CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA GRAVE
MEDIDA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
VALOR DA INDEMNIZAÇÃO
Sumário

I – No caso em apreço, o arguido (e qualquer pessoa colocada na sua posição) sabia que um copo de vidro arremessado da forma que foi ao pescoço do assistente era idóneo a rasgar. como rasgou, o pescoço deste; qualquer pessoa sabe que um golpe no pescoço é idóneo a causar a morte (o que, na verdade, apenas não ocorreu por factos alheios à vontade do arguido); assim, a factualidade provada subsume-se ao preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo do artigo 144.º do Código Penal.
II – No caso em apreço, a tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e a ressocialização do agente apenas ficarão acauteladas com uma pena privativa da liberdade.
III – Considerando a globalidade dos danos causados (desfiguração, risco para a vida, incapacidade e período de recuperação) com a atuação do arguido, é, neste caso, ajustada uma indemnização no montante de €20.000,00.

Texto Integral

Proc. n.º 11379/17.5T9PRT.P1 - Juízo Central Criminal do Porto


Relator Paulo Costa
Adjuntos Maria do Rosário Silva Martins
Castela Rio





Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito do Processo Comum coletivo n.º 11379/17.5T9PRT, a correr termos no Juízo Central Criminal do Porto foi decidido:
«A) Absolver o arguido AA da prática de um crime de um crime de ameaça agravada, p. e p., pelo artigo 153º, nº 1 e 155º al a), ambos do Código Penal.
B) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de ofensa á integridade física grave, p. e p. pelo artigo 144º, al. d), com referência ao artigo 143º, nº1, ambos do Código Penal (absolvendo-se das restantes alíneas), na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
C) Condena-se, ainda, o arguido no pagamento das custas processuais, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça devida.
D) Outrossim, julga-se parcialmente provado o pedido de indemnização formulado por BB, condenando o arguido AA pagar-lhe a quantia de €20.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros moratórios, à taxa legal, desde a data do presente acórdão até efectivo e integral pagamento.
Custas na proporção do respectivo decaimento.»

*
Inconformado, o arguido interpôs recurso, solicitando a revogação do acórdão proferido.
Apresenta nesse sentido as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«A. p. e p. pelo artigo 144º, al. d), com referência ao artigo 143º, nº1, ambos do Código Penal (absolvendo-se das restantes alíneas), na pena de 4 (quatro) anos de prisão;
B. Bem como no pagamento de indemnização, a BB, na quantia de €20.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros moratórios, à taxa legal, desde a data do presente acórdão até efectivo e integral pagamento.
C. Tal decisão, quanto à matéria de facto, padece de incorrecções de julgamento e insuficiência, atentos os meios probatórios constantes do processo, que impunham decisão diferente.
D. Consta dos autos depoimentos que apontam para a atitude provocatória e agressiva do ofendido face a um comentário leviano sobre o seu modo de condução.
E. Nomeadamente o depoimento da ex-companheira do ofendido CC.
F. Nem as testemunhas nem os intervenientes nas agressões referem ter o arguido de forma intencional lesionado com um corte o pescoço do ofendido.
G. O arguido mostrou-se arrependido e sempre afirmou que nunca tinha tido essa intenção.
H. O arguido descreve o movimento de um “gancho” para desferir o murro no ofendido e não um movimento de “espetar” o copo que tinha na mão no pescoço do ofendido.
I. O Mmo. Tribunal a quo, alicerçando-se em factos que nunca foram relatados por nenhum dos presentes, conclui, contra as regras da experiência comum que invoca, que a laceração do pescoço do ofendido foi propositada e querida pelo arguido.
J. Não levando em conta a agressividade do ofendido, a discrepância de alturas e constituição física que colocou o arguido em posição de inferioridade,
K. Nem o facto de que o arguido, sendo mais baixo desfere um murro no ofendido tentando acertar-lhe na cara e acaba por lhe acertar mais abaixo, no pescoço.
L. A análise crítica da prova, impõe a revogação da decisão de facto atinente, no seguinte sentido:
M. Os pontos 2, 3, 4, 5, 6 e 15 da matéria de facto provada devem ser alterados com a seguinte redacção:
2 – Ao parar o mesmo, e quando se encontrava já a sair da viatura, apercebeu- se que junto à porta do referido café se encontrava um grupo de, pelo menos 5 indivíduos, e onde se incluía o arguido AA, o qual nesse momento dirigiu palavras não concretamente determinadas ao ofendido, sobre o modo de condução do veiculo, tendo este retorquido “estás a falar comigo?”, e começando a caminhar na direcção do referido grupo, atravessando a rua para o efeito
3 – O arguido, respondeu afirmativamente, sendo que caminhou igualmente na direcção do ofendido sem no entanto sair do passeio onde se encontrava com um copo de vidro na mão direita, a beber com uns amigos.
4 – No momento em que se encontraram frente a frente, o arguido, que tinha na mão um copo de vidro, num movimento de “gancho” lateral, desferiu um murro com a mão direita contra o corpo do ofendido vindo a acertá-lo no pescoço, sendo que o copo se partiu de imediato, lacerando-lhe o pescoço.
5 - Após o arguido e ofendido continuaram, sem nunca caírem ao chão, a agredir-se mutuamente com vários socos, até que se sentiu desfalecer, altura em que os indivíduos que se encontravam com o arguido, e que até ai não tinham intervindo, o agarraram e retiraram dali, ficando naquele local o ofendido, já a perder bastante sangue, tendo sido socorrido por populares.
6 - O arguido ao sair do local afirmou “vou buscar uma 38”,
15 - O ofendido derivado das cicatrizes que lhe foram causadas pelas agressões do arguido. não se sente confortável.
Sente dores e perdeu mobilidade no braço esquerdo.
N. Os pontos 10, 11 e 12 da matéria de facto provada devem passar para a matéria de facto não provada com a seguinte redacção:
10 - O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de molestar a integridade física do ofendido e de lhe provocar dor e lesões corporais, como efectivamente provocou.
11 - O arguido quis causar, como causou, no ofendido, as lesões supra descritas, sabendo que o copo de vidro que utilizou e partiu contra o pescoço do ofendido, por ser instrumento cortante, era um meio especialmente perigoso e idóneo a provocar lesões de tal modo graves que causariam perigo para a vida e podendo mesmo inclusive provocar a morte.
12 - Actuou o arguido de forma deliberada, livre e conscientemente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
O. De acordo com a prova, suficiente e credível que decorre dos autos, deveria a decisão final ter concluído pela condenação A matéria de facto elencada na douta sentença à quo não corresponde àquela que foi efectivamente vertida em sessão de julgamento o que levou a uma distorção da realidade factual com repercussões na aplicação do direito
P. Tal desvio da realidade factual traduziu-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei.
Q. Ao contrário do vertido no douto acórdão em crise, no caso em apreço, não resultou apurado que arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente,
R. Nem com o propósito concretizado de molestar a integridade física do ofendido e de lhe provocar dor e lesões corporais, que acabaram por ocorrer, pois nunca quis causar, como causou, no ofendido, as lesões supra descritas,
S. Não tendo sequer consciência ao desferir o murro que tinha o copo de vidro que se partiu contra o pescoço do ofendido, não tendo nunca querido provocar ao ofendido, lesões de tal modo graves que causariam perigo para a vida e podendo mesmo inclusive provocar a morte.
T. Não actuou o arguido de forma deliberada, livre e conscientemente nem nunca quis o resultado que se veio a verificar.
U. Resultando assim, inequívoco que não se dá o preenchimento do elemento subjectivo do crime previsto no art. 144º d) do CP
V. No limite, poderíamos falar aqui de negligência por poder ser, eventualmente, exigível ao arguido que se lembrasse que tinha um copo na mão, mesmo sem nunca ter figurado o resultado que veio a ocorrer.
W. Não fora esta circunstância, estaríamos apenas a falar de um crime de ofensas corporais simples, entre dois contendentes, com agressões e provocações mútuas.
X. Existindo prova suficiente e credível nos autos sobre a realidade dos factos que levam à aplicação do disposto nos art. 14º, 15º, 18º, 32º, 143º, 144º e 147º do Código Penal impunha necessariamente uma decisão diversa.
Y. A qual seria a de condenar o arguido em pena não privativa de liberdade dado o facto de ter este acabado de cumprir pena de prisão efectiva no passado mês de Setembro, por crime cometido em 2018, posterior ao aqui em causa
Z. Com o cumprimento desta pena teve já o arguido oportunidade de reflectir sobre a sua actuação, reconhecendo o desvalor da sua conduta e interiorizando os valores de respeito pelo outro e pelas regras da sociedade e da Lei.
AA. A douta sentença em crise, evidencia erro manifesto e notório que fere o senso comum, devendo ser considerada a condenação de 4 anos de prisão efectiva aplicada ao arguido para como desproporcional face aos factos que resultaram da audiência de julgamento.
BB. Da mesma forma, a condenação no pagamento da quantia de 20.000,00€ pelo arguido ao ofendido é manifestamente exagerada face aos incómodos descritos quer pelo ofendido quer pela sua irmã.
Termos em que deve a douta sentença em crise ser revogada e substituída por outra nos termos acima expostos, assim se fazendo JUSTIÇA »
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O ofendido respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da sentença recorrida, sintetizando a sua posição nas seguintes conclusões (transcrição):
«A) A sentença proferida foi, quer na parte criminal quer na parte respeitante ao pedido de indemnização civil, justa e equilibrada.
B) Foram tidas em consideração na sentença proferida, as provas produzidas em julgamento e naturalmente os antecedentes criminais do arguido.
C) Foi igualmente tido em conta pelo Tribunal o relatório pericial elaborado de onde resulta claro as reais lesões provocadas pelo Arguido ao Assistente, bem como o facto de com a sua conduta o ter colocado em perigo de vida.
D) Encontrando-se os pressupostos da condenação preenchidos e tendo a douta decisão feito boa interpretação fáctica e justa aplicação da lei, deverá a douta decisão ser mantida e assim feita Justiça..»
*

O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da sentença recorrida, sintetizando a sua posição nas seguintes conclusões (transcrição):
« IV - CONCLUSÕES
1. Inconformado com o douto acórdão condenatório, veio o arguido interpor o presente recurso, impugnando a matéria de facto, porquanto a prova produzida impunha decisão diversa e a decisão do Tribunal foi contrária às regras da experiência. Discorda, ainda, da qualificação jurídica dos factos, da medida da pena, da decisão de não suspensão, bem como do montante de indemnização atribuído.
2. Como sabemos, a livre convicção do julgador é um princípio atinente à prova que determina que a apreciação desta se faça de acordo com as regras da lógica, psicologia e com as máximas da experiência comum. Claro que a livre convicção nunca poderá ser arbitrária, discricionária ou subjectiva, impendendo sobre o julgador o dever se a motivar e fundamentar, ou seja, explicar o caminho lógico-dedutivo que seguiu.
3. No caso em apreço, o arguido assumiu quase a globalidade dos factos, explicando que desferiu um movimento em gancho com um copo de vidro na mão, em direcção ao pescoço do assistente. No entanto, justificou a sua actuação pelo facto de o assistente lhe ter desferido uma cabeçada.
4. Da prova produzida, não temos dúvida de que a dinâmica dos factos ocorreu tal como foi dado como provado pelo Tribunal. Não existindo qualquer facto que permita sustentar qualquer “legítima defesa”.
5. Na verdade, é perfeitamente conforme às regras da experiência que o arguido, após ter “mandado uma bocas” ao assistente (cujas características corporais o intimidaram por ser mais alto e mais largo), por causa da condução deste, ao tê-lo visto vir na sua direcção “tirar satisfações”, tenha reagido de imediato, aplicando-lhe um golpe em gancho, no pescoço, com o copo de vidro que tinha na mão. O que nada tem que ver com uma situação de legítima defesa (nem de excesso dos meios empregados em legítima defesa)!
6. A alegada atitude provocatória que o recorrente invoca no seu recurso existiu na medida em que o Tribunal dado como provado: “que após o arguido ter proferido qualquer expressão alusiva à condução do veículo pelo assistente, este retorquiu “estás a falar comigo?”, e começando a caminhar na direcção do referido grupo”. Tal facto foi corroborado pela testemunha CC.
7. O depoimento ensaiado de DD não mereceu a nossa credibilidade nem a do Tribunal, como bem está fundamentado no douto acórdão. Toda a restante factualidade assente teve por base quer as declarações do assistente, quer os restantes elementos de prova (periciais e documentais juntos).
8. Insurge-se o recorrente em relação à inexistência de prova do elemento subjectivo do crime pelo qual veio a ser condenado. Mas será que alguém que desfere uma pancada, em gancho, com um copo de vidro na mão, no pescoço de outrem, não admite como muito provável que o copo poderá partir-se e os estilhaços do copo poderão rasgar, como rasgaram, o pescoço do ofendido??
Obviamente que admite!
9. E tal prova, salvo o devido respeito, não se faz por testemunhas, como parece fazer crer o recorrente no ponto F das suas conclusões. É perfeitamente irrelevante o facto de “nem as testemunhas nem os intervenientes nas agressões terem referido que o arguido agiu de forma intencional lesionado com um corte o pescoço do ofendido”, para se dar como provado o elemento
subjectivo do tipo.
10. A prova aponta de forma indubitável no sentido de que o arguido quis deferir uma pancada com o copo na mão e tinha plena consciência, como não poderia deixar de ter, das consequências da sua actuação.
11. Deste modo, a única desconformidade às regras da experiência é a tese recursiva do recorrente!
12. O raciocínio do Tribunal é lógico, explicou de forma clara o motivo pelo qual descredibilizou a testemunha DD e assentou a sua convicção na globalidade da prova produzida, tomando todas as inferências de acordo com as regras da experiência e da normalidade. Deste modo, considerando a globalidade da prova produzida, não há qualquer erro de julgamento, nem qualquer violação do princípio da livre convicção.
13. Não há qualquer elemento factual que permita o enquadramento dos factos em qualquer causa que exclua a ilicitude ou a culpa, nomeadamente, legítima defesa (nem excesso de legítima defesa, cuja norma sequer foi invocada, mas foi suscitada a meio das alegações recursivas).
14. Invoca o recorrente que estar-se-á perante um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143.º do Código Penal, agravado pelo resultado nos termos do disposto no art. 147.º, n.º 2 do mesmo diploma
15. Não temos dúvidas que o arguido (e qualquer pessoa colocada na sua posição) sabia que um copo de vidro arremessado da forma que foi ao pescoço do assistente era idóneo a rasgar como rasgou o pescoço do assistente. Qualquer pessoa sabe que um golpe no pescoço é idóneo a causar a morte. O que apenas não ocorreu por factos alheios à vontade do arguido.
16. Assim, a factualidade em apreço apenas se subsume ao preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo do art. 144.º do Código Penal.
17. Invoca o recorrente que a pena é excessiva e desproporcional. Discordamos.
Ora, o crime é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos. A censura éticojurídica ao comportamento do arguido é muito elevada. O arguido atentou contra a integridade física do assistente, revelando indiferença sobre as consequências da sua actuação: que poderia mesmo ser a morte do agente, que apenas não ocorreu por factos alheios à vontade do recorrente. O arguido tinha vários antecedentes criminais, pela prática de crimes contra as pessoas e infelizmente, casos como o dos autos passaram a ser uma constante nos últimos tempos. A comunidade não aceita nem se conforma com uma pena inferior à que foi aplicada pelo Tribunal, sob pena de colocar-se irremediavelmente em causa as expectativas comunitárias na vigência contrafáctica da norma. Assim, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos, não podemos aceitar uma pena inferior à aplicada pelo Tribunal.
18. Conforme sustenta o recorrente, é facto que o arguido acabou de cumprir pena em Setembro, altura em que foi colocado em liberdade. No entanto, tal não é bastante para se concluir pela ressocialização do agente e entender que o arguido interiorizou o desvalor da sua acção.
19. Note-se. Nos presentes, o arguido não confessou os factos e não demonstrou qualquer arrependimento pelos seus actos. Apresentou dificuldades no cumprimento do normativo institucional e condutas desadequadas que culminaram em processos disciplinares no cumprimento da última pena de prisão. Em liberdade, e mesmo sabendo da pendência destes autos, não cuidou de procurar emprego, nem de se inserir profissional e socialmente. Além de não procurar activamente emprego, também não cuidou de se deslocar ao SEF para regularizar a sua situação de permanência em Portugal. Vive sustentado pela mãe.
20. O arguido, nascido a .../.../1987, conta com um extenso CRC com factos praticados desde 2005. Portanto a única realidade de vida que conhece é a da senda do crime. Como pode o Tribunal formular um juízo de prognose favorável quando é o próprio recorrente que nada faz para endireitar a sua vida?
21. Aqui chegados, concluímos que a tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e a ressocialização do agente apenas ficará acautelada com uma pena privativa da liberdade, pois nada o faz agir em conformidade com o direito e dever ser ético jurídico.
22. Nada a apontar ao montante indemnizatório fixado pelo Tribunal de €20.000,00, porquanto além dos incómodos referidos pelo recorrente, o Tribunal ainda tomou em consideração todas as lesões descritas nos relatórios periciais e restantes elementos documentais (atente-se nos 672 dias para a consolidação médico-legal), e atendeu a critérios de equidade para atribuir a indemnização em apreço.
23. Por todo o exposto, bem andou o Tribunal a quo ao condenar o arguido numa pena privativa da liberdade, não merecendo qualquer reparo o acórdão ora colocado em crise.
Nestes termos e nos demais de direito, deverá o presente recurso ser julgado improcedente e, em consequência, manter-se a decisão recorrida, assim se fazendo JUSTIÇA!.»
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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer onde acolheu a posição assumida pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido, pugnando, assim, pela improcedência do recurso e pela manutenção da sentença recorrida.
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Notificado nos termos do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, recorrente e recorrido não apresentaram resposta.
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Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.
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II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:
1. Impugnação da matéria de facto (pontos 2, 3, 4, 5, 6, 10 11, 12 e 15 da matéria de facto provada) sustentando que as provas impunham decisão diversa da recorrida, porquanto existiu atitude provocatória do assistente e ninguém referiu ter havido intenção de o arguido provocar a lesão nos termos em que provocou;
2. Conclui que a decisão do Tribunal é contrária às regras da experiência;
3. Não resultou provado que o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, nem que tenha querido provocar ao assistente, lesões de tal modo graves que causariam perigo para a vida;
4. Verificação dos elementos típicos do disposto no art. 144.º, al. d) do CP, sendo, no limite, uma situação de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º do CP, agravada pelo resultado nos termos do disposto no art. 147.º do mesmo diploma.
5. Medida da pena aplicada, entendendo que a mesma é desproporcional e que uma pena não privativa da liberdade satisfaz as necessidades de prevenção que no caso se fazem sentir.
6. Pagamento da quantia de €20.000,00 a título de indemnização cível é manifestamente exagerado em face dos incómodos causados.
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Para análise das questões que importa apreciar releva desde logo a factualidade subjacente e razões da sua fixação, sendo do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respectiva motivação constantes da sentença recorrida (transcrição):
2.1. Os factos provados (apenas se incluindo os factos com interesse e relevância para a decisão da causa)
1 - No dia 20 de agosto de 2017, cerca das 21.00 horas, o ofendido BB, pretendendo encontrar-se com a sua ex-companheira e a filha menor no café A... sito na Rua ..., nesta cidade e comarca, para ali se dirigiu de veículo automóvel.
2 – Ao parar o mesmo, e quando se encontrava já a sair da viatura, apercebeu-se que junto à porta do referido café se encontrava um grupo de, pelo menos 5 indivíduos, e onde se incluía o arguido AA, o qual nesse momento dirigiu palavras não concretamente determinadas ao ofendido, sobre o modo de condução do veículo, tendo este retorquido “estás a falar comigo?”, e começando a caminhar na direcção do referido grupo.
3 – O arguido, respondeu afirmativamente, sendo que caminhou igualmente na direcção do ofendido.
4 – No momento em que se encontraram frente a frente, e sem que nada o fizesse prever, o arguido, que tinha na mão um copo de vidro, num movimento de “gancho” lateral, direcionou a referida mão, como se um murro se tratasse, mas sempre sem largar o copo, contra o pescoço do BB, sendo que o copo se partiu de imediato, dada a força com que o atingiu, lacerando-lhe o pescoço.
5 - Após o arguido continuou dando-lhe vários socos na face, retorquindo o ofendido igualmente com socos, até que se sentiu desfalecer, altura em que os indivíduos que se encontravam com o arguido, e que até ai não tinham intervindo, o agarraram e retiraram dali, ficando naquele local o ofendido, já a perder bastante sangue, tendo sido socorrido por populares.
6 - O arguido ao sair do local afirmou “vou buscar uma 38”, e de forma repentina entrou num veículo de marca ... e arrancou bruscamente, enquanto o ofendido ali ficou, à espera da uma ambulância do INEM.
7 - Entretanto o arguido voltou ao local e tentou abeirar-se do ofendido com intenção de lhe voltar a agredir, enquanto exprimia as expressões “vou-te matar”, ao que foi impedido pela irmã do arguido EE, que para ali se dirigiu, e outra pessoa não concretamente identificada.
8 - Com a conduta descrita o arguido provocou dores no corpo e na saúde do ofendido BB, causando-lhe as lesões indicadas de fls. 153 a fls. 156, nomeadamente:
“Face: cicatriz nacarada, coberta por barba, com edema ligeiro subjacente, localizada na região lateral à comissura labial à esquerda, com 2 cm de comprimento por 0,5 cm de largura. Lesão suturada, localizada no pavilhão auricular esquerdo, com 2,5 cm de comprimento
Pescoço: complexo cicatricial extenso, ramificado em três ramos que se estendem desde a região inframentoniana para face lateral esquerda de região cervical (terço superior, médio e inferior); as cicatrizes apresentam importante reação queloide (fazem saliência no plano de superfície dérmica) e encontram-se aderentes a planos subjacentes não sendo referidos como dolorosos ao toque; cada área cicatricial tem entre 3 cm e 4 cm de largura observando-se espaço livre de cicatriz na face lateral esquerda da região cervical. Mobilidade cervical comprometida no movimento de extensão e de rotação para a direita por diminuição da elasticidade dérmica pela presença da reação queloide cicatricial (esta reação está ainda a ser alvo de tratamento com corticoide injetável em ritmo anual).
Membro superior esquerdo: à inspeção observa-se infradesnivelamento de cintura escapular esquerda à custa de aparente falência ventre esquerdo de trapézio. Impotência funcional durante o movimento de abdução do ombro (movimento ativo) estando o movimento passivo conservado.”
9 - Da actuação do arguido resultou para o ofendido BB um traumatismo de natureza cortoperfurante o que é compatível com a informação.
Tais lesões terão determinado 672 dias para consolidação médico-legal com afectação da capacidade de trabalho geral de 90 dias e com a afectação de trabalho profissional de 180 dias.
Do evento resultaram as sequelas descritas no Estado actual considerando-se que as áreas cicatriciais de que o examinado é portador tem características desfigurantes.
Tendo em conta o quadro lesional que o examinado sofreu – área anatómica atingida, as importantes e vitais estruturas anatómicas atingidas assim como a necessidade de intervenção cirúrgica para correção das lesões - considera-se que o examinado esteve em perigo clinico para a vida (risco de morte), cfr documento de fls. 153 a fls. 156 cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
10 - O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de molestar a integridade física do ofendido e de lhe provocar dor e lesões corporais, como efectivamente provocou.
11 - O arguido quis causar, como causou, no ofendido, as lesões supra descritas, sabendo que o copo de vidro que utilizou e partiu contra o pescoço do ofendido, por ser instrumento cortante, era um meio especialmente perigoso e idóneo a provocar lesões de tal modo graves que causariam perigo para a vida e podendo mesmo inclusive provocar a morte.
12 - Actuou o arguido de forma deliberada, livre e conscientemente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Mais se provou que:
13 - Consta do seu relatório social que “AA é oriundo do Brasil, país onde permaneceu até aos 12 anos de idade, integrado no agregado familiar de origem, do qual faziam parte a progenitora, os avós maternos e uma tia materna. O arguido é fruto de um relacionamento ocasional dos progenitores, desconhecendo a identidade da figura paterna.
Quando a progenitora decidiu emigrar para Portugal o arguido permaneceu, durante um ano, aos cuidados da família materna, no Brasil, vindo posteriormente viver com a progenitora, altura em que esta já tinha adquirido alguma estabilidade em termos habitacionais e profissionais.
Em idade própria frequentou o sistema de ensino, completou o 5º ano no Brasil, retomando a escolaridade em Portugal, sem sucesso, alegadamente por dificuldades de adaptação e aprendizagem.
No que concerne ao seu processo educativo, este foi assumido maioritariamente pela progenitora, sendo numa fase inicial coadjuvada pelos seus familiares aqui residentes, assumindo uma postura educativa protetora e permissiva.
Por volta dos 16/17 anos de idade AA iniciou atividade profissional, no nosso país, como restaurador de móveis e, posteriormente, por um curto período de tempo, na construção civil, em Espanha.
Em 2000 o arguido estabeleceu relação de namoro com uma companheira, da qual tem um descendente, tendo cessado ao fim de três anos.
AA teve ligação com substâncias psicoativas, nomeadamente haxixe, assim como ingeria bebidas alcoólicas em excesso, problemática que associada aos seus primeiros confrontos com o sistema de administração da justiça.
A partir dos 17 anos o arguido teve vários confrontos com a justiça penal, tendo sido condenado em vários processos judiciais, pela prática de crimes de roubo, sequestro, resistência e coação a funcionário, ofensa à integridade física, violência doméstica, os quais vieram a determinar, na sua maioria, o cumprimento de penas de prisão.
Restituído à liberdade a 30 de setembro de 2011, o arguido foi viver novamente com a progenitora, mantendo-se profissionalmente inativo, com dificuldades acrescidas por não ter a sua situação de permanência no país regularizada junto do SEF.
AA estabeleceu nova relação afetiva de namoro, em 2012, tendo desta relação mais um descendente, atualmente com 9 anos de idade.
A progenitora do arguido constituiu novo agregado em 2017, tendo nesta sequência AA passado a viver sozinho, na morada constante dos autos.
A progenitora é proprietária de um atelier de costura e uma vez que o arguido permanecia em situação de desemprego, apesar de ainda ter estado um curto período de tempo a trabalhar na padaria do companheiro da progenitora, esta sempre lhe assegurou as despesas inerentes à manutenção da habitação.
À data dos factos o arguido residia na rua ..., Porto, na companhia da progenitora, atualmente AA reside sozinho, na morada constante nos autos, tratando-se de um apartamento tipologia 1, inserido numa zona central e mista da cidade do Porto, com comércio e habitação, onde não existe especial incidência de problemáticas sociais ou outras.
Desde a data da sua libertação, 10.09.2022, o arguido encontra-se inativo profissionalmente, refere que ainda esteve, informalmente, a ajudar um amigo durante dois meses, numa oficina de veículos automóveis, mas esta encerrou.
Assim a subsistência do arguido continua a ser assegurada pela progenitora, nomeadamente nas despesas inerentes à manutenção da habitação e alimentação.
Da informação do SEF, no passado mês de janeiro e confirmada atualmente, resulta que se encontra a decorrer o processo de afastamento coercivo (PAC) nº ..., processo suspenso uma vez que o arguido é pai de dois filhos de nacionalidade portuguesa, podendo assim solicitar a regularização da sua permanência em Portugal, sujeita a avaliação. Confrontado com esta situação AA refere que ainda não se deslocou ao SEF para regularizar a situação.
AA apresenta histórico criminal desde 2005, por variada tipologia criminal, sendo de referir que tem revelado dificuldades em cumprir com as obrigações determinadas nas respetivas decisões judiciais, designadamente nas medidas em execução na comunidade com acompanhamento destes serviços da DGRSP.
Em maio de 2021 o arguido deu entrada no Estabelecimento Prisional ..., no âmbito do processo 1632/18.6PIPRT do Juízo Central Criminal do Porto- Juiz2, no qual foi condenado na pena de 1 ano e 4 meses de prisão, pela prática do crime de ofensa à integridade física, saindo em liberdade no termo da pena em 10.09.2022. Registou durante o cumprimento da pena dificuldades no cumprimento do normativo institucional, apresentando condutas desadequadas que culminaram em processos disciplinares, tendo saído em termo de pena.
No contacto estabelecido com a vizinhança, aquando da deslocação domiciliária, a único andar que nos respondeu, escusou-se a prestar qualquer informação.
Este não é o primeiro confronto do arguido com sistema da administração da justiça, tendo sofrido condenações anteriores, por distintas tipologias criminais, que resultaram em cumprimento de penas na comunidade e de prisão.
Em abstrato e face à natureza dos factos subjacentes ao presente processo, verbaliza algum juízo de censurabilidade e de ilicitude, sendo capaz de identificar vítimas desta tipologia criminal.
Quando confrontado com uma eventual medida em execução na comunidade, o arguido mostra-se disponível, sendo, contudo, de referir as dificuldades pregressas que registou em termos de adesão e cumprimento do estipulado judicialmente.
O percurso desenvolvimental de AA decorreu até aos 12 anos no Brasil, país de onde é oriundo, altura em que passou a viver junto da progenitora, em Portugal.
Em termos escolares registou-se um desinvestimento face à frequência escolar, alegando dificuldades de adaptação, tendo apenas segundo refere ter concluído o 5º ano de escolaridade no Brasil.
Ao nível profissional o arguido regista curta experiência, a par do parco investimento, estando em situação de desemprego há vários anos, subsistindo assim a expensas da progenitora, sempre disponível a apoiá-lo monetariamente.
AA regista sucessivos confrontos com o sistema da justiça penal, que resultaram em condenações em medidas probatórias e de prisão.
Em caso de condenação, evidenciando assim falta de ressonância perante os anteriores contactos com o sistema da justiça penal, consideramos que deverão ser trabalhados com o arguido os fatores de vulnerabilidade que apresenta, designadamente o treino de competências pessoais e sociais em défice (nomeadamente a do pensamento consequencial), a concretização de um projeto de inserção laboral, que lhe permita autonomização financeira e estruturação do seu quotidiano e a necessidade de interiorizar o desvalor da sua conduta, por forma a reger, no futuro, o seu percurso vivencial de acordo com as normas sociais e jurídicas vigentes.
No entanto, a manter a parca adesão que tem revelado nas últimas e várias intervenções destes serviços da DGRSP, prognosticam-se constrangimentos.”
14 – O arguido foi já condenado:







Mais se provou que:
15 - O ofendido sente vergonha derivado das cicatrizes que lhe foram causadas pelas agressões do arguido.
Sente igualmente medo de sair à rua, com receio que algo de anormal lhe aconteça.
Sente dores e perdeu mobilidade no braço esquerdo.
2.2. Factos não provados:
Que o ofendido tenha, ao chegar junto do arguido, imediatamente agredido o arguido com uma cabeçada.
Que o ofendido, em virtude das agressões, tenha caído no chão.
Que logo a seguir à agressão perpetrada, o arguido estava ciente que o fazia em circunstâncias adequadas a lhe provocar medo e inquietação, desse modo lesando a sua paz individual e liberdade de autodeterminação, com receio que aquele concretizasse o que dizia e que tomou como sério, por o arguido ser agressivo, de que aquele a iria matar.
*
(…)

Da qualificação jurídica dos factos.
Entende o recorrente que a factualidade apenas integraria a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, entre dois contendentes, com agressões e provocações mútuas.
E, assim, apenas de subsumiria ao disposto nos artigos “art. 14º, 15º, 18º, 32º, 143º, 144º e 147º do Código Penal”.
Isto pressuporia a alteração fáctica nos termos pretendidos pelo recorrente, o que não acontece.
Desde logo, como vimos, não há qualquer elemento factual que permita o enquadramento dos factos em qualquer causa que exclua a ilicitude ou a culpa, nomeadamente, legítima defesa (nem excesso de legítima defesa, cuja norma sequer foi invocada, mas foi suscitada a meio das alegações recursivas).
Com efeito, inexiste qualquer agressão atual e ilícita por parte do assistente. Este limitou-se a abeirar-se do arguido que, mal o viu, desferiu o referido golpe.
Assente que está a inexistência de legítima defesa, também não há dúvidas de duas coisas:
1.º - o arguido molestou o corpo do assistente;
2.º - o assistente esteve em perigo de vida, conforme resulta do teor da prova pericial junta.
A eventual questão a decidir, que nem sequer foi devidamente colocada pelo recorrente, seria:
Estamos perante um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143.º do Código Penal, agravado pelo resultado nos termos do disposto no art. 147.º, n.º 2 do mesmo diploma? Ou estamos perante o crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelo art. 144.º do Código Penal?”
A factualidade assente apenas se subsume ao enquadramento típico do art. 144.º do Código Penal.
O arguido (e qualquer pessoa colocada na sua posição) sabia que um copo de vidro arremessado da forma que foi ao pescoço do assistente era idóneo a rasgar como rasgou o pescoço do assistente. Qualquer pessoa sabe que um golpe no pescoço é idóneo a causar a morte. O que, na verdade, apenas não ocorreu por factos alheios à vontade do arguido.
Assim, a factualidade apenas se subsume ao preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo do art. 144.º do Código Penal.
Bem andou o Tribunal ao subsumir a factualidade a este tipo legal.

Da medida da pena
Invoca o recorrente que a pena é excessiva e desproporcional.
Dispõe o art. 71.º do Código Penal que:
1- A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2- Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.
Nos termos do disposto no n.º 1 do art. 71.º, do Código Penal, a determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites definidos na lei (moldura abstrata), é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
De acordo citado artigo, o julgador terá de utilizar o binómio culpa e prevenção na determinação da medida da pena, sempre dentro dos limites mínimo e máximo definidos pela lei. Figueiredo Dias, in “As Consequências do Crime”, Editorial Notícias, 1993: “entendemos que, a medida da pena há-de ser dada fundamentalmente pela necessidade de tutela dos bens jurídicos em face do caso concreto. Entendemos que é a prevenção geral positiva de integração que fornece um “espaço de liberdade ou de indeterminação”, o qual abrange o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e o limiar mínimo em que tal tutela é ainda efectiva e consistentemente assegurada, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr em causa de uma forma irremediável a sua função tutelar.”
Segundo a teoria da moldura da prevenção de Figueiredo Dias, na fixação da medida da pena, movemo-nos entre o liminar mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena, sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar, e o ponto ótimo que é a proteção ótima do bem jurídico, cuja medida não poderá ser excedida.
A culpa funciona como fundamento ético da pena e como tal, o seu limite inultrapassável, nos termos o art. 40.º n.º 2 Código Penal.
Prevenção e culpa são os critérios gerais a atender na fixação da medida concreta da pena, refletindo a primeira a necessidade comunitária da punição do caso concreto e constituindo a segunda, dirigida ao agente do crime, o limite às exigências de prevenção e portanto, o limite máximo da pena.

Vertendo ao caso em apreço.
O crime de ofensa à integridade física grave é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.
A censura ético-jurídica ao comportamento do arguido é muito elevada.
O grau de ilicitude do facto é elevado, atento o seu modo de execução.
O arguido atentou contra a integridade física do assistente, revelando indiferença sobre as consequências da sua atuação: que poderia mesmo ser a morte do agente, que apenas não ocorreu por factos alheios à vontade do recorrente.
Quanto à prevenção especial:
O arguido tinha já vários antecedentes criminais, pela prática de crimes contra as pessoas, desde logo, roubos, sequestro, ofensa a integridade física conforme tabela descrita no douto acórdão.
Vem praticando factos desde 2004 com sucessivos embates com o sistema de justiça. Tendo já sido condenado em penas de multa e de prisão efetiva e suspensa.
A pena é pois necessária para a ressocialização do agente.
E o que dizer das exigências de prevenção geral?
São elevadíssimas. Infelizmente, casos como o dos autos passaram a ser uma constante nos últimos tempos.
A comunidade não aceita nem se conforma com uma pena inferior à que foi aplicada pelo Tribunal, sob pena de colocar-se irremediavelmente em causa as expetativas comunitárias na vigência contrafáctica da norma.
Assim, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos, a pena aplicada mostra-se justa e adequada e proporcional ao seu comportamento.
Da decisão de suspensão da execução da pena de prisão

Determinada a medida da pena de prisão, o tribunal passa à terceira e eventual operação, na qual verifica sobre se em vez da prisão, se poderá aplicar uma pena de substituição, no caso, a suspensão da execução da pena de prisão.
Nos termos do disposto no artigo 50.º do Código Penal, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Estabelece o n.º 2 que, o tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
Tal como se afirma no Acórdão do STJ, de 30 de Janeiro de 2003, no proc.º nº 3594/02 da 5ª Secção, do qual é Relator o Senhor Conselheiro Carmona da Mota, “a suspensão da execução da pena não deverá ser decretada – mesmo em caso de conclusão do tribunal por um prognóstico favorável (à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de sociabilização), se a ela se opuserem as finalidades da punição (art.º 50º nº 1 e 40º nº 1 do Código Penal), nomeadamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigência mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, pois que só por elas se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto (da suspensão). Impõe-se, numa palavra, “que o crime não compense”.
No mesmo sentido, Figueiredo Dias, in “As Consequências do Crime”, Editorial
Notícias, 1993., “entendemos que, a medida da pena há-de ser dada fundamentalmente pela necessidade de tutela dos bens jurídicos em face do caso concreto. Entendemos que é a prevenção geral positiva de integração que fornece um “espaço de liberdade ou de indeterminação”, o qual abrange o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e o limiar mínimo em que tal tutela é ainda efectiva e consistentemente assegurada, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr em causa de uma forma irremediável a sua função tutelar.”
Em suma, e seguindo Figueiredo Dias, são finalidades exclusivamente preventivas (geral e especial) que justificam e impõe a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efetiva aplicação.
A prevenção geral surge, neste momento, como princípio integrante do critério geral de substituição, sob a forma de conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico como limite à atuação das exigências de prevenção especial de socialização.
Como bem refere o Tribunal no douto acórdão sob censura, “Assim, as anteriores sanções penais não obtiveram até à data a desejada ressonância em termos de interrupção da trajetória criminal. A personalidade do arguido e a sua completa indiferença face ao sistema de justiça, elevam a fasquia das necessidades de prevenção especial positiva, na medida em que a socialização do arguido se revela meta muito difícil de alcançar, e não permitem ignorar as de prevenção especial negativa, pela necessária advertência individual.
Nestas condições, aplicar ao arguido uma pena de substituição seria criar no dito arguido e na comunidade em geral um mau sentimento de impunidade.”
Tal como o tribunal a quo, consideramos que nenhuma das modalidades da suspensão da execução da pena de prisão: suspensão simples, suspensão sujeita a condições (cumprimento de deveres ou de certas regras de conduta) ou suspensão acompanhada de regime de prova, realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Conforme sustenta o recorrente, é facto que o arguido acabou de cumprir pena em setembro, altura em que foi colocado em liberdade. No entanto, tal não é bastante para se concluir pela ressocialização do agente e entender que o arguido interiorizou o desvalor da sua ação.
Note-se. Nos presentes, o arguido não confessou sem reservas os factos e não demonstrou qualquer arrependimento pelos seus atos.
Foi libertado em 10.09.2022, após cumprimento de 1 ano e 4 meses de prisão no âmbito do processo 1632/18.6PIPRT. Durante o cumprimento desta última pena, apresentou dificuldades no cumprimento do normativo institucional e condutas desadequadas que culminaram em processos disciplinares, tendo saído apenas no termo de pena.
Em liberdade, e mesmo sabendo da pendência destes autos, não cuidou de procurar emprego, nem de se inserir profissional e socialmente. Além de não procurar ativamente emprego, não cuidou de se deslocar ao SEF para regularizar a sua situação de permanência em Portugal.
É sustentado pela mãe.
O arguido, nascido a .../.../1987, conta com um extenso CRC com factos praticados desde 2004. Portanto a única realidade de vida que parece conhecer é a da senda do crime.
Aqui chegados, concluímos que a tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e a ressocialização do agente apenas ficará acautelada com uma pena privativa da liberdade.
Por todo o exposto, bem andou o Tribunal a quo ao condenar o arguido numa pena privativa da liberdade, não merecendo qualquer reparo o acórdão ora colocado em crise.

Do montante indemnizatório – pedido de indemnização civil.

Entende o recorrente que o montante fixado pelo Tribunal de €20.000,00 é exagerado em face dos incómodos descritos quer pelo assistente quer pela sua irmã.
Ora o montante indemnizatório não se fixou apenas nos “incómodos” referidos pelo recorrente.
Além dos factos provados no ponto 15., o Tribunal ainda tomou em consideração todas as lesões descritas nos relatórios periciais e restantes elementos documentais (atente-se nos 672 dias para a consolidação médico-legal), e atendeu a critérios de equidade para atribuir a indemnização em apreço.
Conforme resulta da matéria de facto provada, ficou evidenciado no relatório pericial que:
Com a conduta descrita o arguido provocou dores no corpo e na saúde do ofendido BB, causando-lhe as lesões indicadas de fls. 153 a fls. 156, nomeadamente:
Face: cicatriz nacarada, coberta por barba, com edema ligeiro subjacente, localizada na região lateral à comissura labial à esquerda, com 2 cm de comprimento por 0,5 cm de largura. Lesão suturada, localizada no pavilhão auricular esquerdo, com 2,5 cm de comprimento
Pescoço: complexo cicatricial extenso, ramificado em três ramos que se estendem desde a região inframentoniana para face lateral esquerda de região cervical (terço superior, médio e inferior); as cicatrizes apresentam importante reação queloide (fazem saliência no plano de superfície dérmica) e encontram-se aderentes a planos subjacentes não sendo referidos como dolorosos ao toque; cada área cicatricial tem entre 3 cm e 4 cm de largura observando-se espaço livre de cicatriz na face lateral esquerda da região cervical. Mobilidade cervical comprometida no movimento de extensão e de rotação para a direita por diminuição da elasticidade dérmica pela presença da reação queloide cicatricial (esta reação está ainda a ser alvo de tratamento com corticoide injetável em ritmo anual).
Membro superior esquerdo: à inspeção observa-se infradesnivelamento de cintura escapular esquerda à custa de aparente falência ventre esquerdo de trapézio.
Impotência funcional durante o movimento de abdução do ombro (movimento ativo) estando o movimento passivo conservado.
E ainda que:
“9 - Da actuação do arguido resultou para o ofendido BB um traumatismo de natureza cortoperfurante o que é compatível com a informação.
Tais lesões terão determinado 672 dias para consolidação médico-legal com afectação da capacidade de trabalho geral de 90 dias e com a afectação de trabalho profissional de 180 dias.
Do evento resultaram as sequelas descritas no Estado actual considerando-se que as áreas cicatriciais de que o examinado é portador tem características desfigurantes.(sublinhado nosso)
Tendo em conta o quadro lesional que o examinado sofreu – área anatómica atingida, as importantes e vitais estruturas anatómicas atingidas assim como a necessidade de intervenção cirúrgica para correção das lesões - considera-se que o examinado esteve em perigo clinico para a vida (risco de morte) (sublinhado nosso), cfr. documento de fls. 153 a fls. 156 cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.”

Assim, e tendo em conta a globalidade dos danos causados com a atuação do arguido, afigura-se-nos que o montante de €20.000,00 não merece qualquer reparo.



III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar total provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e em confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça (arts. 513.º, n.ºs 1 e 3, do CPPenal e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa).




Porto, 25 de outubro de 2023
(Texto elaborado e integralmente revisto pelo relator, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas eletrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Paulo Costa
Maria do Rosário Silva Martins
Castela Rio
_____________
[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.