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INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS
RECURSO
QUESTÃO NOVA
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
Sumário
I – Os presentes autos de inventário tiveram início por requerimento apresentado em 11.11.2014, no Cartório Notarial, aplicando-se-lhe então o regime jurídico do processo de inventário (RJPI) introduzido pela Lei n.º 23/2013, de 5 de março, que entrou em vigor no dia 02.09.2013 (primeiro dia útil desse mês), e subsidiariamente o Código de Processo Civil, na redação da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, em face do disposto no artigo 82.º da Lei n.º 23/2013. II – Estando o inventário ainda pendente no cartório notarial, em 01.01.2020, entrou em vigor a Lei n.º 117/19, de 13.09 (artigo 15.º), que revogou o RJPI (artigo 10.º) e, invertendo o caminho de desjudicialização, reintroduziu os inventários nos tribunais judiciais, e na codificação processual civil o respetivo regime jurídico. III – Tendo o inventário sido remetido ao Tribunal, nos termos do disposto no artigo 13.º, n.º 3, do RJPI, aos presentes autos aplica-se o regime decorrente desta Lei, por via da qual o momento de interposição do recurso das ali indicadas decisões interlocutórias foi antecipado, cabendo agora apelação em separado das decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha, por força do disposto no n.º 2 alínea b) do artigo 1123.º do CPC, admitindo atualmente a decisão relativa à reclamação de bens recurso autónomo. IV – Porém, sendo a decisão recorrida a primeira proferida na vigência do novo regime do processo de inventário, e não admitindo a decisão relativa à reclamação de bens recurso autónomo aquando da sua prolação, abstratamente aquela decisão da senhora Notária ainda seria passível de recurso neste momento. V – Dissemos abstratamente porque a pretensão recursiva formulada pela Apelante configura um verdadeiro venire contra factum proprium uma vez que não só acordou na audiência do dia 10.01.2023 sobre o valor de benfeitorias feitas nos bens doados, como, mais evidentemente, os bens doados não haviam sequer sido relacionados inicialmente e foi a interessada ora Recorrente quem acusou a falta na relação de bens daqueles imóveis identificados na escritura de doação, que agora pretende não sejam integrados na partilha. VI – Portanto, atento o disposto no artigo 631.º, n.º 1, do CPC, não tendo ficado vencida naquela decisão, a interessada, não tem sequer, em bom rigor, legitimidade para recorrer nesta parte. VII – Não tendo a questão colocada a este tribunal de recurso sobre a avaliação dos bens sido colocada em primeira instância, não pode obviamente haver qualquer reapreciação de questão que não foi decidida e que não é de conhecimento oficioso, estando vedado ao Tribunal da Relação decidir matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo. (Sumário elaborado pela Relatora)
Texto Integral
Processo n.º 878/21.4T8ABT.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém[1]
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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:
I – RELATÓRIO 1. AA, interessada no processo de inventário acima identificado, em que foi requerente e é cabeça-de-casal BB, notificada do despacho determinativo da partilha e das quotas ideais das interessadas proferido em 23.02.2023, apelou, finalizando a respetiva minuta recursória com as seguintes conclusões: «1- O único bem a partilhar é a verba nº 1 — Dinheiro. 2- Os restantes bens foram objecto de uma partilha em vida e a verba nº 2 é parte integrante da verba nº 22 dos bens doados à recorrente. 3- Nenhum dos interessados pretende a restituição dos bens à massa da herança. 4- A avaliação efectuada aos bens doados violou o disposto no artigo 2109º e 2162º do Código Civil, pois teve em consideração o valor à data da perícia e não o valor à data da morte do de cujus. Motivo, pelo qual, o Tribunal ao decidir partilhar os bens constantes das verbas 3 a 22 violou o disposto no artigo 2104º, 2109º nº 1 e 2172º todos do Código Civil, devendo, pois ser revogado o douto despacho que determinou o valor dos bens a partilhar no montante de 1004.112,04 € para um outro que fixe o valor de bens a partilhar no montante de 35.354,79 €.».
2. A cabeça-de-casal apresentou contra-alegações, concluindo que: «1ª A relação de bens dos autos está devidamente estabilizada desde a audiência prévia de 10 de Janeiro de 2023. 2ª Os Inventariados outorgaram escritura de “DOAÇÕES”, por conta da quota disponível, e não “partilha em vida”. 3ª O bem imóvel relacionado sob a verba 2 está devidamente autonomizado e, nesse pressuposto, deve ser objecto de partilha entre os interessados. 4ª A avaliação dos bens imóveis foi requerida pelos interessados nos termos constantes da acta de audiência prévia de 23 de Fevereiro de 2022 e determinada por douto despacho que fixou os respectivos quesitos. 5ª O Tribunal não violou qualquer preceito legal, devendo manter-se o douto despacho sob recurso. 6ª A recorrente deve ser condenada em multa, enquanto litigante de má-fé».
3. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objeto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objeto do recurso se limita pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, no caso em apreço, as únicas questões que importa decidir são as de saber se a decisão recorrida enferma ou não de erro na determinação do acervo dos bens a partilhar e do respetivo valor, e se a recorrente deve ser condenada como litigante de má-fé.
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III – Fundamentos III.1. A tramitação processual relevante para decisão das questões colocadas à apreciação deste Tribunal é a seguinte: 1. Os presentes autos de inventário tiveram início por requerimento apresentado em 11.11.2014 pela cabeça-de-casal, no cartório notarial, com vista à partilha da herança aberta, por óbito de BB e de CC. 2. Com o requerimento inicial a requerente juntou escritura lavrada em 02.07.2002, no Cartório Notarial ..., intitulada “DOAÇÕES”, na qual constam identificados vinte prédios que CC e BB, «pela presente escritura, por conta da quota disponível», declararam doar nos termos que ali especificaram, às suas filhas BB e AA, que aceitaram «as presentes doações nos termos exarados, na parte a que a cada uma respeita». 3. A cumulação de inventários foi permitida, «nos termos das alíneas a) e b) do artigo 18º do RJPI, porquanto os bens serão repartidos pelas mesmas pessoas e são heranças deixadas pelos dois cônjuges». 4. A cabeça-de-casal prestou declarações nas quais referiu que os inventariados fizeram «doações, por conta da sua quota disponível», e «que os bens a partilhar são constituídos por dinheiro e imóveis adquiridos a título oneroso, na constância do matrimónio». 5. Por requerimento apresentado em 03.12.2014, a cabeça-de-casal apresentou a relação de bens, indicando como ativo a verba um, dinheiro, então com o valor de €35.354,79, e a verba n.º 2 descrita como “Prédio urbano sito em ..., União das Freguesias de São Facundo e Vale das Mós, concelho de Abrantes, composto de casa de habitação com um piso, com a superfície coberta de 120 m2, a confrontar de Norte, Sul, Nascente e Poente com AA, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...70 da União das Freguesias de São Facundo e Vale das Mós, anteriormente inscrito sob o artigo ...98 da freguesia de São Facundo, omisso na Conservatória do Registo Predial de Abrantes, com o valor patrimonial de €5.880,00”. 6. Notificada da junção da relação de bens, a interessada AA, deduziu reclamação contra a relação de bens apresentada, aduzindo, na parte ora relevante que «A) Falta relacionar os bens doados constantes da escritura de doação – Doc. 1, lavrada aos 2/07/2012», identificando seguidamente os vinte imóveis referidos naquele documento.
Mais aduziu que «o prédio identificado na verba n.º 2 não existe como casa de habitação. É uma dependência agrícola do prédio misto identificado como verba n.º 15, dos bens doados, fica no meio do mesmo (…) Devendo a cabeça-de-casal pedir a sua eliminação como prédio urbano autónomo». 7. Notificada para o efeito, pronunciou-se a cabeça-de-casal dizendo que:
«1º A cabeça-de-casal juntou aos autos a fls. a escritura de doações celebrada no Cartório Notarial ... em 2 de Julho de 2002 e, em anexo, apresenta a relação de bens doados, para que se tenha em consideração. (…)
3º A interessada reclamante bem sabe que o prédio urbano relacionado sob a verba dois do Activo tem existência tal como vem descrito na Relação de Bens e deverá ser objecto de partilha, conforme esteve para o ser em escritura de partilha e só o não foi porque a reclamante não cumpriu com a sua parte para com a cabeça-de-casal».
E concordantemente apresentou relação de bens mantendo as verbas n.ºs 1 e 2 e adicionando o elenco dos imóveis descritos na escritura de doação. 8. Produzida a prova indicada, por decisão proferida em 22 de março de 2016 foi julgada parcialmente procedente a deduzida reclamação à relação de bens, decidindo-se: «a) Determinar a inclusão dos bens doados na relação de bens; b) Determinar que não sejam relacionados quaisquer bens móveis; c) Determinar que não seja eliminada a verba dois da relação de bens». 9. Em 10.05.2016, foi proferido o seguinte despacho:
«Na sequência da mencionada decisão de 22/03/2016 e determinado o prosseguimento dos autos, deve a Relação de Bens ser corrigida em conformidade e marcada a Conferência Preparatória.
Pelo que,
A) DETERMINO que a Relação de Bens a ser considerada para efeitos de Partilha é a junta em 29/01/2016, depositada com o nº 152897, com 22 verbas, com a necessária correcção de valores, nas verbas doadas, uma vez que os valores indicados são os alores patrimoniais tributários para IMI e os a serem tomados em consideração são os valores patrimoniais tributários para IMT,
Assim, corrigem-se aqueles valores nos seguintes termos: [(…) omite-se a discriminação dos valores parcelares relativos a cada uma das verbas] TOTAL -----------------------------------143.898,85 € (…) B) DETERMINO a correcção do valor do Inventário: O processo deu entrada com o valor de 5.000,01€. Da relação de bens apresentada resulta um valor de pelo menos 143.898,85 €. Daí que o valor do processo deverá ser corrigido, desde já, para 143.898,85 €.
II)
Não existem quaisquer outras questões susceptíveis de influir na partilha e os bens a partilhar estão determinados, pelo que, nos termos do artigo 47º do RJPI:
DESIGNO o dia (…) para a realização da conferência preparatória, a qual terá como objecto:
-Designar as verbas que devem compor, no todo ou em parte, o quinhão de cada um dos interessados e os valores por que devem ser adjudicados;
-Indicar as verbas ou lotes e respectivos valores, para que, no todo ou em parte, sejam objecto de sorteio pelos interessados;
-Acordar na venda total ou parcial dos bens do património comum e na distribuição do produto da alienação pelos diversos interessados;
Estas diligências podem ser precedidas de avaliação, requerida pelos interessados ou oficiosamente determinada pelo Notário, destinada a possibilitar a repartição igualitária e equitativa dos bens». 10. Por requerimento apresentado na conferência preparatória, a interessada AA «requereu nos termos do número 2 do artigo 48º a avaliação dos bens a partilhar de forma a possibilitar a repartição igualitária e equitativa dos bens pelas interessadas», o qual não mereceu oposição da cabeça-de-casal, e apesar de a requerente não ter procedido ao pagamento de honorários devido, o que inviabilizaria o início da conferência, foi logo deferido por motivo de economia processual com o fundamento de que também podia ser oficiosamente determinado. 11. Na sequência de notificação para o efeito, em 08.06.2016, a cabeça-de-casal juntou relação de bens renumerada e com os valores corrigidos constantes do despacho de 10.05.2016. 12. Após notificação, a interessada AA veio apresentar nova reclamação, quanto às verbas 9, 11 e 13 e reclamar a inclusão do pagamento de benfeitorias por si efetuadas no valor de € 29.457,90, invocando que «estas benfeitorias são agora reclamadas porque foi ordenado oficiosamente a avaliação dos bens doados e as benfeitorias efetuadas estão incorporadas nos prédios e aumentaram o seu valor». Veio ainda posteriormente apresentar nova reclamação à composição da verba n.º 22, a qual veio a ser deferida por despacho constante da ata de produção de prova de 02.22.2017. 13. Por requerimento apresentado em 13.05.2021, a cabeça-de-casal veio requerer a remessa dos autos ao tribunal competente, tendo tal remessa sido efetivada em 19.11.2021. 14. Por despacho proferido em 12.01.2022, o tribunal a quo depois de elencar as incidências processuais relevantes, decidiu:
«Atento o estado dos presentes autos e tendo em consideração que está por apreciar e decidir uma parte da reclamação à relação de bens (cfr. ponto viii) que antecede), considera-se conveniente a realização de uma audiência prévia, nos termos do disposto no Artº 1109.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Para o efeito, designo o dia (…), neste Tribunal, sendo que a diligência tem por objectivo ouvir pessoalmente os interessados sobre as questões controvertidas e aferir se tais questões podem ser resolvidas, por acordo, neste processo; e tentar obter um acordo sobre as questões suscitadas e, se possível, sobre a partilha no âmbito do presente processo de inventário». 15. Na ata da audiência prévia realizada em 23.02.2022 consta exarado:
«Iniciada a presente audiência prévia, quando eram 14:07 pelos ilustres mandatários foi dito que mantinham o propósito de que se proceda à avaliação dos bens, uma vez que não existe consenso para a partilha. Seguidamente, pela Meritíssima Juiz foi proferido o seguinte: DESPACHO
Atendendo que pelos interessados foi referido que, neste momento, ainda não estão em condições de dar forma à partilha e mantêm o interesse em que seja feita a avaliação dos bens imóveis, defere-se a mesma, na medida em que a concretização da avaliação poderá facilitar o acordo na partilha, assim designa-se para o efeito como perito o Sr. Eng. DD (…).
Mais determino que sejam fixados os seguintes quesitos, nos termos do disposto no artº 476º, nº 1 do C.P.C.
- O valor dos bens imóveis.
- Aferir se nos prédios rústicos foram cortadas árvores e concretizar o valor da madeira dos respectivos cortes». 16. Por email junto aos autos em 02.06.2022, o Senhor Perito apresentou o laudo de avaliação. 17. Ambas as partes apresentaram pedido de esclarecimentos, designadamente a respeito da data a que se reportava a avaliação dos bens, tendo a ora Recorrente requerido que o Senhor Perito esclarecesse “se o valor atribuído às verbas n.ºs 15 a 22 é o actual ou é o valor à data da morte dos inventariados em 2-12-2011 e 26-03-2013 e sendo o valor atual, qual era o valor à data das mortes atrás referidas”. 18. Notificado, o Senhor Perito esclareceu que “A avaliação dos bens constantes do Quadro 1 Lote B, foi efetuada de acordo com o solicitado pelo Tribunal, isto é, à data da perícia”. 19. Seguidamente a interessada veio requerer «que o mesmo esclareça, se os valores dos bens do quadro 2 – lote B também correspondem à data da perícia ou seja em 30/05/2022», tendo o Senhor Perito esclarecido que na resposta à questão colocada pela interessada, «quando se lê “Quadro 1 – Lote B”, deverá ler-se “Quadro 2 – Lote B”, visto que as verbas 15 a 22 correspondem ao Quadro 2 – Lote B». 20. Nessa sequência foi designado o dia 10.01.2023 para continuação da audiência prévia, em cuja ata consta que:
«(…) a Mmª Juíza tentou de novo a conciliação entre as partes, o que foi conseguido, deixando consignado o seguinte:
Pelas Interessadas BB e AA foi dito que há acordo no que tange às benfeitorias realizadas nos bens doados constantes das verbas 15, 16, 19 e 21, havendo também acordo e admitindo ambas as Interessadas que foram realizadas benfeitorias pela Interessada AA nos prédios melhor descritos nas verbas 15, 16, 19 e 21, no valor de 29.454,90€ e que foram também realizadas benfeitorias pela Interessada BB nos prédios constantes das verbas 4 e 7, no montante de 35.000,00€.
No que concerne aos rendimentos auferidos pela Interessada AA pelo corte de árvores nos prédios descritos nas verbas 15, 16, 17, 18, 19 e 21, admitem todas as Interessadas que esse corte se traduz no valor que resulta da avaliação de fls. 409, o qual ascende ao montante de 19.618,76 € (10.872,00 € + 8.746,76 €).
Seguidamente, a Mmª Juíza proferiu o seguinte: DESPACHO
Atendendo que todas as Interessadas conseguiram dirimir toda a matéria controvertida das reclamações à relação de bens e não havendo assim, nesta parte, quaisquer outras questões de facto ou de direito a apreciar, o Tribunal coloca à consideração dos Ilustres Mandatários das Interessadas a possibilidade de se encontrar uma solução amigável para a partilha sensibilizando-se assim das vantagens duma autocomposição dos seus interesses, ao abrigo do disposto no artº 1111º, nº 1 do Código de Processo Civil (doravante C.P.C.).
Dada a palavra aos Ilustres Mandatários das Interessadas, pelos mesmos foi dito que:
"Neste momento, não estão em condições de chegar a um acordo relativamente à partilha dos bens".
Seguidamente, a Mmª Juíza proferiu o seguinte: DESPACHO
Ao abrigo do disposto no artigo 1110º, nº 1, al. b) do Código de Processo Civil e uma vez que todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar estão ultrapassadas (cfr. artigo 1110º, nº 1, al. b) do C.P.C) determina-se a notificação de todas as Interessadas para, no prazo de 20 dias, proporem a forma à partilha». 21. Em 23.02.2023 foi proferida a decisão recorrida, que na parte relevante tem o seguinte teor:
«Da Organização da Partilha e das Quotas Ideais dos Interessados
Atendendo que os interessados foram notificados para proporem a forma à partilha, passamos a proferir o despacho previsto no Artº 1110º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Civil.
Nestes autos de Inventário, procede-se à partilha dos bens deixados por óbito de BB, falecida a 02.12.2011, no estado de casada em primeiras e únicas núpcias sob o regime da comunhão geral de bens.
A falecida fez doações por conta da sua quota disponível às suas filhas (cfr fls 41), nem qualquer outra disposição de última vontade.
Os bens a partilhar constam da relação de bens, sendo o activo no valor total de €1.004.112,04 (um milhão, quatro mil, cento e doze euros, quatro cêntimos), não existindo passivo. (…)
Procede-se também à partilha dos bens deixados por óbito de CC, falecido a 26.03.2013, no estado de viúvo, casado que foi em primeiras e únicas núpcias sob o regime da comunhão geral de bens com a inventariada.
O falecido não fez testamento.
O falecido fez doações por conta da sua quota disponível às suas filhas (cfr fls 42).
Os bens a partilhar constam da relação de bens, sendo o activo exactamente o mesmo da inventariada, no valor total de €1.004.112, 04 (um milhão, quatro mil, cento e doze euros, quatro cêntimos), não existindo passivo. (…)
Para o preenchimento/ composição dos quinhões, atender-se-á ao que resultar da conferência de interessados».
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III.2. – O mérito do recurso III.2.1. Aplicação da lei no tempo
Da tramitação processual que antecede decorre que os presentes autos de inventário tiveram início por requerimento apresentado em 11.11.2014, no Cartório Notarial, aplicando-se-lhe então o regime jurídico do processo de inventário (RJPI) introduzido pela Lei n.º 23/2013, de 5 de março, que entrou em vigor no dia 02.09.2013 (primeiro dia útil desse mês), e subsidiariamente o Código de Processo Civil, na redação da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, em face do disposto no artigo 82.º da Lei n.º 23/2013.
Acontece que, estando o inventário ainda pendente no cartório notarial, em 01.01.2020, entrou em vigor a Lei n.º 117/19, de 13.09 (artigo 15.º), que revogou o RJPI (artigo 10.º) e, invertendo o caminho de desjudicialização, reintroduziu os inventários nos tribunais judiciais, e na codificação processual civil o respetivo regime jurídico[4].
Relativamente aos inventários que então pendiam nos cartórios notariais, o legislador regulou a aplicação da lei no tempo, estabelecendo no artigo 11.º, n.º 1, que «o disposto na presente lei aplica-se apenas aos processos iniciados a partir da data da sua entrada em vigor, bem como aos processos que, nessa data, estejam pendentes nos cartórios notariais mas sejam remetidos ao tribunal nos termos do disposto nos artigos 11.º a 13.º».
Com respaldo nos indicados preceitos legais – mais concretamente na alínea b) do n.º 2 do artigo 12.º, já que, como evidencia o confronto entre os pontos 12 e 13 das incidências processuais relevantes, o inventário estava então parado, sem realização de diligências úteis, há mais de seis meses –, por requerimento apresentado em 13.05.2021, a cabeça-de-casal veio requerer a remessa dos autos ao tribunal competente, tendo tal remessa sido efetivada em 19.11.2021.
Consequentemente, atento ainda o disposto no respetivo artigo 13.º, n.º 3, que estabelece ser «aplicável à tramitação subsequente do processo remetido a juízo nos termos dos números anteriores o regime estabelecido para o inventário judicial no Código de Processo Civil», aos presentes autos aplica-se o regime decorrente da Lei n.º 117/2019, de 13.09.
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III.2.2. Do erro na determinação do acervo dos bens a partilhar e do respetivo valor
Previu ainda o legislador, no número 4 do artigo 13.º, que «o juiz, ouvidas as partes (…), determina, com base nos poderes de gestão processual e de adequação formal, a tramitação subsequente do processo que se mostre idónea para conciliar o respeito pelos efeitos dos atos processuais já regularmente praticados no inventário notarial com o ulterior processamento do inventário judicial».
Assim, «uma vez chegado ao tribunal de comarca, a tramitação do processo passa a seguir, com as necessárias adaptações, o regime estabelecido no Código de Processo Civil para o inventário judicial, adaptando a tramitação subsequente do processo, por forma a permitir o aproveitamento dos atos praticados e preparando-o para a tramitação judicial subsequente»[5].
Em observância desta previsão legal, quando os autos foram conclusos, por despacho proferido em 12.01.2022, o tribunal a quo depois de elencar as incidências processuais relevantes anteriormente praticadas nos autos, que no essencial correspondem aos pontos 1. a 12. do antecedente relatório, proferiu o seguinte despacho:
«Atento o estado dos presentes autos e tendo em consideração que está por apreciar e decidir uma parte da reclamação à relação de bens (cfr. ponto viii) que antecede), considera-se conveniente a realização de uma audiência prévia, nos termos do disposto no Artº 1109.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Para o efeito, designo o dia (…), neste Tribunal, sendo que a diligência tem por objectivo ouvir pessoalmente os interessados sobre as questões controvertidas e aferir se tais questões podem ser resolvidas, por acordo, neste processo; e tentar obter um acordo sobre as questões suscitadas e, se possível, sobre a partilha no âmbito do presente processo de inventário».
Portanto, num esforço de obtenção de uma solução consensual, o julgador decidiu usar o poder discricionário que a lei lhe atribui, de convocar uma audiência prévia, tendo tido o cuidado, não apenas de identificar o que estava então ainda por decidir – uma parte da reclamação apresentada à relação de bens, o mesmo é dizer, a delimitação de todos os bens que integram a massa hereditária –, como indicou claramente o objetivo da diligência. Como tal, as partes, e concretamente a ora Apelante, bem sabiam as finalidades da audiência prévia, quando compareceram à mesma.
Porém, conforme decorre da ata da audiência prévia realizada em 23.02.2022, a questão colocada pela recorrente nas conclusões 1.ª a 3.ª a respeito do acervo dos bens a partilhar não foi colocada ao tribunal a quo nesse momento – nem em qualquer outro, sublinhe-se –, constando ali exarado, na parte que ora releva que:
«Iniciada a presente audiência prévia, quando eram 14:07 pelos ilustres mandatários foi dito que mantinham o propósito de que se proceda à avaliação dos bens, uma vez que não existe consenso para a partilha.
Seguidamente, pela Meritíssima Juiz foi proferido o seguinte: DESPACHO
Atendendo que pelos interessados foi referido que, neste momento, ainda não estão em condições de dar forma à partilha e mantêm o interesse em que seja feita a avaliação dos bens imóveis, defere-se a mesma, na medida em que a concretização da avaliação poderá facilitar o acordo na partilha, assim designa-se para o efeito como perito o Sr. Eng. DD (…)».
Como ilustra o transcrito excerto, a ora Apelante, ali representada pelo seu Ilustre Advogado, nada invocou a respeito da pretensão que agora verteu nas suas conclusões, de que «1- O único bem a partilhar é a verba nº 1 — Dinheiro; 2- Os restantes bens foram objecto de uma partilha em vida e a verba nº 2 é parte integrante da verba nº 22 dos bens doados à recorrente. 3- Nenhum dos interessados pretende a restituição dos bens à massa da herança».
E, por tal, o tribunal a quo nenhuma decisão tomou a esse respeito, nem nenhuma razão havia para colocar tal questão oficiosamente em face dos contornos do litígio que descrevemos no relato das incidências processuais relevantes, mais especificamente nos pontos 2., e 5. a 8.
Com efeito, tendo a cabeça-de-casal apresentado relação de bens, da qual fez constar na verba n.º 1 o dinheiro e a verba n.º 2, foi a ora Apelante quem acusou a falta na relação de bens dos imóveis que haviam sido objeto da escritura de doação, cuja autenticidade não foi impugnada, e na qual consta expresso que os inventariados declararam doar nos termos que ali especificaram, às suas filhas BB e AA os prédios ali identificados, «por conta da quota disponível», tendo as filhas, nesse mesmo instrumento, declarado aceitar «as presentes doações nos termos exarados, na parte a que a cada uma respeita».
Na sequência da sua reclamação, não apenas a cabeça-de-casal, apresentou nova relação de bens mantendo as verbas n.ºs 1 e 2 e adicionando o elenco dos imóveis descritos na escritura de doação, como por decisão proferida em 22 de março de 2016 foi julgada parcialmente procedente a deduzida reclamação à relação de bens, decidindo-se: «a) Determinar a inclusão dos bens doados na relação de bens; b) Determinar que não sejam relacionados quaisquer bens móveis; c) Determinar que não seja eliminada a verba dois da relação de bens».
Como é sabido, antes da entrada em vigor do regime de inventário decorrente da Lei n.º 117/2019, era entendimento maioritário o de que o recurso da em causa não admitia apelação autónoma, cabendo recurso apenas da sentença homologatória da partilha, devendo as decisões interlocutórias proferidas no âmbito do processo de inventário – e concretamente a relativa à reclamação de bens –, ser impugnadas no recurso que viesse a ser interposto da sentença de partilha[6].
Concretamente a respeito dessa decisão proferida por notário, e do modo de impugnação da mesma – se para o tribunal de primeira instância, se diretamente para o tribunal de relação –, sumariou-se no Acórdão de 15.06.2020, do Tribunal da Relação de Coimbra[7], que «[a]s decisões interlocutórias proferidas no processo de inventário que se mostrem recorríveis, quer o tenham sido pelo notário, quer o tenham sido pelo tribunal de comarca, são impugnadas no recurso que vier a ser interposto da decisão homologatória da partilha e, portanto, num caso e noutro, para o Tribunal da Relação territorialmente competente, como decorre da conjugação do disposto no nº 3 do art. 66º e da segunda parte do nº 2 do art. 76º do RJPI, a menos que dessas decisões caiba recurso de apelação - entenda-se, autónomo - nos termos do CPC, como resulta da 1ª parte do nº 2 do art. 76º CPC, caso em que esses recursos são igualmente para o Tribunal da Relação. (…)
No entanto, porque não cabe recurso de apelação autónoma da decisão proferida no incidente de reclamação de bens no âmbito do processo de inventário, a impugnação da decisão (do notário) a respeito da reclamação sobre a relação de bens só poderá vir a ser feita no recurso que vier a ser interposto da decisão homologatória da partilha, nos termos do nº 2 do art. 76º do RJPI».
Claro está que, com a aplicação do regime decorrente da Lei n.º 117/2019, o momento de interposição do recurso foi antecipado, cabendo agora apelação em separado das decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha, por força do disposto no n.º 2 alínea b) do artigo 1123.º do CPC, admitindo atualmente a decisão relativa à reclamação de bens recurso autónomo[8].
Porém, sendo a decisão recorrida a primeira proferida na vigência do novo regime do processo de inventário, e não admitindo a decisão relativa à reclamação de bens recurso autónomo aquando da sua prolação, abstratamente aquela decisão da senhora Notária ainda seria passível de recurso neste momento, porquanto com o novo regime de recursos «que divide em dois blocos as decisões interlocutórias em razão da fase a que respeitam, pretendeu-se sedimentar toda a tramitação processual anterior ao despacho de saneamento proferido ao abrigo do disposto no artigo 1110.º, de modo que a parte que pretenda impugnar alguma decisão até então proferida deverá fazê-lo conjuntamente com o recurso interposto deste despacho, estabelecendo assim mais um efeito preclusivo ajustado aos objetivos de celeridade e de eficácia»[9].
Dissemos abstratamente porque a pretensão recursiva formulada pela Apelante configura um verdadeiro venire contra factum proprium, uma vez que não só acordou na audiência do dia 10.01.2023 sobre o valor de benfeitorias feitas nos bens doados, como, mais evidentemente, os bens doados não haviam sequer sido relacionados inicialmente e foi a interessada ora Recorrente quem acusou a falta na relação de bens daqueles imóveis identificados na escritura de doação, que agora pretende não sejam integrados na partilha!
Portanto, atento o disposto no artigo 631.º, n.º 1, do CPC, não tendo ficado vencida naquela decisão, a interessada, não tem sequer, em bom rigor, legitimidade para recorrer nesta parte.
Sem embargo, como pode ver-se da decisão proferida pela Senhora Notária, foi julgada procedente nessa parte a reclamação que a interessada ora recorrente apresentou, tendo tal decisão sido estribada em fundamentação que a Apelante nem sequer atacou, pretendendo por esta via fazer tábua rasa da mesma sem que a tenha concretamente impugnado, desconsiderando também o que a respeito da doação dos bens consta na escritura pública, «por conta da quota disponível», cuja veracidade e autenticidade nunca impugnou.
Consequentemente, é manifestamente improcedente a questão recursiva respeitante ao invocado erro na determinação do acervo dos bens a partilhar.
E, perdoando-se-nos a antecipação, também não colhe o alegado erro quanto à determinação do respetivo valor.
Com efeito, conforme decorre da tramitação processual relevante que acima enunciámos, e se evidencia do ponto 15., foram as interessadas quem, por intermédio dos seus Ilustres mandatários, na audiência prévia realizada em 23.02.2022 disseram que mantinham o propósito de que se procedesse à avaliação dos bens.
Nessa sequência, a julgadora deferiu a requerida avaliação dos bens imóveis, diligência que, como decorre do artigo 1114.º do CPC pode ser requerida até à abertura das licitações, com o fundamento de que a mesma poderá facilitar o acordo na partilha, tendo designado perito e fixado os quesitos, sendo o primeiro “o valor dos bens imóveis”, tudo sem que qualquer uma das partes presentes, e concretamente a ora recorrente, algo opusesse ou visasse esclarecer.
Tendo o Senhor Perito apresentado o laudo de avaliação, ambas as partes apresentaram pedido de esclarecimentos, designadamente a respeito da data a que se reportava a avaliação dos bens, tendo a ora Recorrente requerido que o Senhor Perito esclarecesse “se o valor atribuído às verbas n.ºs 15 a 22 é o actual ou é o valor à data da morte dos inventariados em 2-12-2011 e 26-03-2013 e sendo o valor atual, qual era o valor à data das mortes atrás referidas”.
Notificado, o Senhor Perito esclareceu que “A avaliação dos bens constantes do Quadro 1 Lote B, foi efetuada de acordo com o solicitado pelo Tribunal, isto é, à data da perícia”. Seguidamente a interessada veio requerer «que o mesmo esclareça, se os valores dos bens do quadro 2 – lote B também correspondem à data da perícia ou seja em 30/05/2022», tendo o Senhor Perito esclarecido que na resposta à questão colocada pela interessada, «quando se lê “Quadro 1 – Lote B”, deverá ler-se “Quadro 2 – Lote B”, visto que as verbas 15 a 22 correspondem ao Quadro 2 – Lote B».
Nessa sequência foi designado o dia 10.01.2023 para continuação da audiência prévia, em cuja ata consta, para além do mais, despachos em que foi dada a palavra aos Ilustres mandatários, tendo os mesmos e concretamente o subscritor do presente recurso dito que não estavam nesse momento em condições de chegar a um acordo relativamente à partilha dos bens, nada mais tendo oposto ou requerido, mormente quando a final a julgadora proferiu despacho em que, afirmando expressamente «uma vez que todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar estão ultrapassadas (cfr. artigo 1110º, nº 1, al. b) do C.P.C) determina-se a notificação de todas as Interessadas para, no prazo de 20 dias, proporem a forma à partilha».
Portanto, a Apelante não colocou em primeira instância qualquer questão quanto à avaliação dos bens, pelo que naturalmente o valor atual que havia sido atribuído aos mesmos pelo Senhor Perito, foi levado ao despacho recorrido.
Ora, conforme é absolutamente pacífico, vertido inter alia no aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 13.10.2022[10], «como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito).
Consequentemente, não tendo a questão colocada a este tribunal de recurso sido colocada em primeira instância, não pode obviamente haver qualquer reapreciação de questão que não foi decidida e que não é de conhecimento oficioso, estando vedado ao Tribunal da Relação decidir matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Termos em que, os fundamentos de recurso esgrimidos quanto à decisão proferida, são manifestamente improcedentes.
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III.2.3. Da litigância de má-fé Defendeu a Apelada a condenação da Apelante como litigante de má-fé, em síntese, por «vir, agora, a interessada AA trazer aos autos, em recurso, uma questão que não foi objecto de discussão e decisão em termos de reclamação à relação de bens, a saber, a da partilha em vida relativamente às doações, e, mais, repisar uma questão já decidida, a saber, quanto à autonomia predial do bem imóvel relacionado sob a verba 2 da relação de bens, deduz pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar e, bem assim, entorpece a acção da justiça e protela, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (cfr. artº 542º do Código de Processo Civil)».
Vejamos.
Dispõe o artigo 542.º, do CPC, para o que releva na apreciação da questão relativa à litigância de má fé, o seguinte: “1. Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2. Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; (…)
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”
Trata-se de norma que reproduz o que anteriormente constava no artigo 456.º do CPC, relativamente ao qual havia já abundante jurisprudência, com entendimento firmado e que continua a ter plena aplicação.
Efetivamente, a redação do preceito nos termos em que atualmente se encontra, foi introduzida pelo DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, “como reflexo e corolário do princípio da cooperação”, visando consagrar “expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má-fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos”.
Visou-se assim estender a possibilidade de condenação da parte como litigante de má fé, também aos casos de actuação com negligência grave, já que anteriormente se cingia apenas à respectiva actuação dolosa. “O elemento subjectivo é, pois, um pressuposto constitutivo da figura”[11].
Portanto, “com a reforma de 95/96 passou-se a sancionar a litigância temerária (sublinhado nosso) ao lado da litigância dolosa, como integrando o conceito de litigância de má fé.
As partes devem, em obediência ao princípio da sua auto responsabilidade, praticar os actos indispensáveis e idóneos a fundamentar e desenvolver os seus respectivos posicionamentos em termos de adequação ao fim que visam e de não contraditoriedade com a verdade material, assim devendo agir de acordo com a boa fé, expondo os factos em juízo sem formularem pretensões que sabem ser destituídas de qualquer razoável fundamento”[12].
De facto, quer o direito de levar determinada pretensão ao conhecimento do órgão jurisdicional competente, solicitando a abertura de um processo com vista à composição do litígio com emissão de pronúncia final mediante decisão fundamentada, quer o direito de defesa por banda daquele contra o qual a pretensão é deduzida, assenta, dentro do quadro normativo vigente, no respeito por parte daquele que o exerce e daquele que se lhe opõe, dos deveres de probidade e de leal colaboração, de boa fé processual e de recíproca correção, devidos ao tribunal e à parte contrária, deveres cujo cumprimento e escopo último visam afinal uma pronta, justa e serena aplicação da justiça ao caso concreto.
Daí que o legislador tenha entendido, para potenciar a salvaguarda do respetivo cumprimento, sancionar aqueles que adotam condutas reprováveis à luz daqueles princípios, constituindo o elenco das consagradas no n.º 2 do referido artigo 542.º do CPC, seguramente atuações censuráveis, a merecer reprovação pelos tribunais e que nem sequer estão dependentes do pedido das partes nesse sentido.
Acresce que, a litigância de má-fé assenta sobre o comportamento processual das partes, apreciado com base na sua atuação na lide, globalmente considerada, daí que a decisão possa ser alicerçada quer nos factos alegados pelas partes quer ainda em quaisquer outros factos ou atuações que constem dos autos e que evidentemente são do conhecimento das partes podendo consequentemente estas pronunciar-se sobre tal, como ocorreu no caso em apreço em que a apelada, em resposta às alegações da recorrente se pronunciou sobre a questão em sede de alegações.
Este tem sido o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, e o mesmo merece a nossa inteira concordância.
“Com efeito, a litigância de má fé mais não é que o comportamento processual da parte, que decorre do que flui dos autos quanto à actuação que cada um dos sujeitos processuais tenham tido no processo.
Nesta sede não está o juiz, sequer, sujeito à alegação das partes, podendo considerar factos alegados pelas partes, mas podendo também alicerçar a sua decisão em quaisquer outros factos que constem dos autos e que relevem para o efeito.
Isto porque, a probidade da actividade processual não está na disponibilidade das partes, razão pela qual, independentemente de requerimento de qualquer delas, possa o juiz condenar alguém como litigante de má fé, ou condenar por fundamento diverso do invocado pela parte”[13].
Não obstante, precisamente porque este instituto sancionatório das condutas abusivas, não pode ser usado como um impedimento para o acesso à justiça ou para o exercício do direito de defesa, tem sido entendido que quando os factos provados não evidenciam um comportamento censurável por parte do litigante, que lhe possa ser assacado a título de dolo ou negligência grave, quer ao acionar quer ao contestar a ação, quer ainda ao longo da sua intervenção processual, não se verificam os pressupostos necessários à respetiva condenação por litigância de má fé.
Assim, de forma meramente exemplificativa mas absolutamente pacífica:
- “O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que (…) a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor ou réu. Há que ser, pois, muito prudente no juízo sobre a má fé processual”[14];
- “A condenação por litigância de má fé, em qualquer das suas vertentes – material e instrumental – pressupõe sempre a existência de dolo ou de negligência grave (art. 456.º, n.º 2, do CPC) pelo que se torna necessário que a parte tenha procedido com intenção maliciosa ou com falta das precauções exigidas pela mais elementar prudência ou previsão, que deve ser observada nos usos correntes da vida”[15];
- “A falta de razão não é sinónimo de má fé.
Assim como a sustentação de posições jurídicas porventura desconformes com a correcta interpretação da lei, não implica, em regra, por si só, a litigância de má fé na espécie de lide dolosa ou de lide temerária: não existe um claro limite, no que concerne à interpretação da lei e na sua aplicação aos factos, entre o que é razoável e o que é absolutamente inverosímil ou desrazoável, certo que, pela própria natureza das coisas, a certeza jurídica é meramente tendencial”[16].
Podemos, pois, concluir destes elencados exemplos que, constituindo a má fé um claro limite ao exercício do direito de ação ou de defesa, a conduta das partes só deve ser censurada por via deste instituto quando tenham atuado de forma ilícita em qualquer uma das circunstâncias referidas nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 542.º do CPC.
Por isso que, não se encontram abrangidas pela previsão da norma as meras situações de discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, ou na defesa de uma posição que, ainda assim, não se venha a provar, em virtude de a parte não ter conseguido convencer o tribunal da bondade do invocado, bem como, a manifesta falta de razão ou a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada. In casu, cremos que se a primeira questão suscitada a respeito de invocado erro na determinação do acervo dos bens a partilhar, visando que os bens doados, cuja falta de relacionação acusara, fossem retirados da relação de bens, não pode deixar de ser imputada à Apelante, pelo menos, a título de lide temerária, a verdade é que a segunda questão suscitada, atentos os esclarecimentos que foram pedidos ao Senhor perito, inclui-se na vertente da construção jurídica manifestamente errada.
Consequentemente, apesar de reveladora de uma postura processual arredada do cioso cumprimento do princípio da cooperação e do dever de boa-fé processual a que se referem os artigos 7.º e 8.º do CPC, raiando a lide temerária, mas ainda assim – atenta a dedução da questão atinente à avaliação dos bens –, sem que a mesma possa claramente justificar a condenação da Recorrente como litigante de má-fé.
Vencida, a Apelante suporta as custas de parte, atenta a sua integral sucumbência e o princípio da causalidade vertido no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4 e 533.º, todos do CPC.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela Apelante.
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Évora, 14 de setembro de 2023
Albertina Pedroso [17]
José António Moita
Elisabete Valente
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[1] Juízo Local Cível de Abrantes.
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.º Adjunto: José António Moita; 2.ª Adjunta: Elisabete Valente.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC.
[4] Sobre a aplicação no tempo e a sucessão de regimes, cfr. CARLA CÂMARA, in O PROCESSO DE INVENTÁRIO – A LEI N.º 117/2019, DE 13 DE SETEMBRO, ALMEDINA 2022, capítulo I, págs. 7 a 10, e ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE SOUSA, in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Vol. II, 2.ª edição, ALMEDINA 2022, págs. 551 e 552.
[5] Cfr. CARLA CÂMARA, in obra citada, págs. 18 e 19.
[6] Cfr. a título meramente exemplificativo, o Acórdão desta Relação de 15.12.2016, relatado pela ora relatora no processo n.º 301/09.2TBVNO-A.E1, disponível em www.dgsi.pt, sítio onde se encontram os demais arestos doravante citados sem menção de outra fonte.
[7] Proferido no processo n.º 284/19.0T8FIG-A.C1.
[8] Cfr., para maior desenvolvimento, ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE SOUSA, obra citada, pág. 652. Na jurisprudência, o Acórdão desta Relação de 27.05.2021, proferido no processo n.º 1468/20.4T8EVR.E1.
[9] Idem, pág. 653.
[10] Proferido no processo n.º 8625/19.4T8LRS.L1.S1.
[11] Cfr. PEDRO DE ALBUQUERQUE, in Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados no Processo, Almedina 2006, pág. 92.
[12] Cfr. Ac. STJ de 30-06-2011, Revista n.º 1103/08.9TJPRT.P1.S1 - 2.ª Secção, com sumário disponível no sítio www.stj.pt, Sumários de Acórdãos, do qual constam ainda todos os sumários de acórdãos que se irão referir seguidamente, sem menção de outra fonte.
[13] Ac. STJ de 26-04-2012, Agravo n.º 81-E/1999.S1 - 7.ª Secção.
[14] Cfr. Ac. STJ de 11-12-2003, processo 03B3893, disponível in www.dgsi.pt.
[15] Ac. STJ de 03-02-2011, Revista n.º 351/2000.L1.S1 - 2.ª Secção.
[16] Ac. STJ de 01-07-2010, Revista n.º 6359/05.6TVLSB.L1.S1 - 2.ª Secção.
[17] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado eletronicamente pelos 3 juízes desembargadores que compõem esta conferência.