Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
UNIDADE MÍNIMA DE CULTURA
USUCAPIÃO
Sumário
I – Desde que se verifiquem os pressupostos legais exigidos para a aquisição do direito de propriedade, a usucapião pode incidir sobre parcela de terreno inferior à unidade de cultura, contrariando o regime jurídico decorrente da redação dada ao artigo 1379.º, pela Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, que comina com a nulidade o fracionamento de prédios rústicos por ofensa à área de cultura mínima que não constituam partes integrantes de prédios urbanos (artigo 1377.º do CC). II – A situação de encrave de qualquer das parcelas resultante do fracionamento de prédio rústico, nos termos dos artigos 1376.º, n.º 2, e 1379.º, n.º 1, do CC, configura uma causa de pedir distinta do fundamento previsto no n.º 1 do artigo 1376.º do CC. III – Se do fracionamento decorrer o encrave de uma das parcelas, o mesmo não é admitido, por força do número 2 do artigo 1376.º do CC, e neste caso, ainda que seja respeitada a área fixada para a unidade de cultura. IV – Não existindo encravamento absoluto ou relativo do prédio identificado sob a verba n.º 3 da escritura em causa, não merece censura a decisão recorrida que julgou improcedente a pretensão do Autor de ver declarada a nulidade da escritura de divisão e doação do prédio rústico, celebrada no dia 14.06.2018. (Sumário elaborado pela Relatora)
Texto Integral
Processo n.º 3147/21.6T8STB.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal[1]
*****
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:
I - RELATÓRIO 1. O MINISTÉRIO PÚBLICO propôs a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA, BB, CC, DD, e EE, pedindo:
A) Que seja declarado nulo o ato de divisão e fracionamento, bem como a posterior doação do imóvel identificado como verba dois, a favor do Réu EE, consubstanciado na escritura pública de divisão e doação de 14.06.2018, lavrada no Cartório Notarial ..., de FF, exarada a fls. vinte e oito a trinta e duas, do Livro de Escrituras diversas, número 67-A;
B) Que seja declarada nula a constituição da verba dois, identificada na escritura pública de divisão e doação de 14.06.2018, lavrada no Cartório Notarial ..., de FF, exarada a fls. vinte e oito a trinta e duas, do Livro de Escrituras diversas, número 67-A, como prédio urbano;
C) Seja ordenado o cancelamento dos registos dos prédios das parcelas resultantes da divisão e doação, assim como das inscrições matriciais, conforme referido em A) e B).
Em fundamento da deduzida pretensão, o Ministério Público alegou, em síntese, que os Réus realizaram uma escritura de divisão, partilha e doação de um prédio, em violação da unidade mínima de cultura; e ainda que um dos prédios que resultou da divisão está encravado.
2. Regularmente citados, os Réus CC, DD e EE apresentaram contestação, defendendo a validade da escritura de divisão e doação, invocando que a escritura em causa veio formalizar uma situação que já existia, pelo menos, há mais de 20 anos (o Réu EE invocou que existia há mais de 38 anos), e «no que se refere ao prédio encravado a situação não corresponde à verdade em virtude de existir um caminho de acesso a esse mesmo prédio de acordo com todos os Co-Réus».
3. Realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Por todo o exposto, o Tribunal decide julgar a presente ação improcedente, e, em consequência, decide absolver os Réus de todos os pedidos contra si formulados.
Isento de custas – art.º 4 n.º 1 alínea a) RCP».
4. Inconformado, o Autor apelou, finalizando a sua minuta recursória com as seguintes conclusões:
«1- Pese embora os fatos dados como provados e as conclusões a que chegou o Mº Juiz, acabou por delas fazer “tábua rasa” e construir uma decisão em que os mesmos não foram considerados ou atendidos;
2- Desde logo, no que se refere à caracterização do prédio que após a divisão deixou de possuir acesso a caminho público e ainda que tenha concluído que o Réu não tem acesso a caminho público, decidiu no sentido de que tal prédio não ficou encravado, pois embora não disponha do acesso a um caminho público, dispõe do acesso a um caminho privado que permite aceder à via pública. Com esta construção não pode deixar-se de concluir que tal decisão se encontra viciada de erro na interpretação dos factos e da sua subsunção às normas legais aplicáveis;
3- De acordo com o disposto no artº 1550 do CC são encravados os prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio. A questão que sempre se coloca é da sua comunicação direta com a via pública, não podendo aceitar-se que a comunicação com um caminho particular, por terreno do titular do prédio contíguo, que permite levá-lo até ao caminho público, obste ao encravamento;
4- O caminho utilizado pelo Réu CC para aceder à via pública, constitui um caminho privado, cujo utilização e atravessamento se encontra apenas dependente da boa vontade dos RR AA e EE, pois, apesar de se encontrar junto à vedação do terreno, o mesmo está inserido em terreno particular, logo, encontra-se encravado;
5- No que respeita aos restantes factos considerados provados e violadores dos preceitos dos artº 1376, nº 1 e 1377, al. a) do CC, a decisão recorrida, faz igualmente “letra morta” do teor de tais preceitos, valoriza a invocada exceção de aquisição por via da usucapião das parcelas resultantes da divisão, e, fazendo prevalecer esta;
6- A decisão recorrida merece ainda reparo, pois, para além do mais, a mesma não se apresenta sequer fundamentação suficiente que lhe permita justificar as razões do afastamento das consequências inerentes à violação dos preceitos dos artºs 1376 e 1377 do CC, com a inerente declaração da nulidade da escritura, com a sobreposição o regime da usucapião;
7- A sentença limita-se a enunciar a verificação dos requisitos da usucapião, reconhecendo as suas consequências e em caso algum justifica porque razão tal instituto se sobrepõe e afasta a nulidade prevista para a violação dos preceitos integrantes do Código Civil;
8- O disposto nos artº 1376 e 1377 do CC não podem deixar de ser considerados normas igualmente imperativas que conflituam com o regime da aquisição originária;
9- Para além do mais a escritura, porque contrária à lei, é nula, pois viola o interesse geral de toda a coletividade, estabelecidos nas citadas normas proibitivas, de natureza imperativa;
10- Por outro lado, o entendimento de que a expressão «disposição em contrário» ressalvada pelo art. 1287º do C. Civil, não abarcava a situação prevista no art. 1376º, assentava no facto de não existir qualquer norma excecional que estabeleça, taxativamente, que a posse mantida sobre parcela de terreno com área inferior à unidade de cultura não conduz à usucapião;
11- Se a usucapião visa satisfazer o interesse público de assegurar, no tráfego das coisas, quer a certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre elas e de quem é o seu titular, quer a proteção do valor da publicidade/confiança que nesse tráfego lhe é aduzido pela posse, não é menos verdade que a proibição do fracionamento de acordo com o disposto nos artº 1376 a 1379 do CC assenta no Regime da Estrutura Fundiária que possui como objetivo “e criar melhores condições para o desenvolvimento das atividades agrícolas e florestais de modo compatível com a sua gestão sustentável nos domínios económico, social e ambiental, através da intervenção na configuração, dimensão, qualificação e utilização produtiva das parcelas e prédios rústicos”
12- Foi efetivamente na sequência da divergência de entendimentos na jurisprudência quanto à sobreposição da usucapião sobre a violação de tais preceitos e a relevância dos objetivos da estruturação fundiária, que levou à necessidade do legislador proceder à alteração do artº 48 da Lei 111/2016, dada pela Lei 89/2019 de 03.09, estabelecendo agora de forma inequívoca que a usucapião não faculta qualquer direito a quem a invoca desde que se mostre violado o disposto no artº 1376 do CC;
13- Ainda que tal alteração legislativa não estivesse em vigor à data da celebração da escritura, nem na data em que se iniciou a posse, no momento em que os RR fazem a invocação da usucapião, por ocasião da contestação, em 2021, sendo certo que a usucapião não opera de forma oficiosa, necessitando ser invocada, já se encontrava em vigor aquele inovador nº 3 do artº 48 da Lei 111/2015, que refere de forma expressa: “São nulos os atos de justificação de direitos a que se refere o número anterior.”;
14- Ora, se a lei fere de nulidade os atos de justificação, após a entrada em vigor da alteração dada pela Lei 89/2019, por igual razão, não se mostra possível declarar, por via judicial, que os RR adquiriram os prédios por usucapião, quando ocorra a violação do artº 1376 do CC.;
15- Com a alteração na redação dada pelo ao nº 1 do artº 1379, pela Lei 111/2015 de 27.08, passando a prever a nulidade em vez da anulabilidade, houve alteração dos prazos do exercício do direito de ação com vista à inutilização dos atos de fracionamento, existindo uma situação de sucessão de leis no tempo, com repercussões no prazo de exercício do direito de ação, que no fundo procede à alteração de um prazo em curso, esse direito transitório formal no que aos prazos respeita, rege-se pelo disposto no artº 297º do CC, enquanto disposição especial, relativa, precisamente à alteração de prazos e não perante o disposto no artº 12º do CC que versa sobre o direito transitório geral;
16- Estando, em causa um alongamento do prazo para requerer a invalidade de um ato - de três anos a partir da celebração do ato, para a todo o tempo - (respetivamente lei antiga e lei nova), tem aplicação o n.º 2 do artº 297º do CC que manda ter em conta o prazo mais longo, mas computar nele todo o tempo decorrido do prazo em curso, desde o seu momento inicial;
17- No caso, atendendo a que o novo prazo não tem limite definido não tem relevância efetuar qualquer cômputo do tempo já decorrido, havendo, tão só, que reconhecer que em face do normativo, em conjugação com o que atualmente se dispõe o art.º 1379º n.º1 do CC, bem como no art.º 286º do mesmo Código, que não operou a caducidade do direito de ação…”;
18- Assim a ação não estava sujeita a qualquer prazo de caducidade;
19- O artº 48 da Lei 111/2015 com a redação dada pela Lei 89/2019, constitui norma interpretativa, pois, o artigo 12º do Código Civil refere: “1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular;
20- Estabelece o artigo 13º do Código Civil que “A lei interpretativa se integra na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transação, ainda que não homologada, ou por atos de análoga natureza.”;
21- Face a tal disposição legal é hoje claro que a usucapião, como forma originária de aquisição do direito de propriedade, não prevalece sobre o regime de 1376.º, do Código Civil, sendo a escritura pública que a titula nula e de nenhum efeito;
22- Por todo o exposto, mal andou a decisão recorrida, em ter declarado improcedente a ação e absolvido os RR do pedido, porque violadora do disposto nos preceitos acima mencionados, deve a mesma ser revogada e substituída por outra que declare a nulidade da escritura de divisão e doação celebrada pelos RR em 14.06.2018.»
5. Não foram apresentadas contra-alegações.
6. Observados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*****
II. O objeto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objeto do recurso se limita pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas questões cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, as únicas questões a apreciar são as de saber se é nula a escritura de divisão e doação do prédio rústico, celebrada no dia 14.06.2018, porque este prédio, após a divisão, ficou: i) com área inferior à unidade mínima de cultura, não podendo prevalecer a sua aquisição por usucapião; ii) e encravado.
*****
III – Fundamentos III.1. – De facto Na sentença recorrida, foram considerados provados os seguintes factos:
«1. Através da apresentação n.º 16 de 2005/05/23, está registada a favor de AA, casado com BB e a favor de CC, casado com DD a aquisição do Prédio misto, com a área total de doze mil metros quadrados, composta a parte rústica por macieiras e vinha e composta a parte urbana por edifício de rés-do chão destinado à habitação, com área coberta de oitenta e três vírgula vinte e seis metros quadrados, que confronta a norte com GG, a sul com herdeiros de HH, a nascente com II e a poente com aceiro, sito em ..., freguesia e concelho de Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o número ...63, da dita freguesia, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...2, da secção ..., e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...41 a ... da freguesia de Palmela, sendo a causa da aquisição a partilha de herança.
2. No dia 14-06-2018, perante a notária FF, compareceram como outorgantes: AA (primeiro outorgante), CC (segundo outorgante), BB e DD (terceiros outorgante) e EE (quarto outorgante) e celebraram uma escritura designada de divisão e doação.
3. Na escritura designada de divisão e doação, o primeiro e segundo outorgantes declararam que são donos e legítimos possuidores, em comum e partes iguais do seguinte imóvel: “VERBA UM – Prédio misto, com a área total de doze mil metros quadrados, composta a parte rústica por macieiras e vinha e composta a parte urbana por edifício de rés-do chão destinado à habitação, com área coberta de oitenta e três vírgula vinte e seis metros quadrados, a confrontar a norte com GG, a sul com herdeiros de HH, a nascente com II e a poente com aceiro, sito em ..., freguesia e concelho de Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o número ...63, da dita freguesia, com a aquisição registada a seu favor pela apresentação dezasseis, de vinte e três de Maio de dois mil e cinco, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...2, da secção ..., e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...41 a ... da freguesia de Palmela, com os valores patrimoniais, respectivamente, de 443,26 € e 21.856,97 €”.
4. Na escritura designada de divisão e doação, pelo primeiro e segundo outorgantes, foi ainda dito “Que não desejando permanecer na situação de Indivisão, põem termo à referida compropriedade, e com vista ao melhor preenchimento das respetivas quotas partes, procedem à desanexação da parte urbana do prédio misto identificado na VERBA UM, de modo a que este passe a constar como um prédio autónomo com a seguinte área e composição: PRÉDIO A Prédio urbano, com a área total de oitenta e três vírgula vinte e seis metros quadrados, composto por edifício de rés- do-chão destinado a habitação, a confrontar a norte, a sul, a nascente com CC e a poente com aceiro, sito em ..., freguesia e concelho de Palmela. -Que, o identificado prédio urbano constitui uma realidade materialmente autónoma, construído antes de mil novecentos e setenta e três, não tendo sofrido quaisquer alterações na sua composição e não havendo por isso, lugar a qualquer processo de loteamento, uma vez que, o ato material de incorporação no solo de edifício construído até à data da entrada em vigor do Decreto-lei número 289/73 de seis de Junho operava, por si só, a separação como prédio autónomo do terreno de implantação do edifício. -Que, destacam ainda daquele prédio misto identificado na VERBA UM, uma parcela de terreno, destinada a ampliação do logradouro do prédio urbano antes identificado, com a seguinte e composição: PRÉDIO "B" Parcela de terreno com a área de cinco mil, novecentos e dezasseis vírgula setenta e quatro metros quadrados, composta por logradouro, a confrontar a norte com GG, a sul com herdeiros de HH, a nascente com CC e a poente com aceiro, slto em ..., freguesia e concelho de Palmela. -Que, esta parcela se destina a ser anexada ao PRÉDIO URBANO acima identificado e onde se encontra edificada a mencionada construção, para constituição do respetivo logradouro, e que ficará com a seguinte composição: VERBA DOIS PRÉDIO URBANO, com área total de seis mil metros quadrados, composto por edifício de rés-do-chão destinado a habitação, com a área coberta de oitenta e três vírgula vinte e seis metros quadrados e logradouro, a confrontar a norte com GG, a sul com herdeiros de HH, a nascente com CC e a poente com aceiro, sito em ..., freguesia e concelho de Palmela, ao qual atribuem o valor de 21. 900,00 €. VERBA TRÊS Parcela Restante -¬PRÉDIO RÚSTICO, com área total de seis mil metros quadrados, composto por macieiras e vinha, a confrontar a norte com GG, a sul com herdeiros de HH, a nascente com II e a poente com AA e aceiro, sito em ..., freguesia e concelho de Palmela, ao qual atribuem o valor de € 21.900,00 -Que atribuem à presente divisão o valor de QUARENTA E TRÊS MIL E OITOCENTOS EUROS. Operações -Que o valor dos bens objeto da divisão de coisa comum é de QUARENTA E TRÊS MIL E OITOCENTOS EUROS. A cada um dos outorgantes pertence: o valor de VINTE E UM MIL E NOVECENTOS EUROS. ADJUDICAÇÃO -Ao primeiro outorgante é-lhe adjudicado o imóvel identificado na VERBA DOIS, no valor de VINTE E UM MIL E NOVECENTOS EUROS, pelo que leva um bem do valor igual ao seu ·direito. -Ao segundo outorgante é-lhe adjudicado o imóvel identificado na 'VERBA TRÊS, no valor de VINTE E UM MIL E NOVECENTOS EUROS, pelo que leva um bem do valor igual ao seu direito. -Levando os outorgantes bens de valor igual ao direito de que são titulares; não há tornas a dar ou a receber. -Que, se obrigam a efectuar o registo da presente escritura a seu favor na competente Conservatória do Registo Predial”. 5. Na escritura designada de divisão e doação, pelo primeiro outorgante foi ainda dito que “pela presente Escritura doa, por conta da quota disponível, ao quarto outorgante, seu filho, o referido imóvel identificado na VERBA DOIS, pelo valor atribuído de VINTE E UM MIL E NOVECENTOS EUROS”. 6. Na escritura designada de divisão e doação, pelo quarto outorgante, foi dito “-Que, aceita a presente doação nos termos exarados e que a mencionada VERBA DOIS se destina a sua habitação própria e permanente. -Que, obriga-se a efetuar o registo da presente escritura a seu favor na competente Conservatória do Registo Predial”.
7. Na escritura designada de divisão e doação, pelas terceiras outorgantes, foi dito “Que, prestam o necessário consentimento aos seus referidos cônjuges para a inteira validade dos presentes”.
8. No ano de 1989, o prédio misto referido em 1 tinha uma parcela de 1,175 hectares destinada à cultura da vinha e uma parcela de 0,025 hectares destinada a fins urbanos.
9. Desde pelo menos o ano de 2000, metade do Prédio misto referido em 1 é utilizada para cultura da vinha e a outra metade é utilizada para outros fins, que não a cultura da vinha.
10. Na metade do prédio misto identificado na verba 1 da escritura de divisão e doação que não se destina à cultura da vinha está o edifício de rés-do chão destinado à habitação, com área coberta 83,26 m2.
11. O edifício de rés-do chão destinado à habitação, com área coberta 83,26 m2 insere-se na parcela urbana do prédio rústico, com a área de 0,025 hectares.
12. A vinha é uma cultura que se enquadra nos terrenos de sequeiro.
13. No ano de 2000, os Réus CC e AA e os outros dois irmãos partilharam verbalmente os imóveis do seu pai, entre os quais se conta o prédio referido em 1.
14. Na sequência da partilha verbal realizada, o Prédio misto referido em 1 foi dividido em dois prédios, um adjudicado ao Réu CC e outro adjudicado ao Réu AA.
15. Desde pelo menos o ano de 2000, o Réu CC explora a vinha do prédio misto referido em 1.
16. O Réu AA viveu toda a sua vida nas construções existentes para habitação no Prédio misto referido em 1.
17. No espaço à volta das construções para habitação existentes no Prédio misto referido em 1, o Réu AA cria e mantém animais.
18. Desde pelo menos 2000, os Réus AA e CC fazem uma utilização independente um em relação ao outro do Prédio misto referido em 1.
19. Cada uma das metades em que o prédio referido em 1 ficou dividida tem acesso a um caminho.
20. O prédio identificado como verba 3 da escritura de divisão e partilha, utilizado pelo Réu CC, que resultou da divisão do prédio referido em 1, não confronta com qualquer caminho público, dispondo de um caminho privado para acesso à via pública». E foram julgados não provados os seguintes factos:
«a. Desde pelo menos o ano de 1970, o Réu CC explora a vinha do prédio misto referido em 1.
b. Desde pelo menos 1970, o Réu AA vem explorando 6000 m2 de terreno envolvente às casas de habitação suprarreferidas, nele tendo construído um tanque de irrigação, capoeiras e coelheiras para espécies incomuns, instalações para pavões e pássaros exóticos, dois terraços com telheiros contíguos e canis, e arrecadação, tendo cimentado os espaços envolventes destas construções e relvado a restante área».
*****
III.2. – O mérito do recurso
O Apelante não discorda da fundamentação expressa na decisão recorrida, a respeito da verificação dos requisitos para a aquisição do direito de propriedade, por usucapião, em face dos factos provados quanto à duração da posse pública e pacífica, exercida pelos co-réus AA e CC sobre cada uma das parcelas em que o prédio rústico objeto da partilha foi fracionado.
Dissente, porém, do segmento da decisão recorrida no qual se considerou que «tal instituto se sobrepõe e afasta a nulidade prevista para a violação dos preceitos integrantes do Código Civil».
Em fundamento da sua discordância, convoca o aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 26.01.2016[4], e defende que «o disposto nos artº 1376 e 1377 do CC não podem deixar de ser considerados normas igualmente imperativas que conflituam com o regime da aquisição originária. (…) E foi efetivamente na sequência da divergência de entendimentos na jurisprudência quanto à sobreposição da usucapião sobre a violação de tais preceitos e a relevância dos objetivos da estruturação fundiária, que levou à necessidade do legislador proceder à alteração do artº 48 da Lei 111/2016, dada pela Lei 89/2019 de 03.09, estabelecendo agora de forma inequívoca que a usucapião não faculta qualquer direito a quem a invoca desde que se mostre violado o disposto no artº 1376 do CC. Ainda que tal alteração legislativa não estivesse em vigor à data da celebração da escritura, nem na data em que se iniciou a posse, no momento em que os RR fazem a invocação da usucapião, por ocasião da contestação, em 2021, sendo certo que a usucapião não opera de forma oficiosa, necessitando ser invocada, já se encontrava em vigor aquele inovador nº 3 do artº 48 da Lei 111/2015, que refere de forma expressa: “São nulos os atos de justificação de direitos a que se refere o número anterior.”. Ora, se a lei fere de nulidade os atos de justificação, após a entrada em vigor da alteração dada pela Lei 89/2019, por igual razão, não se mostra possível declarar, por via judicial, que os RR adquiriram os prédios por usucapião, quando ocorra a violação do artº 1376 do CC.».
Vejamos.
A resposta da jurisprudência à questão recursiva na parte atinente à aplicação das regras da aquisição do direito de propriedade por usucapião em confronto com as relativas ao ordenamento territorial (conclusões 6.ª a 21.ª), não tem merecido resposta uniforme, tendo justificado a admissão de revista excecional, e a prolação de acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça, no passado dia 25.05.2023.
Tratando-se de recente aresto do nosso mais Alto Tribunal que apreciou a contradição de julgados, ocorrida em quadro factual[5] e jurídico semelhantes ao que os presentes autos convocam, pois que se reportava a fracionamento de prédio misto em contrário às normas dos artigos 1376.º e 1378.º do Código Civil[6], efetuado por escritura outorgada quando já se encontrava vigente a Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, que alterou o artigo 1379.º do Código Civil, passando a cominar com a nulidade os atos de fracionamento contrários ao disposto no artigo 1376.º, quando na anterior redação estava prevista apenas a anulabilidade, e foi tirado quando já se encontrava em vigor a alteração introduzida pela Lei n.º 89/2019, de 3 de setembro, que determina a nulidade do ato de fracionamento.
Louvando-se nos anteriores acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que identifica nas respetivas notas de rodapé, assume-se neste mais recente aresto que:
«13. Enquanto o antigo texto do n.º 1 do art. 1379.º do Código Civil determinava que os actos de fraccionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º eram anuláveis, o novo texto do n.º 1 do art. 1379.º, resultante da Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto, determina que os actos de fraccionamento relevante são nulos.
13. Em todo o caso, em consonância dos factos dados como provados e, em especial, com os factos dados como provados sob os n.ºs 17, 27 e 36, a aquisição da propriedade por usucapião apreciada no caso sub judice sempre seria anterior à alteração do n.º 1 do art. 1379.º do Código Civil pela Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto.
14. O Supremo Tribunal de Justiça tem-se pronunciado no sentido de que o possuidor pode adquirir por usucapião, ainda que o prédio sobre a qual o possuidor exerça os seus poderes tenha sido autonomizado em violação das disposições legais relativas ao fraccionamento ou ao loteamento urbano — i.e., no sentido de que a aquisição da propriedade, designadamente por usucapião, precede a aplicação das normas de direito do urbanismo [1] ou, ainda que não preceda, prevalece sobre a aplicação das normas de direito do urbanismo relativas à divisão, ou ao fraccionamento, dos prédios [2]:
15. Como se diz, p. ex., nos acórdãos do STJ de 6 de Abril de 2017 — processo n.º 1578/11.9TBVNG.P1.S1 — e de 21 de Fevereiro de 2019 — processo n.º 7651/16.0T8STB.E1.S3 —,
I - A usucapião é um modo de aquisição originária do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo (arts. 1287.º e 1316.º do CC) que depende apenas da verificação de dois elementos: a posse e o decurso de certo lapso de tempo, que varia em função da natureza do bem (móvel ou imóvel) sobre que incide e de acordo com os caracteres da mesma posse. Quando invocada, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (art. 1288.º do CC), adquirindo-se o direito de propriedade no momento do início da mesma posse (art. 1317.º, al. c), do CC).
II - A usucapião serve, além do mais, para “legalizar” situações de facto “ilegais”, mantidas durante longos períodos de tempo, inclusive até a apropriação ilegítima ou ilícita de uma coisa [3];
VI – A usucapião é uma forma de aquisição originária que surge “ex novo” na titularidade do sujeito, unicamente em função da posse exercida por certo período temporal, sendo, por isso, absolutamente autónoma e independente de eventuais vícios que afetem o ato ou negócio gerador da posse.
VII – Mesmo sendo nulo o fracionamento de terreno apto para a cultura que despoletou o início da posse, tal vício não é suscetível de excluir a faculdade de usucapir por parte do possuidor de parcela emergente dessa divisão ilegal.
VIII – Não se descortina, entre as normas legais reguladoras do fracionamento de prédios rústicos, alguma que negue a possibilidade de adquirir por usucapião as parcelas de terreno que venham a ser objeto de posse mercê de fracionamento ilegal de prédio rústico [4].
16. Entre as razões da precedência ou, em todo o caso, da prevalência da aquisição de propriedade por usucapião sobressaem duas: a necessidade de protecção dos interesses subjacentes às normas de direito civil relativas à aquisição da propriedade por usucapião — designadamente, da confiança e da estabilidade de posições jurídicas consolidadas pelo tempo, pela posse e pela publicidade da posse [5][6] — e a desnecessidade de protecção dos interesses subjacentes às normas de direito do urbanismo relativas à divisão ou ao fraccionamento da propriedade [7].
17. Os critérios aplicados pelo Supremo Tribunal de Justiça correspondem a uma harmonização entre princípios e valores com dignidade constitucional — entre o direito de propriedade privada, ainda que de um direito de propriedade adquirido por usucapião, e os interesses protegidos pelos arts. 65.º e 66.º da Constituição da República Portuguesa.
18. Explicando por que é que a harmonização conseguida é compatível com a ordem de valores constitucionais, o acórdão do STJ de 4 de Fevereiro de 2014 — processo n.º 314/2000.P1.S1 — diz, de forma paradigmática, que “… esgotado o decurso do tempo necessário à [usucapião], com o inerente alheamento da autoridade pública ou interessado a quem incumba a prevenção/repressão ou arguição da correspondente violação, deixou de fazer sentido, afrontando as concepções dominantes na comunidade, a tardia salvaguarda do subjacente interesse público, devendo a Ordem Jurídica absorver a situação ocorrente e consolidada” [8]»[7].
Pese embora não desconheçamos o argumentário que tem vindo a ser expresso no sentido defendido pelo recorrente[8] — assente, muito em síntese na invocação de que “as normas jurídicas, previstas no direito administrativo, relativas ao ordenamento do território, por defenderem o interesse público, proíbem fracionamentos e destaques ilegais enquanto resultado, pelo que também proíbem necessariamente todos os meios adequados para o atingir. Se dúvidas houvesse quanto à prevalência do regime previsto no art.º 1376.º e 1379.º do C. Civil sobre o fracionamento e aquisição, por usucapião, verificados os respetivos pressupostos, de parcela de terreno de área inferior a superfície correspondente á unidade de cultura, deixaram de subsistir perante a atual redação do n.º1 do art.º 1379.º do C. Civil, na versão dada pela Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, ao sancionar expressamente com a nulidade todos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º” —, não vemos razão para dissentir do que tem vindo a ser consistentemente decidido pelo nosso mais Alto Tribunal, e em inúmeros arestos deste Tribunal da Relação.
Subscrevemos, pois, o entendimento expresso no citado acórdão do STJ, em cujo sumário se consignou que:
«I. — A aquisição da propriedade, designadamente por usucapião, precede a aplicação das normas de direito do urbanismo — ou, ainda que não preceda, prevalece sobre a aplicação das normas de direito do urbanismo relativas à divisão, ou ao fraccionamento, dos prédios.
II. — O possuidor pode adquirir por usucapião, ainda que o prédio sobre a qual o possuidor exerça os seus poderes tenha sido autonomizado a despeito das normas de direito do urbanismo».
Assim, concluímos com a jurisprudência maioritária, que desde que se verifiquem os pressupostos legais exigidos para a aquisição do direito de propriedade, a usucapião – sendo uma forma originária de aquisição de direitos cujos efeitos se retrotraem à data do início da posse (artigo 1288.º do CC), e sendo o momento da aquisição do direito de propriedade, no caso de usucapião, o do início da posse (artigo 1317.º, al. c), do CC), – pode incidir sobre parcela de terreno inferior à unidade de cultura, contrariando o regime jurídico decorrente da redação dada ao artigo 1379.º, pelas Leis n.º 111/2015, de 27 de agosto, que comina com a nulidade o fracionamento de prédios rústicos por ofensa à área de cultura mínima que não constituam partes integrantes de prédios urbanos (artigo 1377.º do CC)[9].
Consequentemente, não merece censura a sentença recorrida na parte em que considerou que a aquisição, por usucapião, da propriedade das parcelas objeto da escritura de partilha e doação, prevalece sobre a aplicação das normas de direito do urbanismo relativas ao fracionamento dos prédios.
Prosseguindo.
A segunda questão suscitada pelo Recorrente nas conclusões 1.ª a 5.ª é diversa daquela, e concerne a saber se do fracionamento decorreu o encrave de uma das parcelas, uma vez que, nos termos do número 2 do artigo 1376.º do CC, não é admitido o fracionamento quando dele possa resultar o encrave de qualquer das parcelas, e neste caso, ainda que seja respeitada a área fixada para a unidade de cultura.
Com efeito, a situação de encrave de qualquer das parcelas resultante do fracionamento de prédio rústico, nos termos dos artigos 1376.º, n.º 2, e 1379.º, n.º 1, do CC, configura uma causa de pedir distinta do fundamento previsto no n.º 1 do artigo 1376.º do CC[10].
Ora, a este respeito, julgou-se na sentença recorrida que «no caso vertente, o prédio identificado como verba 3 da escritura de divisão e partilha, que resultou da divisão do prédio com a área total de 1,2 hectares não ficou encravado, pois embora o mesmo não disponha do acesso a um caminho público, dispõe do acesso a um caminho privado que permite aceder à via pública. Desta feita, não se verifica a violação do art.º 1376 n.º 2 do Código Civil».
Insurge-se o Apelante, invocando que o julgador errou, «desde logo, no que se refere à caracterização do prédio que após a divisão deixou de possuir acesso a caminho público e ainda que tenha concluído que o Réu não tem acesso a caminho público, decidiu no sentido de que tal prédio não ficou encravado, pois embora não disponha do acesso a um caminho público, dispõe do acesso a um caminho privado que permite aceder à via pública. Com esta construção não pode deixar-se de concluir que tal decisão se encontra viciada de erro na interpretação dos factos e da sua subsunção às normas legais aplicáveis».
Vejamos.
Com este n.º 2 do artigo 1396.º do CC, como advertem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[11] «procura-se evitar a constituição de novas servidões de passagem, um dos grandes inconvenientes da propriedade excessivamente parcelada. Mesmo que seja respeitada a área mínima de cultura, o encrave de uma parcela de terreno justifica, só por si, a proibição de fraccionamento».
Citando o parecer da Câmara Corporativa de 30 de janeiro de 1952, sublinham ainda que «o prédio encravado, sem comunicação directa com as vias públicas, é como uma ilha, cujo acesso sujeita os prédios vizinhos a um ónus gravoso – a servidão de trânsito ou passagem», enfatizando também que «os inconvenientes não são apenas de ordem económica, situam-se também no domínio social. A interpenetração de prédios minúsculos, com a proximidade da vizinhança e as dificuldades de demarcações, e sobretudo o encravamento, com a servidão que impõe aos terrenos contíguos, criam amiúde um estado tenso de espírito que deflagra em desavenças, senão mesmo em rixas ou litígios judiciais».
Cientes do fundamento de manifesto interesse público subjacente à proibição de fracionamento de prédio rústico do qual resulte o encravamento de algum dos novos prédios, importa ainda realçar que na codificação civil vigente, ao contrário do que acontecia no artigo 2311.º do Código de 1867, o legislador não prescreveu que «se o encrave proviesse de partilha, a servidão recairia no prédio ou prédios de que o encravado era parte». Bem se vê por que razão. Basta pensar que a propriedade se transmite, e muitos dos litígios que a proximidade espoleta apenas ocorrem com os novos adquirentes.
Com interesse para enquadramento da situação em presença, importa ter presente o que dispõe artigo 1550.º do CC, a respeito da servidão em benefício de prédio encravado, decorrendo dos seus números 1 e 2, respetivamente, as situações de encrave absoluto, em que os prédios não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, e os casos de encrave relativo, que ocorre quando o proprietário tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio.
Isto dito.
Insurge-se o Recorrente, afirmando que «a questão que sempre se coloca é da sua [do prédio] comunicação direta com a via pública, não podendo aceitar-se que a comunicação com um caminho particular, por terreno do titular do prédio contíguo, que permite levá-lo até ao caminho público, obste ao encravamento».
Se assim for, a presente ação não poderá deixar de proceder.
Acontece que, perante a factualidade provada, não é possível a este tribunal apurar, com a devida certeza e rigor se assim é.
Relembramos o teor dos factos provados sob os n.ºs 19 e 20:
«19. Cada uma das metades em que o prédio referido em 1 ficou dividida tem acesso a um caminho.
20. O prédio identificado como verba 3 da escritura de divisão e partilha, utilizado pelo Réu CC, que resultou da divisão do prédio referido em 1, não confronta com qualquer caminho público, dispondo de um caminho privado para acesso à via pública».
Na sua motivação, afirmou o julgador:
«No tocante aos pontos 19 e 20, estes pontos ficaram assentes através dos depoimentos de todas as testemunhas que prestaram depoimento em audiência de discussão e julgamento, com exceção da testemunha JJ (JJ, notário, atualmente reformado, não conhecia o prédio que foi dividido e falou sobre a possibilidade de fracionamento de prédios quanto existam construções urbanas), que esclareceram que a metade do prédio que foi adjudicada ao Réu AA tem acesso a um caminho, que é público. Já no que concerne à metade do prédio que foi adjudicada ao Réu CC, onde é cultivada a vinha, consta no relatório pericial da Direção Geral do Território junto como documento n.º 6 junto à petição inicial que “este novo prédio, resultante da escritura de divisão e partilha, datada de 14 de junho de 2018, fica encravado, não confrontado com caminhos públicos”. As testemunhas KK e LL também atestaram a inexistência de caminhos públicos que dessem acesso à metade do prédio que foi adjudicada ao Réu CC, onde é cultivada a vinha. Assim, está assente que a metade do prédio que foi adjudicada ao Réu CC, onde é cultivada a vinha não confronta com qualquer caminho público. Sucede que o Réu CC, as testemunhas MM, NN e OO mencionaram a existência de um caminho privado, fora da rede que delimita a metade do prédio adjudicada ao Réu AA, que permite o acesso do Réu CC às vinhas. A propósito, a testemunha KK mencionou que não necessitou de entrar na zona das construções do prédio dividido, que estava delimitada por uma rede, para aceder ao local onde se encontrava a vinha. Desta feita, ficou assente que o prédio identificado como verba 3 da escritura de divisão e partilha, utilizado pelo Réu CC, que resultou da divisão do prédio referido em 1, tem acesso a um caminho, mas esse caminho não é público».
A questão de saber a quem pertence o leito do dito caminho é absolutamente determinante no desfecho da ação e não está cabalmente explicada, mas cremos que o julgador tem razão.
Vejamos.
Na contestação oferecida pelo réu CC foi dito que «no que se refere ao prédio encravado a situação não corresponde à verdade em virtude de existir um caminho de acesso a esse mesmo prédio de acordo com todos os Co-Réus».
Por seu turno, na contestação apresentada pelo réu EE este traz alguns elementos que ajudam a esclarecer a questão, se confrontados com os factos provados em 1 a 3.
Com efeito, refere aquele réu, que «os RR e seus outros irmãos acordaram ainda em vida dos pais, conforme era hábito naquela zona, que aquela propriedade seria dividida em dois prédios de igual medição sendo adjudicado cada um deles aos RR CC e AA, o os demais irmãos ficariam com outras propriedades.
Assim, (…) o R. CC passou a explorar vinha na metade nascente do prédio, e o R. AA a restante metade, designadamente habitando numa casa implantada no prédio dos autos (…). Resulta pois, que o prédio adjudicado em partilha aos RR. AA e CC foi sempre utilizado de forma autónoma por cada um deles na proporção de metade, sendo a parte adjudicada ao R. AA utlizada para fins urbanos e a parte utilizada pelo R. CC para fins agrícolas.
É que das fotos juntas no relatório dessa perícia e que constituem doc. 6 junto da PI, resulta inequívoco, que pelo menos, metade do prédio, a poente, é utilizado para fins urbanos, e a outra metade, a nascente, com 6000m2 é utlizada para vinha, ali se vendo muito bem as respetivas carreiras..
Com a escritura dos autos os RR formalizaram a realidade já existente, ou seja, o R. AA tem um prédio urbano com acesso pelo caminho público existente na confrontação poente, e o R. CC tem um prédio rústico com acesso pelo caminho público na sua confrontação nascente e ainda pelo caminho existente na confrontação sul de ambos os prédios (vide doc. 7 a 9)»
Nas fotografias a que se refere o Réu, é perfeitamente visível uma vedação de arame, e junto à mesma um caminho em terra batida. Daí a questão que colocámos supra sobre a pertença do caminho.
Ora, cremos que a factualidade provada nos dá a resposta devida.
Com efeito, se o prédio rústico fracionado tinha inicialmente 12.000m2, e confrontava a norte com GG, a sul com herdeiros de HH, a nascente com II e a poente com aceiro, (facto provado 1), e foi dividido em 2 partes iguais de 6.000m2, ficando os prédios das verbas 1 e 2 a confrontar de poente com aceiro, e o da verba 3 a confrontar de poente com AA e também com o aceiro (facto provado 3), o leito do dito caminho privado encontra-se na metade pertencente ao Réu CC. Tanto assim é que, como as testemunhas evidenciaram, passaram no caminho que existe fora da rede que delimita a metade do prédio adjudicada ao Réu AA, sendo este que permite o acesso do Réu CC às vinhas.
Consequentemente, não existindo encravamento absoluto ou relativo do prédio identificado sob a verba n.º 3 da escritura em causa, não merece censura a decisão recorrida que julgou improcedente a pretensão do Autor de ver declarada a nulidade da escritura de divisão e doação do prédio rústico, celebrada no dia 14.06.2018.
Nestes termos, a pretensão recursiva improcede.
*****
IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Sem custas, por delas estar isento o Apelante – art.º 4.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento das Custas Processuais.
*****
Évora, 28 de setembro de 2023
Albertina Pedroso [12]
José António Moita
Florbela Moreira Lança
__________________________________________________
[1] Juízo Local Cível de Setúbal – Juiz 2.
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.º Adjunto: José António Moita; 2.ª Adjunta: Florbela Lança.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC.
[4] Proferido no processo n.º 5434/09.2TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, sítio onde se encontram acessíveis os demais arestos que sejam citados sem menção de outra fonte. Do sumário desse aresto, destacou as seguintes passagens: ««Um dos principais instrumentos de que o legislador se tem servido para conformar e conjugar os interesses públicos e privados no que se refere à utilização dos solos tem sido a legislação sobre loteamentos urbanos, tendo esta como propósito geral impedir o aproveitamento indiscriminado de terrenos para a construção urbana e evitar a criação de núcleos habitacionais contrários ao racional desenvolvimento urbano do território, não olvidando a qualidade de vida das populações (com reflexo nos direitos de personalidade,”maxime” a higiene e salubridade), as infraestruturas urbanísticas e “last but not least” a estética. O diálogo entre o direito civil e o direito do urbanismo e o objectivo de aplicação uniforme e coerente do ordenamento jurídico como um todo implicam que as normas de cariz administrativo respeitantes ao fraccionamento, ao loteamento e ao destaque de imóveis sejam atendidas aquando do reconhecimento das formas de aquisição da propriedade, mormente da usucapião.
Os tribunais judiciais não podem manter-se como espaços de aplicação exclusiva do direito civil ignorando as intersecções deste com o direito do urbanismo, sendo cada vez mais urgente, face à natureza imperativa e aos interesses públicos que este último prossegue, abandonar este estado “monocromático” das relações entre ambos estes ramos do direito».
[5] Tanto neste como naquele caso os factos dados como provados são claros no sentido de que a data do início da posse relevante para efeitos de usucapião se situa antes da entrada em vigor da Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto.
[6] Doravante abreviadamente designado CC.
[7] As mencionadas notas de rodapé têm o seguinte teor:
« [1] Expressão do acórdão do STJ de 29 de Fevereiro de 2019 — processo n.º 518/14.8TJVNF.G1.S1 —, em cujo sumário se diz o seguinte: “VIII – Não é o loteamento que influencia e determina o domínio sobre os prédios, antes é este que influencia e condiciona o loteamento, sendo que, nos termos do art.1288º, do CC, ‘Invocada a usucapião, os seus efeitos retroagem à data do início da posse’. IX – Segundo cremos, não há que falar aqui em colisão de direitos, nos termos do disposto no art. 335º, do CC, para o efeito de considerar que prevalece o regime jurídico do loteamento urbano em detrimento do regime jurídico da usucapião, antes se tratando, a nosso ver, de direitos que, no caso, não colidem porque, precisamente, estão numa relação de precedência”.
[2] Cf. designadamente os acórdãos do STJ de 4 de Fevereiro de 2014 — processo n.º 314/2000.P1.S1 —, de 6 de Abril de 2017 — processo n.º 1578/11.9TBVNG.P1.S1 —, de 1 de Março de 2018 — processo n.º 1011/16.0T8STB.E1.S2 —, de 3 de Maio de 2018 — processo n.º 7859/15.5T8STB.E1 —, de 12 de Julho de 2018 — processo n.º 7601/16.3T8STB.E1.S1 —, de 8 de Novembro de 2018 — processo n.º 6000/16.1T8STB.E1.S1 —, de 21 de Fevereiro de 2019 — processo n.º 7651/16.0T8STB.E1.S3 —, de 18 de Junho de 2019 — processo n.º 1786/17.9T8STB.E1.S1 —, ou de 18 de Fevereiro de 2021 — processo n.º 20592/16.1 T8SNT.L1.S1.
[3] Cf. acórdão do STJ de 6 de Abril de 2017 — processo n.º 1578/11.9TBVNG.P1.S1.
[4] Cf. acórdão do STJ de 21 de Fevereiro de 2019 — processo n.º 7651/16.0T8STB.E1.S3.
[5] Expressão do acórdão do STJ de 12 de Julho de 2018 — processo n.º 7601/16.3T8STB.E1.S1.
[6] Em termos particularmente impressivos, vide o acórdão do STJ de 6 de Abril de 2017 — processo n.º 1578/11.9TBVNG.P1.S1: “V - Entender que a posse, baseada em acto ou facto proibido por normas imperativas do loteamento urbano (ou do destaque), é insusceptível de conduzir à aquisição da propriedade por usucapião abstrai da realidade económica e social do nosso país, onde especialmente no interior norte e centro, uma boa parte das partilhas entre maiores, nomeadamente de imóveis constitutivos dos acervos das heranças, ainda é ou era feita ‘de boca’ e posteriormente ‘legalizada’ com suporte na usucapião. VI - Por conseguinte, tendo a posse dos réus sobre a parcela de terreno em litígio nos autos se consolidado por usucapião e não resultando provado que a mesma tenha sido “destinada à construção” nem imediata nem subsequentemente à concretização da divisão física do prédio original, mas antes que se encontra há mais de 20 anos a ser utilizada como parque de estacionamento automóvel, não pode deixar de se reconhecer aos réus/reconvintes o direito de propriedade sobre tal parcela”.
[7] Expressão do acórdão do STJ de 4 de Fevereiro de 2014 — processo n.º 314/2000.P1.S1.
[8] Expressão do acórdão do STJ de 4 de Fevereiro de 2014 — processo n.º 314/2000.P1.S1.
[8] A título exemplificativo, cfr. Acórdão desta Relação, de 25 de maio de 2017, proferido no processo n.º 1214/16.7T8STB.E1, e voto de vencido no Acórdão desta Relação de 26 de abril de 2018, proferido no processo n.º 418/15.4T8ALR.E1, subscrito pela ora relatora como 1.ª adjunta, e em cujo sumário se consignou que “A usucapião prevalece sobre o fracionamento ilegal de um prédio, não constituindo este, só por si, fundamento para obstar à aquisição originária do correspondente direito de propriedade”. Mais recentemente, o Acórdão de 27 de maio de 2021, proferido no processo n.º 980/19.2T8TNV.E1.
[9] Cfr., a título exemplificativo, Acórdãos deste TRE de 08.06.2017, processo n.º 1011/16.0T8STB.E1, de 07.06.2018, proferido no processo n.º 145/16.5T8CCH.E1, de 08.05.2019, processo n.º 941/17.6T8BNV.E1, de 15.12.2022, processo n.º 681/20.9T8TMR.E1.
[10] Cfr. neste sentido, Acórdão STJ de 17.12.2015, proferido no processo n.º 285/1999.E2.S1.
[11] In CÓDIGO CIVIL ANOTADO, volume III, 2.ª edição revista e atualizada, reimpressão, COIMBRA EDITORA, 1987, págs. 259 e 260.
[12] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado eletronicamente pelos três desembargadores que compõem esta conferência.