AÇÃO POPULAR
COMPETÊNCIA MATERIAL
FORMA DE PROCESSO
PROCESSO COMUM
JUÍZO CÍVEL
VALOR DA CAUSA
Sumário


A Lei n.º 83/95 de 31-08 não consagra para a acção popular cível a forma de processo especial.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO



1.1. CITIZENS' VOICE-CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION et (ao abrigo do artigo 31, do Código de Processo Civil (“CPC”), e artigos 2 (1), 3 e 12, da lei 83/95, e artigo 3 e 19, da lei 23/2018), instaurou (1/6/2023) na Comarca do ... - Juízo Central Cível ... – acção popular cível, com “forma única de processo”, contra PINGO DOCE – DITRIBUIÇÃO ALIMENTAR, S.A.

Alegou, em resumo:

A presente acção popular para defesa de interesses difusos e individuais homogéneos, intentada pela autora interveniente e demais autores populares, é uma ação de defesa dos direitos dos consumidores, que assenta na violação dos direitos destes e em práticas comerciais desleais que se manifestam do seguinte modo: a ré dedica-se comercialmente à venda ao público, no mercado nacional de distribuição retalhista, de produtos alimentares, nomeadamente na sua sucursal, com estabelecimento na Rua ..., distrito do ..., in casu, vendendo embalagens de queijo de ovelha com azeitona preta, da marca Pingo Doce, por preço superior ao que consta dos letreiros elaborados por si; A ré, por intermédio de um letreiro fixado junto das supra aludidas embalagens, preçava-as em 3,95 euros por embalagem, mas no momento do seu pagamento, tanto nas caixas eletrónicas de self checkout, como nas caixas de pagamento assistidas por trabalhadores da ré, cobrava 4,14 euros, ou seja, a ré cobrava um preço 12,41 % superior ao anunciado por si; Muitos consumidores, clientes da ré, os aqui autores populares, que não se aperceberam que o preço cobrado no momento, acabaram por pagar um sobrepreço de 0,49 euros por cada embalagem.

O comportamento da ré é aquele que esta adota para com todos os consumidores, seus clientes, os aqui autores populares, e que consubstancia em publicidade enganosa e numa prática comercial desleal e restritiva da concorrência, as quais se entrecruzem, de modo secante, na defesa do consumidor – embora, neste caso, confinado e por decisão da sua sucursal na Rua ..., distrito do ....

. Para além da publicidade enganosa e práticas comerciais desleais e restritivas da concorrência, tal comportamento consubstancia em especulação de preços na medida em que a ré, vende bens por preço superior ao que consta no letreiro por si elaborado.

No ordenamento jurídico interno, o comportamento da ré é violador do(a): 1. artigo 35 (1, c), do decreto-lei 28/84; 2. artigos 6, 10, 11 (1), 12, do decreto-lei 330/90; 3. o artigo 311 (1, a, e), do decreto-lei 110/2018; 4. artigos 4, 5 (1), 6 (b), 7 (1, b, d), 9 (1, a), do decreto-lei 57/2008; 5. artigos 3 (a) (d) (e) (f), 4, 7 (4) e 8 (1, a, c, d) (2), da lei 24/96; 6. do artigo 11, da lei 19/2012; 7. lei 23/2008 - quanto às regras que regem às ações de indemnização por infração ado direito da concorrência e ao direito de ação popular; 8. dos artigos 473 e 483, do Código Civil.

O comportamento da ré viola o seguinte direito da União Europeia: 1. artigos 6, 7 (1) (2) e 8, da diretiva 2005/29/CE; 2. artigo 3, da diretiva 2006/114/CE; 3. artigos 2 (a) (b), 4 (1), da diretiva 98/6/CE; 4. diretiva 2014/104/UE – quanto às regras que regem às ações de indemnização por infração ado direito da concorrência; 9 / 98 5. artigo 102, do Tratado de Funcionamento da União Europeia (“TFUE”).

Por sua vez, os autores populares têm direito à reparação integral dos danos sofridos por violações de tais regras quer nos termos das supra aludidas normas, como nos termos gerais do direito, designadamente, à luz dos artigos 227, 334, 483, 487, 496 e 798 do CC, do artigo 12 (1), da lei 24/96, e da diretiva 2014/104/UE.

Os autores populares sofreram três tipos de danos: o sobrepreço que pagaram pelas embalagens de queijo de ovelha com azeitona preta, da marca Pingo Doce; os danos morais; a distorção da equidade das condições de concorrência e, concomitantemente danos para os consumidores em geral, onde se incluem os autores populares.

Concluiu pedindo cumulativamente:

Ҥ7 PEDIDO

Nestes termos e nos demais de direito, que Vossa Excelência doutamente suprirá, deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e ser declarado que a ré:

A. teve o comportamento descrito no §3 supra;

B. violou qualquer uma das seguintes normas:

1. artigo 35 (1, c), do decreto-lei 28/84;

2. artigos 6, 10, 11 (1), 12, do decreto-lei 330/90;

3. artigo 311 (1, a, e), do decreto-lei 110/2018;

4. artigos 4, 5 (1), 6 (b), 7 (1, b, d), 9 (1, a), do decreto-lei 57/2008;

5. artigos 3 (a) (d) (e) (f), 4, 7 (4) e 8 (1, a, c, d) (2), da lei 24/96;

6. do artigo 11, da lei 19/2012;

7. artigos 6, 7 (1) (2) e 8, da diretiva 2005/29/CE;

8. artigo 3, da diretiva 2006/114/CE;

9. artigos 2 (a) (b), 4 (1), da diretiva 98/6/CE;

10. artigo 102, do TFUE;

C. especulou nos preços das embalagens de queijo de ovelha com azeitona preta, da marca Pingo Doce na sua sucursal, localizada em Rua..., distrito do...;

D. publicitou enganosamente o preço das embalagens de queijo de ovelha com azeitona preta, da marca Pingo Doce, na sua sucursal localizada em Rua ..., distrito do ...;

E. teve o comportamento supra descrito em qualquer um dos pedidos anteriores e que o mesmo é ilícito e 1. doloso; ou, pelo menos, 2. grosseiramente negligente;

F. agiu com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos supra referidos, com os autores populares;

G. com a totalidade ou parte desses comportamentos lesou gravemente os interesses dos autores populares, nomeadamente os seus interesses económicos e sociais, designadamente os seus direitos enquanto consumidores;

H. causou e causa danos aos interesses difusos de proteção do consumo de bens e serviços, sendo a ré condenada a reconhecê-lo e em consequência, de qualquer um dos pedidos supra, deve a ré ser condenada a:

I. a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados por estas práticas ilícitas, no que respeita ao sobrepreço, seja a título doloso ou negligente, em montante global:

1. a determinar nos termos do artigo 609 (2), do CPC;

2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;

3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;

J. subsidiariamente ao ponto anterior, ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que resultou do sobrepreço causado pelas práticas ilícitas, em montante global:

1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do CC,

determinado em 0,49 euros por cada embalagem de queijo de ovelha com azeitona preta, da marca Pingo Doce vendida na sua sucursal, com estabelecimento localizado em Rua ..., distrito do ..., durante, pelo menos, entre 31.05.2023, às 08h00, e 01.06.2023, às 11h12;

2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;

3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;

K. ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos morais causado pelas práticas ilícitas, em montante global:

1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4), do CC, mas nunca inferior a 1 euro por autor popular;

2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos morais;

3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;

L. ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares, in casu, todos os consumidores em geral, medidos por agregados familiares privativos, pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência, e montante global:

1. nos termos do artigo 9 (2), da lei 23/2018, ou por outra medida, justa e equitativa, que o tribunal considere adequada, mas nunca menos que 1 euro por autor popular, in casu, agregados familiares privativos;

2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência;

3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;

M. ser a ré condenada a pagar todos os encargos que a autora interveniente tiver ou venha ainda a ter com o processo e com eventual incidente de liquidação de sentença, nomeadamente, mas não exclusivamente, com os honorários advocatícios, pareceres jurídicos de professores universitários, pareceres e assessoria necessária à interpretação da vária matéria técnica [tanto ao abrigo do artigo 480 (3), do CPC, como fora do mesmo preceito], que compreende uma área de conhecimento jurídico-económico complexa e que importa traduzir e transmitir com a precisão de quem domina a especialidade em causa e em termos que sejam acessíveis para os autores e seu mandatário, de modo a que possam assim (e só assim) exercer eficazmente os seus direitos, nomeadamente de contraditório, e assim como os custos com o financiamento do litígio (litigation funding) que venha a ser obtido pela autora interveniente;

N. porque o artigo 22 (2), da lei 83/95, estatui, de forma inequívoca e taxativa, que deve ser fixada uma indemnização global pela violação de interesses dos titulares ao individualmente identificados, mas por outro lado é omissa sobre quem deve administrar a quantia a ser paga.Em face do elevado número de processos judiciais intentados pela a aqui autora e a complexidade dos mesmos, provocados pelas várias exceções invocadas pelos réus nesses processos, e a necessidade de obter consultoria jurídica e pareceres de professores catedráticos, a autora encontra-se neste momento a negociar o financiamento de vários litígios com várias entidades, incluindo o presente. Assim que a autora tiver celebrado o contato de financiamento do presente litígio, informará o processo das condições do mesmo, nomeadamente quem deve proceder à sua distribuição pelos autores representados na ação popular, vêm os autores interveniente requerer que declare que CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, agindo como autora interveniente neste processo e em representação dos restantes autores populares, têm legitimidade para exigir o pagamento das supras aludidas indemnizações, incluindo requerer a liquidação judicial nos termos do artigo 609 (2), do CPC e, caso a sentença não seja voluntariamente cumprida, executar a mesma, sem prejuízo do requerido nos pontos seguintes. subsidiariamente, e nos termos do §4 (m),:

O. o comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, subsidiariamente, para o caso de não se aplicar nenhum dos casos supra, deve ser considerado mediante o instituto do enriquecimento sem causa e os autores populares indemnizados pelo sobrepreço cobrado, tal como sustentando em § 4 (m) supra. em qualquer caso, deve:

P. o comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, sempre deve ser considerado com abuso de direito e, em consequência, paralisado e os autores populares indemnizados por todos os danos que tal comportamento lhes causou; requer-se ainda que Vossa Excelência:

Q. decida relativamente à responsabilidade civil subjetiva conforme § 15, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido;

R. decida relativamente ao recebimento e distribuição da indemnização global nos termos do § 16, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido;

S. seja publicada a decisão transitadas em julgado, a expensas da ré e sob pena de desobediência, com menção do trânsito em julgado, em dois dos jornais presumivelmente lidos pelo universo dos interessados, apesar de tal decorrer expressamente do artigo 19 (2), da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido, e com o aviso da cominação em multa de € 100.000 (cem mil euros) por dia de atraso no cumprimento da sentença a esse respeito;

T. declare que a autora interveniente tem legitimidade para representar os consumidores lesados na cobrança das quantias que a ré venha a ser condenada, nomeadamente, mas não exclusivamente, por intermédio da liquidação judicial das quantias e execução judicial de sentença;

U. declare, sem prejuízo do pedido imediatamente anterior, que a ré deve proceder ao pagamento da indemnização global a favor dos consumidores lesados diretamente à entidade designada pelo tribunal para proceder à administração da mesma tal como requerido em infra em §16, fixando uma sanção pecuniária compulsória adequada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros) por cada dia de incumprimento após o trânsito em julgado de sentença que condene a ré nesse pagamento;

V. declare uma remuneração, com uma taxa anual de 5 % sobre o montante total da indemnização global administrada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros) nos termos do requerido infra em §16, a favor da entidade que o tribunal designar para administrar as quantias que a ré for condenada a pagar;

W. declare que a autora interveniente tem direito a uma quantia a liquidar em execução de sentença, a título de procuradoria, relativamente a todos os custos que teve com a presente ação, incluindo honorários com todos os serviços prestados, tanto de advogados, como de técnicos especialistas, como com a obtenção e produção de documentação e custos de financiamento e respetivo imposto de valor acrescentado nos termos dos artigos 21 e 22 (5), da lei 83/95, sendo tais valores pagos exclusivamente daquilo que resultarem dos montantes prescritos nos termos do artigo 22 (4) e (5), da lei 83/95.”

1.2. Por despacho liminar (6/6/2023) decidiu-se:

“julgar este tribunal incompetente, em razão da matéria, para o processamento da presente ação e, consequentemente, indefere-se liminarmente a petição inicial (arts. 65.º, 96.º, alínea a), 97.º, 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a), e 590.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil).

Sem custas (art. 4º, n.º 1, al. b), e 5 (a contrario) do RCP.

Fixo o valor processual da causa em € 60.000,00 (art. 303.º, n.º 3 do Código de Processo Civil).”

1.3. Inconformada a Autora recorreu de revista (recurso per saltum ), com as seguintes conclusões:

1) Não concordam com verificação da excepção dilatória da competência material do tribunal para apreciar a ação, porquanto estamos perante os artigos 1 (2), 2, 12 (2), da lei 83/95, que ditam que a ação popular, tal como está configurada, deve prosseguir sob forma comum, com as especialidades referidas nas normas legais constantes da mencionada lei 83/95 e, por sua vez, a causa tem o valor de €60.000 (sessenta mil euros).

2) Atentos ao disposto no artigo 117 (1, a, d), da lei 62/2013, em conjugação com os artigos 60 (1), 64 e 66, do CPC, é da competência dos juízos centrais cíveis a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000,00.

3)Sem prejuízo das regras especiais aplicáveis e da existência de uma categoria específica no Citius para este tipo de ações, de acordo com o artigo 12 (2), da aludida lei 83/95, a ação popular civil, tal como é a presente, pode revestir de qualquer uma das formas previstas no CPC.

4)Por sua vez, o artigo 546 (1), do CPC, determina que o processo pode seguir a forma comum ou especial, sendo que que o processo especial se aplica aos casos expressamente designados na lei; o processo comum é aplicável a todos os casos a que não corresponda processo especial [cf. artigo 546 (2), do CPC].

5)Ora, no presente processo, não se aplica nenhuma das formas previstas nos artigos 878 e seguintes, do CPC, pelo que não estamos perante uma forma de processo civil especial.

6) Deve deve a presente acção seguir a forma comum, porquanto o CPC se aplica subsidiariamente (portanto em tudo que não lhe for contrário) à lei 83/95.

7) Por conseguinte, o Tribunal Judicial da Comarca do..., Juízo Central Cível ..., é materialmente competente para prosseguir com a acção.

8) Mas caso assim não se entenda, deverá ser decretada a remessa do processo ao tribunal em que a ação deveria ter sido proposta, uma vez que nem houve contestação, aproveitando-se os articulados já produzidos [cf. artigo 99 (2), do CPC].

1.4. – O Ministério Público contra-alegou no sentido de que, tratando-se de uma acção de responsabilidade civil por factos ilícitos, tal como configurada pela Autora, com o valor de €60.000,00 (art.303, nº3 do CPC), a acção deve prosseguir no Juízo Central Cível.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. Problematiza-se no recurso a questão de saber da competência material para conhecer da presente acção popular civil: se cabe à instância central da Comarca do ... (tese da Autora e do Ministério Público) ou à instância local da Comarca do ... (tese do despacho recorrido), sendo este o objecto da revista.

2.2. A Lei nº 62/2013 de 26/8 (Lei Orgânica do Sistema Judiciário (LOSJ)) estabelece as normas de enquadramento e organização do sistema judiciário, sendo que determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca (art.40 nº2).

Com efeito, os tribunais de comarca desdobram-se em juízos, que podem ser de competência genérica, especializada e de proximidade (art.81).

O art.117 nº1 a) determina que compete aos juízos centrais cíveis a preparação e julgamento de acções declarativas de processo comum de valor superior a € 50.000,00.

O art.130 nº1 preceitua que “os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida no decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada”

A competência, enquanto medida de jurisdição de cada tribunal (no caso a cada juízo em que se desdobra a Comarca) que o legitima para conhecer de determinado litígio, como pressuposto processual, afere-se nos termos em que a acção é proposta (pedido e causa de pedir), ou seja pela relação jurídica tal como o autor a configura.

Daqui resulta que a competência dos juízos em que se desdobram os tribunais de comarca é analisada por critérios de atribuição positiva e de competência residual e as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais, sendo que na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização que permite reservar para certas categorias de tribunais o conhecimento de determinadas causas, atendendo à especificidade das matérias.

Verifica-se que o art.117 nº1 a) delimita a competência pela forma/tipo de processo – acções declarativas cíveis de processo comum – e pelo seu valor – valor superior a € 50 000; sendo atribuída pelo art.130 a competência residual às instâncias locais cíveis.

A Autora instaurou a presente acção popular civil, a que se aplica a Lei nº 83/95 de 31/8.

Como configurou a suas pretensões, trata-se de acção declarativa de condenação (art.10 nº1, 2, 3 b) CPC).

O art.12 nº2 preceitua – “A acção popular civil pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil”.

Como o processo é a forma na qual se realiza a acção e a jurisdição parece dever-se interpretar como remetendo a norma para as formas do processo, sendo que a mesma forma de processo pode cobrir diversos tipos de providências (acções de condenação, constitutivas ou de simples apreciação).

E o Código de Processo Civil prevê (art.546 CPC) duas formas para o processo civil – a forma comum e a forma especial.

O processo especial “aplica-se aos casos expressamente designados na lei” e o processo comum é aplicável a todos os casos a que não corresponda processo especial (art.546 nº2). O processo comum de declaração segue a forma única (art.548).

Por conseguinte, o processo comum é o processo regra e o processo especial a excepção. Como diz Antunes Varela, “os processos especiais constituem formas excepcionais, visto só serem aplicáveis aos casos expressamente previstos na lei, sendo o processo comum a forma adjectiva arvorada em regra pelo sistema (a que considera aplicável a todos os casos – indiscriminadamente referidos – a que não corresponda processo especial” (Manual de Processo Civil, 1984, pág.64).

A solução adoptada no despacho recorrido não merece acolhimento, pelo que deve ser rejeitada.

Em primeiro lugar, a Lei nº 83/95 de 31/8, em parte alguma determina expressamente que a acção popular civil segue a forma de processo especial.

Depois, a circunstância de prever a prática de determinados actos que se desviam da normal tramitação da forma comum ( cf. arts.2, 3, 12, 17 ) não é decisiva para tal, pois se assim fosse não faria sentido a regra do art.12 nº2. Na verdade, se a lei diz que a acção “pode revestir qualquer das formas”, não se pode logicamente afirmar que consagra expressamente a forma do processo especial.

Acresce que a razão pela qual o legislador criou os processos especiais foi a necessidade de adaptar a estrutura do processo à natureza do direito substantivo e daí a variedade heterogénea de processos especiais, tanto os previstos no Código de Processo Civil, como em leis avulsas.

Ora, sendo esta a ratio, a tutela jurisdicional efectiva exercitada na acção popular não está colimada a uma singular pretensão, ao exercício de um só direito substantivo, a justificar um processo especial, porque o espectro normativo da Lei nº 83/95 é muito abrangente, como plasmado no art. 1, ou seja, o direito de acção popular pode ser exercido para “a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição” e são “designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público”.

Aqui chegados, podemos, então, afirmar que, segundo o critério do fundamento jurídico da pretensão, a concreta acção popular civil pode seguir a forma de processo comum ou forma de processo especial consoante a específica pretensão deduzida em juízo.

Como se sabe, a adequação do meio processual não depende do mérito, mas da pretensão deduzida, tal como a configura a Autora, e que aqui (em face do objecto do processo) reveste a forma de processo comum e foi esta a indicada pela Autora ao referir “acção declarativa popular de condenação, sob a forma única de processo”, sabido que o processo comum de declaração segue a forma única ( art.548 ).

Dado que juízo de aferição da competência material se faz a partir do binómio forma de processo /valor da acção, sendo a forma adequada a do processo comum e o valor de € 60.000,00, é competente a Instância Central Cível, o Juízo Central Cível ....

Procede a revista, com a revogação da decisão impugnada.

2.3. Síntese conclusiva

A Lei nº 83/95 de 31/8 não consagra para a acção popular cível a forma de processo especial.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decidem:

1)


Julgar procedente a revista e revogar a decisão recorrida, declarando-se o Juízo Central Cível ... materialmente competente.

2)


Sem custas (art.4 nº1 b) RCP).


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 16 de Novembro de 2023.

Jorge Arcanjo (Relator)

António Magalhães

Manuel Aguiar Pereira