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CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
LEGITIMIDADE PARA ARRENDAR
CADUCIDADE DO ARRENDAMENTO
RENOVAÇÃO DO ARRENDAMENTO CADUCO
Sumário
I – O locatário financeiro tem legitimidade para arrendar o prédio objeto do seu direito. II – Cessando, por qualquer razão, o contrato de locação financeira, caduca o contrato de arrendamento que na sua vigência tenha sido celebrado pelo locatário financeiro. III – Essa caducidade apenas não ocorrerá se, previamente, a posição jurídica do locatário financeiro no contrato de arrendamento tiver sido transmitida para o locador financeiro.
Texto Integral
I.
1) AA intentou a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra EMP01..., Lda., BB e CC, pedindo que, na procedência, seja proferida sentença a (transcrição): “Considerar resolvido o contrato de arrendamento, e consequentemente condenar os réus a entregar o imóvel devoluto de pessoas e bens, nos termos e ao abrigo do n.º 3 do artigo 1083.º do Código Civil e n.º 1, primeira parte[,] do artigo 1048.º do Código Civil; Após, declarado resolvido o contrato de arrendamento, condenar os réus à restituição da coisa locada e ao pagamento de indemnização equivalente ao valor da renda, até à restituição do locado, cf., n.º 1 do artigo 1045.º do Código Civil; Em caso de atraso na restituição da coisa locada, condenar os réus, solidariamente, ao pagamento de indeminização elevada ao dobro, até à efetiva restituição, cf., n.º 2 do artigo 1045.º do Código Civil; Condenar os réus, solidariamente, ao pagamento das seguintes quantias aos autores: - 4 000,00 € a título de pagamento de rendas em atraso no âmbito da relação contratual de arrendamento, a que acrescem juros de mora até efetivo e integral pagamento; - condenar os réus, solidariamente, ao pagamento das rendas vincendas, acrescidas de juros de mora até efetivo e integral pagamento.”
Alegou, em síntese, que: por escrito datado de 20 de setembro de 2012, a sociedade EMP02..., Lda., e a Ré EMP01..., Lda., declararam dar e receber em arrendamento, respetivamente, pelo prazo de cinco anos e mediante o pagamento da quantia mensal de € 400,00, as frações autónomas identificadas pelas letras ... e ... do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, identificado como Edifício ..., sito Av. dos Bombeiros ..., Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o art. ...24 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...42; no mesmo escrito, os Réus BB e CC constituíram-se fiadores, com renúncia ao benefício da excussão prévia, assumindo, nessa qualidade, todas as obrigações resultantes do contrato, seus aditamentos e renovações, para a Ré EMP01..., Lda., em regime de solidariedade com esta; por escritura pública lavrada no dia 20 de novembro de 2020, o Autor adquiriu a propriedade das identificadas frações autónomas, sucedendo, assim, nos termos previstos no art. 1057 do Código Civil, na posição jurídica de senhorio; acontece que a Ré não procede ao pagamento das rendas desde a relativa ao mês de dezembro de 2020; por carta registada a 19 de maio de 2021, interpelou a Ré EMP01..., Lda., para proceder ao pagamento das rendas em dívida; no dia 14 de setembro de 2021, procedeu da mesma forma relativamente aos Réus BB e CC; não tendo obtido sucesso nessas diligências, tem direito à resolução do contrato de arrendamento, nos termos previsto no art. 1083/3 do Código Civil, bem como o direito a obter a condenação dos Réus no pagamento das vendas vencidas e vincendas, bem como no seu equivalente até à restituição das frações, elevado ao dobro em caso de mora.
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2) Citados, os Réus contestaram dizendo, também em síntese, que: a referida sociedade EMP02..., Lda., não era proprietária, mas locatária financeira, das identificadas frações autónomas; não estava autorizada pelo locador financeiro a ceder o gozo das frações a terceiros, pelo que o contrato de arrendamento que celebrou com a Ré EMP01..., Lda., é nulo; na sequência da insolvência daquela sociedade, foi resolvido o contrato de locação financeira e o locador financeiro vendeu as frações ao Autor, não se transmitindo, assim, para ele a posição jurídica de senhorio; sendo o arrendamento nulo, é nula também a obrigação assumida pelos fiadores; é nula, ainda, a cláusula pela qual a arrendatária renunciou à indemnização por benfeitorias que fizesse nas frações; a Ré fez obras na frações, mais concretamente a colocação de flutuante, de pladur e a pintura, no que despendeu € 1 465,56.
Concluíram pedindo a improcedência da ação e, a título de reconvenção, a declaração de nulidade do contrato de arrendamento celebrado com a sociedade EMP02..., Lda., e a condenação do Autor a “ressarcir a Ré EMP01..., Lda., no valor de € 1 465,56 referente às obras realizadas nas frações.”
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3) Na réplica, o Autor disse, em síntese, que: o facto de a sociedade EMP02..., Lda., não ser proprietária, mas locatária financeira das frações, tem como única consequência a requalificação do contrato como um subarrendamento; esse contrato tem vindo a ser executado desde que o Autor adquiriu a propriedade das frações; caso se entenda que o contrato celebrado entre a referida sociedade e a Ré EMP01..., Lda., é nulo, sempre tem direito a obter a restituição das frações e o valor correspondente ao gozo do locado pelo período em que este se manteve; os Réus, que nunca antes colocaram em causa a validade do contrato, aproveitando-se sempre dele, atuam em situação de abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium; a Ré EMP01..., Lda., não tem direito a qualquer indemnização por benfeitorias, uma vez que renunciou expressamente a ela; de qualquer modo, não foi alegado que as obras realizadas nas frações tenham importado o aumento do valor desta.
Concluiu que devem improceder as “exceções aduzidas na contestação”, bem como a reconvenção.
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4) No dia 19 de outubro de 2022, o Autor apresentou articulado superveniente em que alegou, em síntese, que a Ré EMP01..., Lda., deixou de exercer a sua atividade comercial nas frações em maio de 2022 e procedeu à entrega das respetivas chaves.
Concluiu, assim, que ocorreu a cessação do contrato de arrendamento, o que tem como consequência: a extinção da instância quanto aos pedidos de resolução do contrato e de condenação na entrega das frações, por inutilidade superveniente da lide; a possibilidade de liquidação, no montante de € 7 200,00, do pedido de condenação no pagamento das rendas vencidas até à relativa a maio de 2022.
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5) Admitido o articulado superveniente, os Réus responderam ao mesmo, aceitando que a Ré deixou de exercer a sua atividade comercial nas frações e, bem assim, que as chaves das mesmas foram entregues ao Autor e impugnando todo o restante conteúdo do articulado superveniente.
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6) Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, no qual, depois de afirmada tabularmente a verificação dos pressupostos processuais e fixado o valor da causa, foi proferida decisão a julgar procedente a ação e improcedente a reconvenção, mais se consignando que:
“- Declara-se resolvido o contrato de arrendamento.
- Condena-se a ré a restituir ao autor, livre de pessoas e bens, as frações autónomas ... e ..., correspondentes às lojas ... e ... do ... do Edifício ..., sito no Lugar ..., ..., DD;
- Condenam-se os réus na obrigação solidária de pagamento ao autor das rendas mensais no valor de € 400,00 (quatrocentos euros) cada, vencidas desde dezembro de dois mil e vinte, inclusive, até à data da resolução do contrato – notificação da sentença à ré;
- Condenam-se os réus na obrigação solidária de pagamento ao autor de indemnização no valor de € 400,00 (quatrocentos euros) pelo mês que venha a decorrer entre a data da notificação da sentença à ré e a efetiva entrega do locado ao autor.
- Condenam-se os réus na obrigação solidária de pagamento ao autor da quantia de € 800,00 (oitocentos euros) por cada mês que, a partir do termo do primeiro mês subsequente à notificação da sentença, decorrer sem a efetiva entrega das frações ao autor.
- Condenam-se os réus na totalidade das custas processuais.”
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7) Inconformados, os Réus interpuseram recurso, composto por alegações que culminaram com as seguintes conclusões (transcrição):
I. O tribunal a quo julgou procedente a ação de despejo intentada pelo recorrido, condenando os aqui recorrentes na totalidade dos pedidos formulados. II. O tribunal a quo decidiu pela resolução do contrato de arrendamento, condenando a recorrente sociedade a restituir o locado livre de pessoas e bens, bem como condenou os recorrentes a pagar solidariamente ao recorrido as rendas mensais no valor de €400,00 cada uma, vencidas desde dezembro de 2020 até à data da resolução do contrato – notificação da sentença à recorrente. III. O cerne da questão é a validade do contrato de arrendamento e a sua eficácia. IV. A recorrente sociedade celebrou com a sociedade EMP02..., Lda., um contrato de arrendamento urbano com prazo certo. V. Após a declaração da insolvência da sociedade EMP02..., a recorrente sociedade é interpelada pelo recorrido, dando-lhe conta que adquiriu a fração, e que doravante as rendas deveriam ser-lhe pagas. VI. A sociedade, EMP03..., Lda. havia celebrado com o Banco 1... um contrato de locação financeira, cujo objeto eram as frações dadas de arrendamento à sociedade recorrente. VII. Quando foi celebrado o contrato de compra e venda das frações, objeto do contrato de arrendamento, o real proprietário da dita fração (a instituição bancária) não tinha celebrado qualquer contrato de arrendamento com a recorrente sociedade. VIII. A recorrente sociedade, e os recorrentes CC e BB, na qualidade de fiadores, celebraram com a sociedade EMP02..., Lda., aquele contrato de arrendamento, com boa-fé e convictos que a mesma era proprietária das frações. IX. O recorrido não pode assumir a “continuidade” de um contrato de arrendamento, dizendo que lhe sucedem os direitos e deveres na qualidade de senhorio, quando o vendedor das frações não tinha qualquer contrato celebrado com a sociedade recorrente. X. O recorrido não poderia intentar uma ação de despejo e exigir o pagamento de rendas à sociedade recorrente, porquanto não lhe sucedeu qualquer direito do contrato celebrado, dado que entre a sociedade recorrente e o Banco 1... não foi celebrado qualquer contrato de arrendamento. XI. O contrato de arrendamento celebrado entre a sociedade recorrente e a insolvente EMP02..., Lda., é inválido dado que foi celebrado sem o aval do proprietário – o Banco 1... (contrato de arrendamento de coisa alheia). XII. O recorrido não poderia reivindicar um direito que não tem, nem lhe sucedeu, por força do contrato de compra e venda realizado com o Banco 1..., uma vez que não há qualquer negócio jurídico entre o recorrido e a sociedade EMP02... Lda. XIII. O recorrido poderia peticionar à sociedade recorrente a desocupação das frações, por indevida e o ressarcimento nos termos previstos para o enriquecimento sem causa, mas não lançando mão de uma ação de despejo, uma vez que o contrato de arrendamento é inválido. XIV. O recorrido não pode suceder na qualidade de senhorio, uma vez que o contrato de arrendamento não foi celebrado com o proprietário das frações, objeto das mesmas. XV. O tribunal a quo fez uma incorreta aplicação da lei no caso concreto, violando o disposto no artigo 1057.º do Código Civil, pelo que a decisão proferida não pode manter-se, devendo ser revogada e substituída por outra que, pelo menos, determine a prossecução dos autos para que se apure, em sede de julgamento, as circunstâncias em que o contrato de arrendamento foi celebrado. XVI. O tribunal a quo condenou os recorrentes à restituição do locado e no pagamento das rendas no valor de € 400,00 vencidas desde dezembro de 2020 até à resolução do contrato e a entrega do locado ao recorrido. XVII. O recorrido reconheceu nos autos que a sociedade recorrente procedeu à entrega das frações em maio de 2022, data em que o recorrido obteve as chaves das mesmas. XVIII. A manter-se a decisão recorrida, quanto á validade do contrato de arrendamento colocada em crise com o presente recurso, sempre as rendas devidas pelos recorrentes terão que ser contabilizadas até á entrega do locado e entrada do recorrido na posse do mesmo (maio de 2022), e nunca até à notificação da sentença à ré. XIX. A decisão recorrida violou o artigo 1057.º do Código Civil e o artigo 607.º do Código do Processo Civil.”
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8) O Autor não apresentou resposta.
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9) O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo, o que não sofreu alteração neste Tribunal ad quem.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635-4, 636 e 639-1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608-2, parte final,ex vi do art. 663-2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Tendo presente que os Recorrentes apenas colocam em causa o despacho saneador na parte em que o Tribunal a quo, conhecendo do mérito, julgou a ação totalmente procedente, as questões que se colocam à apreciação podem ser sintetizadas do seguinte modo:
1.ª Saber se o contrato de arrendamento celebrado entre a sociedade EMP02..., Lda., e a Ré EMP01..., Lda., é nulo, por falta de legitimidade daquela para ceder o gozo das frações que constituem o seu objeto mediato;
2.ª Em caso de resposta negativa, apurar os efeitos que a venda das frações ao Autor produziu nesse contrato de arrendamento, inclusive no que respeita às obrigações assumidas pelos Réus BB e CC;
3.ª Independentemente da resposta à questão anterior, saber se o Autor adquiriu a posição jurídica de senhorio da Ré EMP01..., Lda.;
4.ª Saber se o contrato de arrendamento cessou em maio de 2022.
Excluída do objeto do recurso está, portanto, a parte do despacho saneador em que foi conhecido o mérito do pedido reconvencional, julgando-o improcedente.
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III.
1) A decisão do mérito no despacho saneador assentou nos factos que ali foram considerados provados, com fundamento no “acordo expressou ou tácito das partes” e, bem assim, no teor dos “documentos autênticos ou não impugnados”, em termos que os Recorrentes não colocam em causa. Aqui os reproduzimos, reordenando-os de acordo com a sequência lógica e cronológica que é conforme à realidade histórica que é suposto retratarem[1]:
1. Pela apresentação n.º ...43, de 5 de março de 2010, foi inscrita provisoriamente, na Conservatória do Registo Predial ..., a aquisição, por compra, pelo Banco 1..., SA, do direito de propriedade sobre as frações autónomas identificadas pelas letras ... e ... do prédio urbano constituído em propriedade horizontal descrito sob o n.º ...31.
2. Pela apresentação n.º ...59, de 31 de março de 2010, esse registo foi convertido em definitivo.
3. Pela apresentação n.º ...84, também de 31 de março de 2010, foi registada a locação financeira das identificadas frações a favor da sociedade EMP02..., Lda., tendo como sujeito passivo o Banco 1..., SA, tudo cf. certidões registrais juntas a 6 de junho de 2023, sob as referências ...51 e ...62, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
4. Por escrito datado de 20 de setembro de 2012, “EMP02..., Lda.”, identificando-se como proprietária das frações autónomas ... e ..., correspondentes às lojas ... e ... do ... do Edifício ..., sito no Lugar ..., ..., DD, cedeu, contra a retribuição anual de €4.800,00 (€200,00 mensais por cada loja), o seu gozo temporário à Ré “EMP01..., Lda.” pelo período inicial de 5 anos, sucessivamente prorrogável por um ano, com início a 1 de outubro de 2012.
5. Declaram as partes nesse documento que: a. “O local arrendado destina-se ao serviço de atividades de impressão, artes gráficas e publicidade da Segunda Outorgante [1.ª ré]”; b. “A Segunda Outorgante [1.ª ré] fica, desde já, autorizada pela Primeira Outorgante [EMP02..., Lda.], a realizar no arrendado todas as obras e benfeitorias necessárias e convenientes ao fim comercial a que ele de destina, sendo da sua inteira responsabilidade (segunda outorgante) todos os projetos e licenças que sejam necessárias (…)”; c. “Todas as obras de conservação e limpeza necessárias, bem como as autorizadas (…) ficam a pertencer ao prédio em que se integram, sem que a Segunda Outorgante possa invocar direito de retenção ou exigir o pagamento de qualquer indemnização”; d. “Fiadores: Os Terceiros Outorgantes [2.º e 3.º réu] acima identificados, renunciando ao benefício da excussão prévia, assumem solidariamente com a Segunda Outorgante [1.ª ré] o cumprimento de todas as cláusulas deste contrato, seus aditamentos e renovações até efetiva restituição do arrendamento, livre de pessoas e bens, pelo que declara que a fiança subsistirá ainda que haja alterações da renda agora fixada e mesmo depois de decorrido o prazo de cinco anos a que alude o n.º 2 do art.º 655 do Código Civil”, tudo cf. documento ... apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
6. Pela apresentação n.º ...08, de 19 de junho de 2020, foi registado, na Conservatória do Registo Predial ..., o cancelamento do registo da locação financeira das frações ... e ... supra identificadas a favor da sociedade EMP02..., Lda., cf. certidões registrais juntas a 6 de junho e 2023, sob as referências ...51 e ...62, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
7. Por escritura pública de compra e venda datada de 20.11.2020, o Banco 1..., S.A. declarou vender ao Autor, representando por EE, na qualidade de gestor de negócios, que por sua vez declarou comprar, entre outras, as frações autónomas ... e ... acima identificadas.
8. Nessa escritura referiu-se, entre o mais, “[q]ue o gestido declara ter perfeito e integral conhecimento do estado físico, jurídico, administrativo, fiscal e registral das frações autónomas ora adquiridas, bem como, de que as mesmas encontram-se ocupadas por terceiros, por força de contratos de subarrendamento celebrados entre a sociedade comercial por quotas “EMP02..., Lda.” (NIPC ...30), na qualidade de locatária e essas mesmas entidades, contratos esses celebrados sem a autorização do Banco 1..., S.A., motivo pelo qual não são entregues neste ato ao adquirente as chaves dos imóveis transmitidos, declarando ainda sem quaisquer restrições ou reservas de que esse facto não constitui obstáculo para a presente aquisição”, tudo cf. documento ... apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
9. Pela apresentação n.º ...49, de 10 de novembro de 2020, foi inscrita, na CRP ..., a aquisição, por compra, pelo Autor, o direito de propriedade sobre as identificadas frações autónomas ... e ..., cf. certidões registrais juntas a 6 de junho de 2023, sob as referências ...51 e ...62, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
10. Os Réus não entregaram ao Autor qualquer quantia pecuniária pela ocupação das frações desde dezembro de 2020 em diante (acordo das partes).
11. O Autor notificou os Réus da mora e falta de entrega destas quantias (acordo das partes).
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2) Para além daqueles factos, devem considerar-se como adquiridos, por acordo das partes, ut arts. 574/2, aplicável por via das remissões sucessivas dos arts. 587/1 e 588/4, parte final, todos do CPC, os seguintes factos alegados no articulado superveniente de 19 de outubro de 2022 e aceites pelos Réus:
12. Em maio de 2022, a Ré deixou de exercer a sua atividade nas frações identificadas.
13. Entregou as chaves respetivas na imobiliária que gere as frações.
14. O Autor aceitou a entrega as chaves como forma de cessação do contrato de arrendamento.
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IV.
1) Não suscita qualquer dúvida que o contrato que foi celebrado entre a sociedade EMP02..., Lda., e a Ré EMP01..., Lda., pelo qual aquela se obrigou a ceder a esta, mediante o pagamento de uma contrapartida monetária, o gozo das duas frações autónomas identificadas, deve ser qualificado como arrendamento urbano, modalidade do contrato de locação, tal como este é tipificado nos arts. 1022 e 1023 do Código Civil.[2] Não obstante a matéria de facto ser escassa, podemos ainda assentar, a partir da natureza jurídica da arrendatária, que se trata de um arrendamento urbano que tem como causa-função o exercício de uma atividade comercial.
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2).1. Passamos, assim, diretamente para a 1.ª questão elencada, sobre a qual podemos também dizer que existe consenso entre as partes quanto ao facto de a senhoria não ser a titular do direito de propriedade sobre as frações arrendadas, mas a sua locatária financeira.
Com base nesta constatação, defendem os Réus, na contestação, que foi arrendada coisa alheia, o que redunda na nulidade do contrato de arrendamento.
No despacho saneador (sentença) recorrido considerou-se que o contrato de arrendamento celebrado por quem não seja o titular do direito de propriedade sobre a coisa arrendada não é nulo, escrevendo-se, em suporte, o seguinte:
“O signatário não desconhece a interpretação de quem, por analogia, aplica ao arrendamento de coisa alheia a estatuição prevista para a compra e venda de coisa alheia (artigo 892.º do Código Civil). É acolhida, até, em decisões de tribunais superiores.
Com o devido respeito, entende-se incorrer essa interpretação em erro de direito.
Desde logo, e sem necessidade da realização de qualquer exegese sobre o texto da norma que nos dá a noção de locação (a norma levada ao artigo 1022.º do Código Civil é totalmente omissa quanto à qualificação como proprietária da pessoa que se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa), porque a lei não só não proíbe como permite a locação de coisa alheia (veja-se, por exemplo, que o locatário pode, também ele, dar em locação uma coisa e que a falta de reconhecimento pelo locador originário dessa sublocação em nada atinge a validade do negócio, apenas o torna ineficaz perante o locador originário – artigos 1060.º e 1061 do Código Civil – ou veja-se, ainda, a norma do artigo 10.º, 1, g) do DL 149/95 de 24.6, ou a locação, em ato de administração ordinária, pelo cabeça-de-casal de bem que integra a herança, etc., etc…).
Mas, acima de tudo, porque é o próprio regime do arrendamento civil constante do Código Civil que prevê, expressamente, qual a consequência do arrendamento por quem não é proprietário. Nos termos do disposto nos artigos 1032.º a 1034.º do Código Civil, quem, não sendo proprietário, dá de arrendamento, incumpreo contrato de arrendamento seo arrendatário ficar privado ou diminuído do gozo, definitivo ou temporário, da coisa. Não há aqui qualquer invalidade do negócio. Há, tão somente, um incumprimento contratual. O incumprimento é vicissitude atinente à execução do negócio jurídico. Já a nulidade é vício atinente à formação do negócio jurídico.
Se inexistir privação ou diminuição do gozo inexiste qualquer incumprimento por parte do senhorio não proprietário. E, por maioria de razão, inexiste qualquer incumprimento por parte de senhorio “não autorizado” pelo proprietário…
É evidente que, perante quem tiver, proprietário ou não, o gozo temporário de coisa, o negócio em que um terceiro o dá em locação a outrem, é ineficaz.
E, portanto, perante o Banco 1..., o arrendamento celebrado entre “EMP02..., Lda.” e os réus é, no máximo, ineficaz. Mas não é inexistente, nem nulo ou anulável. Pelo menos não pela circunstância de não ser a “EMP02..., Lda.” a proprietária das frações ou de não estar a “EMP02..., Lda.” autorizada pelo Banco 1.... E essa foi a única razão apontada pelos réus para a nulidade peticionada.
Sucede que a ineficácia de um negócio jurídico não é de conhecimento oficioso. Não pode ser oficiosamente declarada.
E não compete às partes num contrato de arrendamento sustentar essa ineficácia para o proprietário não interveniente no negócio. Falta-lhes, para tanto, legitimidade. Ou dito de outro modo: perante a transmissão legal da posição de locador estatuída no artigo 1057.º do Código Civil, era apenas ao Banco 1..., e agora ao autor, que cabia, cabendo agora ao autor, a legitimidade (substantiva, ou seja, é ao autor que cabe o direito) para invocar a ineficácia, perante si, dos efeitos do arrendamento.
Note-se que os réus não alegam que o Banco 1... se opôs à celebração do contrato do arrendamento que celebraram com a “EMP02..., Lda.”. Apenas alegam que o Banco 1... não autorizou a celebração do contrato de arrendamento. É, aliás, o que o próprio Banco 1... refere na escritura de compra e venda celebrada com o autor – cf. facto provado em D. E, portanto, não há sequer a invocação extraprocessual da ineficácia.”
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2).2. A argumentação do Tribunal a quo centra-se na análise das consequências jurídicas do arrendamento de coisa alheia para concluir que a lei não o comina com a nulidade. A nosso ver, a questão deve ser colocada de outra forma: quem tem legitimidade para arrendar um prédio?
Como se sabe, o direito privado importou do direito processual o conceito de legitimidade. Para exercer o direito de ação, não basta ao titular ser capaz. Requer-se ainda que seja parte legítima, isto é, que seja o titular da relação jurídica em litígio. Assim, também no campo do direito civil, a pessoa plenamente capaz de exercer os atos da vida civil vê-se proibida de praticar alguns atos jurídicos em virtude da posição em que se encontra relativamente ao seu objeto. Trata-se de pressuposto diverso do da capacidade, porque a impossibilidade de agir é circunstancial. No problema da capacidade, o que se discute são as qualidades intrínsecas da pessoa, que a habilitam, ou não, ao exercício dos atos da vida civil, enquanto no problema da legitimidade – e referimo-nos apenas à legitimidade direta – o que conta é a posição da pessoa em relação a determinados bens que podem ser objeto de negócios jurídicos em geral, ou em relação às especiais categorias de negócios. O conceito da legitimidade tende, porém, a ampliar-se, para abranger casos nos quais não se apresenta como um dos aspetos da idoneidade do objeto, a que se reduziria, se entendido como simples posição do sujeito em relação ao objeto do contrato. Assim, um contrato celebrado por alguém que não pode ter interesse na coisa que constitui o seu objeto é estipulado por parte ilegítima, e, sob esse fundamento, inválido, sem que o seu objeto seja impossível.
Esta ideia é expressa na lição de Emilio Betti, Teoria Geral do Negócio Jurídico, II, Coimbra: Coimbra Editora, 1969, p. 31, quando escreve que a legitimidade da parte “pode definir-se como a sua competência para obter ou para suportar os efeitos jurídicos do regulamento de interesses que se tem em vista: competência que resulta de uma específica posição do sujeito, a respeito dos interesses que se trata de regulamentar: Questão de legitimidade é a de verificar por quem, e a respeito de quem, o negócio pode ser corretamente concluído, a fim de poder produzir os efeitos jurídicos conformes à sua função e, por outro lado, aderentes ao regulamento de interesses pretendidos pelas partes. Segundo a ideia da autonomia privada, esses efeitos não poderão, em regra, deixar de ser circunscritos à esfera jurídica das partes (…); e, a fim de que se produzam entre elas, deverão as mesmas ter uma posição específica de competência em relação à matéria do negócio.” O autor prossegue a lição escrevendo (ob. cit., pp. 32-33) que “[c]ada um tem a sua própria esfera de competência dispositiva: árbitro dos seus interesses, e destes apenas, não pode ingerir-se na esfera de interesses alheios. Por isso, cada um dispõe das coisas que lhe pertencem; renuncia aos seus direitos; aliena os bens próprios; adquire para si; assume obrigações por si, e, correlativamente, reconhece ou impugna o seu ato de disposição ou obrigação, nas hipóteses permitidas pela lei; confirma-o se é inválido, renova-o se é revogável.”
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2).3. Percebe-se, à luz do que antecede, que apenas o proprietário tenha legitimidade para vender a coisa: como, pelo contrato, o comprador adquire a propriedade da coisa, tal direito deve existir na esfera jurídica do vendedor (nemo plus juris in alium transfere potest quam ipse habet). E percebe-se também que o proprietário, que não tenha cedido o gozo da coisa a terceiro através da constituição de um direito real menor, como o usufruto, tenha legitimidade para a locar: ao fazê-lo, está a dispor do poder de gozo que se insere no feixe de poderes que lhe são reconhecidos pelo art. 1305 do Código Civil. E percebe-se, finalmente, que outros, que não o proprietário, tenham semelhante legitimidade: como está em causa apenas a cedência temporária do gozo, basta que o locador tenha os poderes necessários para esse efeito, os quais lhe podem advir da titularidade de outros direitos reais, como o já referido usufruto, ou mesmo de direitos de origem obrigacional, todos eles compressores da propriedade, cf. desenvolvida e exemplificativamente ensina Manuel Januário Gomes, Constituição da Relação de Arrendamento Urbano, Coimbra: Almedina, 1980, pp. 272-329.
Neste sentido, continha-se no Código de Seabra (art. 1597) uma norma expressa de determinação das pessoas com legitimidade para dar de locação uma coisa. Dizia ela que “[p]odem locar todos os que podem contratar e dispor do uso ou fruição da coisa locada.” O atual Código não contém norma equivalente. Pode, no entanto, retirar-se o mesmo princípio do n.º 1 do art. 1024, o qual, ao estabelecer que “[a] locação constitui, para o locador, um ato de administração ordinária, exceto quando for celebrada por prazo superior a seis anos”, diz, de forma indireta, que tem legitimidade para locar uma coisa quem tiver a administração dela. Resulta daqui que não se exige sequer que o locador tenha o poder de gozo da coisa; basta que tenha os poderes para a administrar, desde que a duração do contrato não exceda os seis anos.
Deste modo, como conclui Nuno Alonso Paixão (Comentário ao art. 1024, AAVV, António Agostinho Guedes / Júlio Vieira Gomes (coord.), Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Contratos em Especial, Lisboa: UCE, 2023, p. 384), têm legitimidade para dar em locação, além do próprio proprietário (art. 1305), o comproprietário (art. 1405/1), o usufrutuário (art. 1446), o mandatário, quer com poderes especiais, quer com poderes gerais, que aliás só pode praticar atos de administração dita ordinária (art. 1159), o representante legal – pais do menor de idade (arts. 1878/1, 1889/1, m), a contrario, e 1902), tutor (art. 1935), acompanhante de maior (art. 145), administrador legal dos bens do menor (art. 1971) –, o curador provisório (art. 94) ou definitivo (arts. 110 e 111) dos bens do ausente, o cônjuge administrador (arts. 1678 e ss.), exceto nas situações previstas nos arts. 1682 e 1682-A, o curador da herança jacente (art. 2048/2), o cabeça-de-casal (art. 2087/1) ou o testamenteiro (art. 2326), o fiduciário (art. 2290/1), o locatário, em sublocação (art. 1060 e ss.), o administrador de insolvência (art. 81 do CIRE) ou o depositário judicial (art. 760 do CPC).
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2).4. À semelhança do que sucede com os sujeitos enumerados, também o locatário financeiro dispõe dos necessários poderes para locar a coisa, tal como se conclui em RE 23.04.2020 (279/19.4T8LAG.E1)[3], cuja exposição seguiremos de perto.
Com efeito, o art. 1.º do DL n.º 149/95, de 24.06, define a locação financeira como o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios adrede fixados.
Uma leitura simplista desta definição legal pode levar a supor que a locação financeira é um tipo contratual semelhante à locação, a que se adiciona uma faculdade de compra, pelo locatário, findo o prazo da cedência do gozo da coisa. Quando se atente, porém, na globalidade do regime jurídico do contrato de locação financeira, chega-se à conclusão de que a sua função é muito diversa da que é desempenhada pelo contrato de locação.
Na verdade, como se escreve em STJ 22.01.2004 (03B4387), a locação financeira tem como função a “concessão de crédito para financiamento do uso do bem e de disponibilização de acrescidos instrumentos tendentes a possibilitar o exercício de uma atividade produtiva. Assim, visa solucionar o problema da atualização do equipamento produtivo, sem necessidade de o locatário despender vultuosas quantias em dinheiro, sendo que a duração corresponde ao período presumível da sua utilização económica.” Tanto assim é que, para efeitos da aplicação do DL n.º 74-A/2017, de 23.06, que estabelece o regime jurídico dos contratos de crédito aos consumidores para imóveis destinados a habitação, o contrato de locação financeira é expressamente abrangido pela definição de contrato de crédito, constante do respetivo art. 4.º/1, e).
Compreende-se, assim, que se afirme que “o locatário financeiro tem a propriedade económica da coisa locada, nomeadamente por ele ser o utilizador exclusivo da coisa e vigorar uma regra contabilística que determina que ele a considere como integrada no seu ativo imobilizado (Rui Pinto Duarte, “O contrato de locação financeira – uma síntese”, Themis – Revista da Faculdade de Direito da UNL, ano X (2010), n.º 11, pp. 135-194), o que é bem realçado por outras regras como as que preveem que o risco de perda ou deterioração do bem locado corre por conta do locatário (art. 15 do DL n.º 149/95, de 24.06 de Junho), que, quando a locação versar sobre fração autónoma, cabe ao locatário pagar as contribuições para o condomínio (art. 10.º/1, b), do DL n.º 149/95, na redação do DL n.º 265/97, de 2 de Outubro), equiparam o locatário financeiro ao proprietário, para efeitos da legislação relativa ao licenciamento de veículos automóveis e seus reboques (DL n.º 11/84, de 7.01), ou responsabilizam o locatário financeiro pelas infrações às disposições condicionantes da admissão de veículos ao trânsito (art. 136/2 do Código da Estrada).
Como corolário da função da locação financeira, as rendas a pagar pelo locatário não são a mera contrapartida pela cedência do gozo da coisa; “são rendas financeiras, ou seja, compostas, cada uma delas, por dois elementos: numa parte, a amortização do capital e, noutra parte, os juros do crédito concedido (podem ser, eventualmente, aqui incluídas outras despesas que o locador financeiro tenha tido que efetuar, assim como eventuais comissões administrativas ou de gestão) (…) Note-se que elas não permitem a amortização da totalidade do valor pago pelo bem – valor que constitui o crédito concedido pelo locador financeiro, por via indireta –, sendo para o efeito ainda necessário o pagamento do valor residual (ou pelo valor decorrente da sua venda no mercado, ou da sua rentabilização através de outro contrato de locação financeira, ou mesmo de locação)” (Luís Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito Bancário, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, p. 283).
Nesta medida, a permanência do direito de propriedade sobre a coisa locada no património do locador desempenha também uma função de garantia. Como escreve Luís Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito Bancário cit., p. 286, “a locação financeira é um instrumento de financiamento garantido pela propriedade do bem, bem esse que o locador financeiro não quer explorar economicamente. Ele visa simplesmente a restituição do capital investido e dos juros (…) Na locação, pelo contrário, o locador pretende explorar economicamente o bem, cuja transferência não está em jogo. Ele recebe, como contrapartida, as rendas ou alugueres que consistem na sua retribuição por assegurar o gozo da coisa para o fim a que ela se destina [art. 1031.º, al. b)].” No mesmo sentido, Fernando Gravato de Morais (Fernando de Gravato Morais, Manual da Locação Financeira, 2.ª edição, Coimbra: Almedina, 2011, p. 331), escreve que “[o] direito de propriedade do locador financeiro tem carácter meramente garantístico.”
Como se nota no citado RE 23.04.2020, contribui para esta caracterização do contrato de locação financeira a consideração de que o locador financeiro é, em regra, uma sociedade de locação financeira ou uma instituição de crédito, portanto um intermediário financeiro. Aqui se manifesta, desde logo, a vertente creditícia do negócio. Na verdade, escreve-se no aresto, “[t]endo em conta o seu objeto, não constitui vocação das entidades que se dedicam com habitualidade à celebração de contratos de locação financeira na qualidade de locadores explorar economicamente a coisa locada, nomeadamente ocupando a posição contratual de senhorio em contratos de arrendamento que sobre esta última recaiam. A finalidade por si prosseguida através da celebração de um contrato de locação financeira é, como referimos, conceder crédito, recuperá-lo e ser remunerado por tal concessão, garantindo o seu direito de crédito através da manutenção da titularidade do direito de propriedade sobre a coisa locada até ao momento em que o locatário financeiro exercer a faculdade de compra.”
Sendo assim, podemos concluir que “o locador mantém-se na vigência do contrato o proprietário jurídico (mas não económico) da coisa, conquanto dela se desinteresse” (Fernando Gravato de Morais, Manual cit., p. 331). Esta cisão entre a propriedade jurídica e a propriedade económica da coisa dada em locação financeira, em que locador mantém o direito de propriedade sobre a coisa, com a exclusiva finalidade de garantia do seu direito de crédito sobre o locatário, que a explora economicamente, tem repercussões, inclusive, no plano fiscal, como se pode ver em STA 22.11.2017 (0608/16) e 13.07.2021 (01670/12.2BEBRG 0798/17).
Assim, apesar de não ser o proprietário jurídico da coisa locada, o locatário é o proprietário económico. Com esta afirmação, não pretendemos afirmar a propriedade económica como um instituto jurídico a se stande, dele retirando efeitos jurídicos como a oponibilidade perante sujeitos que são meros terceiros em relação à vinculação contratual; cientes dos ensinamentos de Margarida da Costa Andrade (“Locação financeira e despesas de condomínio – Anotação ao Acórdão da Relação do Porto de 28 de Janeiro de 2021”; Julgar Online, fevereiro de 2022, p. 13, disponível em julgar.pt [25.10.2023]), pretendemos apenas, em resposta à questão enunciada, vincar que o locatário financeiro tem poderes para locar a coisa enquanto o contrato vigorar, o que, diga-se, sempre parece resultar do disposto no art. 10.º/1, g), do DL n.º 149/95, segundo o qual é obrigação do locatário financeiro não proporcionar a outrem o gozo do bem por meio de sublocação, exceto se o locador financeiro o autorizar.
Não estaremos, então, perante uma sublocação no sentido do art. 1060 do Código, como refere Rui Pinto Duarte, loc. cit.. Com efeito, “a locação diz‑se sublocação quando o locador a celebra com base no direito de locatário que lhe advém de um precedente contrato locativo.” Como a locação financeira não é um mero contrato locativo, a locação feita pelo locatário financeiro, na qualidade de locador, não é uma sublocação. E mesmo que se entenda que o é, sempre se tem de concluir que se desvia do paradigma do Código Civil, espelhado no seu art. 1062, que determina que “[o] locatário não pode cobrar do sublocatário renda ou aluguer superior ou proporcionalmente superior ao que é devido pelo contrato de locação, aumentado de vinte por cento, salvo se outra coisa tiver sido convencionada com o locador.” Como salienta o autor, os pressupostos desta norma não se verificam na locação financeira.
Mais duvidoso é saber se a locação feita pelo locatário financeiro integra um subcontrato em termos conceituais.
Retomando a lição de Rui Pinto Duarte, se entendermos que só há sublocação quando o contrato com base no qual é celebrado o contrato derivado é contrato do mesmo tipo deste, a resposta será negativa. Se entendermos que o conceito de sublocação deve abranger casos em que o contrato‑base não é um contrato de locação, já a resposta poderá ser positiva.
A questão pode colocar‑se no patamar mais elevado da teoria do subcontrato – figura que Pedro Romano Martinez (O Subcontrato, Coimbra: Almedina, 1989, p. 188), define como o “negócio jurídico bilateral, pelo qual um dos sujeitos, parte em outro contrato, sem deste se desvincular e com base na posição jurídica que daí lhe advém, estipula com terceiro, quer a utilização, total ou parcial, de vantagens de que é titular, quer a execução, total ou parcial, de prestações a que está adstrito.”
De acordo com este autor (O Subcontrato cit., pp. 98-99), “[é] o contrato principal que qualifica e que determina o tipo negocial do subcontrato. E se, porventura, os dois contratos não tiverem a mesma natureza (…), não há um verdadeiro subcontrato. Poder-se-á então falar de subcontrato impróprio. Apesar de, a este, se aplicar em larga medida as regras do subcontrato em sentido próprio.
O subcontrato propriamente dito é aquele cujo conteúdo, senão totalmente idêntico, coincide com o do contrato base quanto aos elementos normativos injuntivos e voluntários necessários. Em relação aos elementos voluntários necessários a coincidência pode não ser total, como acontece no caso da subrenda ser superior ou inferior à renda, mas em ambos os negócios terão de ser fixados esses elementos; isto é, eles podem não coincidir, mas não podem faltar. Assim, no caso do arrendamento, se no segundo contrato não for estabelecida uma renda, este não será um subcontrato em sentido próprio.”
E assim, para concluirmos definitivamente por uma resposta negativa à 1.ª questão, resta apenas dizer que a eventual falta de autorização do locador financeiro à locação da coisa pelo locatário financeiro releva apenas no confronto entre ambos, redundando numa situação de incumprimento contratual por parte deste. Não inquina o contrato de locação celebrado, sem prejuízo, claro está, da repercussão que tal incumprimento pode ter, de forma imediata, na subsistência do contrato de locação financeira e, de forma reflexa, no contrato de locação. Estamos a pensar na hipótese de resolução do contrato de locação financeira, o que levará à cessação dos poderes com base nos quais o locatário financeiro locou a coisa.
Deste modo, a resposta à 1.ª questão é negativa, ainda que por razões diversas das aduzidas pelo Tribunal a quo – situadas, mesmo, a montante delas.
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3).1. Os termos em que concluímos a resposta à primeira questão servem de mote para a resposta à segunda.
Vimos que o gozo das frações foi cedido à sociedade Ré pelo locatário financeiro, o que condiciona o contrato de arrendamento, consequência necessária do já referido princípio nemo plus juris…, segundo o qual ninguém pode transmitir um direito que não tem ou um direito mais forte do que aquele de que é titular.
Como corolário, por força do disposto no art. 1051, c), o contrato de locação caduca “[q]uando cesse o direito ou findem os poderes legais de administração com base nos quais o contrato foi celebrado”, o que permite afirmar, logo à partida, que, no caso, uma vez cessado o contrato de locação financeiro que era fonte dos poderes da senhoria, facto que resultou demonstrado, cessou, por caducidade, o contrato de arrendamento. Está aqui em causa a caducidade enquanto ineficácia ex nunc de um negócio jurídico validamente celebrado, por efeito automático de um evento suscetível de o fazer cessar e não enquanto cessação de um direito, por não ter sido usado pelo seu titular dentro do prazo imposto para o efeito.
Compreende-se que assim seja, não apenas pela razão que indicámos, mas também porque não é aceitável que o contrato de arrendamento celebrado por quem tem um mero poder de administração da coisa onere o titular do direito de propriedade, em relação ao qual é res inter alios (art. 406/2), para além da vigência de tal poder.
Neste sentido, visando também as situações em que o arrendamento foi celebrado por quem é titular de um direito de gozo diferente da propriedade, como o usufruto, escreve Ana Raquel Pessoa (Comentário ao art. 1051, AAVV, António Agostinho Guedes / Júlio Vieira Gomes (coord.), Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Contratos em Especial, Lisboa: UCE, 2023, p. 443), que “com a extinção do usufruto, os poderes e faculdades que constituem o conteúdo deste direito real menor reintegram o conteúdo do direito de propriedade, recuperando o proprietário os poderes plenos sobre a coisa. É nisto que se traduz a elasticidade do direito de propriedade e a sua força expansiva. A extinção do direito de usufruto acarreta a caducidade do contrato de locação. Da mesma forma, a cessação dos poderes de administração sobre coisa alheia, ao abrigo dos quais foi celebrado o contrato de locação, também fará caducar o referido contrato. Pense-se, por exemplo, no caso de alguém que, por força de um mandato, administra bens alheios e, no exercício desses poderes de administração, celebrou um contrato de locação sobre o bem. Com a cessação desses poderes de administração (por exemplo, na sequência da revogação do mandato), o proprietário do bem recupera os seus poderes de administração, caducando o contrato de locação que havia sido celebrado.”
Como refere a mesma autora, esta é uma causa de caducidade objetiva, que se aplica mesmo que o locador não tenha informado o locatário da sua qualidade de não proprietário do bem dado em locação, podendo, neste caso, ser responsabilizado pelos danos causados com fundamento na culpa in contrahendo, o que encontra acolhimento no disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 1034. Note-se que, não obstante o art. 3.º/1, b), do DL n.º 160/2006, de 8.08, estabelecer que o contrato de arrendamento deve mencionar “a natureza do direito do locador, sempre que o contrato seja celebrado com base num direito temporário ou em poderes de administração de bens alheios”, o art. 4.º do mesmo diploma logo afirma que a falta dessa menção – e, por identidade, a sua desconformidade com a realidade –, não afeta a validade do contrato.
Deste modo, podemos concluir que, no caso, com a cessação do contrato de locação financeira, caducou o contrato de arrendamento celebrado entre a locatária financeira e a Ré EMP01..., Lda., o que prejudica a pretensão do Autor obter a respetiva cessação por resolução.
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3).2. A conclusão a que acabámos de chegar pode ser questionada. Antes de o fazermos vamos, porém, abrir um parêntesis para dizer que é absolutamente incorreta a tese, sustentada pelo Autor e aceite pela decisão recorrida, de que a posição jurídica de senhorio da locatária financeira se transmitiu para o Autor por efeito do contrato de compra e venda celebrado entre este e o locador financeiro.
Tal tese procura o seu apoio legal no disposto no art. 1057, onde se consagra o princípio expresso através do brocardo emptio non tollit locatum.
Diz a norma que “[o] adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo.”
Resulta daqui que a transmissão do direito-base no qual assenta a relação locatícia, de que é exemplo paradigmático a transmissão do direito de propriedade sobre a coisa locada, não faz cessar o contrato de locação; antes opera, ipso iure, por mero efeito do contrato, a transmissão da posição contratual de locador da esfera jurídica do transmitente para a do transmissário. Assim, este adquire não apenas o direito transmitido (que é, percutimos, o direito com base no qual foi celebrado o contrato de arrendamento), mas também a posição contratual do locador, sem que a isso se possa opor.
Esta simples referência permite perceber que a referida tese parte de uma petição de princípio, fruto de um salto lógico: a de que o locador financeiro tinha, na sua esfera jurídica, a posição de senhorio no contrato de arrendamento celebrado com a Ré EMP01..., Lda. Como vimos, tal conclusão não é correta. O que sucedeu foi antes que, com a cessação do contrato de locação financeira, que constituía a fonte do “direito com base no qual” foi celebrado o arrendamento, este caducou. Quando o locador financeiro transmitiu para o Autor a propriedade sobre as frações, transmitiu um direito pleno, sem qualquer ónus ou limitação, designadamente o que derivava do contrato de arrendamento que havia sido celebrado entre a locatária financeira e a Ré EMP01..., Lda..
Pode configurar-se a hipótese de o locatário financeiro, por acordo com o locador, ceder a este a posição jurídica de senhorio, que redundará numa cessão da posição contratual, feita nos termos gerais (arts. 424 e ss.) – assente, portanto, numa base contratual –, com o necessário consentimento do arrendatário.
Ocorrendo uma situação deste tipo, é óbvio que o arrendamento não caduca com a cessação do contrato de locação financeira e que, com a transmissão do direito de propriedade do locador financeiro, será também transmitida a posição jurídica de senhorio.
Simplesmente, a matéria de facto alegada pelas partes afasta semelhante hipótese.
Nem mesmo a declaração que foi exarada pelo locador financeiro no contrato de compra e venda pelo qual transmitiu para o Autor a propriedade sobre as frações permite cogitá-la. Em 1.ª lugar, essa declaração não foi emitida em conjunto pelo locador financeiro e pela locatária financeira, pelo que nunca poderia ver-se nela um acordo de cessão de uma posição contratual ocupada por esta; em 2.º lugar, dela não resulta a expressão de qualquer vontade do locador financeiro assumir as obrigações que do contrato de arrendamento decorriam para a locatária financeira, mas apenas a constatação de que esta havia arrendado as frações a um terceiro, o qual continuava a ocupar o prédio. Nada mais.
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3).3. Encerrado o parêntesis, cabe agora dizer que o art. 1056 estabelece que “[s]e, não obstante a caducidade do arrendamento, o locatário se mantiver no gozo da coisa pelo lapso de um ano, sem oposição do locador, o contrato considera-se igualmente renovado nas condições do art. 1054.”
Poderá considerar-se, com base nesta norma, renovado o contrato de arrendamento caduco que foi celebrado entre a locatária financeira e a Ré EMP01..., Lda.?
Na base da norma está, segundo uns (Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 399), a presunção de que as partes acordaram tacitamente na renovação e, segundo outros, a tutela legal da confiança do locatário, que inferiu, a partir do comportamento do locador, que este aceitara a renovação do contrato. No dizer de Ana Raquel Pessoa, Comentário ao art. 1051, ob. cit., p. 453, “[o] legislador entendeu que esse estado de confiança é merecedor de tutela, pois o locador, mesmo após a caducidade do contrato, aceitou a ocupação do locado por mais de um ano e nada fez para recuperar a posse do bem.”
Como é bom de ver, a possibilidade de renovação está excluída, pela própria natureza das coisas, nas hipóteses de caducidade da locação contempladas nas alíneas d), e) e f) do art. 1051 (Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, Coimbra: Almedina, 2005, p. 324).
Também entendemos que, nos casos em que a caducidade do contrato se ficou a dever à cessação do direito ou dos poderes legais de administração com base nos quais o contrato foi celebrado, não faz sentido a aplicação da norma: a oposição do senhorio não terá então qualquer relevância prática, pois ele deixou de ter legitimidade de atuação em relação ao imóvel, como enfatiza Ana Raquel Pessoa, idem. Isto a menos, ressalvamos, que tenha havido uma prévia transmissão da posição contratual, o que, no caso, já vimos não ter sucedido. Dir-se-á, então, que a renovação do arrendamento caduco opera mediante uma transmissão da posição contratual (Pedro Romano Martinez, idem).
A conclusão a que chegámos no ponto 3).1. resiste, assim, a este teste, o que permite responder negativamente à 3.ª questão enunciada.
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3).4. Com a cessação do contrato, ficaram extintas as obrigações que dele decorriam para as partes. Assim, a Ré EMP01..., Lda., deixou de estar obrigada ao pagamento das rendas. Ficou, no entanto, prima facie,obrigada a restituir as frações autónomas arrendadas, aspeto ao qual voltaremos mais à frente.
Por agora o que importa reter é que, com a cessação do arrendamento, caducou a fiança constituída, por via contratual, entre os Réus BB e CC, por um lado, e a sociedade EMP02..., Lda., pelo outro, para garantia do cumprimento das obrigações que do contrato de arrendamento resultavam para a Ré EMP01.... É o que decorre do disposto no art. 651, corolário natural da natureza acessória da fiança (art. 627/2), a qual significa, genericamente, por um lado, que a obrigação principal é pressuposto da obrigação do fiador, que lhe serve de referência, determina a sua extensão máxima e lhe comunica as suas fraquezas (arts. 631, 632, 634, 637 e 651), e, por outro, que extinguindo-se a obrigação do devedor extingue-se também a do fiador.
Com efeito, a fiança pressupõe uma obrigação de referência, sobre a qual se molda e da qual depende, desde o nascimento até à extinção. Isto significa, no que releva para o presente recurso, que a extinção da obrigação garantida determina igual extinção da garantia (Manuel Januário da Costa Gomes, “A fiança no quadro das garantias pessoais. Aspetos de regime”, Estudos de Direito das Garantias, I, Coimbra: Almedina, 2004, pp. 7-48).
Este juízo apenas poderia sofrer alteração se a posição jurídica de locador tivesse sido transmitida para o Autor. Valeria então a lição de Manuel Januário da Costa Gomes (Assunção fidejussória de Dívida, Coimbra: Almedina, 2000, p. 781) no sentido da aplicação do regime estabelecido no art. 582 para a mera cessão de créditos: “não sendo de presumir o caráter intuitu personae da fiança relativamente à pessoa do credor quando se trate de cessão de créditos, não há razão para formular uma conclusão diferente quando se não trate de estrita cessão do elemento da relação contratual corporizada no crédito, mas da complexa posição contratual. Na verdade, garantindo o fiador a satisfação de um crédito, não existe razão aparente para que a fiança deva subsistir ou deva caducar em função de o modo de negociação desse crédito, escolhido pelo seu titular, ter um âmbito mais restrito ou mais amplo.”
Com isto, podemos assentar, desde já, que o recurso merece provimento no que tange aos dois Réus pessoas singulares.
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3).5. Como escrevemos, a caducidade do arrendamento fez surgir na esfera jurídica da Ré EMP01..., Lda., a obrigação de restituir as frações autónomas. Esta conclusão apresenta-se, porém, como meramente aparente, soçobrando a uma análise mais detalhada do comportamento subsequente do Autor e da Ré EMP01..., Lda..
Antes de explicarmos esta afirmação, notamos que a obrigação de restituir a coisa ao senhorio uma vez findo o arrendamento decorre ainda do contrato e tem, indiscutivelmente, natureza contratual (arts. 1038, i) e 1045). Afigura-se, porém, que assim não sucede quando o arrendamento caduca nos termos previstos na alínea c) do art. 1051. O senhorio já não é então titular de qualquer direito que lhe permita o gozo da coisa nem de poderes que lhe permitam praticar atos de administração ordinária sobre ela, pelo que a restituição tem de ser feita ao proprietário, que recuperou a plenitude do seu direito. Ora, o contrato apenas vincula os respetivos sujeitos (art. 406/2)[4], entre os quais não se inclui, como vimos, o proprietário da coisa locada. Deste modo, o que verdadeiramente ocorre em tais casos, é que a obrigação de restituir a coisa locada – ou, dizendo com mais propriedade, de a entregar – brota do dever geral de respeitar o direito de propriedade de terceiros. Ao manter a ocupação da coisa depois de cessado o arrendamento, o locatário atua em violação do direito de propriedade (direito absoluto) e não do contrato, que ficou totalmente exaurido, mais nenhuma obrigação havendo para com o senhorio. Como decorrência, a indemnização a satisfazer por essa ocupação ilícita tem o seu enquadramento na responsabilidade civil extracontratual. Neste sentido, em casos de caducidade do arrendamento por morte do arrendatário, RL 28.05.2009 (190/2002.L1-2) e RL 23.02.2023 (21395/21.7T8LSB.L1-6).
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3).6. Isto dito, cumpre agora explicar a afirmação com que iniciámos o ponto anterior.
Os factos adquiridos evidenciam que, não obstante a caducidade do arrendamento, tudo se passou como se o vínculo tivesse subsistido e a posição jurídica do senhorio tivesse sido transmitida para o aqui Autor. Assim, a Ré EMP01..., Lda., continuou a ocupar as frações autónomas, exercendo nelas a sua atividade, o que não mereceu qualquer oposição do Autor; pelo contrário, o Autor exigiu mesmo o cumprimento da principal obrigação que recai sobre o arrendatário – o pagamento das rendas –, cominando a não purgação da mora que entendeu que se verificava com a resolução do contrato.
Decorre daqui que Autor e Ré EMP01..., Lda., praticaram atos que exprimem a execução do contrato caduco e, portanto, a vontade comum de pautarem os seus interesses nos precisos termos que resultavam das respetivas cláusulas. Isto permite-nos afirmar que surgiu um novo contrato de arrendamento, que tem como sujeitos o Autor e a Ré EMP01..., Lda., e que se rege pelas cláusulas repristinadas do contrato caduco. Para uma hipótese em que as partes continuaram a executar um contrato e arrendamento que havia sido resolvido por incumprimento, considerando tratar-se de um novo contrato, ...22 (18942/21....).
Este arrendamento não revestiu a forma escrita, legalmente prevista no art. 1069/1 para o contrato de arrendamento. Afigura-se, no entanto, que com a Lei n.º 13/2019, de 12.02, que acrescentou um n.º 2 ao art. 1069, a admitir que a prova do contrato seja feita por “qualquer forma admitida em direito”, desde que inobservância da forma legal não seja imputável ao arrendatário, a formalidade passou a assumir natureza ad probationem (cf. art. 364). Neste sentido, Maria Olinda Garcia, “Alterações em matéria de Arrendamento Urbano introduzidas pela Lei n.º 12/2019 e pela Lei n.º 13/2019”; Julgar Online, março de 2019, disponível em julgar.pt [25.10.2023], p. 8; Maria João Vasconcelos, AAVV, António Agostinho Guedes / Júlio Vieira Gomes (coord.), Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Contratos em Especial, Lisboa: UCE, 2023, pp. 489-490. E, no caso, a prova está feita em resultado da própria alegação do Autor, na petição inicial, em que confessa a sua vinculação nos termos supra referidos, resultando ainda que para a omissão da forma escrita não contribuiu qualquer comportamento da Ré EMP01..., Lda.
De dizer, apenas, que acaso concluíssemos pela nulidade deste novo contrato de arrendamento, por inobservância da forma legal, ut art. 220, o Autor não ficaria desamparado no que, em execução dele, prestou. Assistir-lhe-ia a pretensão de restituição, tratada no art. 289. Como decorre deste preceito, com a declaração de nulidade, estabelece-se entre as partes uma relação de liquidação: deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
Esta solução está em consonância com a ideia de que o fator que determina a invalidade é contemporâneo da declaração negocial – isto é, nas palavras de Sconamiglio, citado por Rui de Alarcão, Invalidade dos Negócios Jurídicos – Anteprojeto para o Novo Código Civil, BMJ 89, p. 236, nota 92, “a invalidade constitui, pela sua própria essência, um fenómeno necessariamente contemporâneo do negócio (da sua existência).”
Quanto ao regime por que deve pautar-se o dever de restituir decorrente da declaração de nulidade, cumpre aqui notar que o Código afastou a solução consagrada no art. 257.º, n.º 2, da 1.ª Revisão Ministerial do Projeto, em que se estabelecia a aplicação das normas relativas ao enriquecimento sem causa, o que está de acordo com a natureza subsidiária deste instituto. É assim que, escreve Leite de Campos, A Subsidiariedade da Obrigação de Restituir o Enriquecimento, Coimbra, 1979, ps. 194 e ss., “o novo diploma legal [o Código Civil de 1966] permitiu, através de uma regulamentação tecnicamente cuidada da nulidade, que esta fosse extremada do enriquecimento sem causa, o que veio evitar confusões maléficas para ambos.” No mesmo sentido, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 9.ª Ed., Coimbra: Almedina, 1996, p. 503, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p. 436, e João Redinha, Contrato de Mútuo, AAVV, Direito das Obrigações, III, Lisboa: AAFDL, 1991, pp. 219-220. Na jurisprudência, STJ 5.06.2001, 01A809, RG 5.04.2018 (2842/16.6T8AVR.G1) e RG 3.02.2022 (5708/18.1T8GMR.G1). Em sentido contrário pronuncia-se apenas Vaz Serra, RLJ 102, p. 364, que escreve, sem outra fundamentação, que “quanto a ter o dever de restituição do mutuário por fundamento a nulidade (formal) dos contratos, e não o princípio do enriquecimento sem causa, afigura-se-nos isso muito duvidoso (pelo menos).”
Por outro lado, segundo a jurisprudência constante do Assento do STJ n.º 4/95, de 28.03 (publicado no Diário da República, I Série, de 17.05.95), “quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na ação tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no n.º 1 do art. 289 do Código Civil.”
Como nota Vaz Serra (“Anotação ao Ac. do STJ de 28.10.1975”, RLJ, ano 109.º, p. 313), quando o autor formula na ação os seus pedidos, partindo da validade do contrato, poderia tê-los formulado também na base da nulidade deste, sendo, por isso, de admitir que, se tivesse previsto a nulidade, o teria feito.
É, assim, excessivo formalismo julgar improcedente a ação, devendo, antes, converter-se a causa de pedir na que o autor teria invocado se tivesse previsto a nulidade do contrato.
Segundo o art. 293, “o negócio jurídico nulo ou anulado pode converter-se num negócio de tipo ou conteúdo diferente do qual contenha os requisitos essenciais de substância e de forma, quando o fim prosseguido pelas partes permita supor que elas o teriam querido se tivessem previsto a invalidade.”
Uma petição inicial é, afinal, uma declaração de vontade dirigida ao tribunal e à parte contrária (cf. Paula Costa e Silva, Ato e Processo, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, ps. 450 – 451; e E. Santos Júnior, “Ónus de impugnação e admissão por acordo de factos não impugnados (art. 490 do Código de Processo Civil”, Cadernos de Direito Privado, n.º 12, Outubro / Dezembro de 2005, ps. 54 e ss., maxime ps. 63 – 64), pelo que, se ela não puder ser atendida tal como foi formulada, parece razoável supor que possa ser convertida na que o autor teria formulado se tivesse previsto aquela inatendibilidade. Assim se evita que a ação seja julgada improcedente e que o autor tenha de propor uma outra formulada na base da nulidade do contrato; e não se ofende um interesse digno de proteção do demandado, que bem se podia ter apercebido da pretensão do autor no sentido postulado pela nulidade do contrato: seja o contrato válido ou nulo, sempre ele demandado é obrigado ao que na ação é pedido.
Por outro lado, como escrevemos, a declaração de nulidade – que, como se sabe, é do conhecimento oficioso (art. 286 do Código Civil) – tem efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado (art. 285/1 do C. Civil). Acontece que, nos contratos em que uma das partes beneficie do gozo de uma coisa ou de um serviço, como é o caso dos autos, apresentam-se com algumas especificidades que não podem deixar de ponderar-se à luz do regime do art. 289/1. O mesmo é dizer que o mecanismo do art. 289/1, com eficácia ex tunc, na sua radicalidade, se não se neutralizarem os efeitos da nulidade em relação às prestações já efetuadas, não assegura a restituição de tudo o que foi prestado. Resultado este que não cumpre a teleologia do próprio preceito e que se aliado à inaplicação do instituto de enriquecimento sem causa, é de uma injustiça flagrante e impele o intérprete a procurar outra via para realizar a maior justiça possível.
Neste sentido, entendeu-se em STJ 16.10.2003 (03B484), a propósito da obrigação de restituir, decorrente da declaração de nulidade do negócio jurídico, no domínio das relações obrigacionais duradouras, que “a nulidade, conquanto tipicizada pelos mais drásticos predicados de neutralização do negócio operando efeitos interativos ex tunc, nem assim pode autorizar a ilação de que o negócio jurídico seja equivalente a um nada, tal como se pura e simplesmente não tivesse acontecido. A celebração do negócio revela-o existente como evento e por isso não está ao alcance da ordem jurídica tratar o ato realizado como se este não houvesse realmente ocorrido, mas apenas recusar-lhe a produção de efeitos jurídicos que lhe vão implicados.
Não é, por conseguinte, exata a ideia de que, mercê da nulidade, tudo se passa como se o contrato não tivesse sido celebrado ou produzido quaisquer efeitos. Bem ao invés, porque o contrato é algo que na realidade aconteceu, daí precisamente a sua repercussão no subsequente relacionamento jurídico das partes. Pode na verdade suceder que os contraentes tenham efetuado prestações com fundamento no contrato nulo, ou posto em execução uma relação obrigacional duradoura, dando lugar à abertura de uma vocacionada composição inter-relacional dos interesses respetivos - v. g., a sociedade desenvolveu normalmente as suas atividades comerciais, agindo e comportando-se os fundadores como sócios por determinado período de tempo, não obstante a nulidade do contrato social; sendo nulo o contrato de trabalho, todavia o trabalhador prestara efetivamente os seus serviços à entidade patronal.
Neste conspecto – e ademais quando se pretenda estar vedado no domínio específico das invalidades o recurso aos princípios do enriquecimento sem causa pelo carácter subsidiário do instituto – observa-se estar hoje generalizado o entendimento segundo o qual deve o contrato nulo ser valorado, em semelhante circunstancialismo, e no que respeita ao desenvolvimento ulterior da aludida composição entre as partes (…) como “relação contratual de facto” suscetível de fundamentar os efeitos em causa (v. g., a remuneração do trabalho prestado no quadro do contrato laboral nulo por incapacidade negocial do trabalhador), encarados agora, não como efeitos jurídico-negociais de contrato inválido, mas na dimensão de efeitos (ex lege) do ato na realidade praticado.
E, assim, tratando-se de relações obrigacionais duradouras, no domínio das quais, desde que em curso de execução, encontra em princípio aplicação a figura do “contrato de facto” – “contrato imperfeito” noutra terminologia; de “errada perfeição” (…) tudo se passará, nos aspetos considerados, como se a nulidade do negócio jurídico apenas para o futuro (ex nunc) operasse os seus efeitos.”
Este entendimento converge, no essencial, com as posições de Rui Alarcão (“A Confirmação dos Negócios Anuláveis”, I, Coimbra, 1971, p. 76, nota 101), que considera que “a chamada restituição em valor virá, por vezes, a traduzir-se no respeito pela execução, entretanto ocorrida, do negócio” e de António Meneses Cordeiro (“Tratado de Direito Civil Português”, I, Parte Geral, Tomo I, p. 874) que, a propósito, escreve que “[n]os contratos de execução continuada em que uma das partes beneficia do gozo de uma coisa – como no arrendamento – ou de serviços – como na empreitada, no mandato ou no depósito – a restituição em espécie não é, evidentemente, possível. Nessa altura, haverá que restituir o valor correspondente o qual, por expressa convenção das partes, não poderá deixar de ser o da contraprestação acordada. Isto é: sendo um arrendamento declarado nulo, deve o “senhorio” restituir as rendas recebidas e o “inquilino” o valor relativo ao gozo de que desfrutou e que equivale, precisamente, às rendas. Ambas as prestações restitutórias se extinguem, então, por compensação, tudo funcionando, afinal, como se não houvesse eficácia retractiva, nestes casos.”
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3).7. Perante o que antecede, ainda que trilhando um caminho diferente do que foi traçado pela 1.ª instância, chegamos à conclusão de que a Ré EMP01..., Lda., estava obrigada ao pagamento das rendas devidas pela cedência do gozo das frações no período subsequente à sua aquisição pelo Autor, que se tornara seu senhorio. Não o fazendo, como confessadamente não fez, permitiu que se criasse na esfera jurídica do Autor o direito potestativo à resolução do contrato.
Assim, sem necessidade de outras considerações, a resposta à 3.ª questão é afirmativa, com a única ressalva de que o contrato de arrendamento que justifica os pedidos formulados pelo Autor não é o que foi celebrado entre a sociedade EMP02..., Lda., e a Ré EMP01..., Lda., mas um outro contrato, celebrado através de declarações tácitas (art. 219), ainda que com cláusulas que foram decalcadas das que compunham aquele.
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4) Passamos para a 4.ª questão, que se revela de grande simplicidade.
Como se constata, a decisão da 1.ª instância decretou a resolução do contrato de arrendamento, condenou a Ré na restituição das frações e, bem assim, no pagamento das rendas vencidas à data da propositura da ação e das que se venceram entretanto. Condenou ainda a Ré ao pagamento da quantia de € 400,00 por cada mês de atraso na restituição das frações.
Acontece que, previamente à prolação do despacho saneador, o Autor apresentou articulado superveniente em que, depois de dizer que a Ré deixara de exercer a sua atividade nas frações e acrescentar que já tinha consigo as chaves respetivas, concluiu que a instância devia ser julgada extinta por inutilidade superveniente da lide no que tange aos pedidos de resolução e de restituição das frações e liquidou em € 7 200,00 o montante das rendas vencidas até maio de 2022.
Este articulado foi admitido liminarmente e os factos nele alegados, dos quais decorre a desocupação das frações e a entrega das respetivas chaves em maio de 2022, foram, como vimos, aceites pelos Réus.
Demonstra-se, assim, que na pendência da ação, ocorreu a revogação real do contrato de arrendamento, causa da sua cessação com efeitos ex nunc,o que deveria ter sido reconhecido no despacho saneador, nos precisos termos que foram referidos pelo próprio Autor. A propósito, STJ 9.05.2006 (06A1001), RP 22.04.2013 (4217/09.4TBSTS.P2), RE 31.01.2019 (14/18.4T8NIS.E1) e RP 24.05.2021 (3150/18.3T8GDM.1).
A resposta a esta questão é, portanto, afirmativa, com a consequente procedência do recurso nesta parte.
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5) Em resultado do que antecede, na procedência parcial do recurso, este Tribunal ad quem, substituindo o Tribunal de 1.ª instância, deve: declarar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide (art. 277, e), do CPC), na parte relativa aos pedidos de resolução do contrato, condenação da Ré EMP01..., Lda., na restituição das frações e no pagamento das rendas vencidas depois de maio de 2022 em diante, bem como na parte relativa à indemnização pelo atraso na restituição das frações; deve julgar a ação improcedente, in totum, no que tange aos Réus BB e CC.
Na improcedência parcial do recurso, este Tribunal ad quem deve manter, na parte restante, a decisão recorrida (que, salienta-se, não condenou os Réus no pagamento de juros de mora sobre as rendas vencidas, omissão de pronúncia que não foi arguida pelo Autor).
As custas, tanto as da ação como as do recurso, devem ser suportadas pelo Autor e pela Ré EMP01..., Lda., na proporção dos respetivos decaimentos, que se fixam em metade para cada, tudo em obediência ao critério da causalidade consagrado no art. 527/1 e 2 do CPC.
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V
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em:
1) Julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação e, em consequência:
a) Declarar extintos, por inutilidade superveniente da lide, os pedidos de resolução do contrato de arrendamento, condenação na restituição das frações e no pagamento das rendas relativas aos meses subsequentes ao de maio de 2022, bem como na parte relativa à indemnização pelo atraso na restituição das frações;
b) Absolver os Réus BB e CC da totalidade dos demais pedidos formulados pelo Autor, AA;
2) Na improcedência parcial do presente recurso de apelação, manter a decisão recorrida na parte em que condenou a Ré, EMP01..., Lda., a pagar ao Autor, AA, as rendas relativas aos meses de dezembro de 2020 até maio de 2022, cada uma delas no montante de € 400,00 (quatrocentos euros), perfazendo um total de € 7 200,00 (sete mil e duzentos euros);
3) Condenar o Autor, AA, e a Ré, EMP01..., Lda., no pagamento das custas, tanto da ação como do presente recurso, na proporção de ½ para cada.
Notifique.
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Guimarães, 9-11-2023
Os juízes Desembargadores, Gonçalo Oliveira Magalhães (Relator) Maria João Marques Pinto Matos (1.ª Adjunta) Alexandra Maria Viana Parente Lopes (2.ª Adjunta)
[1] Inter alia, RG 10.07.2023 (4607/21.4T8VNF-A.G1), relatado pela Desembargadora Maria João Matos, aqui 1.ª Adjunta. [2] Pertencem ao Código Civil as disposições legais indicadas sem menção expressa da respetiva proveniência. [3] Disponível, como os demais arestos indicados no texto, em www.dgsi.pt. [4] Ressalvam-se as situações excecionais em que o contrato acaba por produzir efeitos, negativos ou positivos, junto de determinados terceiros. Em termos gerais, reconhecem‑se, pelo menos, cinco limites à relatividade das obrigações e contratos, que têm assento legal claro (como o próprio art. 406/2 ressalva): (i)) O contrato a favor de terceiro (arts. 443 e ss.); (ii)) os contratos com eficácia real; (iii)) a impugnação paulianae o regime da impugnação dos atos praticados pelo insolvente, antes da declaração da insolvência; (iv)) o abuso do direito (art. 334); (v))) a proibição de concorrência desleal (cf. art. 311 do Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo DL n.º 110/2018, de 10.12).