MEDIDAS DE COAÇÃO
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
NULIDADE INSANÁVEL
Sumário

I - A não audição do arguido antes do agravamento de medidas de coação aplicadas nos autos viola o disposto nos nºs 5, 6 e 7 do artigo 32.º da Constituição e subsume-se na nulidade insanável prevista no artigo 119.º, al. c), do Código de Processo Penal.
II - Não se vislumbrando nos autos circunstâncias determinantes do agravamento das medidas cautelares, o tribunal deveria abster-se de as aplicar, face ao disposto no artigo 212.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Texto Integral

Proc. nº 347/22.5GBILH.P1


1. Relatório

No processo comum com o nº347/22.5GBILH que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Competência Genérica de Ílhavo procedeu-se, no dia 24/06/2022, a interrogatório judicial do arguido AA que se encontrava indiciado pela prática em autoria material e na forma consumada em concurso real:
a) Um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152 n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea a) e 4 a 6 do Código Penal (na pessoa da sua ex-mulher);
b) Um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152 n.º 1, alínea d) e n.º 2, alínea a) e 4 a 6 do Código Penal (na pessoa da sua filha);
c) Um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 2º n.º 1, alínea m) e an), 3º n.º 2, alínea e) e i) e 86 n.º1, alínea d) da Lei das Armas.
No final do interrogatório a Srª Juiz de Instrução proferiu o seguinte despacho sobre o estatuto processual do arguido:
«Com o imediato propósito de proteção eficiente e efectiva à vítima e obstar à continuação da actividade criminosa, aqui também se avaliando as circunstâncias do crime imputado ao arguido, a personalidade do mesmo, as circunstância sócio económicas e profissionais e por se revelar necessário, adequado e proporcional à pena de prisão que previsivelmente lhe será aplicada, determina-se que AA continue a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito, para além das medidas decorrentes do TIR já prestado, às seguintes medidas de coacção:-
- À proibição de contactar, directa ou indirectamente, por qualquer meio, por si ou por interposta pessoa ou utilizando meios electronicos de comunicação com a ofendida BB e filha de ambos: CC e ainda com os pais da ofendida;-
- À proibição de permanecer e/ou de se aproximar da morada e/ou do local de trabalho da vitima, estabelecendo-se o raio de exclusão mínimo que vier a ser estabelecido pela D.G.R.S.P., assim como do estabelecimento de ensino frequentado pela CC;-
- À obrigação de se apresentar 2 vezes por semana; todas as quartas e sábados, no O.P.C. competente da sua área de residência;-
- À proibição de adquirir e/ou deter quaisquer armas, sejam brancas ou de fogo, devendo entregar alguma que ainda detenha em sua posse, no prazo de 10 (dez) dias.- Tudo de acordo com o disposto nos art.ºs 191.º a 194.º 196.º, 198.º, 200.º, nº1 al.s a) d) e e) e n.º 5 e art.º 204.º, n.º 1, al. c) todos do C. P. Penal.
Restitua o arguido à liberdade.»
Em 16/02/2023 foi proferido nos autos principais despacho que declarou cessadas as medidas de coação aplicadas, com exceção do TIR, pelo decurso do prazo máximo de duração.
Por sua vez em 6/04/2023 foi deduzida, nos autos principais, acusação pública contra o arguido, requerendo o seu julgamento perante tribunal singular, ao abrigo do disposto no art. 16 nº3 do CPP, pela prática em autoria material, na forma consumada de:
a) Um crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152 n.º1, alínea a) e n.º 2, alínea a) e 4 a 6 do Código Penal (na pessoa da sua ex-mulher);
b) Um crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152 n.º1, alínea d) e n.º 2, alínea a) e 4 a 6 do Código Penal (na pessoa da sua filha);
c) Um crime de detenção de arma proibida, p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 2º, n.º 1, alínea m) e an), 3º, n.º 2, alínea e) e i) e 86º, n.º 1, alínea d) da Lei das Armas.
Após a dedução da acusação o MP exarou no despacho a seguinte promoção sobre o estatuto processual do arguido:
«Entendemos que o arguido deve aguardar os ulteriores termos processuais sujeito à medida de coacção de termo de identidade e residência, já prestado a fls. 249, bem como
À proibição de contactar, directa ou indirectamente, por qualquer meio, por si ou por interposta pessoa ou utilizando meios electrónicos de comunicação com a ofendida BB e filha de ambos: CC e ainda com os pais da ofendida; à proibição de permanecer e/ou de se aproximar da morada e/ou do local de trabalho da vitima, estabelecendo-se o raio de exclusão mínimo que vier a ser estabelecido pela D.G.R.S.P., assim como do estabelecimento de ensino frequentado pela CC; à obrigação de se apresentar 2 vezes por semana; todas as quartas e sábados, no O.P.C. competente da sua área de residência; à proibição de adquirir e/ou deter quaisquer armas, sejam brancas ou de fogo, devendo entregar alguma que ainda detenha em sua posse, no prazo de 10(dez) dias. Tudo de acordo com o disposto nos art.ºs 191.º a 194.º 196.º, 198.º, 200.º, nº1 al.s a) d) e e) e n.º 5 e art.º 204.º, n.º 1, al. c) todos do C. P. Penal,, por se mostrarem medidas adequadas, suficientes e proporcionais.»
Sobre esta promoção recaiu o seguinte despacho contido no despacho que recebeu a acusação e admitiu o pedido de indemnização cível:
«Mantendo-se a sua adequação e proporcionalidade e não se mostrando ultrapassados os prazos máximos de duração das medidas de coação aplicadas ao arguido no âmbito do 1º interrogatório judicial a que foi sujeito a 24.06.2022 artigos 215.º e 216.º, aplicável ex vi do artigo 218.º, n.º 2, todos do CPP –, o arguido aguardará os ulteriores termos do processo, nos termos do disposto nos artigos 191.º a 194.º, 196.º, 198.º, 200.º, n.º 1 al. a), d) e e) e 204.º, al. c), todos do Código de Processo Penal, sujeito às seguintes medidas de coação:
- ao Termo de Identidade e Residência;
- à proibição de contactar, direta ou indiretamente, por qualquer meio, por si ou por interposta pessoa ou utilizando meios eletrónicos de comunicação com a ofendida BB e filha de ambos: CC e ainda com os pais da ofendida;
- à proibição de permanecer e/ou de se aproximar da morada e/ou do local de trabalho da vitima, estabelecendo-se o raio de exclusão mínimo que vier a ser estabelecido pela D.G.R.S.P., assim como do estabelecimento de ensino frequentado pela CC;
- à obrigação de se apresentar 2 vezes por semana; todas as quartas e sábados, no O.P.C. competente da sua área de residência;
- à proibição de adquirir e/ou deter quaisquer armas, sejam brancas ou de fogo, devendo entregar alguma que ainda detenha em sua posse, no prazo de 10 (dez) dias.»
Inconformado com este despacho que agrava as medidas de coação, dele interpõe o arguido o presente recurso formulando as seguintes conclusões:
«A. O recorrente foi acusado nos presentes autos da factualidade constante da acusação pública, em autoria material e concurso efectivo, de:
a) um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea a) e 4 a 6 do Código Penal (na pessoa da sua ex. mulher);
b) de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, alínea a) e 4 a 6 do Código Penal (na pessoa da sua filha);
c) e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea m) e. n), 3.º, n.º 2, alínea e) e i) e 86.º, n.º 1, alínea d) da Lei das Armas.
B. Quanto ao estatuto coactivo, o Ministério Público pronunciou-se: “Entendemos que o arguido deve aguardar os ulteriores termos processuais sujeito à medida de coacção de termo de identidade e residência, já prestado a fls. 249, bem como À proibição de contactar, directa ou indirectamente, por qualquer meio, por si ou por interposta pessoa ou utilizando meios electrónicos de comunicação com a ofendida BB e filha de ambos: CC e ainda com os pais da ofendida; à proibição de permanecere/ou de se aproximar da morada e/ou do local de trabalho da vitima, estabelecendo-se o raio de exclusão mínimo que vier a ser estabelecido pela D.G.R.S.P., assim como do estabelecimento de ensino frequentado pela CC; à obrigação de se apresentar 2 vezes por semana; todas as quartas e sábados, no O.P.C. competente da sua área de residência; à proibição de adquirir e/ou deter quaisquer armas, sejam brancas ou de fogo, devendo entregar alguma que ainda detenha em sua posse, no prazo de 10(dez) dias. Tudo de acordo com o disposto nos art.ºs 191.º a 194.º 196.º, 198.º, 200.º, nº1 al.s a) d) e e) e n.º 5 e art.º 204.º, n.º 1, al. c) todos do C. P. Penal, por se mostrarem medidas adequadas, suficientes e proporcionais.”
C. No despacho de admissão da acusação pública, o Tribunal a quo decidiu aplicar as medidas de coação promovidas pelo Ministério Público.
D. Nos termos do n.º 1 e 4, do art. 194.º do CPP, à excepção do TIR, a aplicação de qualquer outra medida de coacção ou de garantia patrimonial “é precedida da audição presencial do arguido, ressalvados os casos de impossibilidade devidamente fundamentada, e pode ter lugar no ato de primeiro interrogatório judicial, aplicando-se sempre à audição o disposto no n.º 4 do artigo 141.º”.
E. Porque não existiu qualquer audição prévia do arguido o despacho a quo é clamorosamente ilegal, por violação, designadamente, dos artigos 191, n.º 1 (princípio do legalidade), 193.º, 194.º e 204.º, todos do CPP;
F. A situação em apreço configura uma nulidade, nos termos do disposto no artigo 194.º, n.º 1 e 4, do CPP, nulidade que aqui se argui para que da mesma se retirem as necessárias consequências legais.
G. Por dever de patrocínio, acresce dizer que inexiste qualquer fundamento válido, quer de facto quer de direito, para o agravamento da medida de coação.
H. A aplicação de qualquer medida de coação deve obedecer, necessariamente, aos princípios da adequação e da proporcionalidade, consagrados no artigo 193.º do CPP.
I. Assim, por inexistência de fundamento, entende o requerente que as medidas de coação aplicadas, se revelam inadequadas ao caso em apreço, face ao decurso do tempo entretanto decorrido desde a suposta prática dos factos, e a ausência de notícia de que o arguido tenha contra si pendente qualquer outro incidente.»
Conclui pedindo que no provimento do recurso seja revogado o despacho a quo que aplicou o agravamento das medidas de coação a que recorrente se encontra sujeito, ficando consequentemente sujeito apenas à medida de coação Termo de Identidade e Residência.
O recurso foi admitido por despacho proferido em 05/07/23.
Em primeira instância veio o MP responder ao recurso alegando que no caso concreto a aplicação das medidas de coação, não se traduziu numa mera manutenção do estatuto coativo vigente, mas num efetivo agravamento desse estatuto, pelo que teria que ser precedida de audição prévia do arguido e fundamentada em circunstâncias posteriores que justificassem esse agravamento.
A não observância destas formalidades constitui uma nulidade, nos termos previstos no artigo 194 n.ºs 1, 4 e 6 do Código de Processo Penal.
Considera que se deve julgar procedente o recurso do arguido.
Nesta Relação também o Sr. Procurador-geral-adjunto concordando com a resposta do MP em primeira instância até por via do disposto no art. 32 da CRP que consagra o direito do arguido a ser ouvido sempre que se trate de restringir, limitar ou a privá-lo da liberdade, sob pena de nulidade nos termos previstos no art. 194 nºs 1, 4 e 6 do CPP.
Emite parecer no sentido de que o recurso seja julgado totalmente procedente.
Cumprido o disposto no art. 417 nº2 do CPP não foi apresentada resposta ao parecer.


2. Fundamentação de direito
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
No caso concreto a questão suscitada é a de apurar se a decisão recorrida observou as formalidades legais essenciais para agravar o estatuto processual e coativo do arguido, ou se pelo contrário, incorreu no vício de nulidade invocado pelo recorrente.
Cumpre apreciar e decidir!
No caso concreto em análise o despacho de recebimento da acusação agravou as medidas de coação a que se encontrava sujeito o recorrente, as quais haviam sido declaradas cessadas, com exceção do TIR, por já ter decorrido o prazo máximo para a sua duração.
No entanto, o despacho que voltou a aplicar ao arguido as mesmas medidas extintas pelo decurso do tempo, não observou o disposto no art.194 nº4 do CPP, porquanto, não foi precedido de audição presencial do arguido, e por outro lado, não foi indicada, no despacho recorrido, qualquer circunstância superveniente que justificasse o agravamento das medidas de coação, dado que o arguido se encontrava apenas sujeito a TIR desde 16-02-2023, sem que tivesse havido notícia nos autos de incidentes que agravassem o risco para as vítimas, não se encontrando por isso justificada a necessidade da imposição das medidas de coação mais gravosas, nos termos previstos no art. 193 nº1 e 204, ambos do CPP. Porém, - pese embora a aludida falta de fundamentação integrar uma mera irregularidade que deveria ser arguida pelos interessados nos termos previstos no art.123 do CPP -, não se vislumbrando nos autos circunstâncias determinantes do agravamento das medidas cautelares, o tribunal deveria abster-se de as aplicar, face ao disposto no art. 212 nº3 do CPP.
No entanto, ao não ouvir presencialmente o arguido antes da imposição das medidas de coação diversas do TIR, o despacho recorrido violou o disposto nos nºs 5, 6 e 7 do art. 32 da CRP, e enferma da nulidade insanável prevista no art. 119 al. c) do CPP, atento o direito do arguido de ser ouvido pessoalmente pelo Tribunal ou pelo juiz de instrução, sempre que devam ser tomadas decisões que pessoalmente o afetem, consagrado no art. 61 al. b) do CPP, o que se harmoniza com o disposto no art. 194 nº4 do mesmo diploma legal.
Neste sentido também decidiu o Ac. da Relação de Lisboa de 19/10/2017, relatado por João Abrunhosa.
Nestes termos, impõe-se declarar a nulidade do despacho recorrido na parte em que impõe medidas de coação ao recorrente, diversas do TIR, o qual não produzirá efeitos nesta parte, nos termos do disposto no art. 122 do CPP.


3. Decisão:
Tudo visto e ponderado, acordam os juízes na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto por AA e, em consequência, declaram a nulidade do despacho recorrido, na parte em que impõe medidas de coação diversas do TIR, o qual nessa parte não produzirá efeitos.

Sem Tributação.




Paula Guerreiro
Pedro Donas Botto
Maria do Rosário Martins