ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
DEFESA POR EXCEPÇÃO
INVOCAÇÃO DA USUCAPIÃO
MOMENTO RELEVANTE PARA A AQUISIÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE
PARCELAS COM ÁREA INFERIOR À DE CULTURA
Sumário

I. A alegação de um direito incompatível com o direito do Autor, neste caso a aquisição originária, pelos Réus, das parcelas que compõem o prédio cuja divisão o Autor pretende, pode ser feita por exceção.
II. Na data em que os Réus iniciaram a posse que alegam exercer sobre as parcelas de que os Autores se arrogam comproprietários, a sanção legal para o fracionamento desrespeitador do art.º 1376º do C. Civil era a anulabilidade, sanção essa que com a Lei 111/2015 de 27 de agosto, passou a ser a nulidade.
III. O momento relevante para a aquisição do direito de propriedade por usucapião é o da data do início da posse – art.º 1288º e 1317º, c), ambos do C. Civil - é segundo a lei então em vigor que deverá ser apreciada a sua validade, o que no caso – segundo a alegação dos Réus – nos remete para aquela que em 1988 vigorava – a anulabilidade.
IV. O facto das parcelas resultantes do fracionamento do prédio terem uma área inferior à mínima de cultura, não é, no caso, impeditivo, caso se venham a provar os factos necessários para o efeito, da sua aquisição por usucapião.

Texto Integral


Relatora: Sílvia Pires
Adjuntos: Falcão de Magalhães

                 António Marques da Silva

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                    Autores: AA
                                    BB


 Réus: CC e mulher DD
EE
EE
FF e marido GG,
HH e marido II
JJ e mulher KK
LL e mulher MM


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      Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
Os Autores intentaram a presente ação de divisão de coisa comum contra os Réus, pedindo que seja:
- Reconhecido o prédio rústico indicado no artigo 1º, inscrito na matriz sob o art.º ...51 e descrito na CRP sob o nº ...66 da freguesia ..., concelho ..., com 8759 m2 de área, é insuscetível de divisão física conforme se apurará em perícia legal, devendo ser adjudicado ao autor ou aos réus, nos termos legais
- Em alternativa, caso se venha a determinar pela perícia legal que o prédio é suscetível de divisão, deverão os prédios que dele advierem serem adjudicados ao autor ou aos réus, nos termos legais.
Para fundamentar a sua pretensão alegaram em síntese:
- Autores e Réus são comproprietários do prédio rustico inscrito na matriz sob o artigo ...51 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o antigo 4466, da freguesia ..., concelho ....
- Os autores são comproprietários na proporção indivisa de 1/7 para si, 2/7 para
a 1ª ré e 1/7 para os restantes réus.
- Todos adquiram aquela compropriedade na proporção de 1/7, por escritura de justificação e doação de 14 de julho de 1988 do ... cartório Notarial ....
- Sendo que posteriormente a 1ª ré adquiriu mais 1/7 a LL e mulher KK.
- O prédio não é divisível.
- Os autores não querem permanecer na indivisão.
Concluíram pela improcedência da ação.

Os Réus contestaram, excecionando a sua ilegitimidade passiva por falta de intervenção do cônjuge do Réu EE e impugnando os factos constantes da p. inicial alegam que não corresponde à verdade que Autores porquanto o mesmo desde que foi doado que já se encontra dividido, exercendo cada um, desde essa data e sobre a parcela que lhe coube, os atos de posse correspondente ao exercício do correspondente direito de propriedade que já adquiriram por usucapião.

Os autores responderam à contestação, pronunciando-se sobre a exceção da ilegitimidade e impugnando a versão dos factos apresentada pelos Réus excecionaram a aquisição por usucapião de frações de 1/7 do prédio.

Foi a proferida decisão que declarou o prédio indivisível em substância.
                                              
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Os Autores interpuseram recurso desta decisão, apresentando as seguintes conclusões:
1. Os autores propuseram esta ação especial de divisão de coisa comum contra os réus, referindo-se a um prédio rústico situado no Vale de ..., mantido, alegadamente, em compropriedade por todos.
2. Em sede de contestação, os réus, aqui recorrentes, alegaram, entre outras coisas, que o mesmo prédio já havia sido alvo de uma divisão material da qual resultaram 7 parcelas autónomas e distintas, sorteadas pelos sete filhos e perfeitamente demarcadas e delimitadas do prédio original.
3. Cada um dos réus, durante mais de 20 anos e sem interrupções usufruíram da “sua” parcela. Deste modo, e por usucapião, operou-se o fracionamento do aludido imóvel ao abrigo do disposto no art. 1287.º do CC.
4. Realizada uma perícia determinada oficiosamente pelo Tribunal, este proferiu decisão a declarar a indivisibilidade substancial do prédio em causa nos autos, mais invocando o n.º 2 do art.48.º da Lei n.º 111/2015, de 27/08 alterada pela Lei n.º 89/2019.
5. Este diploma legal não tem eficácia retroativa, de acordo com o art. 12.º do CC.
6. Tendo a usucapião efeitos retroativos à data do início da posse, de acordo com o art. 1288.º do CC, e, por isso, a 1998, será a lei vigente nessa data a definir as regras de fracionamento e as consequências do fracionamento ilegal.
7. Ora, a Lei n.º 111/2015, que alterou o art. 1379.º do CC, entrou em vigor a de agosto de 2015.
8. Logo, não se pode impedir que os réus lancem mão do instituto da usucapião pela posse exercida desde 1998 chamando à colação a alteração legal posterior!
9. Pelo que se impõe que se reconheça que não existe a unidade jurídica que os autores alegam e em que assentam a presente ação especial de divisão de coisa comum, revogando-se a decisão recorrida.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e declarando-se o prédio em causa nos autos materialmente dividido, por usucapião, com as legais consequências.

Não foi apresentada resposta.

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1. Do objeto do recurso
Considerando que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas as questões a apreciar são:
- admissibilidade da invocação da aquisição por usucapião como exceção na ação de divisão de coisa comum
- indivisibilidade do prédio por impossibilidade legal de aquisição por usucapião das frações com área inferior a unidade mínima de cultura.

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2. Os factos
Para a decisão a proferir importa ter presente a factualidade acima descrita.

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3. O direito aplicável
Na presente ação de divisão de coisa comum – prédio rústico com a área de 8.759m2 – que os Autores intentaram, pretendendo pôr termo à indivisão, formularam o pedido de reconhecimento da indivisibilidade do prédio por ter uma área inferir à unidade mínima de cultura.
Os Réus contestam o pedido de divisibilidade do prédio, alegando que o mesmo já não é propriedade comum, uma vez que em consequência da aquisição por usucapião das parcelas que o compõem foi posto fim à sua compropriedade.
Na decisão proferida entendeu-se que na ação especial de divisão de coisa comum não é admissível invocar a aquisição por exceção, constando da mesma:
Ora, esta questão não é suscetível de ser arguida sequer no âmbito do presente processo de Divisão de Coisa Comum. Com efeito, o direito de propriedade adquirido por usucapião necessita de um título que declare tal direito, sendo certo que não é no presente processo que se formará esse título. A aquisição por usucapião das diversas parcelas enquanto prédios autónomos, também não pode ser invocada por via de exceção, pois esta só ocorreria caso o título existisse ou estivesse em vias de formação.
A ação de divisão de coisa comum, conforme decorre do art.º 925º, do C. Civil, tem como objetivo pôr termo à contitularidade de direitos reais, sendo o meio processual que dá expressão ao direito consagrado nos art.º 1412º, n.º 1, e 1413º, n.º 1, ambos do C. Civil, segundo o qual nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão. As regras aplicáveis à divisão são, com as necessárias adapta­ções, as estabelecidas para a comunhão de quaisquer direitos sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles – art.º 1404º, do C. Civil.
Da certidão do registo predial junta aos autos como doc. n.º 1, resulta inequívoco que o direito de propriedade sobre o prédio em causa encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Predial a favor dos Autores e dos Réus por aquisição por doação e compra em 1998, pelo que, nos termos do artigo 7º, do Código de Registo Predial, se presume a existência de uma situação de compropriedade. 
A questão que nos é colocada consiste em saber se a usucapião, enquanto forma de aquisição originária do direito de propriedade, pode ser invocada por exceção, contrariamente ao que foi decidido pela 1ª instância.
 Conforme decorre do art.º 571º, n.º 2, 2ª parte, do C. P. Civil a defesa por exceção consiste na alegação de factos que obstam à apreciação do mérito da ação ou que, servindo de causa impeditiva, modificativa ou extintiva do direito invocado pelo autor, determinam a improcedência total ou parcial do pedido.
A invocada aquisição originária, pelos Réus, do direito de propriedade de parcelas que identificam do prédio a dividir, configura um facto extintivo do direito à pretendida divisão, cuja produção de efeitos exige que o exercício pelo seu titular – os adquirentes - seja integrado por uma decisão judicial, pois a sua capacidade extintiva do direito de proceder à divisão de um prédio, não decorre automaticamente da prática de atos correspondente ao exercício deste direito durante o lapso de tempo exigido pela lei.
A constatação judicial da verificação dessa aquisição originária enquanto um direito potestativo extintivo, cuja produção de efeitos exige que o exercício pelo seu titular - o proprietário do prédio -  seja integrado por uma decisão judicial – invocada pelos Réus -  é efetuada pela sentença que a verificar e que, consequentemente, declare extinto o direito à divisão, podendo integrar a causa de pedir de uma ação ou reconvenção  em que seja pedido o seu reconhecimento ou como exceção a uma ação em que alguém se arrogue da sua titularidade.[1]
Assim, a alegação de um direito incompatível com o direito do Autor, neste caso a aquisição originária, pelos Réus, das parcelas que compõem o prédio cuja divisão o Autor pretende, pode ser feita por exceção. [2]
Procede, assim, este fundamento do recurso.

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           2. Da impossibilidade legal de aquisição por usucapião de prédios com área inferior à unidade de cultura
Na decisão recorrida, invocando-se a área do prédio objeto do processo de divisão de coisa comum, conjugado com o disposto no n.º 2 do art.º 48º da Lei n.º 111/2015, de 27.8 alterada pela Lei n.º 89/2019 de 3.9, conclui-se o pela sua indivisibilidade em substância por as parcelas resultantes do fracionamento do prédio não cumprem a área da unidade mínima de cultura.
Os Réus, colocando em crise o direito dos autores à divisão, excecionaram a sua aquisição por usucapião do direito de propriedade das parcelas que ocupam, alegando, em síntese, que há mais de 20 anos que usufruem da parcela que a cada um coube em sorteio como se de um prédio autónomo se tratasse, concluindo que, desse modo, se operou o fracionamento do prédio, não existindo compropriedade do mesmo.
O que está em causa neste processo, face à defesa dos Réus, é apurar se a posse – cujo início situam em 1988 - que têm vindo a exercer sobre cada uma das parcelas que constituíam o prédio, levou à aquisição destas por usucapião, determinando a consequente extinção da compropriedade do prédio.
A usucapião ou prescrição aquisitiva é um modo de adquirir direitos reais de gozo pela posse prolongada e meritória.
Na definição que é dada pelo art.º 1251º, do C. Civil:
A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma cor­respondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
A posse adquire-se através de atos materiais, ou seja, através de atos que incidem diretamente sobre a coisa, atos estes que têm de corresponder ao exercício do respetivo direito, mantendo-se a posse enquanto durar a atuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar – art.º 1257º, n. º1, do C. Civil.
Nos termos do disposto no art.º 1260º, do C. Civil, presume-se de boa fé a posse titulada e de má fé a posse não titulada.
A posse exercida por um determinado tempo, variável segundo a sua qualidade ou mérito, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação.
Do disposto no n.º 1 do art.º 1376º do C.  Civil, resulta que os terrenos aptos para cultura – como parece ser o caso – não podem fracionar-se em parcelas de área inferior à unidade de cultura fixada para cada zona do País.
Tem vindo a discutir-se se a proibição do fracionamento resultante do normativo referido impede a aquisição originária de parcelas com área inferior à mínima de cultura para a região onde se inserem. Esta questão que tem obtido pela parte da jurisprudência resposta maioritária no sentido de que aquela proibição não é impeditiva da aquisição das mesmas por usucapião. [3]
Na data que os Réus alegam ter iniciado a sua posse sobre cada uma das aludidas parcelas – em 1988 – a violação do art.º 1376º do C. Civil, que proibia o fracionamento em parcelas com área inferior à mínima de cultura era cominada com a anulabilidade, conforme decorria do n.º 1 do art.º 1379º do C. Civil.
Com a entrada em vigor da Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, foi dada nova redação ao n.º 1 do art.º 1379º do C. Civil, passando a ser cominados com a nulidade os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376º e 1378º.
Por último, foi publicada a Lei n.º 89/2019, de 3 de setembro, que deu nova redação ao art.º 48º da Lei 111/2015, que passou a ter a seguinte redação:
1 – Ao fracionamento e à troca de parcelas aplicam-se, além das regras dos artigos 1376.º a 1381.º do Código Civil, as disposições da presente lei.
2 – A posse de terrenos aptos para cultura não faculta ao seu possuidor a justificação do direito a que esta diz respeito, ao abrigo do regime da usucapião, sempre que a sua aquisição resulte de atos contrários ao disposto no artigo 1376.º do Código Civil.
3 – São nulos os atos de justificação de direitos a que se refere o número anterior.
Da sucessão das normas legais acima referida conclui-se que na data em que os Réus iniciaram a posse que alegam exercer sobre as parcelas de que os Autores se arrogam comproprietários, a sanção legal para o fracionamento desrespeitador do art.º 1376º do C. Civil era a anulabilidade, sanção essa que com a Lei 111/2015 de 27 de agosto, passou a ser a nulidade.
Tendo presente que o momento relevante para a aquisição do direito de propriedade por usucapião é o da data do início da posse – art.º 1288º e 1317º, c), ambos do C. Civil -  é segundo a lei então em vigor que deverá ser apreciada a sua validade [4], o que no caso – segundo a alegação dos Réus – nos remete para aquela que em 1988 vigorava – a anulabilidade.
O facto das parcelas resultantes do fracionamento do prédio terem uma área inferior à mínima de cultura, não é, no caso, impeditivo, caso se venham a provar os factos necessários para o efeito, da sua aquisição por usucapião, revelando-se desacertada a decisão recorrida, devendo pois ser julgada a exceção invocada.
Assim, revogando-se a decisão recorrida, determina-se o prosseguimento dos autos com observância do disposto no art.º 926º, n.º 2, do C. P. Civil.

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Decisão
Nos termos expostos, julgando-se procedente o recurso, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento do processo.

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Custas do recurso pelos Autores.

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[1]  Cfr., neste sentido:
  José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, ed. 1959, Vol. III, pág. 41 e Comentário ao Código de Processo Civil, ed. 1946, Vol. 3º, pág. 101, ambos da Coimbra Editora.
                Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 322 e 323.
                Remédio Marques, A Acção Declarativa À Luz do Código Revisto, ed. 2007, pág. 294 e 295, Coimbra Editora.
O acórdão do S. T. J. de 28.10.2021, relatado por João Cura Mariano e acessível em www.dgsi.pt.

[2] Neste sentido o ac. do T. R. C. de 18.11.2019, relatado por Alberto Ruço e acessível em www.dgsi.pt.

[3] Neste sentido, entre outros, os seguintes acórdãos acessíveis em www.dgsi.pt :
do S. T. J.:
de 24.10.2019 relatado por Fátima Gomes
de 25.5.2023 relatado por Nuno Pinto Oliveira
 do T. R. G.:
de 14.1.2021, relatado por Raquel Tavares
de 19.9.2021 relatado por Alcides Rodrigues
do T. R. E.:
de 15.12.2022 relatado por Maria Adelaide Domingos.

[4] Neste sentido, a título exemplificativo, os acórdãos acessíveis em www.dgsi.pt :
 do T. R. C. de 25.11.2022, relatado por Arlindo Oliveira
 do T. R. G. de 21.5.2020, relatado por Maria João Matos
 do S. T. J. de 1.3.18, relatado por Rosa Tching.