COMPETÊNCIA MATERIAL
UNIÃO DE FACTO
RECONHECIMENTO
AQUISIÇÃO DA NACIONALIDADE
TRIBUNAL DE FAMÍLIA E MENORES
JUÍZO CÍVEL
TRIBUNAL DE COMPETÊNCIA GENÉRICA
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Sumário


I - A lei da nacionalidade ao referir-se, no n.º 3 do artigo 3.º, a tribunal “cível”, deve ser entendida como uma norma remissiva para as regras que definem a competência material dos tribunais judiciais, aceitando os critérios de especialização da jurisdição cível.
II - Cabendo à competência dos juízos cíveis e dos juízos de competência genérica todas as causas que não sejam legalmente atribuídas a juízo especializado, é de concluir que, estando as ações relativas aos requisitos e efeitos da união de facto legalmente atribuídas a juízo especializado, como o é o Juízo de Família e Menores, por força do artigo 122.º, n.º 1, alínea g) da LOSJ, também será este Juízo especializado em matéria cível competente para julgar as ações de reconhecimento de união de facto para o efeito de aquisição da nacionalidade por um dos companheiros que seja cidadão estrangeiro.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

IRelatório

1. AA e BB propuseram ação declarativa comum contra o Estado Português no Juízo Local Cível de ..., da comarca do Porto, pedindo que se reconheça que vivem desde 1997 em condições análogas às dos cônjuges com vida e economia em comum, reconhecendo-se por isso a sua união de facto desde aquela data.

Alegam para tal um conjunto de factualidade tendente a demonstrar tal situação, uma vez que o seu reconhecimento judicial é requisito legal para a autora BB poder obter a nacionalidade portuguesa [já que, conforme se dispõe no artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade (Lei 37/81 de 3 de outubro, na sua redação mais recente, que é a introduzida pela Lei Orgânica nº2/2020 de 10/11) “O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível”].

2. O Ministério Público, em representação do Estado, deduziu contestação, impugnando por desconhecimento os factos alegados pelos autores no sentido da sua pretensão e defendendo a final que a ação venha a ser julgada conforme for de direito e de acordo com a prova que vier a ser produzida.

3. Após os articulados, a Juíza do Tribunal de 1.ª instância proferiu despacho a ordenar a notificação das partes para se pronunciarem acerca da incompetência material daquele Juízo Cível para preparar e julgar a ação, por, no entendimento que ali esboçou, tal competência caber ao Juízo de Família e Menores, nos termos da alínea g) do nº1 do artigo 122.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

Cada uma das partes defendeu que aquele Juízo é o materialmente competente para a ação.

4. Seguidamente, pela Juíza do tribunal de 1.ª instância foi proferido despacho no qual considerou ocorrer incompetência absoluta do tribunal onde a ação foi proposta, por via de infração das regras de competência em razão da matéria e, nessa conformidade, absolveu o Réu da instância.

5. É o seguinte o teor de tal decisão (transcrita no Relatório do acórdão recorrido):

«Os presentes autos de ação de processo comum visam o reconhecimento da situação de união de facto dos Autores desde há mais de três anos – desde 1997 –, com todas as consequências legais.

A ação foi instaurada ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81, de 3 de outubro), que dispõe da seguinte forma: O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.

Foi cumprido o contraditório relativamente à competência material deste Juízo Local Cível para o julgamento da presente ação e ambas as partes se pronunciaram no sentido da sua competência.

Cumpre apreciar e decidir.

A competência do tribunal, fixada com referência à data da propositura da ação, é aferida em função dos termos em que a ação é proposta, seja quanto aos seus elementos objetivos (pedido e causa de pedir), seja quanto aos seus elementos subjetivos (partes) – cfr. acórdão do STJ de 22.10.2015, proc. 678/11.0TBABT.E1.S1, disponível no sítio da internet da dgsi.

Os artigos 64.º do Código de Processo Civil, 80.º, n.º 1, 81.º e 130.º, n.º 1, alínea a) da LOSJ (Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto) enunciam o critério geral de orientação para a solução do problema da determinação do tribunal competente em razão da matéria, segundo o qual aos tribunais de comarca – desdobrados em juízos centrais e locais – compete julgar os processos não abrangidos pela competência de outros tribunais, competindo aos juízos de competência genérica da instância local preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outro juízo da instância central ou tribunal de competência territorial alargada.

Por seu turno, estipula o artigo 122.º, n.º 1, alínea g) da mesma Lei, que compete aos juízos de família e menores preparar e julgar, para além das ações descritas nas restantes alíneas, outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.

Somos de entendimento que esta alínea pretende abranger toda e qualquer ação que se relacione com as situações casamento, união de facto ou economia comum.

A união de facto consubstancia uma das formas juridicamente admissíveis de constituição de família (cfr. Lei n.º 7/2001, de 11 de maio).

Ora, visando o pedido formulado nos autos o reconhecimento de uma situação juridicamente relevante em termos de constituição de vínculo familiar, são os Juízos de Família e Menores os competentes para dele conhecer, nos termos da citada alínea g), do n.º 1 do artigo 122.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

Embora tendo presente a divergência jurisprudencial nesta matéria, não concordamos com a leitura feita nos acórdãos citados pela Digna Magistrada do Ministério Público, por entendermos que se focam numa interpretação literal do preceito (cuja redação terá procurado afastar a possibilidade de se entender que a competência pertencia aos tribunais administrativos), desvalorizando as alterações legislativas posteriores ao nível da organização dos tribunais judiciais.

Defendemos já esta posição em processo anterior, suscitando, na sequência, conflito negativo de competência, que veio a ser decidido no Tribunal da Relação do Porto no sentido da atribuição da competência a Juízo de Família e Menores.

Veja-se, no mesmo sentido, os seguintes acórdãos: acórdão do TRC de 08.10.2019 proferido no processo n.º 2998/19.6T8CBR.C1; acórdão do TRC de 23.06.2020, proferido no processo n.º 610/20.0T8CBR-B.C1; acórdão do TRL de 11.12.2018, proferido no processo n.º 590/18.1T8CSC.L1-6; acórdão do TRL de 30.06.2020, proferido no processo n.º 23445/19.8T8LSB.L1-7, todos disponíveis no sítio da internet da dgsi.

Posto isto, a infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal (artigo 96.º do Código de Processo Civil).

Esta incompetência constitui uma exceção dilatória insanável, de conhecimento oficioso e que pode ser suscitada em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa (artigos 96.º, 97.º, n.º1 e 98.º, todos do Código de Processo Civil).

Tendo havido já citação, a verificação da incompetência absoluta importa a absolvição do Réu da instância, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 99.º, n.º 1 e 590.º, n.º 1, este a contrario sensu, ambos do Código de Processo Civil.

Pelo exposto e ao abrigo dos citados normativos legais, declaro este Juízo Local Cível de ... do Tribunal Judicial da Comarca do Porto incompetente em razão da matéria para preparar e julgar a presente ação, cabendo tal competência ao Juízo de Família e Menores de ... desta Comarca do Porto e, em consequência, absolvo o Réu ESTADO PORTUGUÊS da instância».

6. De tal decisão vieram os Autores e o Ministério Público interpor recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente o recurso e confirmado a decisão do tribunal de 1.ª instância.

7. Inconformado, veio o Ministério Público interpor recurso de revista excecional, ao abrigo do artigo 672.º, n.º 1, al. c), do CPC, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:

«1) O Acórdão recorrido deste TRPorto, de 27/03/2023, está em contradição com outro desse Supremo Tribunal de Justiça – Acórdão fundamento, datado de 17/06/2021, transitado em julgado - no domínio da mesma legislação, sobre a mesma questão fundamental de direito, com igual identidade, sem que tenha sido proferido Acórdão de uniformização de jurisprudência.

2) O Acórdão recorrido merece ser expurgado da ordem jurídica, por ter feito inadequada interpretação e aplicação do disposto no Artº. 3º. Nº. 3 da Lei da Nacionalidade, aprovada pela Lei Nº. 37/8.

3) Nele foi decidido que a expressão “tribunal cível”, a que nele se alude no contexto da actual orgânica judiciária tem de ser entendida como sendo o “Juízo de Família e Menores” por integrar um tribunal com competência especializada cível, conforme a estatuição da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da Lei nº. 62/2013, de 26/8 - Lei de Organização do Sistema Judiciário - com competência material para reconhecimento da situação de união de facto em ordem a ulterior aquisição de nacionalidade.

4) No Acórdão fundamento, o Supremo Tribunal de Justiça, em oposição ao ali decidido, negou aos tribunais de família e menores a competência material para julgar tais acções.

5) Na divergência dos arestos foram determinadas soluções jurídicas que contêm elementos que as identifiquem como «questões» passíveis de apreciação jurídica idêntica, por ter ocorrido interpretação diferenciada da norma a que se alude no nº. 3 do artº. 3º. da Lei 37/81.

6) À Lei da Nacionalidade - Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro decorrente da alteração introduzida pela Lei Orgânica Nº. 2/2006 e suas sucessivas alterações, foi conferido o valor de Lei Orgânica, o que lhe concede uma relevância constitucionalmente reforçada.

7) O seu artº. 3º. Nº. 3 foi introduzido pela Lei Orgânica n.º 2/2006, que pela 5ª. vez alterou a Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro e, desde a sua entrada em vigor, até ao presente, sem qualquer outra alteração, com manutenção do mesmo tipo de política legislativa.

8) Apesar da natureza específica desta norma, a atribuição da competência material aí prevista, o segmento tribunal cível, tendo em consideração a actual Lei Nº. 62/2013, que aprovou a Lei Orgânica do Sistema Judiciário, não pode ser entendido como sendo o Juízo de Família e Menores.

9) Deverá ser proferido acórdão que proclame, neste caso concreto, a essencialidade do douto aresto fundamento, em revogação da decisão aqui proferida e que se lhe opõe.

10) Há necessidade de emissão de pronúncia esclarecedora por parte desse Supremo Tribunal de Justiça.

11) Decidindo, como decidiu, este Tribunal “a quo” violou o disposto nos artº.s 3º. Nº. 3 da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro, na redacção da Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17/04, e, 122.º n.º 1 alínea g) da Lei nº. 62/2013, de 26/8 - Lei de Organização do Sistema Judiciário.

Nestes termos e nos mais de direito aplicável, deve ser concedido provimento ao presente recurso, tal como o que nele se impetra, para resolução do presente conflito jurisprudencial, de contradição de acórdãos, nos termos e para os efeitos do artº. 672º. nº 1 al. c) do C.P.C.

Contudo, V. Exas. farão como sempre, inteira e sã

JUSTIÇA».

8. O recurso foi recebido no Tribunal da Relação do Porto como revista excecional, mas o Relator, no Supremo Tribunal de Justiça, admitiu-o como revista geral, por se tratar de um caso em que é sempre admissível recurso, conforme a alínea a) do n.º 2 do artigo 629º do CPC, na medida em que o fundamento do recurso reside na violação das regras de competência em razão da matéria.

9. A questão a decidir respeita às regras de competência em razão da matéria, ou seja, trata-se de saber se a ação em que vem pedido que se reconheça que os autores vivem desde 1997 em condições análogas às dos cônjuges deve ser tramitada no juízo cível ou no juízo de família e menores.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. As instâncias decidiram que o tribunal competente para conhecer da causa – o reconhecimento de uma união de facto entre um cidadão de nacionalidade portuguesa e uma cidadã de nacionalidade brasileira para o efeito de aquisição da nacionalidade portuguesa por esta última – era o juízo de família e menores e não o juízo cível.

Fundamentaram a sua decisão no artigo 122.º, n.º1, al. g), Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, tendo o acórdão recorrido sumariado a seguinte orientação:

«I – O objectivo da norma constante do nº3 do art. 3º da Lei da Nacionalidade (Lei 37/81 de 3 de Outubro) – onde se prevê que “O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível” – foi apenas o de obstar a que estas acções ficassem sob a égide da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, sendo certo que, inexistindo à data norma semelhante à da alínea g) do artigo 122.º da LOSJ, a indicação dos Tribunais Cíveis era a que se justificava, por ser a que decorria da Lei que regulava essa matéria.

II – Referindo-se aquela norma a “tribunal cível” e sendo de considerar que na actual orgânica judiciária o Juízo de Família e Menores integra um tribunal com competência especializada cível, abrangendo esta na alínea g) do nº1 do art. 122º da LOSJ as acções relativas à família, é de concluir que para a acção de reconhecimento judicial da união de facto para aquisição da nacionalidade portuguesa é competente o Juízo de Família e Menores.

III – Efectivamente, ao referir-se ali a tribunal “cível”, a lei não se está com certeza a referir a um tribunal com “cível” na sua estrita designação legal (pela respectiva lei de organização judiciária) mas sim ao tribunal que, tramitando e decidindo questões de natureza cível, seja, dentro da orgânica judiciária, o competente».

Vem o Ministério Público pugnar no recurso de revista para que seja revogado o acórdão recorrido e julgado competente para a decisão da causa o Juízo Local Cível, baseando a sua posição, no pedido e na causa de pedir da presente ação e bem assim no elemento literal que resulta do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, o qual remete para o “tribunal cível”.

Invoca para sustentar a sua tese o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 17-06-2021, proferido no processo n.º 286/20.4T8VCD.P1.S1. Este Acórdão fundamentou a decisão no elemento histórico de interpretação e, ainda, no princípio segundo o qual, a lei especial – o artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade – revoga a lei geral consagrada na Lei Orgânica do Sistema Judiciário, nos termos que a seguir se transcrevem:

«No entanto, com a aprovação da LOSJ, pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, a qual passou a definir as normas de enquadramento e organização do sistema judiciário português, na nova distribuição de competências dos tribunais judiciais, a competência para julgar este tipo de ações passou a ser dos tribunais de família e menores, devido ao aditamento da nova competência constante da alínea g), do n.º 1, do artigo 122.º da LOSJ - as ações relativas ao estado civil das pessoas e família.

Contudo, mantendo-se na Lei da Nacionalidade a atribuição de competência específica, constante do artigo 3.º, n.º 3 – o estrangeiro que à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível – e sendo esta norma, uma norma especial, ela não foi tacitamente revogada pela alteração que ocorreu na distribuição de competências pela lei geral de enquadramento e organização do sistema judiciário.

Assim sendo, o disposto no referido artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade mantém-se vigente e aplicável, definindo uma competência específica dos tribunais, em razão da matéria, para o julgamento das ações de reconhecimento das situações de união de facto, com duração superior a três anos, como requisito de aquisição da nacionalidade portuguesa, por declaração, passando a constituir uma exceção às novas regras gerais da distribuição de competências dos tribunais judiciais entretanto aprovadas.

Ora, dispondo este preceito, especificamente, que a competência pertence aos tribunais cíveis, não é possível aplicar a regra geral constante do artigo 122.º, n.º 1, g), da LOSJ, e considerar competente os juízos de família e menores, uma vez que o disposto numa norma especial prevalece sobre uma norma geral».

No sentido do Acórdão fundamento, concluindo que «Os Juízes Cíveis são competentes para apreciar e julgar um pedido de reconhecimento judicial da uma situação de união de facto com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa», foi proferido outro Acórdão do Supremo, em 22-06-2023 (processo n.º 3193/22.2T8VFX.L1.S1), ambos da 2.ª Secção, baseando-se em argumentação idêntica.

2. Vejamos:

A Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, que introduziu alterações à Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, conhecida pela Lei da Nacionalidade, aditando um n.º 3 ao artigo 3.º, passou a permitir que o estrangeiro que viva em união de facto há mais de três anos com nacional português, possa adquirir a nacionalidade portuguesa, mediante declaração, desde que essa situação esteja reconhecida em ação própria. Este mesmo preceito dispõe que tal ação de reconhecimento da situação de união de facto com uma duração superior a três anos deve ser interposta no tribunal cível.

O artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade (na redação da Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17/04), dispõe o seguinte:

«3 - O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível».

Por sua vez, o artigo 14.º do Regulamento da Lei da Nacionalidade (DL n.º 237-A/2006, de 14/12, alterado pelo DL n.º 26/2022, de 18/03), sob a epígrafe, Aquisição em caso de casamento ou união de facto mediante declaração de vontade, dispõe, para o que aqui releva:

«1 - O estrangeiro casado há mais de três anos com português, se, na constância do matrimónio, quiser adquirir a nacionalidade, deve declará-lo.

2 - O estrangeiro que coabite há mais de três anos com português em condições análogas às dos cônjuges, independentemente do sexo, se quiser adquirir a nacionalidade deve declará-lo, desde que tenha previamente obtido o reconhecimento judicial da situação de união de facto.

3 - A declaração prevista no n.º 1 é instruída com certidão do assento de casamento e com certidão do assento de nascimento do cônjuge português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º

4 - No caso previsto no n.º 2, a declaração é instruída com certidão da sentença judicial, com certidão do assento de nascimento do cidadão português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º, e com declaração deste, prestada há menos de três meses, que confirme a manutenção da união de facto.

5 – A declaração prevista na parte final do número anterior pode:

a) Ser prestada presencial e verbalmente na Conservatória dos Registos Centrais, nas extensões desta conservatória, e, ainda, nas conservatórias do registo civil ou nos serviços consulares portugueses, sendo neste caso vertida em auto, sempre que possível em suporte eletrónico; ou

b) Constar de documento assinado pelo membro da união de facto que seja português, contendo a indicação do número, data e entidade emitente do respetivo cartão de cidadão ou bilhete de identidade».

Por seu lado, afirma o artigo 122.º, n.º 1, al. g), da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, doravante LOSJ), sob a epígrafe «Competência relativa ao estado civil das pessoas e família»,

1 - Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar:

(…)

g) Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.

3. O acórdão recorrido sustenta que é a LOSJ a sede própria para o legislador proceder à delimitação da competência material e não a lei da nacionalidade, entendendo que «(…) não faria sentido o legislador atribuir a juízos de natureza diversa a competência material para preparar e julgar acções de reconhecimento da existência de uma situação de união de facto propostas consoante tivessem por finalidade adquirir a nacionalidade portuguesa ou outra qualquer finalidade, sendo certo que estas últimas sempre cairiam no âmbito de aplicação do artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da LOSJ».

Entende o acórdão recorrido, e bem, que o objetivo da norma do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, foi apenas o de obstar a que estas ações ficassem sob a égide da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, sendo certo que, inexistindo à data norma semelhante à da alínea g) do artigo 122.º da LOSJ, a indicação dos Tribunais Cíveis era a que se justificava, por ser a que decorria da Lei que regulava essa matéria.

4. A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 36.º, n.º 1, ao consagrar, a par do direito a contrair casamento, o direito a constituir família, revela abertura à pluralidade e diversidade de relações familiares, tutelando as uniões de facto, com ou sem filhos (Rui Medeiros, “Anotação ao artigo 36.º da Constituição”, in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Volume I, Universidade Católica Editora, 2017, pp. 590-592). Esta norma constitucional deve ser interpretada de acordo com os artigos 16.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 12.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e 9.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União, tendo em conta, em particular, a nota explicativa oficial deste artigo 9.º, que afirma que se pretendeu “abranger os casos em que as legislações nacionais reconhecem outras formas de constituir família além do casamento”.

A união de facto ou comunhão de vida análoga à dos cônjuges constitui, pois, uma relação jurídica semelhante à das pessoas casadas, regulada na Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, e à qual tem sido atribuída natureza familiar (cfr. Guilherme de Oliveira, Manual de Direito da Família, Almedina, Coimbra, 2020, pp. 41-42, Maria Clara Sottomayor, “Anotação ao artigo 1576.º do Código Civil”, in Código Civil Anotado, Livro IV, Direito da Família, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, pp. 13-14; Maria Margarida Silva Pereira, Direito da Família, 2.ª edição revista e actualizada, AAFDL, Lisboa, 2018, pp. 38-39; Jorge Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, 5.ª edição, Almedina, 2016, p. 17), cabendo, portanto, na cláusula prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º que refere «Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família».

A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), ainda que não equipare os efeitos da união de facto aos do casamento, considera que estamos perante “vida familiar” protegida pelo artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) contra a ingerência do Estado (cfr., entre outros, Case of Van der Heijden v. The Netherlands, 03-04-2012, Application n.º 42857/05), incluindo as uniões de facto no conceito de família, devendo a al. g) do n.º 1 do artigo 122.º ser interpretada no mesmo sentido.

Como se tem entendido na jurisprudência das Relações, que atribuem aos juízos de Família a competência para conhecer a questão suscitada nestes autos, o legislador, ao se reportar ao “estado civil das pessoas e família” (cfr. artigo 122.º, n.º 1, al. g), da LOSJ), terá pretendido abranger, em toda a sua amplitude, o contexto da vida familiar, não se restringido aos laços formais decorrentes do casamento. O preceito abrange, assim, todos os tipos de relacionamentos previstos e regulados na Lei n.º 7/2001, não fazendo sentido distinguir o tribunal competente em razão da matéria consoante estejamos perante ações de reconhecimento da união de facto que visam a aquisição da nacionalidade e as que têm por objeto a regulação dos efeitos conferidos pela Lei n.º 7/2001.

5. Os Tribunais da Relação têm divergido na decisão de questão semelhante à dos autos, conforme jurisprudência enumerada pelo acórdão recorrido e pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16.12.2021 (Processo n.º 12142/20). Assim, segundo este acórdão, de entre as decisões dos Tribunais da Relação que atribuíram competência material aos juízos de família e menores encontram-se os seguintes acórdãos:

«- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09-09-2021 (Pº 2394/20.2T8PTM-A.E1, rel. SEQUINHO DOS SANTOS): “Os juízos de família e menores são materialmente competentes para preparar e julgar as acções em que seja pedido o reconhecimento da existência de uma situação de união de facto tendo em vista a aquisição da nacionalidade portuguesa”;

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-04-2021 (Pº 12397/20.1T8PRT.P1, rel. MENDES COELHO): “A Constituição não admite a redução do conceito de família à união conjugal baseada no casamento, isto é, à família “matrimonializada”; constitucionalmente, o casal nascido da união de facto juridicamente protegida também é família; O Juízo de Família e Menores, face à previsão da alínea g) do nº1 do art. 122º da LOSJ, é o materialmente competente para a preparação e julgamento de uma acção em que é pedido o reconhecimento da existência de união de facto”.

- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-12-2020 (Pº 379/20.8T8MFR.L1-7, rel. MICAELA SOUSA): “I – Para a determinação da competência material do Tribunal importa relevar a natureza da relação jurídica material apresentada em juízo, a ser aferida em função dos termos em que a acção se encontra proposta, ou seja, pela consideração dos elementos subjectivos (identidade das partes) e dos elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se reclama a tutela judiciária, o acto ou o facto de onde terá dimanado esse direito e a qualificação dos bens em disputa). II – A expressão estado civil constante da alínea g) do n.º1 do artigo 122º da Lei da Organização do Sistema Judiciário deve ser considerada por referência ao seu significado na linguagem corrente, aludindo a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, nela se abrangendo toda e qualquer acção que se relacione com essas situações. III – A união de facto assume actualmente uma aceitação social como entidade familiar, que não é colocada em crise e encontra justificação na protecção da família, enquanto realidade emergente de uma “efectividade de laços interpessoais”, conforme a interpretação e densificação do conceito efectuada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a propósito do artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”;

- Decisão sumária do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-07-2020 (Pº 160/20.4T8FIG.C1, Des. VÍTOR AMARAL): “É o “conceito de família alargada”, fruto da evolução recente das condições sócio-familiares, incluindo as relações de união de facto, que deve operar na interpretação do disposto no art.º 122.º, n.º 1, al.ª g), da LOSJ, que prevê a competência dos juízos de família e menores para preparar e julgar “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família”. Tais juízos de família e menores são competentes, em razão da matéria, para uma ação declarativa cível em que é pedido o reconhecimento judicial de união de facto duradoura, mesmo se o fim visado se prende apenas com a obtenção da nacionalidade portuguesa para um dos membros da alegada união de facto”;

- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30-06-2020 (Pº 23445/19.8T8LSB.L1-7, rel. JOSÉ CAPACETE): “O conceito de família não é estanque, antes se mostrando recetivo a fenómenos que pela sua evidência social mereçam o seu abrigo. A união de facto atingiu uma proeminência tal que a sua aceitação social como entidade familiar não pode já ser posta em causa, sobretudo a partir do momento em que, nos termos do n.º 1 do art. 36.º da CRP, passou a beneficiar de proteção constitucional, devendo, por isso, ser considerada uma relação familiar, apesar de não constar do elenco das fontes jurídico-familiares do art. 1576.º, do Código Civil. Por conseguinte, os Juízos de Família e Menores são os materialmente competentes para a preparação e julgamento de uma ação em que é pedido o reconhecimento da união de facto”;

- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23-06-2020 (Pº 610/20.0T8CBR-B.C1, rel. FONTE RAMOS): “A competência material do tribunal afere-se em função dos termos em que o autor fundamenta ou estrutura a pretensão que quer ver reconhecida e da natureza das normas que disciplinam a relação jurídica que está na base do litígio. As soluções plasmadas pelo legislador desde a Reforma de 1977 (DL n.º 496/77, de 25.11) até ao presente foram no sentido da tendencial e progressiva equiparação, para diversos efeitos, entre as situações próprias do vínculo conjugal e as decorrentes da união de facto, com a efectiva protecção dos agregados familiares constituídos fora das normas do casamento. A união de facto é legalmente reconhecida como uma relação jurídica familiar, ligada ao estado civil das pessoas, pelo que, materialmente, a acção de reconhecimento judicial da união de facto insere-se na competência do Juízo de Família e Menores, conforme a previsão da alínea g) do n.º 1 do art.º 122º da LOSJ (aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.8) - «Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar (…) outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.»”;

- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 31-03-2020 (Pº 136/20.1T8CBR.C1, rel. LUÍS CRAVO): “A ação intentada com vista à obtenção do reconhecimento judicial da situação de união de facto, nos termos e para efeitos dos nos 2 e 4, do art. 14º, do DL nº 237-A/2006, de 14 de Dezembro [“REGULAMENTO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA”], integra a previsão do art. 122º, nº1, al.g), da “LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO” [Lei nº 62/2013 de 26 de Agosto - LOSJ]. É que, ao aludir a referida al.g) do nº 1 do art. 122º da LOSJ, a acções relativas ao “estado civil” das pessoas, o legislador utilizou tal expressão - na sua acepção mais restrita - atendendo ao seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, mas sempre com o sentido e desiderato de abranger toda e qualquer acção que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida”;

- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08-10-2019 (Pº 2998/19.6T8CBR.C1, rel. LUÍS CRAVO): “A ação intentada com vista à obtenção do reconhecimento judicial da situação de união de facto, nos termos e para efeitos dos nos 2 e 4, do art. 14º, do DL nº 237-A/2006, de 14 de Dezembro [“REGULAMENTO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA” ], integra a previsão do art. 122º, nº1, al.g), da “LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO” [Lei nº 62/2013 de 26 de Agosto - LOSJ]. É que, ao aludir a referida al.g) do nº 1 do art. 122º da LOSJ, a acções relativas ao “estado civil” das pessoas, o legislador utilizou tal expressão - na sua acepção mais restrita - atendendo ao seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, mas sempre com o sentido e desiderato de abranger toda e qualquer acção que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida”;

- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-12-2018 (Pº 590/18.1T8CSC.L1-6, rel. ANTÓNIO SANTOS): “A acção intentada com vista à obtenção do reconhecimento judicial da situação de união de facto , nos termos e para efeitos dos nºs 2 e 4, do artº 14º, do DL n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro [ REGULAMENTO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA ], integra a previsão do artº 122º,nº1, alínea g), da LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO; É que, ao aludir a referida alínea g) do nº 1 do art. 122º da Lei 62/2013, a acções relativas ao estado civil das pessoas, o legislador utilizou tal expressão - na sua acepção mais restrita - atendendo ao seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, e , com o sentido e desiderato de abranger toda e qualquer acção que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida”.»

Em sentido contrário a esta jurisprudência, decidiu-se no acima citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16-12-2021 (proc. n.º 12142/20.1T8LSB.L1-2), que «É o juízo local cível – e não o juízo de família e menores - o tribunal competente, em razão da matéria, para apreciar e decidir das ações de reconhecimento judicial da situação de união de facto, para aquisição de nacionalidade portuguesa, a que se referem o artigo 3.º, n.º 3, da lei n.º 37/81, de 3 de outubro e o artigo 14.º, n.ºs. 2 e 4, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa (aprovado pelo DL n.º 237-A/2006, de 14 de dezembro»). Neste Acórdão cita-se outro no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25-10-2018 (Pº 25835/17.1T8LSB.L1-6), onde se decidiu que a “acção para reconhecimento da situação da união de facto, só pode ter como sujeito passivo o Estado Português e, a própria norma (artº 3º nº 3 da Lei da Nacionalidade) estabelece que a competência para a acção é do tribunal cível”.

No Acórdão recorrido referem-se ainda no sentido da competência dos tribunais cíveis, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16-12-2021 (proc. n.º 787/20.4T8MTJ.L1-2), de 23/6/2022 (proc. n.º 2380/21.5T8VFX.L1-6), de 7/7/2022 (proc. n.º 258/22.4T8FNC.L1-2), de 29/9/2022 (proc. 1832/21.1T8CSC.L1-6), de 27/10/2022 (proc. n.º 14919/21.1T8LSB.L1-2), com voto de vencido; e o Acórdão da Relação do Porto de 22/3/2022 (proc. n.º 34/22.4T8PRD.P1), todos eles disponíveis em www.dgsi.pt].

No mesmo sentido, o recente Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27-04-2023 (proc. n.º 10313/22.5T8LSB.L1-6), onde se sumariou o seguinte: « 4.1. - O nº 3, do artº 3º, da LEI DA NACIONALIDADE consubstancia – em sede de atribuição de competência material para a propositura de especifica acção – para todos os efeitos, uma lei especial. 4.2. Em face do referido em 4.1., a LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO ( maxime a alínea g),do nº 1, do art. 122º ) não é aquela que releva em sede de aferição da competência material para a propositura de acção com vista à obtenção do reconhecimento judicial de situação de união de facto – para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa por cidadão estrangeiro ; 4.3. – O referido em 4.2. justifica-se também porque o legislador, no âmbito da LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO , enquanto Lei geral, não manifestou a sua intenção revogatória de uma forma inequívoca ( artº 7º, nº 3. , do CC )».

6. Na jurisprudência que reconhece competência aos tribunais cíveis e não aos juízos de família, em regra, não aparece questionada a natureza jurídica familiar ou não da união de facto. A argumentação baseia-se, para além da letra da lei, em elementos históricos inferidos da circunstância de o legislador não ter alterado o artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, aquando da elaboração da LOSJ (Lei n.º 62/2013), nem aquando das sucessivas alterações à Lei da Nacionalidade. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-06-2021, invocado pelo recorrente como acórdão fundamento, deduz deste silêncio do legislador uma vontade legislativa de continuidade na competência dos tribunais civis para o reconhecimento da união de facto, quando está em causa a aquisição da nacionalidade portuguesa por um cidadão estrangeiro.

7. Na época em que foi aprovada a Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril, estava em vigor a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de janeiro e nesta lei não existia qualquer norma semelhante à cláusula da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ. A competência para o julgamento das ações de reconhecimento da união de facto, qualquer que fosse o seu objeto, cabia a um tribunal cível. Entre os tribunais de competência especializada contavam-se os tribunais de família (artigo 78.º, b), da LOFTJ), que tinham a competência atribuída nos artigos 81.º e 82.º da LOFTJ, a qual não incluía as ações de reconhecimento da união de facto.

A circunstância de não existir à data da entrada em vigor da Lei da Nacionalidade (Lei Orgânica n.º 2/2006), a norma do artigo 122.º, n.º 1, al. g), da LOSJ, nem nenhuma outra que atribuísse aos tribunais de família a competência para julgar as ações de reconhecimento de união de facto, explica que o artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, tivesse atribuído a competência ao tribunal cível, sem referência aos tribunais de competência especializada dentro da categoria mais ampla dos tribunais cíveis. A razão de ser desta disposição terá sido, tão-só, afastar a resolução desta questão dos tribunais administrativos e fiscais, que, à luz do artigo 26.º da mesma lei, que remetia para legislação administrativa, seriam os competentes. Ou seja, a intenção do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade foi estabelecer um critério em razão da matéria que operasse no plano da contraposição dos tribunais judiciais aos outros tribunais (artigo 64.º do CPC), e não a de excluir, dentro da categoria dos tribunais judiciais, os juízos especializados que viessem a ser competentes no termos da LOSJ. Como sublinha Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4.ª edição, 2018, pp. 166-167), com o Decreto-Lei n.º 329-A/95, a lei processual deixou de estabelecer a competência residual do tribunal judicial comum e a coincidência deste com o tribunal civil, bem como a plenitude, em 1.ª instância, da jurisdição civil do tribunal de comarca, passando a remeter para a lei de organização judiciária (artigo 65.º do CPC), que determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada (artigo 40.º, n.º 2, da LOSJ). Os juízos de competência especializada dos tribunais de comarca encontram-se enumerados no artigo 81.º, n.º 3, da LOSJ, sendo os juízos de família e de menores tratados autonomamente nos artigos 122.º a 125.º da LOSJ.

O facto de o legislador não ter alterado o n.º 3 do artigo 3.º da Lei Orgânica n.º 2/2006, para a adaptar o preceito à Lei n.º 62/2013 (LOSJ), quando procedeu a variadas alterações à lei da nacionalidade (Lei n.º 8/2015, de 22 de junho, Lei n.º 29/2015, de 29 de julho, Lei n.º 2/2018, de 5 de julho, e Lei n.º 2/2020, de 10 de novembro), não significa necessariamente, como se entende no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22-06-2023 (processo n.º 3193/22.2T8VFX.L1.S1), uma vontade legislativa de manter a solução do n.º 3 do artigo 3.º, afastando os juízos de competência especializada. Afigura-se, antes, que este silêncio do legislador não é significativo, traduzindo somente um lapso ou uma uma inércia do legislador que não teve presente, nas leis que alteraram a Lei Orgânica n.º 2/2006, a necessidade de adequar a regra de competência prevista no n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade à competência dos Juízos de Família prevista na al. g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ. Com efeito, as questões então discutidas e cuja regulação foi alterada foram as seguintes: a fixação de novos fundamentos para a concessão da nacionalidade por naturalização e de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa (Lei n.º 8/2015); a extensão da nacionalidade portuguesa originária aos netos de portugueses nascidos no estrangeiro (Lei n.º 29/2015); alarga o acesso à nacionalidade originária e à naturalização às pessoas nascidas em território português (Lei n.º 2/2018 e Lei n.º 2/2020). Não é crível que o legislador tivesse querido, mantendo a norma do artigo 3.º, n.º 3, num contexto em que se discutiam outras questões, como novos fundamentos para a concessão da nacionalidade e o alargamento da nacionalidade portuguesa originária, excluir da jurisdição especializada da Família o conhecimento da união de facto para o efeito da aquisição de nacionalidade por cidadão estrangeiro.

8. O princípio segundo o qual a lei especial prevalece sobre a lei geral, aplicado pelo Acórdão fundamento, consiste num princípio de resolução de conflitos entre normas incompatíveis entre si, que se baseia em presunções interpretativas ilidíveis (cfr. Manuel Fontaine, “Anotação ao artigo 7.º do Código Civil”, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, p. 40). Ou seja, a classificação de uma norma como lei especial não é um critério absoluto para determinar a sua prevalência sobre a lei geral. É necessário estabelecer uma presunção interpretativa nesse sentido, que não possa ser ilidida pela prova de uma intenção legislativa contrária. Ora, é o próprio Acórdão fundamento que reconhece que a lei especial, que atribui aos tribunais cíveis a competência para conhecer a prova da união de facto, quando conexionada com um pedido de aquisição da nacionalidade portuguesa para um dos seus membros, visou afastar a competência dos tribunais administrativos e fiscais. É esta intenção legislativa que permite demonstrar que a solução plasmada na norma especial não é sequer incompatível com a solução da al. g) do artigo 122 da LOSJ e que não a exclui ou afasta. As duas normas não se opõem entre si, constituindo, pelo contrário, normas complementares, devendo ser aplicadas conjuntamente.

9. A norma do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, deve ser entendida como uma norma remissiva para as regras que definem a competência material dos tribunais judiciais, aceitando os critérios de especialização da jurisdição cível. Não se trata de uma remissão estática, que obrigue o intérprete, atendo-se ao elemento literal, a ignorar as alterações legislativas posteriores, que atribuíram o reconhecimento da união de facto à competência dos juízos de família e de menores na LOSJ/2013. Trata-se antes de uma remissão dinâmica, que recebe as alterações legislativas posteriores, decisivas para fixar o sentido da expressão “tribunal cível” como uma categoria ampla que abrange os juízos especializados, in casu, os juízos de família. Esta é a solução que promove o elemento teleológico de interpretação e a unidade do sistema jurídico.

10. Assim, não é relevante o argumento segundo o qual o artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade não foi revogado expressamente pela LOSJ, pois a unidade do sistema jurídico (argumento sistemático) impõe que o preceito da lei da nacionalidade seja entendido à luz das regras introduzidas pela LOSJ, para as quais remete implicitamente.

A Lei da Nacionalidade não constitui a sede legal própria para delimitar a competência material dos juízos dos tribunais judiciais, circunstância que deve levar o intérprete a concluir que, ao mencionar o “tribunal cível” no artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, o legislador não pretendeu regular de forma exaustiva a questão da competência em razão da matéria, mas apenas, como vimos, afastar a competência da jurisdição administrativa.

11. Inferir o sentido da norma exclusivamente dos elementos literal e histórico de interpretação conduz a uma rigidez desadaptada da finalidade das normas que atribuem competência em razão da matéria.

Importa, pois, ponderar, para além dos argumentos gramatical (a letra ou o texto da lei) e do elemento histórico, os elementos racional e sistemático de interpretação, decisivos para fixar o sentido com que uma norma deve valer, nos termos do artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil, que determina que «A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada».

12. A razão de ser das normas atributivas de competência material reside na necessidade de a causa ser decidida por tribunais dotados de conhecimentos e formação para as mesmas, promovendo a qualidade das decisões. É esta a finalidade da afetação das questões da família, incluindo o reconhecimento da união de facto, a tribunais de competência especializada. Era esta a razão de ser do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, quando a Lei Orgânica n.º 2/2006 decidiu atribuir a competência aos tribunais cíveis, na falta de uma norma, à época, semelhante ao o atual artigo 122.º, n.º 1, al. g) da LOSJ.

O elemento sistemático, visando a realização da unidade e coerência do sistema jurídico, concorre no mesmo sentido.

Assim, estes dois cânones hermenêuticos – o elemento racional de interpretação, que abrange a finalidade da norma, e o argumento sistemático decorrente da unidade do sistema jurídico – implicam, a nosso ver, que a competência material para o reconhecimento das uniões de facto com o objetivo de aquisição da nacionalidade – seja atribuída aos tribunais de competência especializada dentro da jurisdição cível – os juízos de família e de menores.

A manutenção da competência dos tribunais cíveis para as ações respeitantes ao reconhecimento da união de facto para o efeito da aquisição da nacionalidade significa uma sobrevalorização do elemento literal, que é contrariada pelos argumentos teleológico e sistemático de interpretação. Na verdade, não se descortina qual a razão que levaria o legislador a pretender excluir as ações de reconhecimento da união de facto, para aquisição da nacionalidade, dos tribunais de competência especializada. O elemento histórico de interpretação, sempre frágil como argumento, não explica esta solução. Não se vislumbra, nem a jurisprudência oposta à que adotamos o indica, qual o pensamento legislativo suscetível de justificar a manutenção da competência dos tribunais cíveis para o reconhecimento das uniões de facto para o efeito de aquisição da nacionalidade. Teria que se conjeturar, para fundamentar este “pensamento legislativo” vontade legislativa, uma qualquer racionalidade, que aqui não se descortina. A suposta vontade histórica do legislador, deduzida pelo Acórdão fundamento da circunstância de as alterações à lei da nacionalidade terem mantido em vigor o artigo 3.º, n.º 3, não tendo sido manifestada, por escrito, em trabalhos preparatórios, não passa de um conjetura insuficiente para afastar a competência dos Juízos de Família.

Por outro lado, o argumento sistemático, que postula a coerência do ordenamento jurídico, exige que, sendo a norma do n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade, uma norma atributiva de competência em razão da matéria, seja interpretada de acordo com a lógica que preside à delimitação da competência dentro dos tribunais judiciais, atendendo à especialização em função da natureza das questões.

13. Os requisitos da união de facto estão fixados na Lei n.º 7/2001, de 11 de maio. Conflitos em torno do reconhecimento da união de facto em casos de rutura e/ou quanto aos efeitos da mesma têm dado lugar a processos judiciais que correm termos nos tribunais de família para apurar não só a existência ou inexistência de união de facto, mas também os seus efeitos: a divisão de bens aquando da rutura, adjudicação da casa de morada de família ou transmissão do arrendamento da mesma em caso de separação ou de morte, obrigação de alimentos da herança do falecido, etc. Assim, argumentos de lógica e de unidade do sistema jurídico impõem que a competência para as ações em que se pede o reconhecimento da união de facto, tendo em vista a aquisição da nacionalidade por um dos seus membros, seja atribuída àqueles tribunais, que, por terem a natureza de tribunais de competência especializada, estão mais apetrechados e preparados para proceder à análise da prova apresentada.

14. A nacionalidade constitui um vínculo jurídico-político que expressa uma ligação entre um determinado indivíduo e uma dada nação que fundamentará a atribuição de um determinado conjunto de direitos e deveres de cidadania (cfr. Paulo Manuel Costa, “Oposição à aquisição da nacionalidade: A inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional”, in Contencioso da Nacionalidade, 2.ª ed., CEJ, 2017, p. 45, disponível em: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_Nacionalidade_2ed.pdf). Afastada a competência dos tribunais administrativos para o reconhecimento da união de facto, que visa a aquisição da nacionalidade por cidadão estrangeiro, nenhuma razão existe para interpretar de forma literal o artigo 3.º, n.º 3, da Lei da nacionalidade, e excluir a competência dos juízos especializados. Pelo contrário, o interesse público em combater a possibilidade de estarmos perante uma união de facto simulada unicamente com o objetivo de permitir a um cidadão estrangeiro a aquisição da nacionalidade portuguesa fica mais protegido se os tribunais competentes para julgar a causa tiverem mais experiência em analisar a prova. Ora, é indiscutível que são os juízos de família que estão mais preparados para este efeito.

15. Conclui-se, pois, que a lei da nacionalidade ao referir-se a tribunal “cível” está a referir-se ao tribunal que tramita e decide questões de natureza cível dentro da orgânica judiciária. Ora, prevendo a LOSJ que a competência material é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual (artigo 130º, nº1) e cabendo à competência dos juízos cíveis e dos juízos de competência genérica todas as causas que não sejam legalmente atribuídas a juízo especializado, é de concluir que, estando a causa (por via da referida alínea g) do nº1 do artigo 122º) legalmente atribuída a juízo especializado, como o é o Juízo de Família e Menores, surge este Juízo especializado em matéria cível como competente para a julgar.

16. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC:

I - A lei da nacionalidade ao referir-se, no n.º 3 do artigo 3.º, a tribunal “cível”, deve ser entendida como uma norma remissiva para as regras que definem a competência material dos tribunais judiciais, aceitando os critérios de especialização da jurisdição cível.

II - Cabendo à competência dos juízos cíveis e dos juízos de competência genérica todas as causas que não sejam legalmente atribuídas a juízo especializado, é de concluir que, estando as ações relativas aos requisitos e efeitos da união de facto legalmente atribuídas a juízo especializado, como o é o Juízo de Família e Menores, por força do artigo 122.º, n.º 1, alínea g) da LOSJ, também será este Juízo especializado em matéria cível competente para julgar as ações de reconhecimento de união de facto para o efeito de aquisição da nacionalidade por um dos companheiros que seja cidadão estrangeiro.

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 16 de novembro de 2023

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Jorge Arcanjo (1.º Adjunto)

António Magalhães (2.º Adjunto)