FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
CANCELAMENTO DA HIPOTECA
REGISTO PREDIAL
TERCEIRO DE BOA FÉ
Sumário

A fabricação de documento de autorização de cancelamento de hipoteca registada a favor do primitivo vendedor, não correspondente à verdade, para permitir a posterior venda do imóvel, pelos compradores originários, a terceiro, com posterior hipoteca registada a favor de instituição de crédito mutuante, estando o terceiro e a mutuante de boa-fé, se conduz ao cancelamento do registo da autorização de cancelamento, todavia não determina a nulidade substantiva da segunda venda e da segunda hipoteca nem o cancelamento dos seus registos, mas sim a aplicação do regime previsto no artigo 17º nº 2 do Código do Registo Predial.  

Texto Integral

Acordam os juízes que compõem este colectivo do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório[1]
JP, nos autos m.id., intentou o presente procedimento cautelar comum contra BS e mulher, AP, nos autos m.id., e contra PL, nos autos m.id, e Banco X, S.A., pedindo o cancelamento do registo de aquisição do prédio urbano sito na …, n.º …, freguesia de …, concelho da …, …, Açores, destinando-se a habitação, o qual se encontra efectuado a favor de PL, bem como o cancelamento do registo da hipoteca voluntária registada a favor do Banco X, S.A., e a reposição das hipotecas canceladas a favor do Requerente JP.
Alegou, em suma, que em 13/01/2021 vendeu ao primeiro e segunda requeridos o prédio referido, constituindo eles sobre o mesmo prédio hipoteca voluntária que vieram a registar a favor do requerente (Ap. n.º … de 2020/01/17 e uma segunda hipoteca registada pela Ap. n.º … de 2020/07/31) para garantia do pagamento de 65.000,00€, a primeira, e de 108.741,14€, a segunda, tudo garantindo o capital de 173.741,14€ acrescido das despesas acordadas.
Em 26 de Abril de 2023, o Requerente ficou a saber que os primeiro e segunda requeridos venderam o imóvel ao terceiro requerido, com hipoteca constituída a favor do Banco X, S.A., pelo valor global de 90.000,00€ mas com empréstimo concedido pelo Banco de 81.000,00€, sendo que na escritura de compra e venda acabada de relatar, disseram os intervenientes que o dito bem se encontrava livre de ónus e encargos.
Esta declaração não é verdadeira, tendo os primeiro e segunda requeridos falseado um documento de cancelamento das hipotecas antes constituídas a favor do Requerente, que foi apresentado online na 2.ª Conservatória de …, sendo que o dito documento está intitulado como “autorização de cancelamento”, sendo que a assinatura que ali consta não pertence ao Requerente nem este foi ao Consulado Geral de Portugal em …, na data indicada nem em data próxima, e quem atesta a presença e assinatura do Requerente, não é o Cônsul de Portugal em ….
Contactado o Consulado e remetido este documento, o Consulado respondeu que o documento era uma fraude, pelo que o Requerente vai apresentar queixa-crime.
Por outro lado, os Requeridos colocaram à venda a casa em questão por 180.000,00€, na Imobiliária …, com sede na … e receberam uma proposta de 130.000,00€, porque estes sabiam que existiam hipotecas sobre o imóvel bem como, a própria imobiliária o sabia, mas acabaram por vender por 90.000,00€, ao desbarato, quando o imóvel no mercado vale cerca de 150.000.00€, tudo para ficar com os 90.000.00€ para si e nada pagaram ao Requerente, fazendo cancelar as suas duas hipotecas e com isto provocar-lhe um prejuízo de 173.741,14€.
A falsidade do documento de autorização de cancelamento importa a declaração da sua nulidade bem como, a declaração de nulidade dos demais actos que lhe seguiram, a compra e venda e a constituição de hipoteca a favor do Banco, devendo ainda ser repostas as duas hipotecas a favor do Requerente.
Não se conhecem bens aos primeiro e segunda requeridos, existindo perigo de fuga deles.
Requereu o decretamento sem audiência prévia dos requeridos.
*
Após despacho de aperfeiçoamento que foi cumprido, o tribunal entendeu não ouvir os requeridos, “atendendo à matéria alegada pelo Requerente e porque considera que tal audição agora, poderia por em causa, de forma séria, o fim ou a eficácia da diligência”, e designou data para produção de prova, gravada, e na mesma data proferiu a decisão final, sem inversão do contencioso, e do seguinte teor:
Pelo exposto, decido julgar indiciariamente procedente, por provada, a presente providência cautelar e consequentemente, determino o imediato cancelamento dos seguintes registos que recaem sobre o: 
- prédio urbano sito na …, n.º …, freguesia de …, concelho …, inscrito na matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial …, sob a ficha n.º …, composto de 1 piso e quintal, destinando-se a habitação, os quais constam das Ap. n.º … de 2023/04/24 a favor de PL e, Ap. n.º … de 2023/04/27 a favor de Banco X, S.A..
- Mais ordeno a imediata reinscrição e averbamento, dos registos das duas hipotecas que recaem sobre a mesma ficha predial acabada de citar e que constavam das Ap. n.º … de 2020/01/17 e Ap. n.º … de 2020/07/31 a favor do Requerente, JP.
- Mais ordeno o registo da presente acção nos termos do artigo 3.º, n.º 1, alínea a), do Código de Registo Predial.
Oportunamente notifique os Requeridos nos termos do artigo 366.º, n.º 6, do Código de Processo Civil.  
Custas a cargo do Requerente - artigo 539.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, mas sendo atendidas a final, na acção respectiva, artigo 539.º, n.º 2, do Código de Processo Civil”.
*
Inconformada, a requerida Banco X, S.A., interpôs o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
1. A presente decisão, que decretou a providência cautelar e o cancelamento dos registos de aquisição e de hipoteca não pode manter-se por aplicar erradamente a lei ao caso concreto.
2. O Requerente apresentou a presente providência cautelar invocando que era titular de duas hipotecas sobre o prédio urbano sito na (…), as quais foram canceladas com base num título de distrate que diz ser falso e, na sequência desse cancelamento, o imóvel foi alienado a PL e registada hipoteca a favor do aqui Recorrente.
3. Ainda que se admitisse a falsidade do referido distrate – o que não se concede – e, por conseguinte, a nulidade do referido cancelamento das hipotecas, sempre seria de aplicar o disposto no artigo 17.º, n.º 2 do Código de Registo Predial.
4. Com efeito, o artigo 17.º do CRP aplica-se aos casos de nulidade do registo previstos no artigo 16.º do mesmo Código, entre os quais consta a nulidade do registo que tenha sido efectuado com base em título falso, como é o caso que o requerente desta providência invoca.
5. Na verdade, a admitir-se como boa a alegação da falsidade do referido distrate – o que, como se disse, para já, não se concede – sempre estaremos perante uma invalidade registal, sendo aplicável o artigo 17.º, n.º 2 do CRP e não o artigo 291.º do Código Civil que se dirige a invalidades substantivas.
6. Assim sendo, os efeitos da invalidade registal do registo não são oponíveis a terceiro (como é o caso do aqui Recorrente) se se verificarem cumulativamente os requisitos previstos no preceito que, no caso se verificam todos.
7. Preenchidos que estão estes pressupostos, nunca poderia o Requerente da providência invocar a invalidade registal contra o aqui Recorrente nem contra o mutuário que registou a aquisição a seu favor.
8. Por isso, a providência decretada nunca poderia ter ordenado o cancelamento de tais registos, partindo para a ideia de que “é nulo tudo quanto se faz a seguir nesta ficha registral (sic)” porque a consequência não é claramente a nulidade dos registos posteriores mas sim a protecção dos terceiros nos termos do artigo 17.º, n.º 2 do CRP.
9. Verificando-se a nulidade do registo por ter sido lavrado com base num título falso (alínea a) do artigo 16.º), a declaração dessa nulidade não poderá deixar de integrar a previsão do artigo 17.º, n.º 2, sendo aplicável a consequência prevista na mesma norma: se o terceiro estiver de boa fé, mantém-se o registo, não ficando prejudicado nos direitos que adquiriu a título oneroso, como é o caso do Recorrente.
10. Se o terceiro adquire de boa fé (como é o caso do Recorrente), fazendo-o com base no registo, ocorre de imediato a situação que o Professor Oliveira Ascensão denomina por “aquisição pelo registo” ou “efeito atributivo do registo”: o negócio anterior não se convalida, é nulo e nulo permanece (nomeadamente na venda a non domino), mas o terceiro de boa fé recebe na sua esfera jurídica um direito que se tornou inquestionável, face à fé pública do registo e à norma expressa do CRP – artigo 17/2.
11. Sem prescindir, ainda que se admitisse que os registos das hipotecas a favor do Requerente da providência deveriam ressurgir e ser reinscritos, sempre se dirá que nunca a consequência do decretamento da providência seria o cancelamento do registo da aquisição e do registo da hipoteca a favor do aqui Recorrente, mas sim, a reinscrição de tais hipotecas com data anterior aos registos entretanto feitos e com o grau de prioridade que essa data anterior lhe conferiria.
12. Isto porque o facto de estarem inscritas as hipotecas em causa nunca impediria os titulares do direito de propriedade alienarem – os então BS e AP – tendo em conta o disposto no artigo 695.º do Código Civil: o proprietário dos bens hipotecados não precisa do consentimento do credor hipotecário para alienar, ainda que as hipotecas não sejam canceladas, uma vez que a consequência é apenas a de o eventual adquirente adquirir um bem onerado com hipotecas.
13. Os actos de alienação ou de oneração posteriores às hipotecas são inoponíveis ao credor hipotecário, não afetando a sua situação jurídica porque este goza de um direito de preferência que lhe é conferido pela prioridade registal. Para o credor hipotecário, a alienação ou a oneração a favor de terceiro é uma res inter alios acta.
14. Pelo que, também por esta via, a decisão que decretou a providência não tem o mínimo fundamento legal e aplicou mal a lei ao caso, não podendo, por isso, manter-se.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando a sentença que decretou a providência e ordenando-se a manutenção dos registos que se encontram inscritos, (…)”.
Não foram oferecidas contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir:
II. Direito
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nºs 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC - a questão a decidir é a de saber se a providência concretamente decretada o não pode ser.
III. Matéria de facto
O tribunal proferiu a seguinte decisão em matéria de facto:
“Com interesse para a decisão da causa, resultam provados os seguintes factos:
1 - O Requerente vendeu ao I. e II. Requeridos[2], o prédio urbano sito na …, n.º …, freguesia de …, concelho de …, inscrita na matriz predial sob o artigo …, e descrita na Conservatória de Registo Predial … sob a descrição n.º …, cfr. Doc. 1 a 3, anexos e aqui se dão por integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos.
2 - Os I. e II. Requeridos deram de garantia de pagamento do preço de aquisição do prédio garantia real, constituindo hipoteca voluntária sobre o identificado imóvel, cfr. Doc. 1 e 3;
3 - Isto é, constituíram duas hipotecas voluntárias sobre o imóvel: - Ap. … de 2020/01/17, Hipoteca Voluntária, capital no valor de 65.000,00€, relativa à compra e venda do imóvel referido em 1, e Ap. … de 2020/07/31, hipoteca Voluntária, capital no valor de 108.741,14€, relativa a um empréstimo feito pelo Requerente ao Requerido, BS, neste valor;
4 - Hipotecas submetidas a registo;
5 - O total do capital garantido no valor de 173.741,14€ (…);
6 - Acrescido das despesas e demais encargos, concretamente:
- Ap. … de 2020/01/17, Hipoteca Voluntária, com o montante máximo garantido no valor de 69.550,00€;
- Ap. … de 2020/07/31, Hipoteca Voluntária, com o montante máximo garantido no valor de 122.877,49 €;
7 - Acontece que o Requerente, em data não concretamente apurada, mas que se situa no mês de Março de 2023, teve conhecimento que os aqui Requeridos (I. e II.) tinham procedido à venda do imóvel;
8 - Após algumas diligências confirmou que tal tinha acontecido;
9 - Por força de escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca, o I. e II. Requeridos vendem ao III. Requerido o imóvel acima melhor identificado;
10 - Compra mutuada pelo IV. Requerido que por contrato de mútuo por força do qual emprestou ao III. Requerido a quantia de 81.000,00€ (…), para aquisição do imóvel;
11 - Na escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca, declaram o I. e II. Requeridos que o prédio é vendido, livre de ónus ou encargos;
12 - O que é falso; (eliminado por conclusivo)
13 - O I. e II. Requeridos utilizando-se de documento que falsearam, procederam ao cancelamento das duas hipotecas constituídas voluntariamente a favor do Requerente;
14 - Cancelamento feito pela … Conservatória de …, por força de pedido de registo online de 03/03/2023, feito pelo Dr. …, solicitador, com base no invocado documento falso, intitulado “AUTORIZAÇÃO DE CANCELAMENTO”; (eliminada a palavra falso, por conclusivo).
15 – (…)[3] não foi o Requerente que apôs a assinatura que dele consta;
16 - Bem como, não foi o Cônsul Geral de Portugal em …, nem qualquer outro funcionário dali, também, quem assinou e rubricou, atestando que a assinatura tenha sido feita na sua presença, bem como, pela exibição do respectivo Cartão de Cidadão.
17 – (…) o (…)[4] Consulado Geral de Portugal em … que informa “este documento é uma fraude”, na resposta ao email enviado a 27/04/2023;
18 - Dos factos o Requerente apresenta queixa-crime, só não o fez atendendo à greve dos Oficiais de Justiça o que impediu o seu registo junto do Ministério Público de …;
19 - Da análise que consta de folhas 32/verso, verifica-se que a assinatura ali aposta não é coincidente com a assinatura do Requerente bem como, se o seu nome, NIF e, estado civil, estão correctos, e a morada ser a do restaurante, sito em …, já o número do Cartão de Cidadão pertence à II. Requerida.
20 – (…) os I. e II. Requeridos sabem que o Requerente é proprietário do restaurante indicado desde logo porque foram sócios da sociedade …, cfr. certidão permanente desactualizada e escritura pública de cedência de quota social;
21 - Os I. e II. Requeridos colocaram a casa à venda pelo preço de pelo menos 170.000,00€, na imobiliária …, propriedade de …, sede Zona Industrial …, Lote …, freguesia e concelho … Telefone …; Telemóvel …;
22 - Por força disso receberam proposta de aquisição pelo valor de 170.000,00€ (…);
23 - E venderam o prédio pelo valor de 90.000,00€ ao III. Requerido, sem terem auscultado o proponente que ofereceu a quantia anteriormente referida;
24 - Desde logo porque quem fez a proposta, sabia que o imóvel estava hipotecado e que os valores garantidos pela hipoteca, nunca foram liquidados;
25 - Os I. e II. Requeridos sabiam disso, e bem assim a legal representante do III. Requerido que trabalha na imobiliária acima melhor identificada (…);
26 - Os I. e II. Requeridos não procederam ao pagamento dos valores em dívida ao aqui participante (capital no valor de 173.741,14 € subjacente às hipotecas).
27 - Os I. e II. Requeridos sabiam que não conseguiam vender o imóvel com as hipotecas activas;
28 - Os I. e II. Requeridos falsificaram o documento intitulado “AUTORIZAÇÃO DE CANCELAMENTO” e conseguiram cancelar as hipotecas.
29 - E por esta forma, lesaram os interesses e espectativa[5] do Requerente de se ver ressarcidos dos valores em dívida pelos I. e II. Requeridos;
30 - Para além disso, com a sua actuação lesaram o Estado Português, que executou e emitiu documentos que não correspondem à realidade, pondo em causa a certeza e segurança jurídica que deve nortear o regular funcionamento das instituições; (eliminado por conclusivo).
31 - Puseram em causa os interesses e expectativas dos demais Requeridos, em particular o IV. Requerido, que concedeu empréstimo com base em documentos obtidos de forma fraudulenta;
32 - Os Requeridos com a sua actuação obtiveram em proveito próprio com a venda do imóvel o valor de 90.000,00€;
33 - Causaram um prejuízo ao Requerente no valor de 173.741,14€ (capital mais encargos), correspondente às hipotecas canceladas;
34 - Hipotecas constituídas de forma voluntária;
35 - O comportamento do I. e II. Requeridos provocaram danos e prejuízos no património do Requerente em valor muito superior ao garantido; (eliminado por conclusivo).
36 - O Requerente com a hipoteca tinha garantido o pagamento do seu crédito;
37 - Presentemente nada tem; (eliminado por conclusivo)
38 - Tem sim, danos e prejuízos que se vão avolumar, e vão tornar-se irreparáveis em consequência da delonga na obtenção de decisão definitiva na acção principal; (eliminado por conclusivo).
39 - Apenas é conhecido aos Requeridos I. e II. a existência de um carro;
40 - Venderam o imóvel ao desbarato, por metade do valor que colocaram à venda; (eliminado por conclusivo).
41 – (…) no mercado (o imóvel) vende (-se) por 150.000,00€;
42 - Venderem o imóvel por 90.000,00€, e nunca pagaram qualquer prestação, ou valor por conta da aquisição que fizeram ao Requerente;
43 - Existe o perigo de fuga dos mesmos, razão pela qual a apresentação de queixa com pedido de fixação de medidas de coacção diferentes do TIR - Termo de Identidade e Residência.
*
FACTOS NÃO PROVADOS
 Com relevância para a causa, não existem quaisquer factos não provados.
 Todos os restantes factos alegados na petição inicial, ou são conclusivos, ou correspondem a matéria de direito, ou são expressões vagas e imprecisas, pelo que não se tomaram em consideração”.
Por interessar à decisão dos autos, adita-se aos factos provados, resultando da escritura pública de compra e venda celebrada entre os I e II Requeridos e o III e de mútuo com hipoteca lavrada celebrada entre o III Requerido e o IV Requerido, que a compra e venda a que se refere o facto provado nº 7 e a constituição de hipoteca sobre o imóvel, pelo III Requerido ao IV Requerido, foi celebrada em 24.4.2023.
*
IV. Apreciação
Não vem colocada em causa a decisão sobre a matéria de facto. Oficiosamente eliminámos, conforme anotações supra, alguns pontos claramente conclusivos.
Apesar da recorrente elaborar o seu recurso sem conceder quanto à falsidade do cancelamento, na verdade não impugna a decisão sobre a matéria de facto, pelo que, indiciariamente, está provada tal falsidade e a partir daqui não é atacável, de resto porque a recorrente não invoca qualquer outra razão para tanto, a parte da decisão que determinou a imediata reinscrição das hipotecas canceladas. Na verdade, também, essa consideração hipotética sem conceder não corresponde a uma verdadeira pretensão recursiva autónoma, tanto mais que nas conclusões 11 e seguintes a reinscrição das hipotecas a favor do recorrido é expressamente admitida.
Subsiste assim apenas a questão – que é de direito – que a recorrente afirma derivar da errada aplicação do artigo 291º do Código Civil, sustentando ao invés a aplicação do artigo 17º nº 2 do Código do Registo Predial, e que é a de que a decisão recorrida nunca podia ter ordenado o cancelamento do registo da sua hipoteca nem da aquisição da propriedade pelo seu mutuário.
Sabemos do artigo 16º do mesmo Código que “O registo é nulo:
a) Quando for falso ou tiver sido lavrado com base em títulos falsos; (…)
”.  
O artigo 17º do Código do Registo Predial dispõe:
1 - A nulidade do registo só pode ser invocada depois de declarada por decisão judicial com trânsito em julgado.
2 - A declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da ação de nulidade.
3 - A ação judicial de declaração de nulidade do registo pode ser interposta por qualquer interessado e pelo Ministério Público, logo que tome conhecimento do vício”.
Nos factos provados 23, 24, 25 e 31 lê-se:
“23 - E venderam o prédio pelo valor de 90.000,00€ ao III. Requerido, sem terem auscultado o proponente que ofereceu a quantia anteriormente referida; 24 - Desde logo porque quem fez a proposta, sabia que o imóvel estava hipotecado e que os valores garantidos pela hipoteca, nunca foram liquidados; 25 - Os I. e II. Requeridos sabiam disso, e bem assim a legal representante do III. Requerido que trabalha na imobiliária acima melhor identificada (…)”; 31 - Puseram em causa os interesses e expectativas dos demais Requeridos, em particular o IV. Requerido, que concedeu empréstimo com base em documentos obtidos de forma fraudulenta”.
Destes factos resulta de modo claro que o IV Requerido, ora recorrente, estava de boa-fé, e quanto ao III Requerido, resulta da escritura pública de compra e venda, que a mesma foi celebrada por AC, procuradora do III Requerido, com poderes para o acto. Ora, ter poderes para o acto, ser procuradora, ser legal representante como se diz na decisão recorrida, não garante que o conhecimento que a mesma pessoa tivesse de que os créditos garantidos pelas hipotecas a favor do recorrido não haviam sido pagos se estenda, se comunique, ou que fosse também conhecido, para dizer mais simplesmente, do III Requerido. E só com este entendimento se consegue harmonizar o facto 25 com o facto 31.
Concluímos, pois, que também quanto ao III Requerido, o mesmo estava de boa-fé. Aliás, tendo a celebração da escritura de compra e venda sido acompanhada pela visualização online da certidão do registo predial, como da referida escritura consta, o aspecto que sobreleva é precisamente a presunção de fidedignidade dos dados registados, ou seja, o estabelecimento da confiança de terceiros na verdade que consta do registo. Na verdade, segundo o artigo 1º do Código do Registo Predial, este “destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário”. Se isto é claro quanto ao IV Requerido, pois não se concebe que nenhum Banco mutue contra hipoteca que não garante integralmente o direito a ser pago pelo produto do bem porquanto este está onerado com hipoteca anterior, a mesma presunção de fidedignidade sugere ou implica, em termos interpretativos da factualidade provada, que a afirmação do facto provado 31 prevaleça sobre a parte final do facto provado 25, nos seus precisos termos, ou seja, querendo provar, ainda que indiciariamente, que o III Requerido sabia que os créditos garantidos pelas hipotecas do Requerente não haviam sido pagos, e mais que isso, que o documento que serviu de base ao registo do cancelamento dessas hipotecas tinha sido falsificado, ao Requerente incumbia alegar este facto com precisão e prova-lo, o que não nos parece que seja o caso.
Doutra parte, e para efeitos da aplicação do artigo 17º nº 2 do Código do Registo Predial, propugnada pela recorrente, não está em causa, nos autos, a qualidade de terceiros dos III e IV Requeridos, nem está em causa a aquisição onerosa dos direitos que relativamente a eles estavam registados.
O tribunal, em matéria de direito, considerou:
“O decretamento de uma providência cautelar depende da concorrência dos seguintes requisitos: a) que muito provavelmente exista o direito tido por ameaçado - objecto da acção declarativa - ou que venha a emergir de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor; b) que haja fundado receio de que outrem antes de proferida decisão de mérito, ou porque a acção não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; c) que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado; d) que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar (artigos 362.º e 368.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil).
Para além dos referidos requisitos, para a procedência do pedido de cancelamento de vários registos e reposição dos averbamentos anteriores designadamente, de hipotecas já anteriormente registadas ainda é necessário a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: – ser o Requerente o titular da propriedade do imóvel que vendeu aos I. e II. Requeridos e seja capaz de apresentar o comprovativo autenticado em como procedeu por escritura publicas de compra e venda desse mesmo imóvel; – ter ocorrido perturbação, desaparecimento na ficha registral do imóvel em questão, das duas hipotecas voluntárias que foram ali inscritas a favor do Requerente, como forma de garantia dos negócios realizados, afectando o exercício do direito do titular inscrito; – demonstrar, ainda que de forma meramente indiciária, dado que nos encontramos perante uma providência cautelar, a nulidade por via de ser falso o documento denominado de “autorização de cancelamento”, seja porque a assinatura não corresponde à do Requerente, seja porque não foi o Cônsul ou outro funcionário devidamente habilitado, pertencente ao Consulado Geral de Portugal …, que carimbou e assinou aquela autorização, nos termos dos artigos 368.º do Código de Processo Civil e 286.º, 289.º, 294.º e artigo 295.º todos do Código Civil, que tratam da nulidade quanto aos negócios e actos com relevância jurídica designadamente, quando o acto possa envolver a prática de crime, qualquer que seja”.
Subsumindo a esta tese jurídica os factos, prosseguiu: “Logo, não correspondendo a uma ordem ou autorização claramente, que tivesse sido concedida pelo seu legítimo titular dos direitos reais de garantia concedidos, as hipotecas voluntárias a seu favor, sendo aliás falsificada a sua assinatura, bem como, eventualmente a do alegado Cônsul a reconhecer o documento em questão, tal documento é nulo, atenta a sua falsidade e porque não corresponde à verdade. Como tal, é nulo tudo quanto se faz a seguir nesta ficha registral: a venda do mesmo imóvel dos I. e II. Requeridos ao III. Requerido e ainda a constituição e registo de hipoteca a favor do IV. Requerido, o Banco X, S.A.”.
Em suma, para o tribunal, a nulidade da autorização de cancelamento é tratada segundo o regime da nulidade substantiva, com efeitos ao momento dela e destruição de tudo o que se passa depois do acto nulo. Em verdade, porém, o tribunal faz a ressalva: “é nulo tudo quanto se faz a seguir nesta ficha registral”. E em coerência ordenará a final o cancelamento dos registos a favor do III e do IV Requeridos e a reposição das inscrições a favor do Requerente – quer dizer, o tribunal não declarou a nulidade substantiva da compra e venda celebrada entre os I e II Requeridos e o III, nem da constituição da hipoteca pelo III Requerido a favor do IV. 
A aplicação do regime previsto no artigo 17º nº 2 do Código do Registo Predial ou do regime das nulidades substantivas previsto no Código Civil não é matéria simples.
Dos entendimentos doutrinários diversos nos dá conta o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.10.2019, proferido no processo 413/12.5TBBBR.C1 que se pode consultar no sítio electrónico da dgsi, e para o qual remetemos.
Citamos, por a ele aderir, o seguinte trecho de tal acórdão:
“Parece, no entanto, e à partida, não ser tão fácil assim destrinçar um vício de registo intrínseco de um extrínseco, como resulta, desde logo, da circunstância de perante situações materiais similares às dos presentes autos, no Ac STJ de 27/11/2018 (acima referido, relatado por Henrique Araújo), se ter entendido que «o registo (averbamento) do cancelamento da hipoteca (…) é extrinsecamente nulo, porque se baseia num titulo falso em que se alberga um negócio materialmente inexistente», e no Ac R L de 21/6/2018 (Mª José Mouro) se ter pressuposto nos averbamentos do cancelamento um registo intrinsecamente nulo em função da inexistência «de um qualquer negócio jurídico subjacente».
Tender-se-á a subscrever este último entendimento, na medida em que à fabricação dos documentos que estiveram na base dos cancelamentos das inscrições hipotecárias não preexistiu qualquer negócio entre o Banco A. e a R “A...” de que decorresse o reconhecimento por aquela de que a dívida hipotecária se mostrava extinta. Quer dizer, o que se regista por efeito da falsidade do título é uma «mera aparência da materialidade correspondente à noção do negócio respectivo» - termos com os quais Mota Pinto define e defende a categoria da inexistência jurídica face à nulidade do negócio, mais referindo que «julgamos ser a categoria da inexistência a que corresponde às estatuições dos art.ºs 245º e 246º (“a declaração não produz qualquer efeito”, pelo menos no caso de falta de vontade de acção ou da coacção física», acrescentando «e também na hipótese, subsumível por analogia àquela disposição, dos negócios sob o nome de outrém (p ex. falsificações) [26]».
Tratar-se-á no caso de um documento forjado, no qual nem sequer interveio um titulador, situação em que a própria Mónica Jardim refere que a falsidade do título não coincide nesta situação com a falsidade regulada pelas normas de direito substantivo – art.º 372º [27]
Destes diversos entendimentos a respeito das relações entre o art.º 17º CRP e o 291º do CC têm-se por preferíveis, desde logo, porque mais funcionais e claros, os que situam a aplicabilidade de uma ou outra dessas normas consoante o terceiro tivesse podido contar ou não com a existência de um registo anterior, devendo naturalmente proteger-se mais acentuadamente o terceiro que confiou nesse registo, por isso sendo mais favorável ao terceiro – num caso e noutro adquirente de boa fé e a título oneroso – o regime do art.º 17º/2 que tem por base a existência de um registo inválido, ao contrário do que sucede no regime do art.º 291º/2 CC[28]
As razões dessa invalidade podem ser muito variadas, como resulta do art.º 16º do CRP, mas quer o registo em causa se apresente como intrinsecamente ou extrinsecamente nulo o certo é que não deixou de implicar a confiança do terceiro no conteúdo do mesmo e faze-lo actuar com fundamento nessa confiança, não podendo deixar de se fazer notar que na situação a que os autos respeitam, interferiu, quer o sentido negativo da fé pública registal, na medida em que a 2ª e a 3ª RR. terão presumido a compleição do registo, quer o sentido positivo dessa mesma fé registal, na medida em que tais RR. terão presumido a exactidão do cancelamento das inscrições hipotecárias.
Se um entendimento deste tipo reduz consideravelmente o âmbito de aplicação do art.º 291º como o critica Mónica Jardim, a verdade é que a posição desta autora parece conduzir à enorme redução da aplicação do art.º 17º/2 CRP.
Assim, desde o momento que existiu registo a favor daquele de quem o terceiro adquire – veja-se que o cancelamento das inscrições hipotecárias constitui acto de registo percepcionável por potenciais interessados – que as 2ª e 3ª RR. estavam de boa fé - porque acreditaram, sem culpa, na fidelidade do registo à realidade substantiva e, consequentemente que as hipotecas que haviam existido a favor do Banco aqui apelante já se mostravam canceladas - tendo investido na confiança gerada pelo referido registo «praticando actos cuja destruição implica frustração de expectativas assentes precisamente nessa prática», tendo celebrado um acto oneroso «capaz de em abstracto, proporcionar uma aquisição de posições jurídicas e além disso na realização do registo desse mesmo acto», e verificando-se que «a deficiência de que padece a posição do terceiro deriva precisamente dos vícios da posição do seu causante», não se verificando «vícios específicos de acto de aquisição a favor do terceiro ou relativos ao seu registo, e mostrando-se o registo desta aquisição anterior ao registo (das presentes ações) para declaração da nulidade de nulidade» [29] -, há que garantir à 2ª e à 3ª RR. que não serão afetados pela declaração de nulidade do registo anterior (cancelamento das inscrições hipotecárias) que suportou a feitura do seu (referente à aquisição da propriedade plena).
Dever-se-á decidir, em consequência, que não obstante a nulidade do registo de cancelamento das hipotecas nos termos do art.º 17º/1 CRP, por força do art.º 17º/2 desta norma (e também em consequência do princípio geral acima referido extraível do disposto no art.º 732º CC referente à tutela de terceiros perante o cancelamento indevido de uma hipoteca), não se deverá determinar o cancelamento dos registos de aquisição de propriedade, sob pena de ser prejudicado o direito de propriedade da 2ª e 3ª RR. que adquiriram o mesmo de forma onerosa e de boa fé”. (fim de citação).
Está fora de dúvida a validade substancial da aquisição feita pelo III Requerido e da constituição da hipoteca a favor do IV Requerido, factos que foram registados posteriormente ao registo do cancelamento das hipotecas dos I e II Requeridos a favor do Requerente. Aderimos à tese de que a fabricação de um documento, pois que em nada nele intervém a vontade ou sequer a pessoa do seu declarante, não é um acto substantivamente nulo, mas um acto inexistente (em rigor estamos perante um instrumento para conseguir um acto juridicamente relevante, que é o registo do cancelamento das hipotecas) e que por isso não é de aplicar o regime das nulidades substantivas mas sim a previsão do artigo 16º al. a) e, relativamente aos terceiros de boa-fé em aquisição onerosa, o regime do artigo 17º do Código do Registo Predial.
Procede assim o recurso, revogando-se a decisão recorrida na parte em que ordenou “o imediato cancelamento dos seguintes registos que recaem sobre o: 
- prédio urbano sito na …, n.º …, freguesia de …, concelho …, inscrito na matriz sob o artigo ….º e descrito na Conservatória do Registo Predial …, sob a ficha n.º …, composto de 1 piso e quintal, destinando-se a habitação, os quais constam das Ap. n.º … de 2023/04/24 a favor de PL e, Ap. n.º … de 2023/04/27 a favor de Banco X, S.A..
No mais, mantém-se a decisão.
Tendo decaído no recurso, as custas são pelo recorrido – artigo 527º nº 1 e 2 do CPC.
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V. Decisão
Nos termos supra expostos, acordam os juízes que compõem este colectivo da 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa conceder provimento ao recurso e em consequência revogam a decisão recorrida na parte em que determinou “o imediato cancelamento dos seguintes registos que recaem sobre o: 
- prédio urbano sito na …, n.º …, freguesia de …, concelho …, inscrito na matriz sob o artigo ...º e descrito na Conservatória do Registo Predial …, sob a ficha n.º …, composto de 1 piso e quintal, destinando-se a habitação, os quais constam das Ap. n.º … de 2023/04/24 a favor de PL e, Ap. n.º … de 2023/04/27 a favor de Banco X, S.A..”, mantendo a decisão no demais.
Custas do recurso pelo recorrido.
Registe e notifique.

Lisboa, 23 de Novembro de 2023
Eduardo Petersen Silva
Teresa Soares
Nuno Gonçalves
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[1] Com aproveitamento do relatório da decisão de primeira instância.
[2] No relatório supra não mantivemos a identificação dos requeridos pelo número, sendo que as referências que são feitas na decisão ao I e II Requeridos o são às pessoas de BS e mulher, AP.
[3] Eliminamos a referência inicial, por conclusiva.
[4] Eliminamos as referências que são inúteis, e assim iremos proceder em todos os números em que introduzirmos parênteses.
[5] Mantemos a versão original da palavra.