EMPREITADA
ÓNUS DA PROVA
INVESTIGAÇÃO PROCESSUAL
PROVA PERICIAL
Sumário

I - Ao dono da obra basta provar a existência do defeito, presumindo-se a culpa do empreiteiro, o qual, para afastar a sua responsabilidade, terá que demonstrar que o defeito não procede de culpa sua.
II – Não tendo o empreiteiro alegado nenhuns factos excludentes da sua responsabilidade, não pode requerer uma perícia com a qual pretende descobrir esses factos.
III – Mas se a perícia proposta tem algum quesito que tem a ver com existência dos defeitos e para a percepção ou apreciação dessa matéria não se pode dizer que não sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, não se pode dizer que ela é impertinente nem dilatória e, por isso, não pode ser rejeitada.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

O Condomínio do edifício sito na Av. Infante Santo, em Lisboa, intentou contra R-Unipessoal, esta acção em que pede a condenação desta a (a) efectuar, imediatamente e a expensas suas, todas as obras necessárias tendentes a eliminar os defeitos existentes nas partes comuns do edifício, ou seja, as infiltrações acima identificadas; (b) a reparar os danos causados pelas mesmas, que se verificaram no interior da casa da porteira e do 1.º andar direito, que consistem, designadamente, nos alegados no artigo 39 da petição; mais (c) o pagamento ao autor [embora escreva “à A”] de 584€ que aquele teve de pagar à remodelações7486; e (d) a todos os danos que entretanto venham a verificar-se por causa da não reparação atempada dos defeitos da obra realizada pela ré.
O autor alega, em síntese, e no que agora importa, ter contratado a ré para a realização de diversas obras a efectuar no imóvel, uma vez que este apresentava problemas de infiltrações numa empena que se reflectiam em três fracções autónomas, isto é, as ocorrências verificadas na casa da porteira bem como nos 1.º e 2.º andares direitos, resultavam de problemas existentes nas partes comuns do edifício (muro/empena); na sequência de um contacto prévio, no qual o autor visitou com a ré o imóvel e lhe mostrou os problemas quer nas partes comuns, quer no interior das fracções e solicitou a resolução dos mesmos, a ré apresentou um orçamento que foi aprovado/aceite e foi-lhe adjudicada a obra, que o autor pagou e a ré realizou. As obras executadas pela ré tiveram lugar na casa da porteira e em algumas zonas comuns do imóvel, designadamente no muro (“empena”) do edifício e ainda nos 1.º e 2.º andar direitos do prédio; as obras de reparação das zonas comuns do edifício (muro/empena), não foram realizadas em condições pela ré e no final do ano em que acabaram e no final do ano seguinte os proprietários das fracções do 1.º andar e casa da porteira começaram a verificar que no interior dos seus apartamentos surgiam manchas de humidades e bolores, exactamente nas zonas que haviam sido intervencionadas pela ré; o autor reclamou várias vezes, em Dez2020 e Jan2021, a existência de tais problemas, solicitando a reparação urgente do problema, mas a ré nunca levou a cabo as obras necessárias à sua eliminação; porque permaneceram por reparar as obras das partes comuns, designadamente, na empena do edifício, as infiltrações continuaram a agravar-se nas fracções em causa; os problemas que o imóvel, bem como as fracções, apresentam são os melhor documentadas nas fotografias que se juntam; consistem, entre outros, em: Casa da porteira: apodrecimento de estuque, infiltrações, escorrências, empolamento de tintas, bolores e fungos; Empena do prédio: infiltrações, empolamento de tintas, apodrecimento de estuque, bolores e fungos; 1.º andar: infiltrações, apodrecimento de estuque, escorrências, empolamento de tintas, bolores e fungos (artigo 39 da PI); e resultam, todos eles, de deficiente execução das obras realizadas pela ré nas partes comuns.
A ré contestou, entre o mais impugnando alguns dos factos por falsos e outros por desconhecimento; alega, na parte que agora importa, que (38) a casa da porteira, o 1.º andar direito e o 2.º andar direito apresentavam diversos problemas que comprometiam a habitabilidade, sendo apenas alguns eram consequência das avarias no muro ou empena exterior do edifício; (39) as obras no muro ou empena exterior do edifício foram realizadas segundo o que foi acordado entre o autor e a ré, com o resultado por ambos pretendido; (54) não houve obras nenhumas que ficaram por realizar na empena do edifício que tenham agravado infiltrações; (55) se houve ou há apodrecimento do estuque, infiltrações, escorrências, empolamento de tintas, bolores e fungos, os mesmos não resultam de imprópria execução das obras realizadas pela ré.
A ré terminou entre o mais com um requerimento de realização de prova pericial, indicando como objecto as questões de facto respeitantes aos artigos 38, 39, 54 e 55 da contestação, assim enunciadas: 1º Que problemas, comprometendo a habitabilidade da casa da porteira, do primeiro andar direito e do segundo andar direito, eram consequência das avarias no muro ou empena exterior do edifício? 2º As obras no muro ou empena exterior do edifício foram realizadas segundo o que foi acordado entre o autor e a ré, com o resultado por ambos pretendido? 3º Houve obras que ficaram por realizar na empena do edifício que tenham agravado infiltrações? 4º Houve ou há apodrecimento do estuque, infiltrações, escorrências, empolamento de tintas, bolores e fungos resultantes de imprópria execução das obras realizadas pela ré?
Na acta da audiência prévia, o tribunal convidou a ré a concretizar os termos da perícia por forma a que ao Sr. Perito cumpra, apenas, responder se considera verificada ou não verificado (ainda que de forma explicativa) cada um dos pontos indicados na contestação.
A ré nada fez.          
No despacho saneador fixaram-se os seguintes temas de prova, na parte que importa: 1- As consequências da má execução das obras, pela ré, nas partes comuns, são as seguintes: a) Casa da porteira: apodrecimento de estuque, infiltrações, escorrências, empolamento de tintas, bolores e fungos; b) Empena do prédio: infiltrações, empolamento de tintas, apodrecimento de estuque, bolores e fungos; c) 1.º andar: infiltrações, apodrecimento de estuque, escorrências, empolamento de tintas, bolores e fungos?
E, depois, o despacho saneador prosseguiu assim:
“Quanto à realização de perícia: A ré requereu a realização de perícia, nos seguintes termos: [está transcrito acima]. Nos termos do artigo 475/1 do CPC “Ao requerer a perícia, a parte indica logo, sob pena de rejeição, o respectivo objecto, enunciando as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da diligência. (…).” Da leitura que foi feita da proposição do objecto da perícia, conclui-se que as questões pretendidas assumem carácter aberto e conclusivo. Daí que se haja convidado a ré a concretizar as questões de facto que deveriam integrar o objecto da perícia. Não tendo sido acedido ao convite que foi dirigido à ré, no sentido de concretizar os termos da perícia, por forma a que ao Sr. Perito cumprisse apenas, responder se considera verificado ou não verificado (ainda que de forma explicativa) cada um dos pontos de factos tidos por relevantes (não se substituindo às partes quanto à definição de que pontos deverão ser considerados relevantes), concluo que a imprecisão[/o] carácter conclusivo das questões formuladas remete para o perito uma descrição factual e a formulação de juízos relativamente aos quais a própria ré não fixa as questões de facto que os possam sustentar. Pelo exposto, não vejo utilidade na realização de perícia, dados os termos conclusivos e facticamente insubsistentes em que se pretende que seja fixado o respectivo objecto. Assim, por constituir a prática de um acto inútil, dados os termos imprecisos em que se pretende a fixação do respectivo objecto, rejeito a realização de perícia – cf. artigo 6 e 476/1, a contrario do CPC.”
A 30/08/2023, ré interpôs recurso deste despacho, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1\ A acta da audiência de partes, de 12/05/2023, a convidar a ré a aperfeiçoar os quesitos que iriam integrar a prova por perícia, não comina a sua falta com uma eventual rejeição da prova requerida, pelo que não se acha cumprido no pleno o disposto pelo artigo 7 do CPC.
2\ O convite formulado não obriga a parte, a quem ele é dirigido, a ré, a fornecer os esclarecimentos solicitados, sem que isso signifique abandono do seu interesse, no prosseguimento da apreciação daquilo que foi por ela anteriormente requerido em sede de requerimento probatório.
3\ Ademais, a ré respeitou, na contestação, escrupulosamente ao que está obrigada em termos legais (artigos 474 a 476 do C[P]C).
4\ A ré delimitou a perícia por quesitos e a matéria que levou aos quesitos está alegada e impugnada, na petição inicial e na contestação.
5\ Não pode ser assacada à ré falta de concretização, usando terminologia vaga, imprecisa e/ou conclusiva, na matéria questionada quando a mesma está alegada.
6\ A ré não pode, porque aí, sim, estava no domínio proibido da perícia requerida, substituir termos, expressões, usar de sinónimos, para melhorar os seus quesitos, porque a sua fronteira são os factos alegados, eleitos, bem ou mal, pelas partes.
7\ A matéria levada à perícia tanto pode se reportar ao alegado no respectivo articulado de defesa como ao que foi alegado pela parte contrária, nos termos do disposto pelo artigo 475/2 do CPC.
8\ A perícia, nos moldes em que foi organizada pela ré, não é nem impertinente nem dilatória, que, aliás, não foi a fundamentação do despacho que levaria à rejeição da perícia.
9\ A perícia não é inútil, contrariamente ao invocado pelo tribunal a quo, porque o seu objecto, inscreve-se na matéria controvertida em apreciação, que se acha, inclusivamente, indicada nos temas da prova.
O autor foi presumivelmente notificado por via electrónica no mesmo dia pela ré e, até ao fim do prazo para a resposta, 15/09/2023, ou 20/09/2023 contando com o prazo de tolerância, nada disse.
Apesar do termo do prazo, já com tolerância, ter ocorrido a 20/09/2023 e de a audiência final ter sido designada para 09/11/2023, só a 16/10/2023, quase um mês depois de o poder ter sido, foi aberta conclusão para admissão do recurso.
No dia 16/10/2023 foi admitido o recurso, em separado, com efeito devolutivo.
Apesar da admissão do recurso a 16/10/2023, a secção do tribunal recorrido só a 09/11/2023, dia designado para a audiência final, quase um mês depois, remeteu os autos para este TRL, o que poderá ter como consequência a inutilização de tudo o que tiver sido realizado, entretanto, pelo tribunal recorrido.
*
Questão que importa decidir: se a perícia devia ter sido admitida.
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Apreciação:
I
Nas acções em que se pede a reparação, por um empreiteiro, dos defeitos que uma obra de reparação de defeitos apresenta, o dono de obra, autor, tem o ónus alegar e provar a existência dos defeitos (art. 342/1 do CC).
Por sua vez, é ao empreiteiro que cabe o ónus de alegar e provar que o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua (art. 799 do CC), isto é, os factos que tornam inimputável a ele os defeitos verificados. Isto é, “a alegação e a prova das razões justificativas do não cumprimento.”
Assim, por exemplo, Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. II, 4.ª edição, Almedina, 1990, págs. 95 a 97.
E também Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso, Em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Almedina, Teses, 1994, págs. 357 a 362;
357: “Se o defeito é da coisa prestada, aquele que a recebeu terá de provar a desconformidade. Esta regra vale tanto para a prestação primeiramente efectuada, como para os casos em que a coisa foi reparada, mas o defeito permanece, ou a prestação foi substituída, sendo igualmente imperfeita”; 359: “não é aceitável que sobre o credor impenda o ónus de provar as causas do defeito [em nota invoca neste sentido, o ac. do STJ de 12/12/1978, no BMJ 282, págs. 172 e segs]. As pretensões são válidas ainda que os motivos do aparecimento do defeito sejam desconhecidos.”
Esse ónus, como explica este Professor, não inclui nem o de provar as causas do defeito, nem os motivos do aparecimento do defeito, isto é, as causas da errada reparação. Nem, ainda, a anterioridade do defeito ou a viabilidade da eliminação do defeito.
 No mesmo sentido, Cura Mariano, Responsabilidade contratual do empreiteiro pelos defeitos da obra, 2015, 6.ª edição, Almedina, páginas 59 e 71, especialmente esta última: 
“O estabelecimento desta presunção [de culpa – juris tantum] resulta do facto de, sendo a culpa, segundo as regras da experiência, normalmente inerente ao incumprimento contratual, deve competir ao devedor provar a verificação da situação anormal de ausência de culpa. Além disso, sendo o devedor quem controla e dirige a execução da prestação tem maior facilidade de conhecer e demonstrar a causa da verificação do incumprimento.
Assim, ao dono da obra bastará provar a existência do defeito [o cumprimento deste ónus bastar-se-á com a demonstração do simples deficiente funcionamento da obra, não sendo necessária a prova da causa desse mau comportamento], presumindo-se a culpa do empreiteiro, o qual, para afastar a sua responsabilidade terá que demonstrar que o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua.
Este ónus de prova não se satisfaz com a simples demonstração que o empreiteiro, na realização da obra, agiu diligentemente, ficando o tribunal na ignorância de qual a causa e quem merece ser censurado pela verificação do defeito apontado pelo dono da obra. Nesta situação, continua a funcionar a presunção de que o devedor da prestação é o culpado. O empreiteiro tem que provar a causa do defeito, a qual lhe deve ser completamente estranha, o que bem se compreende pelo domínio que este necessariamente teve do processo executivo da prestação.”
No mesmo sentido, Pedro de Albuquerque e Miguel Assis Raimundo, Direito das Obrigações, 2012, vol. II, Almedina, págs. 384 a 389 e 398 a 405.
Também neste sentido, Lebre de Freitas, O ónus da denúncia do defeito da empreitada no artigo 1225 do Código Civil. O facto e o direito na interpretação dos documentos, O Direito, 1999, especialmente págs. 239 a 244, que cita um autor italiano que diz que:
“A bondade da execução, de facto, julga-se pelos resultados: se a obra rui ou é defeituosa, tal significa que não foram empregues a diligência e a perícia devidas. Em face disto, não jogaria ter de se provar que se adoptou toda a diligência e perícia devidas: uma prova dessas não poderia, por sua natureza, ser plenamente conseguida e contrastaria com o resultado material constituído pela ruína, etc. [perigo de ruína ou defeito grave]. Em vez disso, o empreiteiro, querendo provar a falta da sua culpa, deve alegar factos positivos, precisos e concludentes. Se não o fizer, não há presunção absoluta de culpa nem culpa in re ipsa, mas culpa efectiva"
E mais à frente (242-243), Lebre de Freitas acrescenta:
“O dono da obra não tem, pois, de provar que o defeito, oculto à data da entrega da obra, que nesta se vem a verificar, se deve à execução da empreitada, à concepção do projecto ou à implantação deste no solo: apenas lhe cabe provar a existência do defeito, na parte do prédio em que interveio, e a sua gravidade. O resto, isto é, a prova dos factos excludentes da responsabilidade do empreiteiro pelo facto danoso assim verificado, é com o empreiteiro. O entendimento inverso (ao dono da obra caberia provar, não só o defeito da obra na sua expressão material, mas também aquilo que o originou, a fim de se determinar se é ou não imputável ao empreiteiro) levaria, sem qualquer justificação racional, a onerar o credor com uma prova que, nos termos gerais, não lhe cabe suportar.  A identificação dos factos constitutivos e impeditivos faz-se por interpretação das normas de direito substantivo, nomeadamente por distinção, no Tatbestand duma norma, entre o que constituí a regra (facto constitutivo) e o que constitui a excepção (facto impeditivo). A análise do art. 1225 do CC leva a nele identificar os elementos integradores do facto danoso (constitutivo) e do facto excludente da culpa (impeditivo) que ficam referidos.
Sendo assim, não é exigível ao dono da obra que, ao denunciar o defeito, indique também ao empreiteiro a respectiva causa. Não faria, efectivamente, sentido que o dono da obra tivesse o ónus de invocar extrajudicialmente, para o efeito da denúncia, a realidade de factos que, dada a coincidência de princípio das regras de distribuição do ónus da prova com as que regem o ónus da alegação [artigos 342 do CC, 467/1-f CPC e 487/2 CPC], não tem que alegar judicialmente e, portanto, pode ignorar. Isso corresponderia, nomeadamente quando o dono da obra não estivesse tecnicamente habilitado a averiguar a causa do defeito que constata, a exigir-lhe o recurso a peritos para chegar a uma conclusão de facto cuja única utilidade seria proporcionar o subsequente juízo jurídico de imputabilidade quando é ao empreiteiro que cabe provar a causa de exclusão da imputabilidade que a lei "presume”!
Não se podendo concluir pela existência de defeitos e cabendo ao dono da obra a alegação e prova da existência dos mesmos, a conclusão é óbvia: não se pode falar de defeitos e tal corre contra o dono da obra.
II
Diz Castro Mendes:
“A investigação processual não é uma actividade de descoberta da verdade sobre certo evento ou complexo de eventos, mas uma actividade de confirmação ou prova de um certo número de afirmações previamente feitas sobre os mesmos eventos; não se destina à aquisição de conhecimentos novos, mas à demonstração da verdade de factos já alegados em juízo, e que só resta confirmar – à prova, em suma. O art. 2404 do Código Civil de 1867, numa definição que se pode considerar basicamente correcta, define prova como a ‘demonstração da verdade dos factos alegados em juízo’” (Direito Processual Civil, AAFDL, III, 1982, pág. 185).
Dito de outro modo: a instrução feita no decurso de um processo destina-se à prova das afirmações de facto feitas pelas partes, não à investigação de factos que permitam às partes fazer afirmações de facto (art. 341 do CC). A investigação de factos não se faz durante o processo. A instrução é uma investigação da verdade das afirmações de facto feitas pelas partes com base na investigação dos factos que estas fizeram ou deviam ter feito antes do processo.
Lebre de Freitas, A acção declarativa comum, 5.ª edição, 2023, Gestlegal, pág. 245:
“A produção dos meios de prova no processo visa demonstrar a realidade dos factos alegados pelas partes ou, em outra perspectiva, demonstrar a verdade da alegação por elas feita. […] […] a função probatória é precedida pela afirmação de que o facto ocorreu: a alegação precede a prova […].”
Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil, 5.ª edição, 2023, Gestlegal, pág. 234, diz:
“O princípio do inquisitório (supra, n.º II.6.6) aponta já para uma concepção do processo civil, diversa da primitiva concepção liberal, em que a investigação da verdade é da responsabilidade do juiz. Na sua pureza, implicaria que a iniciativa do juiz não se limitasse ao plano da prova e, invadindo igualmente o da recolha do material a provar, se traduzisse na livre investigação judicial dos factos. Não é assim, porém, nos siste­mas processuais dos Estados democráticos de tipo ocidental (supra, n.º II.6 (35)), em que, dominando o princípio da controvérsia a recolha dos factos da causa, apenas no campo da prova tem também aplicação o princípio do inquisitório […]”
III
O art. 388 do CC dispõe sobre o objecto: A prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem […]
O art. 475 do CPC dispõe sobre a indicação do objecto da perícia: 1 - Ao requerer a perícia, a parte indica logo, sob pena de rejeição, o respectivo objecto, enunciando as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da diligência. 2 - A perícia pode reportar-se, quer aos factos articulados pelo requerente, quer aos alegados pela parte contrária.
O art. 476 do CPC dispõe sobre a fixação do objecto da perícia: 1 - Se entender que a diligência não é impertinente nem dilatória, o juiz ouve a parte contrária sobre o objecto proposto, facultando-lhe aderir a este ou propor a sua ampliação ou restrição. 2 - Incumbe ao juiz, no despacho em que ordene a realização da diligência, determinar o respectivo objecto, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes ou ampliando-o a outras que considere necessárias ao apuramento da verdade.
Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, 2017, esclarecem:
“[…] é impertinente, por não respeitar aos factos da causa, ou dilatória, por, respeitando embora aos factos da causa, o seu apuramento não requerer o meio de provar pericial, por não exigir os conhecimentos especiais que esta pressupõe (art. 388 do CC). Sendo a diligência impertinente ou dilatória, o juiz indefere-a e despacho de indeferimento é recorrível nos termos gerais. […]
Não havendo indeferimento é notificada a parte contrária para se pronunciar sobre o objecto da perícia, ao qual pode aderir, ou cuja ampliação ou restrição pode propor. […] Com a pronúncia da parte contrária sobre os pontos de facto propostos, exerce-se o contraditório antes de o juiz decidir. […]
A determinação final do objecto da perícia é feita pelo juiz, ao qual compete dele excluir as questões de facto, propostas pelas partes, que julgue inadmissíveis ou irrelevantes e acrescentar-lhe outras que considere necessárias.
O juízo de admissibilidade e relevância, a que se refere o n.º 2, não se confunde como que permite ao juiz, nos termos do n.º 1, decidir sobre a impertinência ou o carácter dilatório da diligência requerida. Inicialmente, o juiz limita-se a verificar se a diligência, em si, é de deferir ou rejeitar, na totalidade. Agora, depois de ouvida a parte contrária, trata-se de determinar o objecto da diligência, reduzindo-o se for caso disso. […]”
*
Tendo presente o que consta das três partes anteriores, veja-se:
A
No art. 38 da contestação, a ré limitava-se a dizer: A casa da porteira, o 1.º andar direito e o 2.º andar direito apresentavam diversos problemas que comprometiam a habitabilidade, sendo apenas alguns eram consequência das avarias no muro ou empena exterior do edifício;
E agora, no quesito 1º, quer que se averigúe: Que problemas, comprometendo a habitabilidade da casa da porteira, do primeiro andar direito e do segundo andar direito, eram consequência das avarias no muro ou empena exterior do edifício?
Ou seja, a ré não afirmava quais os problemas que as fracções em causa apresentavam, limitava-se a dizer que os problemas que foi contratada para resolver não eram todos os problemas que havia. E agora quer que se averigúem que outros problemas havia para além dos que teria sido contratada para resolver.
Ou seja, a ré quer fazer uma investigação de factos, não uma actividade de demonstração de factos que tenha alegado.
Não pode ser.
Para além disso, os defeitos que estão em causa são os constantes do tema de prova 1 e não outros.
B
No art. 39 da contestação, a ré dizia: (39) As obras no muro ou empena exterior do edifício foram realizadas segundo o que foi acordado entre o autor e a ré, com o resultado por ambos pretendido.
E agora, no quesito 2º quer que se averigúe se: As obras no muro ou empena exterior do edifício foram realizadas segundo o que foi acordado entre o autor e a ré, com o resultado por ambos pretendido?
Quanto à primeira parte da afirmação genérica/quesito, a ré não afirmava como é que a execução devia ter sido efectuada, pelo que o que ela quer é que a perícia averigúe como é que a prestação devia ter sido efectuada.
De novo, não pode ser: trata-se de investigação de factos e não de demonstração de factos alegados. E para além disso, trata-se de um facto irrelevante: não interessa como é que a prestação foi realizada.
É certo, entretanto, que o tema de prova 1, reproduzindo a alegação correspondente do autor fala “nas consequências da má execução das obras, pela ré, nas partes comuns […]”. Mas, nessa parte, não se trata de uma alegação de facto, mas apenas da afirmação, pela autora, de um pressuposto implícito do pedido: os defeitos existem devido à má execução. Ora, como é dito acima, é à ré que incumbia alegar os pressupostos excludentes da sua responsabilidade, sendo que a boa execução da obra nem sequer é um desses factos (vejam-se as partes sublinhadas, para este efeito, das passagens citadas de Cura Mariano e do autor italiano).
Já a segunda parte da afirmação e do quesito corresponde a pôr em causa a existência dos defeitos. Averiguar se a obra feita teve o resultado pretendido, é o mesmo que averiguar se ela não tem os defeitos apontados pelo autor e constantes do tema de prova 1.
Portanto, a 2.ª parte do quesito 2.º tem pertinência, pois que diz respeito ao tema de prova 1.
E não se pode dizer que seja dilatória, embora à primeira vista pareça que sim, pois que não são necessários conhecimentos especiais para a percepção e apreciação do apodrecimento de estuque, de escorrências, do empolamento de tintas, [e da existência de] bolores e fungos. Até porque a ré admite que eles possam existir, quando diz: “se houve ou há […]”
Mas já quanto às infiltrações, apesar de esta última frase da ré também se lhes aplicar, não se pode dizer, sem mais, que não são necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem para a percepção ou apreciação delas.
C
No art. 54 da contestação a ré dizia que: Não houve obras nenhumas que ficaram por realizar na empena do edifício que tenham agravado infiltrações.
E agora, no quesito 3.º, quer que se averigúe se: Houve obras que ficaram por realizar na empena do edifício que tenham agravado infiltrações?
Ora, o autor não afirmava – nem tinha que o fazer - que tivessem sido deixadas de fazer obras pela ré. E a pretensão de demonstrar a realidade de um facto que não foi afirmado é impertinente. O cumprimento imperfeito que está em causa nos autos não é a falta de realização de parte da obra contratada.
D
No art. 55 a ré diz que: Se houve ou há apodrecimento do estuque, infiltrações, escorrências, empolamento de tintas, bolores e fungos, os mesmos não resultam de imprópria execução das obras realizadas pela ré.
E, agora, no quesito 4.º quer que se averigúe se: Houve ou há apodrecimento do estuque, infiltrações, escorrências, empolamento de tintas, bolores e fungos resultantes de imprópria execução das obras realizadas pela ré?
Ou seja, a ré não quer que se averigúe se há defeitos ou não, o que quer é que se averigúe se os defeitos que se apurarem existir – e que ela até admite que possam existir, tendo-os impugnados apenas com base no desconhecimento deles - foram resultantes da imprópria execução das obras pela ré.
Ora, não interessa para nada apurar se os defeitos resultaram da imprópria execução das obras pela ré, o que interessa é saber se eles existem. Se eles existirem, não importa que não fique apurado que eles resultaram da imprópria execução das obras pela ré.
E, por outro lado, a ré quer averiguar factos, não quer a demonstração da realidade de factos que tenha afirmado.
É, pois, impertinente.
*           
De tudo isto decorre que se compreende a posição do despacho que indeferiu o meio de prova em causa e que esse despacho tem quase toda a razão. Se realmente todos os quesitos formulados pela ré se revelassem impertinentes ou dilatórios, poderia concluir-se pela impertinência, em bloco, de todo o meio de prova em causa. No fundo, o despacho recorrido tratou de constatar que a ré não cumpriu os ónus de alegação de quaisquer factos que possam afastar a sua responsabilidade pelos defeitos… se eles se vierem a apurar. E que, no essencial, a ré quer transformar a instrução do processo naquilo que ela não é, isto é, quer transformá-la numa actividade de investigação de factos.
Mas, ainda assim, a ré impugnou o facto principal constitutivo do direito do autor: a existência dos defeitos. Se eles não se provarem, a acção vai ao ar. Ora, a perícia, na 2.ª parte do quesito 2, pode pôr em causa a existência dos defeitos, pelo que não se pode recusar a sua pertinência, embora numa pequeníssima parte, e, pelo que acima já foi dito, não se pode dizer também que ela é dilatória, embora apenas nessa pequena parte.
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A necessidade de apreciar se em relação a todo o objecto pericial proposto pela ré era impertinente ou dilatório, levou à análise de todos os quesitos e à demonstração da impertinência de 7/8 deles (sobrou a 2.ª parte do 2.º). Apesar disso, neste acórdão, este TRL só pode dizer que a perícia não devia ter sido indeferida (na sua totalidade). Ela tem de ser admitida e só depois de ouvir o autor (e eventualmente a ré se o autor propuser a ampliação ou a restrição do objecto da perícia) é que se poderá, a seguir, restringir a perícia apenas à 2.ª parte do 2.º quesito, se esse também for o entendimento do tribunal recorrido (ou seja, está-se a dizer que, nesta parte, o entendimento deste TRL não vincula o tribunal recorrido).
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Porque o recurso não foi atempadamente remetido (apesar de o poder ter sido), há que prever a hipótese de já se ter realizada a audiência final. Ora, se em consequência da procedência do recurso, se vai ter que produzir prova pericial, a audiência realizada não pode ser aproveitada pelo que, para esse caso, terá de ser anulada em consequência da revogação do despacho recorrido.
*
Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o despacho recorrido, deferindo agora a realização da perícia, com o objecto que vier a ser definido pelo tribunal recorrido depois da observância do contraditório e anulando a audiência final se já tiver sido realizada e a sentença se já tiver sido proferida.
Custas do recurso, na vertente de custas de parte, pelo autor.

Lisboa, 23/11/2023
Pedro Martins
Paulo Fernandes da Silva
Susana Mesquita Gonçalves