DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
PRESSUPOSTOS
DECISÃO JUDICIAL CONSTITUTIVA
Sumário


I – Apenas há lugar à declaração da extinção da instância, por deserção, quando o processo aguarda há mais de seis meses a prática de qualquer acto processual que legalmente compete a uma das partes e desde que se demonstre a negligência dessa parte na respetiva conduta omissiva – não basta o mero decurso do prazo de seis meses para que ocorra a deserção da instância, é necessário, também, apurar-se se o processo está parado por negligência das partes.
II – E esta, só opera mediante decisão judicial constitutiva – a deserção não existe enquanto o juiz a não declara no processo respetivo –, pelo que enquanto não for proferida, ou se proferida “contra legem”, é lícito às partes promover utilmente o seguimento do processo.
III – Apresentando o instituto da deserção um custo – a perda da atividade que se exerceu no processo – e um rendimento – libertação de processos parados e estimulação das partes a ser diligentes e ativas, induzindo-as a promover o andamento dos autos –, a ponderação de tais vantagens e desvantagens deverá levar a que se reduza o mais possível o custo, sem prejudicar fundamentalmente o rendimento.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


Processo n.º 181/21.0T8CBR-C1

(Juízo de Família e Menores de Coimbra - Juiz 2)

Acordam os Juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório

Procede-se a inventário facultativo para partilha de bens, a requerimento de AA, divorciado, residente na ... ..., contra BB, divorciada, residente na ... ...

A Requerida, tendo sido notificada para o efeito – “Notifique a interessada para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos cópia legível do contrato promessa que juntou no requerimento com a ref. 6981305 (em 14.01.2022), bem como certidão predial da verba que indicou como nº 16 da reclamação à relação de bens” -, veio dizer o seguinte:

“Junta cópia do Contrato promessa da verba n.º 16.

No que respeita à certidão predial a Inventariada não dispõe do referido documento nem o consegue solicitar às entidades competentes, porquanto não dispõe dos elementos necessários para a sua obtenção, nomeadamente qual o n.º da matriz.

Deste modo, o Cabeça de casal é quem tratava e guardava toda a documentação referente a todos os bens, pelo que deverá o mesmo ser notificado para vir juntar tal certidão ou indicar os elementos para a Inventariada o solicitar”.

Pela julgadora do Juízo de Família e Menores de Coimbra - Juiz ... foram proferidas as seguintes decisões:

A-Com data de 4.11.2022;

“ Ref. 7609813:Notifique o cabeça de casal para, no prazo de 10 dias, alegar o que tiver por conveniente. 

04.11.2022”

B-Com data de 29.11.2022;

“Aguardem os autos a junção da certidão do registo predial do imóvel acusado relacionar (ref. 6981305), sem prejuízo do disposto no artigo 281º, nº 1 do CPC.

Notifique.

29.10.2022”.

C-Com data de 24.05.2023;

“Nos termos dos artigos 281º, nº 1, 138º, nº 1, 2ª parte, 277º, al. c) todos do CPC, julgo extinta a instância por deserção.

Custas a cargo da requerente – artigo 527º do CPC. 

24.05.2023”

AA, cabeça de casal, melhor identificado nos autos à margem referenciados, não se conformando com as decisões proferidas em 29/11/2022 - referência 89864620 - e em 24/05/2023, - referência 91360720 -, interpõe o seu recurso, assim concluindo:

A - Foi proferido um despacho de fls., com a referência 89864620 a notificar o cabeça de casal para juntar aos autos uma certidão do registo predial de um imóvel, sem prejuízo do disposto no artº. 281º, nº.1 do C.P.C., em 29-11-2022

B – A notificação do mesmo ao cabeça de casal foi certificada pelo citius em 30-11-2022, cfr. de fls. , considerando-se este notificado em 05/12/2022

C - No dia seguinte, ou seja, no dia 06/12/2022 iniciou-se a contagem para o decurso de seis meses para a instância poder vir a ser julgada deserta, caso não fosse praticado o acto por negligência - artº 281º, nº 1 do C.P.C. - o que decorreria até ao dia 06/06/2023

D – Em 24/05/2023, ou seja, 5 meses e 18 dias após a notificação ao cabeça de casal, aqui Recorrente, do alerta para o início do decurso do referido prazo de seis meses foi proferido um despacho com a referência 91360720, a julgar extinta a instância por deserção, cfr. fls.

E - Em 05/06/2023 o cabeça de casal, aqui Recorrente, juntou aos autos uma certidão do prédio em causa, alegando e justificando ainda as dificuldades para obtenção da mesma e as diligências efectuadas, requerendo o prosseguimento dos autos

F – O Recorrente invocou até  a falta de julgamento da conduta do cabeça de casal que deveria ser apreciada, e ainda os princípios do aproveitamento dos atos já praticados e da economia processual

G - Em 27/06/2023 foi proferido o despacho com a referência 91661152, de fls. , decidindo que “esgotou-se o poder jurisdicional sobre tal questão – artº. 613º, nº.1 do C.P.C.”

H – Em 24/05/2023 não tinha decorrido o prazo de seis meses previsto para a instância poder ser julgada extinta, nos termos do artº. 281º do C.P.C., pelo que as decisões em crise estão contra a lei, em clara violação do disposto no artº 281º, nº 1 do C.P.C., da jurisprudência dominante e dos princípios da gestão processual, da economia e do aproveitamento dos actos, devendo ser substituídas por uma decisão que ordene o prosseguimento dos autos

TERMOS EM QUE DEVERÃO SER REVOGADAS AS DECISÕES SUPRA IDENTIFICADAS E SUBSTITUÍDAS POR OUTRA QUE ORDENE O PROSSEGUIMENTO DOS AUTOS ASSIM SE FAZENDO

JUSTIÇA

2. Do objecto do recurso

O Apelante baliza-o nestes termos:

“12 - Em 05/06/2023 o cabeça de casal, aqui Recorrente, juntou aos autos uma certidão do prédio em causa, alegando e justificando ainda as dificuldades para obtenção da mesma, assim como as diligências que foram necessárias para ter conseguido tal documento

13 - Requerendo o prosseguimento dos autos e demonstrando que ainda não tinha decorrido o prazo de seis meses previsto para a instância poder ser julgada deserta (aliás, constando até em tal requerimento que o despacho que advertiu para a possibilidade do decurso do prazo para a extinção da instância por deserção se considerou notificado em 04/12/2023, mas trata-se de um lapso atendendo a que foi um domingo e se transferiu para o dia útil seguinte – 05/12/2022)

14 - Ou ainda, caso assim não se entendesse (o que só por mera cautela de raciocínio se equacionou), invocou também a falta de julgamento da conduta do cabeça de casal que deveria ser apreciada, e ainda os princípios do aproveitamento dos atos já praticados e da economia processual

(…)

17 - No entanto, em 27/06/2023 foi proferido o despacho com a referência 91661152, de fls. , decidindo que “esgotou-se o poder jurisdicional sobre tal questão – artº. 613º, nº.1 do C.P.C.”

18 - Pelo ora exposto, e resulta dos próprios autos, em 24/05/2023 não tinha decorrido o prazo de seis meses previsto para a instância poder ser julgada extinta, nos termos do artº. 281 do C.P.C.

19 – Além, do que já fica alegado, ainda se diga que uma decisão de deserção da instância assenta na verificação da existência de negligência, não sendo possível concluir que a conduta do requerente padeceu de tal mal sem que tivesse sido ouvido sobre as diligências que andou a fazer e a razão de não ter juntado o documento solicitado

20 – Neste sentido tem decidido a jurisprudência, veja-se por todos o Ac TRP, de 02/02/2015

21 – Acresce ainda que ainda se revelando útil a instância atendendo a que a partilha de bens não está concluída, e para evitar a repetição da instância, em nome do princípio do aproveitamento dos actos já praticados e da economia processual não deveria a mesma ser extinta sem mais – veja-se neste sentido o Ac RP de 10/02/2015, no processo 3936/08.7 TJ CBR.C1, publicado em 25/02/2015

22 - Assim sendo, considera-se que andou mal o Tribunal recorrido quando decidiu declarar extinta a oposição, por deserta, e mais tarde quando não reparou o lapso e entendeu ter-se esgotado o poder jurisdicional

23 – O tribunal deveria ter ordenado o prosseguimento dos autos, por não ter decorrido sequer o prazo de seis meses previsto para a possibilidade de julgamento de deserção da instância

24 – As decisões em crise estão contra a lei e em clara violação do disposto no artº 281º, nº 1 do C.P.C. e dos princípios da gestão processual, da economia e do aproveitamento dos actos, devendo ser substituídas por uma decisão que ordene o prosseguimento dos autos”.

Avaliando.

Os factos com interesse para esta decisão:

“1 - Foi proferido um despacho - referência 89864620 - a notificar o cabeça de casal para juntar aos autos uma certidão do registo predial de um imóvel, sem prejuízo do disposto no art.º 281º, nº.1 do C.P.C.

2 - No final do referido despacho consta “29.10.2022”.

3 – No canto superior esquerdo do referido despacho, juntamente com a assinatura da autora do mesmo, consta “29-11-2022”, gerado de modo eletrónico e automaticamente quando inserido/ produzido na plataforma citius.

4 – Em 24.05.2023 foi proferido despacho - referência 91360720 -, a julgar extinta a instância por deserção.

5 – Em 27.06.2023 foi proferido o seguinte despacho: “Ref. 8122758: Face à decisão proferida esgotou-se o poder jurisdicional sobre tal questão – artigo 613º, nº 1 do Código de Processo Civil”.

De acordo com o art.º 281. °, n.º 1, do Código do Processo Civil – será o diploma a citar sem menção de origem -, a instância da acção declarativa considera-se deserta quando, por negligência das partes - a conduta negligente conducente à deserção da instância consubstancia-se numa situação de inércia imputável à parte, ou seja, em que esteja em causa um acto ou actividade unicamente dependente da sua iniciativa -, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses, sendo que ao julgador compete promover oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes - art.º 6.º, n.º 1.

Apenas há lugar à declaração da extinção da instância, por deserção, quando o processo aguarda há mais de seis meses a prática de qualquer acto processual que legalmente compete a uma das partes e desde que se demonstre a negligência dessa parte na respetiva conduta omissiva - Não basta o mero decurso do prazo de seis meses para que ocorra a deserção da instância, é necessário, também, apurar-se se o processo está parado por negligência das partes.

E esta, só opera mediante decisão judicial constitutiva - a deserção não existe enquanto o juiz a não declara no processo respetivo -, pelo que enquanto não for proferida, ou se proferida “contra legem”, é lícito às partes promover utilmente o seguimento do processo.

Apresentando o instituto da deserção um custo – a perda da atividade que se exerceu no processo – e um rendimento – libertação de processos parados e estimulação das partes a ser diligentes e ativas, induzindo-as a promover o andamento dos autos –, a ponderação de tais vantagens e desvantagens deverá levar a que se reduza o mais possível o custo, sem prejudicar fundamentalmente o rendimento.

Realizando a deserção uma função compulsória – à ordem jurídica interessa que seja praticado determinado ato processual –, uma vez este praticado e ainda que nesse momento se encontrassem reunidas as condições para tal declaração nos termos da norma do  art.º 281.º, n.º 1, se e enquanto tal declaração não tiver ocorrido, deverá tal acto ser aproveitado, admitindo-se o prosseguimento do processo – neste preciso sentido, por ex. o Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 2.5.2023, pesquisável em www.dgsi.pt.

Ora, mostram os autos que foi proferido despacho - referência 89864620 - a notificar o cabeça de casal para juntar aos autos uma certidão do registo predial de um imóvel, sem prejuízo do disposto no artº. 281º, nº.1 do C.P.C, com data de 29.11.2022.

Conforme alega o Apelante, “embora final do referido despacho consta “29.10.2022”; no canto superior esquerdo do referido despacho, juntamente com a assinatura da autora do mesmo, consta “29-11-2022”, gerado de modo eletrónico e automaticamente quando inserido/ produzido na plataforma citius; o que equivale por dizer que efectivamente foi proferido em 29/11/2022; Se dúvidas existissem, da consulta dos autos resulta que o despacho judicial proferido antes deste, identificado com a referência 89637821, tem data de 04/11/2022, cfr. de fls.; A confirmar que efectivamente o despacho foi proferido em 29/11/2022 (e não em 29/10/2022) é o facto da notificação do despacho em causa ter sido certificada pelo citius em 30-11-2022”

Ou seja, considera-se assim notificado tal despacho em 05.12.2022, iniciando-se no dia seguinte a contagem para o decurso de seis meses para a instância poder vir a ser julgada deserta, no caso de não ter sido praticado o acto por negligência, nos termos do art.º 281º, nº 1, o que decorreria até ao dia 06.06.2023.

Porque a deserção da instância configura uma paragem qualificada do processo por mais de 6 meses - por negligência em impulsionar os seus termos -, tal contagem só se inicia após a notificação do despacho de 29.11.2022, que faz recair sobre o cabeça de casal o ónus específico de promoção da atividade processual.

Ora, a decisão aqui em crise, e da qual se recorre, foi proferida 5 meses e 18 dias após a notificação ao cabeça de casal, aqui Apelante, do alerta para o início do decurso de tal prazo que se iniciou em 06.12.2022, pelo que, com a junção, em 05.06.2023 da certidão do prédio em causa, alegando e justificando ainda as dificuldades para obtenção da mesma e as diligências efectuadas, os autos deveriam ter prosseguido o seu decurso normal- a parte sobre a qual recai o ónus do impulso processual acaba por praticar o acto em falta, pelo que, cumprido está o objetivo do instituto da deserção, estando alheio ao mesmo qualquer caracter sancionatório a impor.

Procede, pois, a Apelação.


As conclusões (sumário):
(…).

Assim, na procedência da instância recursiva, revogamos a decisão proferida pelo Juízo de Família e Menores de Coimbra - Juiz ..., devendo os autos prosseguirem os seus termos normais.

Sem custas.

Coimbra, 7 de Novembro de 2023

(José Avelino Gonçalves - Relator)

(Maria João Areias – 1.ª adjunta)

(Helena Gomes Melo – 2.ª adjunta)