CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
Sumário

I - O fator decisivo para a atribuição da competência às diferentes secções especializadas do Tribunal da Relação decorre da natureza cível, criminal, laboral, das questões colocadas para escrutínio, seguindo-se, assim, critérios materiais, relativos à natureza das matérias, e não estritamente processuais.
II - Estando em causa numa oposição à execução, mediante embargos, uma decisão segundo a qual se entendeu dever a execução prosseguir para efeitos da cobrança de custas e outras despesas do processo, indeferindo liminarmente o incidente em causa, as matérias a tratar atêm-se com questões de natureza cível, devendo, assim, caber às Secções Cíveis do Tribunal da Relação a apreciação e decisão do recurso subsequente àquela decisão.

Texto Integral

Proc. n.º 706/16.2T9VFR-A.P1-A

Conflito Competência




I - Relatório


Em causa nos autos, um conflito de competência, a tramitar como incidente, no qual duas Exmas. Sra. Desembargadoras deste Tribunal da Relação do Porto, uma da Secção Cível e outra da Secção Criminal, se declararam mutuamente incompetentes para tramitar o recurso intentado.
Analisemos os argumentos respetivos de modo a discernir da decisão a tomar.
A Mma. Sra. Juiz Desembargadora da área cível declara-se incompetente para conhecer o recurso, nos termos dos arts. 73.º, 74.º, n.º 1, e 54.º da Lei n.º 62/2013.
Invoca que, nos termos do n.º 1 do art. 85.º CPC, sendo título executivo uma decisão proferida pelos tribunais portugueses, o requerimento executivo é apresentado no processo onde a decisão foi proferida, correndo a execução nos próprios autos. As únicas sentenças que, sendo proferidas em processo criminal, poderão merecer tramitação em juízo de execução cível e, daí, suscitarem recurso para a secção cível do Tribunal da Relação serão aquelas que não contendam com a condenação criminal, como sucede com a sentença criminal que conhece do pedido cível, independentemente da condenação penal.
Citando o despacho ora sob escrutínio: “se a condenação em indemnização ao lesado contender com a condenação criminal, a execução da sentença criminal não decorre perante o juízo cível.”
Analisando o caso concreto, temos que, naquela apreciação da Exma. Sra. Desembargadora, o tribunal de primeira instância proferiu uma sentença criminal que constitui o título executivo apresentado na execução de que são apensos os embargos ora remetidos a esta Relação. Essa sentença, depois parcialmente mantida pela secção criminal desta Relação, condenou o arguido AA na pena de dois anos e quatro meses de prisão, suspensa por igual período, sob condição de o mesmo, solidariamente com o arguido BB, pagar aos demandantes, no prazo de suspensão da pena, a indemnização fixada. Também condenou o arguido BB na pena de dois anos e onze meses de prisão, suspensa por igual período, sob condição de este pagar aos demandantes, solidariamente com o co-arguido, no prazo de dois anos e quatro meses, a indemnização fixada. Ainda condenou ambos os arguidos, e a sociedade também arguida, a pagarem aos demandantes o montante de 33.775,31€ [trinta e três mil setecentos e setenta e cinco euros e trinta e um cêntimo], acrescido dos juros de mora, à taxa legal dos juros civis, desde a data da notificação aos arguidos/demandados do pedido de indemnização civil, até efetivo e integral pagamento; e pelos danos não patrimoniais no montante de 3.000,00€ [três mil euros], acrescido dos juros de mora desde a data desta sentença até efetivo e integral pagamento. A sentença transitou a 18.5.2022, o que significa poderem os arguidos pagar a indemnização, como condição da suspensão, até 18.7.2024. A 9.9.2022, vieram os demandantes cíveis executar a sentença criminal contra os três arguidos (incluindo a sociedade) e, a 7.12.2022, BB apresentou os presentes embargos de executado.
Ou seja, à luz do exposto, o cumprimento das condições de que depende a suspensão da pena de prisão, aí se incluindo o pagamento da indemnização fixada ao lesado, é assunto atinente com matéria criminal.
Conclui-se assim que, na medida que o conhecimento da execução da sentença pode afetar a condenação criminal, caberia, em sede de recurso, às secções criminais decidir deste.
Contrapõe a Exma. Sra. Juíza Desembargadora da Seção Criminal para que foram remetidos os autos com igualmente judiciosa argumentação.

Destarte, objeta, em síntese breve, que:
- a organização das secções do Tribunal da Relação parte de um modelo de competência em razão da matéria– as secções criminais julgam recursos em matéria penal, nos termos do art. 12º, nº 3, alínea b), do CPP.
Não haverá, portanto, dúvidas que a medida da competência material das secções dos Tribunais das Relações assenta apenas na natureza do litígio.
- a questão colocada no recurso é a de averiguar da bondade dos fundamentos invocados para a oposição à execução mediante embargos e oposição à penhora numa execução que se iniciou para pagamento de uma dívida com origem num processo crime e que atualmente, pago que foi o capital, prosseguirá para pagamento de custas e encargos, tudo mediante aplicação de normas do CPC, nomeadamente os artigos 729, 732 e 551º do CPC e 784 e 856º do mesmo diploma legal.
- donde, o processo de execução em causa, nomeadamente e atualmente a execução para pagamento de custas não tem natureza penal, e não é regulado por normas penais ou processuais penais nem se inclui nas causas referidas no art 126º da LOSJ.

Não estão em causa normas que constituam ou se relacionem com o conjunto de pressupostos, de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança – artigo 1º, al. a) do CPP.

Em consequência, atentas as normas citadas e o entendimento jurisprudencial, com remissão para o defendido pelo STJ, conclui-se que os autos não devem ser distribuídos às secções criminais e concretamente à relatora, mas deve manter-se a primitiva distribuição efetuada.
Suscitado o conflito, cumprido o contraditório, foi emitido parecer pelo Ministério Público.
Entende este, doutamente, que no que diz “respeito ao pedido cível formulado no processo crime e posterior execução da sentença condenatória na parte cível, acresce à competência material das secções criminais o conhecimento e decisão de tais questões, incluindo a fase de recurso, tudo ao abrigo do princípio de adesão.” Conclui que, de acordo com o dito princípio de adesão, “se fixou a competência dos juízos criminais para tramitarem a execução da sentença condenatória em matéria cível, decorrente da condenação criminal, cujos factos típicos são causa de pedir da indemnização fixada.
Daí que se entende que é materialmente competente para conhecer do recurso interposto a secção criminal deste Tribunal da Relação.”

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II Fundamentação Aplicável
Importa referir, com natural ênfase, que ambas as decisões conflituantes comungam, porém, de um mesmíssimo entendimento segundo o qual a competência material assenta na natureza do litígio – cível ou penal.
A divergência ocorre porque, na decisão proferida pela Mma. Juíza Desembargadora da Seção Cível, se entendeu que a presente execução de sentença e correspondentes embargos colidem com o cumprimento das condições de que depende a suspensão da pena de prisão, pelo que a natureza do conflito mantém uma componente penal, ao passo, que na perspetiva da Mma. Juíza Desembargadora da Seção Criminal, defende-se que, embora a presente execução se tenha iniciado para pagamento de uma dívida com origem num processo crime, tendo sido pago o capital, está agora apenas em causa o pagamento de custas e encargos, questão de natureza estritamente cível.

Quanto à abordagem conceptual, frisemos que comungamos do entendimento expendido. Assim, julgamos que o modelo de definição de competência das secções do Tribunal da Relação erige-se, também neste caso, exclusivamente em razão da matéria.
As secções cíveis, criminais e sociais decidem, cada uma delas, em função das matérias atinentes com a sua respetiva especialidade.
Nisso estaremos, portanto, todos de acordo.

E, por ser assim, como efetivamente é, a solução a adotar decorre tão somente do apuramento da natureza jurídica (penal ou cível) do litígio “sub judice”.
Descrevamos, portanto, os trâmites processuais.
O tribunal de primeira instância proferiu uma sentença de natureza inequivocamente criminal, hoje transitada em julgado, após confirmação parcial por parte desta Relação. A decisão, agora descrita na sua parte dispositiva, constituiu o título executivo relativamente à execução intentada.
No âmbito dessa execução, foram deduzidos embargos de executado. Esses embargos foram liminarmente rejeitados e é sobre esse indeferimento que versa exclusivamente o presente recurso.
Detalhemos, portanto, o que está em causa neste estrito âmbito iniciado com os embargos e a oposição à penhora.
Logo no artigo 1º da petição de embargos o requerente assume que a dívida em causa é exigível, não pretendendo questionar o pagamento da indemnização.
A sua argumentação assenta em pressupostos bem diversos – a dívida foi já integralmente paga. Junta documento comprovativo de pagamento feito por este concreto embargante o qual, aliás, foi junto ao processo criminal em que foi condenado.
Todavia, segundo alega, mesmo após tal pagamento extintivo da execução foi alvo de penhoras relativas ao seu património que entende indevidas, pelo que deduziu, além dos embargos, igualmente o incidente de oposição à penhora.

A decisão que rejeitou a oposição à execução, mediante embargos, bem como a oposição à penhora, alvo do presente recurso, foi proferida liminarmente sem audição dos exequentes/embargados.

A mesma aceita, dá de barato, pressupõe que tal pagamento efetivamente ocorreu.
Apenas entende que a execução não pode ser dada como cessada “faltando apurar e liquidar o valor das custas inerentes – única matéria sobre a qual versa a execução após o pagamento do capital”.
Parece-nos, portanto, claro que, por um lado, não está em causa o pagamento aos lesados da indemnização arbitrada – pressuposto para a execução da pena de prisão decretada nos autos -e que, por outro lado, se discutirão apenas questões relativas à bondade do prosseguimento da execução para pagamento de custas eventualmente devidas.
Quanto às alegações de recurso, as mesmas, naturalmente, atêm-se ao que resulta dos considerandos da decisão que se põe em causa.
Por isso, nas conclusões refere-se que, feito o pagamento como foi admitido pelo tribunal “a quo”, deveria ter-se, pelo menos, suspendido a execução e não permitir o seu prosseguimento; mais se invoca que nada justifica o indeferimento liminar até porque a indemnização está paga e quanto às custas estariam ainda por liquidar (vide pg. 27).
Conclui-se, portanto: a matéria em discussão no presente recurso é tão-somente de natureza cível.
Nada nos autos permite supor que o pagamento da indemnização não tenha sido feito – todos os intervenientes, incluindo o tribunal “a quo”, agem no pressuposto que o foi - pelo que essa condição de suspensão da execução da pena não é posta em causa no recurso “sub judice”, nem na tramitação precedente.
O que se discute tem a ver com a opção do tribunal recorrido ao indeferir liminarmente os embargos e a oposição à penhora por entender que a execução deveria, em qualquer caso, prosseguir para cobrança das custas ainda em dívida.
Estamos, a nosso ver, em domínios cíveis onde a circunstância de a execução decorrer de uma sentença criminal nada implica com a apreciação e decisão do recurso em apreço.

Adite-se, relativamente ao douto parecer do MP, que o princípio da adesão consagrado no processo penal não se imporá, salvo melhor opinião, ao nosso caso, como, aliás, foi aceite em ambas as decisões proferidas no âmbito deste conflito, acima sumariadas.

Na verdade, em sede de competência relativa às secções dos tribunais da Relação, como também do Supremo Tribunal da Justiça, existe uma clara concordância no sentido de que o fator decisivo para a atribuição daquela competência decorre da natureza cível, criminal, laboral das questões colocadas para escrutínio dos tribunais superiores, seguindo-se, assim, critérios materiais e não processuais ou de natureza do processo, ainda que, na normal das situações, os mesmos venham, quase sempre, a coincidir (neste sentido, vide, por todos, Acórdãos do STJ de 13.11.2013, processo nº 9001/09.2TDPRT.P1.B.S1 e processo nº 41/09.2TOLSB.L1-A.S1 de 26.04.2012, ambos disponíveis em dgsi.pt).


Decisão

Pelo exposto, decide-se manter a distribuição eletrónica inicialmente feita, cabendo a presente tramitação recursal ao coletivo cível a quem o processo foi atribuído.

Notifique. Comunique-se aos Exmos. Srs. Presidentes das Secções envolvidas.

Publique-se no sítio da DGSI.
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Sumário:
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Porto, 27 de Novembro de 2023
José Igreja Matos
[Presidente do Tribunal da Relação do Porto]