Reforça esta conclusão de que o Requerido é pessoa muito limitada em termos físicos e mentais o facto 29, que dá conta de que no processo de inquérito por violência doméstica em que o mesmo é arguido foram apresentadas pelo ISS ao requerido como alternativa residencial ERPI´s “perfeitamente adequadas ao seu estado de saúde”. É que como é do conhecimento publico estas estruturas residenciais são destinadas a pessoas que pelas suas condições físicas e/ou mentais estão carecidas de autonomia que lhes permita viver sem apoios de terceiros.
Não é claro nos autos que o estado de saúde do Requerido corresponda a uma falta de autonomia tal que não lhe permita viver sem o apoio de terceira pessoa, sendo porém evidente que se trata de indivíduo muito limitado física e psicologicamente e que comparativamente com a requente é pessoa mais débil e de saúde mais vulnerável, portanto, o elo mais fraco do casal, neste parâmetro.
Ainda assim a alternativa residencial, proposta pela ISS, se definitiva poderá constituir uma real vantagem habitacional para o mesmo, de que não goza a requerida. Esta alternativa será no entanto apenas de considerar se o requerido, uma vez acolhido, gozar de liberdade pessoal e de autonomia e se for uma alternativa duradoura, o que se desconhece já que se tratou de medida encontrada no âmbito do processo de inquérito em que este é arguido e por modo a dar cumprimento à medida de coação aplicada ao mesmo (pontos 25 e 26 da matéria de facto) .
Daí que, importa clarificar a concreta natureza e alcance desta atribuição de ERPI constante do facto 29) ao Requerido, se definitiva ou provisória e bem assim quais as concretas condições de alojamento do mesmo, isto é se a sua transferência para esta estrutura determina perda de liberdade e em que medida, já que se a ERPI não corresponde naturalmente a uma alternativa a uma habitação, a mesma poderá no caso concreto, em que ambos os cônjuges necessitam de um teto para se abrigar e carecem de meios para o encontrar, na ausência de outros apoios, balizar a real necessidade de habitação do Requerido comparativamente com a da Requerente, que não tem alternativa residencial à morada de família, fazendo ponderar a seu favor o direito que vem reclamar.
9.
A sentença proferida atribuiu utilização da casa de morada de família à requerente acostada essencialmente no seguinte e transcreve-se: “No caso sub judice, é pertinente considerar, desde logo, que ambas as partes padecem de problemas de saúde incapacitantes.
Não têm filhos em comum ou a cargo.
Igualmente não detêm alternativa de alojamento junto de familiares.
Ambos auferem reduzidos rendimentos, particularmente a requerente.
Apurou-se que a requerente foi obrigada a sair da habitação familiar, por agressões do requerido, acabando por se refugiar em Casa Abrigo.
Por seu turno, o requerido, após resistência em acatar a medida de coação que no processo criminal lhe foi imposta, não obstante lhe tenham sido fornecidas alternativas adequadas pelas entidades assistenciais competentes, acabou por abandonar a residência familiar, encontrando-se actualmente internado no Hospital 3..., estabelecimento de saúde que, como é público, é especializado no tratamento de doenças psiquiátricas.
Ora tal circunstancialismo não pode ter-se por despiciendo.
Com efeito, não se desconsiderando o facto de, hoje em dia, ser irrelevante para o decretamento do divórcio, a eventual existência de culpa de algum dos cônjuges, não se afigura que deva, ainda assim, ser ignorada a circunstância de a requerente se ter visto forçada a abandonar a residência familiar devido aos graves e reiterados comportamentos agressivos do requerido para consigo”.
Depreende-se do contexto da redação que o tribunal Recorrido ponderou serem iguais as necessidades de ambos os ex cônjuges, tendo procurado um outro critério adicional no amparo da decisão.
Com efeito no critério utilizado foi determinante “a requerente se ter visto forçada a abandonar a residência familiar devido aos graves e reiterados comportamentos agressivos do requerido para consigo”.
10.
É consensual hoje em dia que em circunstâncias de necessidades equivalentes dos cônjuges devem ser ponderados outros fatores que permitam desequilibrar a posição recíproca dos ex cônjuges, sendo certo que um desses fatores é precisamente a prática de atos de violência doméstica de um dos cônjuges sobre o outro. Neste sentido de resto, o acórdão do TRL de 22/11/2011(Dina Monteiro) 336/09.5TVLSB.L2-7– em que se decidiu que perante a igualdade da situação patrimonial dos cônjuges – ambos de modesta situação económica - e portadores de doenças que os afetam na vida diária, haveria que ponderar a favor da requerente mulher a violência doméstica de que foi vítima por parte do requerido, durante vários anos, sendo o elo mais fraco da união a quem deveria ser atribuído o direito ao arrendamento da casa de morada da família.
11.
Ora, neste segmento de apreciação, não obstante no processo de inquérito em que o Requerido é denunciado lhe ter sido aplicada uma medida de coação gravosa, o que indicia a prática de atos criminosos desta natureza muito censuráveis, a verdade é que ao tempo do abandono da casa de morada de família pela Requerente (data de 30/05/2022, ponto 5 da matéria de facto) e coincidentemente com os factos denunciados veio o Requerido alegar na contestação (& 17 a &19) que a Ré cerca das 14,00 horas do dia 29/05/2022, o atirou contra a parede, no corredor com bastante força , ficando ele no chão sem se poder mexer e lhe partiu três costelas com uma jarra de porcelana cheia de areia, tendo apresentado queixa por violência doméstica o que deu origem ao processo crime 448/22.OPEGDM.
Alega ainda o Requerido que a Requerente já antes o apelidara de “corno” “boi” “filho da puta” e lhe dissera “vou-te tirar a vida” (& 16 da contestação).
À matéria de facto apenas foi levado que o requerido apresentou queixa crime contra a requerente, que lhe foi atribuído o estatuto de vítima especialmente vulnerável, tendo ficado a constar que nenhuma prova foi apresentada quanto aos demais factos.
Quanto a nós tendo a factualidade da violência doméstica, sido o critério utilizado para determinar a qual dos cônjuges deve ser atribuída a casa de morada de família é indispensável apurar o fundamento das imputações de factos que nesta sede são feitas à requerente, pois só em tal caso estaremos na posse do conhecimento global que nos permita uma decisão equitativa.
Acresce que a requerente apresentou um requerimento a responder à contestação do Requerido impugnando parte dos factos que este alega, mas no mesmo nada disse quanto à imputação de tais factos agressores que lhe são imputados.
E este apuramento é mais necessário ainda porque são factos conclusivos o que em sede de violência doméstica, se fixou na sentença, (apesar de constar dos documentos juntos aos autos e que corresponderão a peças processuais integrantes do processo penal aos factos concretamente imputados ao mesmo). (Cfra pontos da fundamentação de facto nº “5. A Requerente e o Requerido encontram-se separados de facto desde 30 de maio de 2022, na sequência de agressões físicas e psicológicas perpetradas pelo Requerido para com a Requerente, agressões estas que a obrigaram a fugir de casa”. nº 6. Este comportamento de insultos acompanhado de comportamentos violentos fisicamente, já haviam acontecido anteriormente” “nº 8. A requerente viu-se obrigada a abandonar a casa de morada de família, por receio de novas agressões por parte do Requerido, mas não tem outro lugar para onde ir viver”.
12.
Em rigor, em circunstâncias de igual necessidade dos ex-conjuges, não discordamos de que no caso concreto, apesar do casamento ter durado apenas dois anos e meio, a existência de violência doméstica no casal poderá funcionar como critério na atribuição utilização da morada de família, (após o real apuramento das condições da alternativa habitacional proposta ao requerido que eventualmente compensa a sua maior debilidade física.
Sucede é que se existem denúncias de ambos estes e, pelo menos a nosso ver, é indispensável para que este critério funcione equitativamente que se apurem os factos referentes a ambos e não apenas os denunciados por um deles, sobretudo na situação em que o requerido está fortemente incapacitado em termos físicos, pois só assim se poderá concluir pela superioridade de um em relação ao outro com o correspondente abuso da posição.
Todos estes considerados vão, pois, no sentido de que a totalidade da matéria de facto relevante para a decisão a proferir não está ainda apurada; atividade investigatória esta que poderá ser levada a cabo pelo tribunal no âmbito dos seus poderes/deveres inquisitórios que regem todo o processo dada a sua natureza de jurisdição voluntária (artigos 986º nº 2 e 990º nº 3, do CPC), o que está ainda de acordo com o que se afirmou supra no Princípio 7 da Recomendação nº R (81), que firma o principio de que o tribunal ou autoridade competente «pode examinar todas as circunstâncias do caso e nomeadamente os interesses da família no seu conjunto e as necessidades de cada um dos seus membros).”
13.
Nos termos do disposto no artigo 662º nº 2 alínea c) (in fine) do CPC, a Relação deve mesmo oficiosamente anular (…)” a decisão proferida na 1.ª instância, quando considere indispensável a ampliação desta”.
É o caso já que entendemos que para a decisão a proferir se impõe o apuramento de:
a- Quais as concretas condições de alojamento propostas pela ISS ao Requerido e se este é definitivo ou temporário (facto 29 da sentença)
b- Estado atual dos processos de inquérito que correm termos contra ambos os interessados (438/22.2PEGDM e 448/22.0PEGDM) com cópia da sentença ou despacho de acusação (factos 9, 17 e 25).
c- Documentos médicos/perícia relativos às lesões que o Requerido diz lhe terem sido provocadas pela Requerente (& 17 e 18 da contestação).
Para o efeito devem tais informações ser solicitadas aos respetivos processos, e bem assim devem ser determinadas outras diligências oportunas, tais como inquéritos sociais a solicitar à ISS, destinadas ao apuramento da realidade controvertida e referenciada supra.
d- Deve ainda ser determinada a prova por declarações de parte ao requerido quanto aos factos alegados no & 16º da contestação.
SEGUE DELIBERAÇÃO:
Anulado parcialmente o julgamento para ampliação da produção de prova, com os fins previstos, nomeadamente, solicitando-se dos documentos referidos em 13 a) b) e c) e bem assim deve ser designada a prova por declarações de parte do requerido à matéria da contestação (& 16 a 18) e ordenadas quaisquer outras diligências que no âmbito dos seus poderes oficiosos o tribunal entenda determinar com vista ao esclarecimento dos concretos factos referidos.
As custas são a final pela parte vencida
Porto, 28 de setembro de 2023
Isoleta de Almeida Costa
Paulo Duarte Teixeira
João Venade.