ACIDENTE DE TRABALHO
RESIDÊNCIA OCASIONAL DO SINISTRADO
Sumário

I - Para aferir a residência ocasional referida na alínea b) do nº 2 do art.º 9º da LAT, não se pode ter um grau de exigência tal que se transforme a residência ocasional numa segunda residência habitual, mas não se pode olvidar que estamos perante uma residência, ainda que ocasional, tendo a factualidade provada que permitir dizer que ocasionalmente aquela é a residência do trabalhador.
II - Assim, a factualidade tem que permitir dizer que estamos perante algo mais consistente do que uma pernoita ocasional, em termos de habitação ou domicílio, não sendo o caso quando apenas se apurou que a Autora já de outras vezes pernoitara em casa dos pais do seu namorado (onde este vivia), e que aí pernoitou por mais do que uma vez, em datas em concreto não apuradas, desconhecendo-se em absoluto o número de vezes e há quanto tempo aconteceu.
(Sumário do acórdão elaborado pelo seu relator )

Texto Integral

Recurso de apelação n.º 1637/21.0T8AGD.P1
Origem: Comarca de Aveiro, Juízo do Trabalho de Águeda





Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:



RELATÓRIO
Depois de frustrada a tentativa de conciliação, AA apresentou petição inicial para impulso da fase contenciosa deste processo para a efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho (conforme art.º 117º, nº 1, al. a) do Código de Processo do Trabalho), contra “A..., Unipessoal, Lda.”, pedindo a condenação da Ré a:
1) reconhecer que o acidente em causa constitui um acidente de trabalho;
2) pagar-lhe a quantia de €9.096,16 acrescida dos respetivos juros de mora e até efetivo e integral pagamento, bem como a título de prestação suplementar o que resultar do exame por Junta Médica.
Fundou o seu pedido alegando, em síntese, ser trabalhadora da Ré desde 20/07/2020, e em 13/08/2020 sofreu acidente de viação quando se deslocava de casa do seu namorado para a sede da Ré; em consequência do sinistro esteve com incapacidade temporária para o trabalho até 04/01/2021, tendo direito a €3.060,00 de indemnização; depois foi-lhe atribuída IPP de 3%; teve despesas com deslocações, médicas e medicamentosas num total de €1.536,16; esteve dependente da sua mãe para executar as suas tarefas diárias, pelo que reclama o pagamento de prestação suplementar por assistência de terceira pessoa; sofreu danos não patrimoniais que devem ser compensados com €4.500,00; a Ré não transferiu a sua responsabilidade para qualquer companhia de seguros.

Citada a Ré, a mesma apresentou contestação, alegando, em resumo, que não aceita a caracterização do acidente dos autos como de trabalho, por entender que o acidente não ocorre no percurso e tempo habitual entre a residência e o trabalho; aquando da contratação da Autora solicitou à sua mediadora de seguros que incluísse a trabalhadora e dois outros colaboradores no seguro de prémio fixo existente, o que em relação à Autora não foi efetuado; concluiu dever a ação ser julgada totalmente improcedente, e ser absolvida de todos os pedidos.

A Autora apresentou resposta.

Citado o Centro Distrital da Segurança Social de Aveiro, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 1º, nº 2 do Decreto-lei nº 59/89, de 22 de fevereiro, nada foi alegado.

Foi proferido despacho a convidar a Autora a apresentar nova petição inicial que colmatasse insuficiências factuais apontadas.

Foi apresentada nova petição inicial, a que se seguiu a apresentação de nova contestação.

Foi proferido despacho a considerar não ser admissível o articulado de resposta apresentado pela Autora, e foi determinado o desdobramento do processo (com organização de apenso para fixação de incapacidade), seguindo-se a prolação de despacho saneador, no qual foi afirmada a regularidade e validade da instância, foram consignados os factos considerados assentes, definido o objeto do litígio e enunciados temas de prova.

No apenso para fixação de incapacidade, depois de realizado exame por junta médica, foi decidido que a Autora esteve afetada de incapacidade temporária absoluta (ITA) de 14/08/2020 a 05/01/2021, e fixar em 2,5% o grau de incapacidade permanente parcial (IPP), desde 06/01/2021 (dia seguinte ao da alta).

Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença decidindo julgar a ação improcedente, com a consequente absolvição da Ré do pedido.
Foi fixado o valor da ação em €9.096,16.

Não se conformando com a sentença proferida, dela veio a Autora interpor recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES, que se transcrevem[1]:
O Tribunal a quo deveria ter dado como provado que:
A. O sinistro em causa constitui um acidente de trabalho;
B. A Autora desde pelo menos três meses antes da data do sinistro, residia com o tal BB, ora em casa dos pais da Autora, ora em casa dos pais do tal BB,
C. O que faziam de forma alternada, semanalmente,
D. Dormindo juntos,
E. Partilhavam a mesma cama,
F. Tomavam juntos as refeições,
G. Partilhavam a habitação.
H. Devendo ser mantidos/confirmados os demais factos provados com a alteração da alínea g) nos termos supra referidos;
I. E, ainda os factos melhor identificados nas alíneas a), b), c), d), e), f), g), h), i), j), l), m), n), o), p), q), r), s), t), u), v), x), z), aa), ab), ac) e ad) dos factos dados como não provados têm que ser dados como provados,
Termina dizendo dever ser dado provimento ao recurso e, em consequência, ser a sentença revogada e substituída por outra que condene a Ré, nos exatos termos peticionados.

A Ré apresentou resposta, formulando as seguintes CONCLUSÕES, que igualmente se transcrevem:
1. Após minuciosa e crítica análise de toda a prova produzida, e bem assim, dos depoimentos prestados por todas as testemunhas inquiridas em sede de Audiência de Julgamento, que veio julgar a presente ação improcedente, por não provada, absolvendo a Ré (ora Recorrida) do pedido contra si formulado, vem a Autora, ora Recorrente, insurgir-se, requerendo a reapreciação da prova gravada, apresentando argumentação que, salvo o devido respeito por melhor e douta opinião, não poderá proceder.
2. O Tribunal a quo apreciou livre e regularmente a prova testemunhal produzida, explicitando e motivando o processo da sua aquisição, decidindo, depois, de conformidade sendo que, o que na verdade está a ser posto em causa no vertente recurso é a decisão.
3. Mesmo em face da matéria de facto que a recorrente alega ter sido mal julgada e que, por isso, deve de ser apreciada pelo tribunal de recurso, não pode deixar de considerar-se que a instância, em face da imediação, está em condições mais favoráveis para proceder à valorização dessas provas, tendo prolatado uma decisão de harmonia com a única solução possível isto é que não pode o sinistro ser qualificado como acidente de trabalho.
4. Como fica patente da análise da sentença, o tribunal a quo recorreu às regras de experiência e apreciou a prova de forma objetiva e motivada, e os raciocínios aí expendidos merecem inteiramente a nossa concordância.
5. Limitando-se a Recorrente a discordar da valoração da prova pelo Tribunal, valoração essa, livremente formada e fundamentada.
Sucede que,
6. A censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção.
Doutra forma,
7. Pretende a recorrente substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão.
8. A força probatória da prova testemunhal é apreciada livremente, estando in casu devidamente fundamentada e motivada, constituindo a decisão a solução de direito mais plausível.
9. Os depoimentos transcritos nas alegações que sustentam o recurso da apelante têm de ser apreciados e mitigados com os depoimentos das demais testemunhas ouvidas em audiência de julgamento com especial relevo para a testemunha CC e DD como, e bem, foi feito pelo Tribunal a quo na decisão posta em crise.
10. Pelo que a sentença, posta em crise pela Recorrente, encontra-se fundamentada, pronuncia-se sobre as questões que lhe foram colocadas e não contém qualquer erro, nulidade ou vício que mereça reparo, devendo, por isso, improceder todas as conclusões tiradas pela apelante no âmbito do recurso interposto pela mesma.
11. Posto isto, não tem a Autora Recorrente razão para se insurgir contra a matéria de facto, devendo, nessa medida, manter-se inalterada a matéria de facto impugnada.
12. Atendendo a tudo quanto ficou exposto, deve a sentença ser mantida pois está em conformidade com o direito aplicável.
Termina dizendo não dever ser dado provimento ao recurso apresentado pela autora, mantendo-se, consequentemente a sentença recorrida.

Foi proferido despacho a mandar subir o recurso de apelação, imediatamente, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo.

O Digno Procurador-Geral-Adjunto, neste Tribunal da Relação, emitiu parecer (art.º 87º, nº 3 do Código de Processo do Trabalho), pronunciando-se no sentido de ser dado provimento ao recurso, destacando-se a referência do seguinte:
4. Entende a Recorrente que deverá ser dado provimento ao presente Recurso e, em consequência, ser a douta Sentença revogada e substituída por outra que condene a Ré, nos exatos termos peticionados.
4.1. Está em causa neste caso saber se o acidente de viação que sofreu a Recorrente é, também, acidente de trabalho.
Com relevo, para este efeito deu-se como provado que a Autora/Recorrente em 13/08/2020, vivia em casa de seus pais, sita na Rua ..., em ..., que fica a cerca de 400m do local onde presta a atividade referida em B, sito na Rua ..., em ... dos factos provados.
Mas também que a Autora pernoitou na casa onde o seu namorado vivia por mais do que uma vez, em datas em concreto não apuradas – G dos factos provados.
E que o sinistro referido em C, ou seja que no dia 13/08/2020, quando conduzia o veículo ciclomotor com a matrícula ..-ZT-.. na EN ...33, a Recorrente interveio num embate que envolveu uma viatura automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ..-PQ-.., ocorreu pelas 08h40m, quando a Autora se deslocava da casa dos pais do seu namorado BB, com quem este vivia, sita na Rua ..., em ..., e onde tinha pernoitado, para o local onde presta a atividade referida em B., ou seja o exercício das suas funções inerentes à categoria de assistente administrativa de logística, recebendo em contrapartida €10.905,34, ilíquidos anuais.
A Autora fazia esse trajeto a pé, demorando alguns minutos, ou em veículo motorizado.
4.2. Salvo melhor opinião para efeitos do disposto no artigo 9º, nº 1 al. a) e nº 2, al. b) da Lei 98/2009, de 04 e setembro, esta residência dos pais do namorado da Autora, onde ela com frequência estava, tomava refeições e pernoitava, por força da relação de namoro, é considerada residência ocasional.
Ocasional é residência que não exige habitualidade, nem sequer regularidade, mas apenas alguma frequência.
Decisivo é que a Recorrente se dirigisse para o trabalho no momento em sofreu o acidente.
Ora considera-se também acidente de trabalho, o ocorrido no trajeto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho – artigo 9º, nº 1, al. a) e nº 2, al. b) da Lei 98/2009, de 04 e setembro, citado.
Sendo certo ainda que, como provado em H, o sinistro ocorreu na EN ...33, sentido ..., sendo essa a via que em regra é utilizada, por mais curta e direta, na deslocação de ... para ... e que a Autora utilizou quando pernoitou na casa dos pais do namorado.
Por todo o exposto, entende-se que assiste razão à Autora/Recorrente.

Procedeu-se a exame preliminar, foram colhidos os vistos, após o que o processo foi submetido à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

*

FUNDAMENTAÇÃO
Conforme vem sendo entendimento uniforme, e como se extrai do nº 3 do art.º 635º do Código de Processo Civil (cfr. também os art.ºs 637º, nº 2, 1ª parte, 639º, nºs 1 a 3, e 635º, nº 4 do Código de Processo Civil – todos aplicáveis por força do art.º 87º, nº 1 do Código de Processo do Trabalho), o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação apresentada[2], sem prejuízo, naturalmente, das questões de conhecimento oficioso.
Assim, aquilo que importa apreciar e decidir neste caso[3] é saber se:
● Houve erro de julgamento sobre a matéria de facto?
● O acidente em causa no processo está abrangido pelo estipulado na alínea b) do nº 2 do art.º 9º da LAT[4]?
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Porque tem interesse para a decisão do recurso, desde já se consignam os factos dados como provados e como não provados na sentença de 1ª instância, objeto de recurso.
Quanto a factos PROVADOS, foram considerados os seguintes, que se reproduzem:
A. A Autora, AA, nasceu no dia .../.../1994 – cfr. doc. de fls. 13, que se dá por integralmente reproduzido;
B. A Autora foi admitida em 20/07/2020 pela Ré “A... Unipessoal, Lda.” para sob a sua autoridade, direção e fiscalização exercer as funções inerentes à categoria de assistente administrativa de logística, recebendo, em contrapartida, €10.905,34 ilíquidos anuais;
C. A Autora, no dia 13/08/2020, quando conduzia o veículo ciclomotor com a matrícula ..-ZT-.. na EN ...33, interveio num embate que envolveu uma viatura automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ..-PQ-..;
D. A Ré, em 13/08/2020, não havia transferido para companhia seguradora a responsabilidade de por acidentes de trabalho sofridos pela Autora;
E. O sinistro referido em C ocorreu pelas 08h40m, quando a Autora se deslocava da casa dos pais do seu namorado BB, com quem este vivia, sita na Rua ..., em ..., e onde tinha pernoitado, para o local onde presta a atividade referida em B.;
F. Tendo o condutor do veículo PQ invadido a faixa de rodagem em que a Autora circulava;
G. A Autora pernoitou na casa onde o seu namorado vivia por mais do que uma vez, em datas em concreto não apuradas;
H. O sinistro ocorreu na EN ...33, sentido ... >> ..., sendo essa a via que em regra é utilizada, por mais curta e direta, na deslocação de ... para ... e que a Autora utilizou quando pernoitou na casa dos pais do namorado;
I. Em consequência do embate referido em C., a Autora sofreu um traumatismo crânio-encefálico, um traumatismo do ombro direito, bem como do joelho esquerdo;
J. A Autora foi assistida no Serviço de Urgência do “Centro Hospitalar do Baixo Vouga” no dia 13/08/2020;
L. Em consequência das lesões sofridas, teve de usar tala de Depuy e necessitou de utilizar canadianas;
M. A Autora teve dores e padece de dor do tipo mecânico localizado no compartimento externo do joelho esquerdo;
N. A Autora, em datas em concreto não apuradas do período entre 13/08/2020 e 05/01/2021, teve de se deslocar de cadeira de rodas;
O. A Autora, em datas em concreto não apuradas do período entre 13/08/2020 e 05/01/2021, teve de recorrer à sua mãe para confecionar alimentos, deslocar-se ao supermercado para adquirir alimentos, limpar e tratar da casa, bem como da sua roupa e do filho;
P. Em consequência do sinistro referido em C., a Autora despendeu €55,80 no dia 13/08/2020 na “Farmácia ...” (Thera Pearl Cinta Frio Calor Joelho, Urgo Gel Arnica 50 gr e Ben-U-Ron 1000 mg);
Q. Assim como €50,00 no dia 02/09/2020 em consulta na “B..., Lda.”;
R. E € 3,70 no dia 02/09/2020 na “Farmácia ...” na compra de ponteiras para canadianas;
S. Bem como €16,00 no dia 07/09/2020 em consulta externa no “Centro Hospitalar do Baixo Vouga”, em Aveiro;
T. E €7,00 no dia 21/09/2020 em consulta externa no “Centro Hospitalar do Baixo Vouga”, Aveiro;
U. E ainda €95,00 no dia 02/10/2020 em consulta na “C..., Lda.”;
V. E € 1,80 no dia 06/10/2020 na “D..., Lda.”, em Coimbra;
X. Assim como €8,14 no dia 17/10/2020 na “Farmácia ...” (compressa e Urgoderm adesivo);
Z. E €88,00 no dia 22/10/2020 em consulta na “C..., Lda.”;
AA. Bem como €1,60 em consulta médica no dia 10/11/2020;
AB. E €88,00 no dia 11/11/2020 em consulta na “C..., Lda.”;
AC. E €20,84 no dia 26/11/2020 na Farmácia ... (Structomax saq. pó);
AD. E €88,00 no dia 03/12/2020 em consulta na “C..., Lda.”;
AE. E €75,00 no dia 04/08/2021 em consulta na “C..., Lda.”;
AF. Em consequência do sinistro referido em C., a Autora sentiu-se revoltada, desprotegida, nervosa e triste e perdeu noites de sono;
AG. A Autora, em 13/08/2020, vivia em casa de seus pais, sita na Rua ..., em ..., que fica a cerca de 400m do local onde presta a atividade referida em B., sito na Rua ..., em ...;
AH. A Autora fazia esse trajeto a pé, demorando alguns minutos, ou em veículo motorizado;
AI. Em data em concreto não apurada, mas posterior à da admissão da Autora, a Ré solicitou à sua mediadora de seguros que incluísse a Autora, bem como EE e FF, no contrato de seguro de acidentes de trabalho existente, o que apenas veio a acontecer em 01/09/2020;
AJ. A Autora esteve afetada de incapacidade temporária absoluta de 14/08/2020 a 05/01/2021 e encontra-se afetada de uma incapacidade permanente parcial de 2,5% desde 06/01/2021 (dia seguinte ao da alta) – cfr. decisão de fls. 30 do Apenso A, que se dá por integramente reproduzida.

E foram considerados como NÃO PROVADOS os seguintes factos, que igualmente se reproduzem:
a) Em consequência do sinistro referido em C., a Autora teve de ser submetida a intervenção cirúrgica;
b). Por força do sinistro referido em C., a Autora despendeu €75,00 no dia 24/11/2020 em consulta na “C..., Lda.”;
c). Bem como €75,00 no dia 18/08/2021 em consulta da especialidade de Ortopedia no Hospital da Misericórdia...;
d). E €3,60 no dia 14/08/2020 em deslocação para obtenção de certificado de incapacidade para o trabalho (10km);
e) E €5,40 no dia 02/09/2020 em deslocação para consulta na “B..., Lda.” (15 km);
f) Assim como €10,80 no dia 02/09/2020 em deslocação à Farmácia ..., em ... (30 km);
g) E €14,40 no dia 07/09/2020 em deslocação a consulta externa no Centro Hospitalar do Baixo Vouga, em Aveiro (40 km);
h) Bem como €3,60 no dia 18/09/2020 em deslocação para obtenção de certificado de Incapacidade para o Trabalho (10km);
i) E €14,40 no dia 21/09/2020 em deslocação para consulta externa no Centro Hospitalar do Baixo Vouga, em Aveiro (40 km);
j) Assim como €3,60 no dia 23/09/2020 em deslocação para consulta (10 km);
l) Bem como €3,60 no dia 23/09/2020 em deslocação para obtenção de certificado de Incapacidade para o Trabalho (10 km);
m) E ainda €10,80 no dia 02/10/2020 em deslocação para consulta na “C..., Lda.” (30 km);
n) E €41,04 no dia 06/10/2020 em deslocação à “D..., Lda.”, em Coimbra (114 km);
o) E €3,60 no dia 14/10/2020 em deslocação para consulta (10 km);
p) E €10,80 no dia 22/10/2020 em deslocação para consulta na “C..., Lda.” (30 km);
q) E €3,60 no dia 27/10/2020 em deslocação para obtenção de certificado de Incapacidade para o Trabalho (10 km);
r) E €3,60 no dia 10/11/2020 em deslocação para consulta (10km);
s) E €10,80 no dia 11/11/2020 em deslocação para consulta na “C..., Lda.” (30 km);
t) E €10,80 no dia 24/11/2020 em deslocação a consulta na “C..., Lda.” (30 km);
u) Assim como €3,60 no dia 26/11/2020 em deslocação para consulta (10 km);
v) E ainda € 10,80 no dia 03/12/2020 em deslocação para consulta na “C..., Lda.” (30 km);
x) E €3,60 no dia 07/12/2020 em deslocação para obtenção de certificado de Incapacidade para o Trabalho (10 km);
z) E €10,80 no dia 04/08/2021 em deslocação a consulta na “C..., Lda.” (30 km);
aa) Bem como €25,20 no dia 18/08/2021 em deslocação a consulta da especialidade de Ortopedia no Hospital da Misericórdia... (70 km);
ab) E € 552,24 em deslocações a sessões de fisioterapia em setembro de 2020 (2 dias), outubro de 2020 (22 dias), novembro de 2020 (20 dias) e dezembro de 2020 (15 dias) (1.770 km);
ac). A Ré solicitou a inclusão da Autora no contrato de seguro de acidentes de trabalho na data em que foi admitida;
ad). A Autora necessita o auxílio de terceira pessoa para desenvolver as suas tarefas diárias.
*

Da impugnação da decisão sobre matéria de facto:
Alega a Recorrente que houve erro de julgamento quanto ao ponto G. dos factos provados e quanto a todos os pontos dos factos não provados.
Vamos, então, ver se os factos provados e não provados são os que o tribunal a quo considerou como tal, ou se impõe alterar o decidido quanto à matéria de facto, começando por tecer algumas considerações gerais.
Como é sabido, a generalidade das provas produzidas na audiência de julgamento está sujeita à livre apreciação do tribunal (como é o caso da prova testemunhal e da prova por declarações de parte – art.º 396º do Código Civil e art.º 466º, nº 3 do Código de Processo Civil).
Com efeito, dispõe o nº 5 do art.º 607º do Código de Processo Civil que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, ou seja, a apreciação da prova pelo juiz é pautada por regras da ciência e do raciocínio e em máximas de experiência, sendo a estas conforme, o que não se confunde com uma apreciação arbitrária (consiste numa conscienciosa ponderação dos elementos probatórios e circunstâncias que os envolvem)[5].
A reapreciação pelo Tribunal da Relação da decisão da matéria de facto proferida em 1ª instância não corresponde a um segundo (novo) julgamento da matéria de facto, apenas reapreciando o Tribunal da Relação os pontos de facto enunciados pelo interessado (que circunscrevem o objeto do recurso).
Porém, embora não se trate de um novo julgamento, tendo presente o disposto no art.º 662º do Código de Processo Civil, vem-se entendendo que o Tribunal da Relação na apreciação da impugnação da decisão sobre matéria de facto usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (art.º 607º, nº 5, do Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efetivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efetiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece[6].
Daí referir o nº 1 do art.º 662º do Código de Processo Civil que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa” (sublinhou-se), ou seja, não basta que os meios de prova admitam, permitam ou consintam uma decisão diversa da recorrida[7].
Assim, a parte recorrente não pode simplesmente invocar um generalizado erro de julgamento tendente a uma reapreciação global dos meios de prova, não podendo a censura do recorrente quanto ao modo de formação da convicção do tribunal a quo assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, simplesmente em defender que a sua valoração da prova deve substituir a valoração feita pelo julgador; antes tal censura tem que assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente por não existirem os dados objetivos que se apontam na motivação ou por se terem violado os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou ainda por não ter existido liberdade de formação da convicção.
Em conformidade, o legislador impõe à parte recorrente, que pretenda impugnar a decisão de facto, um ónus de impugnação, devendo o recorrente expor os argumentos que, extraídos de uma apreciação crítica dos meios de prova, determinem, em seu entender, um resultado diverso do decidido pelo tribunal a quo (cfr. art.º 640º do Código de Processo Civil).

Feitas estas considerações, vejamos, então, a impugnação apresentada pela Recorrente.

● do ponto G. dos factos provados:
Comecemos por colocar lado a lado, em quadro, a redação deste ponto dada em 1ª instância e a redação defendida em recurso.
Assim:

Redação dada em 1ª instânciaRedação defendida pela Recorrente
G. A Autora pernoitou na casa onde o seu namorado vivia por mais do que uma vez, em datas em concreto não apuradas.G. A Autora pelo menos desde 03 meses antes da data do sinistro residia de forma alternada – por semana – com o referido BB, ora em casa dos pais daquela, ora em casa dos pais daquele.

Para sustentar a alteração, a Recorrente refere excertos das declarações de parte da Autora e do depoimento da testemunha BB (que transcreve), dizendo que deles resulta demostrada a factualidade.
A Recorrida contrapõe que as declarações/depoimentos transcritos pela Recorrente têm que ser apreciados e mitigados com os depoimentos das demais testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, em especial a testemunha CC, mas também DD, de que cita e transcreve excertos, concluindo dever improceder a preensão da Recorrente.
O tribunal a quo fundamentou a decisão quanto a este ponto dizendo o seguinte:
A matéria dos pontos E, F, G e H foi dada como provada com base nas declarações da Autora, que nesta parte se mostraram encadeadas, pormenorizadas e objetivas, encontrando apoio do depoimento de BB, namorado à data dos factos e com que veio a viver em união de facto, assim como de CC e GG, pais da Autora, DD, mãe de BB e ainda nos documentos de fls. 18 a 20, 35 e 36.
(…)
Também especificamente quanto à matéria do ponto G, as declarações da Autora (ainda que não coincidentes com o por si alegado no art.º 17º da petição inicial corrigida) encontraram apoio nos depoimentos de BB e de GG.
Já num sentido menos lato foram os depoimentos de CC e de DD.
Na ponderação destes meios de prova, desde logo saltou à evidência, no que se refere ao depoimento de BB, a pouca coerência, neste segmento, entre o tipo de relação que relatou ter à data com a Autora e a cadência com que pernoitava na casa onde residia; e, no que tange à testemunha GG, inquirida na primeira sessão da audiência de julgamento, após o almoço, a especial preocupação que teve na descrição da frequência das pernoitas, revelando pouca naturalidade e muito pouca objetividade na descrição feita.
Já no que tange ao segundo grupo de meios de prova, CC, inquirido na parte da manhã da primeira sessão da audiência de julgamento, relatou a factualidade de forma serena, apenas narrando factualidade de que tinha conhecimento, espelhando simplicidade e isenção no relato feito, não deixando de expressar as dificuldades na quantificação da matéria; e a testemunha DD, inquirida por determinação do tribunal na última sessão da audiência de julgamento, revelou-se natural nas respostas dadas, apenas dando a conhecer a factualidade conhecida, indicando a sua razão de ciência e mostrando-se perentória e muito segura nas partes em que foi inquirida quanto a sinais de permanência da Autora em sua casa.
Tudo ponderado, não merecendo crédito o primeiro grupo de meios de prova e sobrelevando, pelas razões exaradas, este último, se bem que não permitindo apurar com um grau mínimo de segurança um número concreto de pernoitas da Autora em casa dos pais de BB, apenas foi dado como provado, por seguro, que pernoitou na casa onde o seu namorado vivia por mais do que uma vez, em datas em concreto não apuradas.
Como se vê, o tribunal a quo valorou outros depoimentos além dos referidos pela Recorrente.
Temos que ter presente que não basta que a parte e/ou uma testemunha expresse algo para que fique provado, impondo-se que o julgador forme convicção nesse sentido, numa análise crítica que ponderará todos os elementos de prova.
É o que se diz no acórdão desta Secção Social do TRP de 04/05/2022, de que se cita o sumário:
I) Para que um facto se considere provado é necessário que, à luz de critérios de razoabilidade, se crie no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto.
II) Essa certeza subjetiva, com alto grau de probabilidade, há de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica. Se pelo contrário, existir insuficiência, contradição ou incoerência entre os meios de prova produzidos, ou mesmo se o sentido da prova produzida se apresentar como irrazoável ou ilógico, então haverá uma dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade dos factos em causa serem certos, obstando a que se considere o facto provado.
De resto, não se pode esquecer que um depoimento não se resume a palavras, havendo todo um contexto a interpretar (por exemplo, esgares, silêncios, hesitações, monossílabos, as pausas, o olhar, a postura, a colocação das mãos, etc)[8].
Ora, ouvidas as declarações/depoimento indicados pela Recorrente, mas também os referidos pelo julgador a quo e Recorrida, tudo ponderado, não se conclui impor-se a alteração da redação pretendida pela Recorrente, ou seja não se forma convicção diferente da formada em 1ª instância.
Com efeito, embora a Autora e BB (que na altura mantinha um relacionamento afetivo com a Autora) o referissem, o pai da Autora (CC) no seu depoimento, ainda que fosse dizendo “não lhe sei explicar” e referisse que a filha passasse uma semana em cada lado (entenda-se na casa do depoente e sua esposa, e na casa dos pais do namorado da filha), afirmou de forma clara, mais que uma vez, que a mesma “vivia connosco e estava mais tempo connosco”, “a maior parte do tempo passava connosco porque vivia connosco”, “vivia mais na minha casa que do outro lado”, e a testemunha DD (mãe de BB) referiu que eram namorados, respondendo à pergunta se a Autora pernoitava em sua casa respondeu “que eu tenha visto não”, aludindo a desfasamento de horários, ainda que admitisse que algumas vezes lá pernoitou, sem que desse conta, mas seria esporadicamente, mais afirmando que o filho nunca lhe disse que antes do acidente tivesse pernoitado em casa dos pais da Autora. Sendo assim, improcede o recurso nesta parte.

● dos factos não provados [pontos a) a ad)]:
Para sustentar que estes factos passem a provados, a Recorrente diz resultarem desde logo das regras da experiência e da normalidade do acontecer, conjugado com as declarações de parte da Autor, de que cita e transcreve excertos.
O tribunal a quo fundamentou a decisão quanto à matéria de facto não provada dizendo o seguinte:
No que concerne à matéria de facto dada como não provada e relativamente à al. a), desde logo trata-se de matéria infirmada pela própria Autora.
Quanto refere às als. b) e c), pese embora o teor dos documentos de 140 e 143v. e 145, dos mesmos não resulta, desde logo, o dispêndio de tais quantitativos.
Por sua vez, o Tribunal atendeu ainda aos depoimentos de CC e GG, em que assumiu especial relevo o depoimento da primeira testemunha, pelo modo espontâneo e claro com que relatou a matéria, bem como pelas explicações dadas, encontrando ainda apoio nas declarações da própria Autora, o que levou a que tal matéria fosse dada como não provada, assim como a constante das als. d) a ab).
Relativamente à matéria do ponto ac), trata-se de uma decorrência da matéria dada como provada sob o ponto AI e para cuja fundamentação o Tribunal se remete.
Por último a quanto à al. ad), foi dada como não provada com base no observado em sede de perícia colegial por junta médica e da posição uniforme dos Srs. Peritos Médicos neste segmento (vide fls. 28 do Apenso A).
Ora, sucede que do referido pela Recorrente só resulta que houve despesas com consultas e deslocações, mas não existe suporte para concretizar o que consta dos pontos em causa, não afastando a convicção do tribunal a quo.
Sendo assim, sem necessidade de considerações mais desenvolvidas, improcede o recurso também nesta parte, e como tal, os factos provados e não provados a considerar são aqueles considerados como tal em 1ª instância, que acima deixámos transcritos.
*

Da ocorrência de acidente de trabalho:
Está em causa saber se ocorreu acidente de trabalho (reparável), mais propriamente acidente de trabalho in itinere.
Ainda que tenha improcedido a impugnação sobre a decisão sobre a matéria de facto, importa ver se estamos em presença de acidente de trabalho.
Raquel Filipa Mestre Teixeira[9] diz-nos que «acidente de trabalho in itinere» pode ser definido como aquele que atinge o trabalhador no trajeto de ida e de regresso para e do local de trabalho, podendo ser ou não, simultaneamente acidente de viação ou rodoviário.
O mesmo encontra previsão no art.º 9º da LAT [10], o qual, com a epígrafe «extensão do conceito», estabelece na al. a) do nº 1 que considera-se também acidente de trabalho o ocorrido no trajeto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, acrescentando a al. b) do nº 2 que tal compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho.
Como se vê, o percurso protegido tem duas extremidades, sendo uma delas o local de trabalho e a outra, naquilo que ao caso importa, a residência habitual ou ocasional do trabalhador.
No caso sub judice, aquando do acidente a Autora deslocava da casa dos pais do seu namorado, com os quais este vivia, e onde tinha pernoitado, sendo certo que a Autora aí pernoitou por mais do que uma vez, em datas em concreto não apuradas [pontos E. e G. dos factos provados].
Sendo claro que essa não era a sua residência habitual [ponto AG. dos factos provados], a questão está em saber se a Autora se deslocava para o local de trabalho a partir da sua residência ocasional.
O tribunal a quo considerou que não estarmos perante residência ocasional dizendo essencialmente o seguinte:
Já a residência ocasional – que não faz surgir um domicílio, embora, na falta de domicílio de uma pessoa, funcione como seu equivalente (nº 2 do art.º 82º do Código Civil) [11] – é aquela em que a pessoa vive com alguma permanência, mas temporária ou acidentalmente, num certo local, como acontece com a casa de fins-de-semana [12].
Num ou noutro caso, não se afigura necessário que o sinistrado seja o proprietário, usufrutuário ou arrendatário dessa residência ocasional, podendo ser apenas um comodatário, hóspede, ou nela residir por ato de mera tolerância[13].
O que já se afirma essencial é o carácter de estabilidade [14].
Conforme entende o Sr. Juiz de Direito, Dr. José Joaquim Oliveira Martins, “«residência» é o edifício ou fração autónoma concreta onde alguém reside, onde habita e vive, onde tem o centro da sua vida quotidiana e onde se desenrolam os atos da sua vida privada (as refeições, o estar em família, o dormir, etc.)” [15].
Por sua vez, o trajeto abrangido, para o Sr. Juiz Conselheiro Júlio Vieira Gomes, deverá ser o razoável, racional, podendo não ser necessariamente o mais curto, podendo variar em função das condições meteorológicas, estado do trânsito, meio de locomoção, situação física ou estado do trabalhador [16].
O sinistro há de ainda ocorrer durante o período habitualmente gasto pelo trabalhador, ou seja, num segmento temporal próximo da hora de entrada ou de início do trabalho, ou próximo da hora de saída do trabalhador, também aqui podendo várias circunstâncias influir na duração do trajeto [17].
Regressando ao caso dos autos, coloca-se desde logo a questão de aferir se o local de onde a Autora provinha quando ocorreu o sinistro se subsume ao conceito de residência relevante para efeitos do art.º 9º da Lei nº 98/2009.
À data, a Autora vivia em casa de seus pais, sita na Rua ..., em ..., tudo revelando tratar-se da sua residência habitual.
Tinha ainda uma relação de namoro com BB, que residia em casa dos respetivos pais, sita na Rua ..., em ....
(…)
Ora, nada impede que, no âmbito de uma relação de união de facto, haja uma residência habitual principal (onde ambos vivem sem que o faça ao abrigo de um direito real ou mesmo da celebração de um qualquer contrato que lhe confira esse poder) e uma outra secundária (em relação à qual apenas um seja titular do direito real, de gozo ou que use mesmo por ato de mera tolerância) [18].
De igual jeito, a casa do companheiro ou companheira, desde que assuma algum carácter de estabilidade e em função de realidades concretas de vida como sucede com a prestação de trabalho em localidades distantes, pode afirmar-se como uma residência ocasional.
O mesmo não acontece já com situações em que a permanência na casa do companheiro ou companheira é meramente episódica ou esporádica, se aí pernoita apenas uma ou algumas noites[19], o que não se reconduz já ao conceito de residência.
E se assim é no domínio de uma relação de união de facto, por maioria de razão o será no âmbito de uma relação de namoro, que não pressupõe a já referida sumariamente analisada comunhão de vida.
Apenas tendo resultado que a Autora pernoitou em casa dos pais do namorado, com quem este vivia, por mais do que uma vez, em datas em concreto não apuradas, trata-se de matéria que não patenteia uma constância, uma regularidade, ou sequer uma estabilidade mínima nessa permanência.
Por sua vez, produzida que foi a prova, não foi ainda apurado que esse fosse um centro da sua vida, mais propriamente que aí tivesse haveres próprios, se alimentasse, abrigasse, privasse com os seus amigos, em termos de se permitir afirmar ser uma sua residência ocasional, e não apenas um local de visita.
Aliás, a própria Autora no art.º 7º da petição inicial corrigida (fls. 167) assume que essa era uma residência “onde dada a relação de namoro existente ocasionalmente pernoitava”, entendendo-se por ocasional algo eventual, fortuito, incerto, pouco frequente.
Por último, não pode ainda o Tribunal deixar de levar em ponderação que a casa dos pais da Autora, onde residia, em ..., distava cerca de 400m do seu local de trabalho sito na Rua ..., em ....
Provindo a Autora da localidade de ..., que, consabidamente, dista cerca de 16 km de ... e circulando pela EN ...33, não foi alegada pela Autora, conforme lhe competia (nº 1 do art.º 5º do Código de Processo Civil, aplicável por força da al. a) do nº 2 do art.º 1º do Código de Processo do Trabalho), nem apurada, sequer, qualquer coincidência parcial de percursos que permitisse concluir que, a partir de determinada altura, o trajeto tivesse “renascido” em face de um anterior prolongamento e aí se desse o sinistro.
Tudo revela, pois, que a deslocação da Autora a ... decorreu unicamente de uma questão de conveniência própria, de um ato da sua vida privada e fruto, como tal, da sua autonomia, num contexto externo à subordinação que a ligava à Ré por força da relação laboral.
Tendo o sinistro ocorrido no regresso à localidade onde, sim, reside e labora e não correspondendo ao trajeto entre da (ou de uma) sua residência e o local de trabalho, não se vislumbra poder, assim, afirmar que a Autora já se estivesse materialmente colocada à disposição do empregador para o cumprimento da prestação laboral a que contratualmente estava vinculada, inexistindo, como tal, a conexão laboral pressuposta na afirmação de um sinistro como acidente de trabalho.
Raquel Filipa Mestre Teixeira[20] refere, passamos a citar, que “não nos choca que se interprete e se possa aplicar esta alínea [a b) do nº 2 do art.º 9º da LAT] ao caso do trabalhador que pernoite em casa da namorada, e siga no dia seguinte para o local de trabalho, sofrendo no trajeto um acidente. O facto de termos considerado que o elenco previsto no artigo 9º, nº 2 da LAT é meramente enunciativo e a evolução dos costumes da sociedade contribuem para que tal situação possa, a nosso ver, ser considerada acidente in itinere”.
Carlos Alegre[21] diz-nos que a residência ocasional é aquela que por razões, as mais diversas, não é a residência habitual, mas que é imprevista ou fortuita, sendo uma residência, nestas condições, por natureza, temporária ou de curta duração.
E acrescenta o mesmo autor que, mais duvidoso é saber se pode considerar-se residência ocasional, o local onde, fortuitamente, se pernoita ou se está durante uma única noite ou dia. A casa de um amigo, onde o trabalhador dormiu por uma qualquer razão e de onde parte diretamente para o seu local de trabalho, poderá ser considerada residência ocasional? A resposta negativa parece impor-se com o argumento de que não é residência o local onde se está por umas horas (ou mesmo por uns dias), apenas para satisfazer algumas necessidades importantes (dormir, alimentar-se ou fazer a sua higiene pessoal). A ideia de residência parece dever ser mais consistente do que isso, em termos de habitação ou domicílio. Mas a resposta afirmativa também pode encontrar algum apoio se se argumentar que não é inerente à noção de ocasionalidade a ideia de permanência mais ou menos alongada. Fica, assim, a vaguidade da noção de residência ocasional que só a avaliação de cada situação concreta pode determinar.
Ora, se ocasional significa imprevisto ou fortuito, de todo o modo está em causa uma residência ocasional, o que não se confunde com uma pernoita ocasional.
Ou seja, não se pode ter um grau de exigência tal que se transforme a residência ocasional numa segunda residência habitual, mas não se pode olvidar que estamos perante uma residência, ainda que ocasional, tendo a factualidade provada que permitir dizer que ocasionalmente aquela é a residência do trabalhador.
Assim, aproximando-nos do caso concreto, a pernoita em casa dos pais do namorado, onde este reside, pode traduzir em pernoita na residência ocasional.
Ponto é que, não se trate de pernoita ocasional, mas de uma residência ocasional, ou seja, a factualidade provada tem que permitir dizer, pegando nas palavras de Carlos Alegre acima citadas, que estamos perante algo mais consistente do que uma pernoita ocasional, em termos de habitação ou domicílio.
Porém, no caso em análise, apurou-se a Autora já de outras vezes pernoitara em casa dos pais do seu namorado (onde este vivia), mas apenas se apurou que aí pernoitou por mais do que uma vez, em datas em concreto não apuradas [ponto G. dos factos provados], desconhecendo-se em absoluto o número de vezes e há quanto tempo aconteceu, o que se nos afigura escasso para se falar numa residência ocasional da trabalhadora, faltando outros factos provados que dessem a referida consistência.
Sendo assim, concluímos como a sentença recorrida que não está demonstrado que tenha ocorrido acidente de trabalho in itinere (reparável), improcedendo o recurso.
*
Quanto a custas, havendo improcedência do recurso, as custas do mesmo ficam a cargo da Recorrente (art.º 527º do Código de Processo Civil).
***

DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desembargadores da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente (art.º 527º do Código de Processo Civil), com taxa de justiça conforme tabela I-B anexa ao RCP (cfr. art.º 7º, nº 2 do RCP), sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

Valor do recurso: o da ação (art.º 12º, nº 2 do RCP).

Notifique e registe.

(texto processado e revisto pelo relator, assinado eletronicamente)

Porto, 30 de outubro de 2023
António Luís Carvalhão
Germana Ferreira Lopes
Eugénia Pedro
_____________
[1] As transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo correção de gralhas evidentes e realces/sublinhados que no geral não se mantêm (porque interessa o texto em si), consignando-se que quanto à ortografia utilizada se adota o Novo Acordo Ortográfico.
[2] Vd. António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5ª edição, pág. 156 e págs. 545/546 (estas no apêndice I: “recursos no processo do trabalho”).
[3] Seguindo a ordem da precedência lógica, sendo que a solução de alguma pode prejudicar o conhecimento de outra(s) – art.ºs 608º e 663º, nº 2 do Código de Processo Civil (cfr. art.º 87º, nº 1 do Código de Processo do Trabalho).
[4] Assim (com LAT), abreviando “Lei dos Acidentes de Trabalho”, designamos o atual regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, aprovado pela Lei nº 98/2009, de 04 de setembro.
[5] Vd. Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 2ª edição (Lisboa 1997), pág. 347.
[6] Vd. António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5ª edição, pág. 286.
[7] É que, de outra forma ocorreria uma inversão da posição das personagens do processo, mediante a substituição da convicção de quem tem de julgar pela convicção de quem espera a decisão.
[8] Sobre a importância da aplicação da linguagem não verbal, relativamente ao processo penal mas com aplicação ao processo civil, vd. Celso Leal e Pedro M. Lamy, “Linguagem Não Verbal no Processo Penal – um livro sobre comunicação verbal e não verbal em ambiente jurídico”, Rei dos Livros, outubro 2019.
[9] “O acidente de trabalho in itinere”, in “Novos Estudos de Direito do Trabalho” (Coletânea de Dissertações em Direito das Empresas – Iscte-Iul), Chiado Editora, 2017, pág. 493.
[10] Assim designamos, abreviando Lei dos Acidentes de Trabalho, o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais constante da Lei nº 98/2009, de 04 de setembro.
[11] Nota de rodapé (10) da sentença com o seguinte teor: CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1999 (reimp.), pág. 258.
[12] Nota de rodapé (11) da sentença com o seguinte teor: JÚLIO MANUEL VIEIRA GOMES, O Acidente de Trabalho…, pág. 178; SÉRGIO SILVA DE ALMEIDA, Notas…, pág. 202; PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito do Trabalho, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 855; já para Carlos Alegre, a casa de fim de semana cabe no conceito de residência habitual, ainda que de natureza secundária, considerando como residência ocasional a que tem uma natureza imprevista ou fortuita – CARLOS ALEGRE, Acidentes…, págs. 51 e 183.
[13] Nota de rodapé (12) da sentença com o seguinte teor: JÚLIO MANUEL VIEIRA GOMES, O Acidente de Trabalho…, pág. 178, nota 412.
[14] Nota de rodapé (13) da sentença com o seguinte teor: SÉRGIO SILVA DE ALMEIDA, Notas sobre Acidentes In Itinere. Qualificação e Descaracterização, in Prontuário de Direito do Trabalho, 2017 – II, pág. 185 e ss., em especial pág. 202.
[15] Nota de rodapé (14) da sentença com o seguinte teor: JOSÉ JOAQUIM OLIVEIRA MARTINS, O Gato de Cheshire e o Direito do Trabalho – questões vexatas na jurisdição laboral, in Julgar nº 33, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 300; vide ainda Ac. RG 26/02/2015, www.dgsi.pt.
[16] Nota de rodapé (15) da sentença com o seguinte teor: Ac. RL 18/06/2014, CJ, ano XXXIX, tomo III, pág. 177 e ss.
[17] Nota de rodapé (16) da sentença com o seguinte teor: JÚLIO MANUEL VIEIRA GOMES, O Acidente de Trabalho – O acidente in itinere e a sua descaracterização, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, págs. 171, 172 e 175.
[18] Nota de rodapé (21) da sentença com o seguinte teor: Referindo-se a um caso decidido pela Cour de Cassation de 14/10/1994 e subsumível a esta hipótese, JÚLIO MANUEL VIEIRA GOMES, O Acidente de Trabalho…, pág. 194.
[19] Nota de rodapé (22) da sentença com o seguinte teor: JÚLIO MANUEL VIEIRA GOMES, O Acidente de Trabalho…, pág. 178 e nota 412.
[20] “O acidente de trabalho in itinere”, in “Novos Estudos de Direito do Trabalho” (Coletânea de Dissertações em Direito das Empresas – Iscte-Iul), Chiado Editora, 2017, pág. 505.
[21] In “Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado”, 2ª edição, Almedina, 2000, págs. 51 e 183.