DECLARAÇÃO DE PERDA DE OBJETOS A FAVOR DO ESTADO
DESPACHO POSTERIOR À SENTENÇA
ARMAS E MUNIÇÕES
Sumário


I - O art. 410.º do Código de Processo Penal não é aplicável a despachos, como é o caso daquele que, posteriormente ao trânsito em julgado da sentença, declara perdidos a favor do Estado objectos apreendidos no processo.
II - Não versando uma pena, o âmbito de aplicação do art. 109.º do Código Penal não está delimitado por qualquer acto do titular da acção penal, nem a menção do destino a dar aos objectos faz parte dos elementos que a acusação deve conter, sob pena de nulidade (art. 283.º, n.º 3).
III - A omissão de pronúncia, na decisão final, sobre esse destino constitui mera irregularidade, que o mesmo tribunal pode oficiosamente sanar.
IV - Embora o arguido tenha sido condenado pela prática de um crime de coacção agravada, as armas e munições que lhe foram apreendidas não devem ser declaradas perdidas a favor do Estado, uma vez que não ficou provado o uso destas naquela prática.

Texto Integral


Neste processo n.º 311/20.9GAVNF.G2, acordam em conferência os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I - RELATÓRIO

No processo comum singular n.º 311/20...., a correr termos no Juízo Local Criminal ... (J...), Comarca ..., em que é arguido AA, foi proferido despacho em que se declararam “perdidos a favor do Estado os objetos e armas apreendidos nos autos”, e determinada “a sua entrega ao Núcleo de Armas e Explosivos da PSP, que promoverá o respetivo destino”.

Inconformado com essa decisão, da mesma recorreu o arguido, terminando a motivação do recurso com as seguintes conclusões:

«1 - O arguido e recorrente nasceu aos .../.../, tendo, por isso, 90 anos de idade, nunca antes da condenação a que foi sujeito nestes autos havia sido condenado pela prática de qualquer crime, tem carta de caçador e licença de porte de arma desde há muitos anos.
2 - Na acusação crime que o MºPº deduziu contra o arguido em 14/04/2021 – importando registar que não ficou provada a parte mais significativa da factualidade que lhe vinha imputada em nº 7 e particularmente em nº 8 da acusação -, não foi requerido a perda das armas, das máquinas de carregar cartuchos, nem dos cartuchos que estavam apreendidos à ordem dos autos.
3 - Também nessa mesma acusação não foram articulados, nem feita a invocação das razões de facto e de direito que pudessem fundamentar e, ou, justificar a perda desses objectos apreendidos a favor do Estado.
4 - O arguido, na sua Contestação e até à data em que foi proferida Sentença, dada a descrita omissão constante da acusação, também nenhuma defesa ou contraditório exerceu a tal propósito – a perda dos objectos apreendidos a favor do estado.
5 - O tribunal de 1ª instância, que se saiba, nunca entendeu necessário uma audição técnica sobre a personalidade do arguido ou sobre a sua capacidade de interacção social, o seu relacionamento com as demais pessoas e família, designadamente, os 7 filhos com quem se dá bem, tem relações de afecto, é amigo e nutre carinho – tanto assim que todos sempre o apoiaram e apoiam no litígio de natureza cível respeitante à tentativa de apropriação por parte do único filho (o oitavo), com quem se encontra de relações cortadas, de um prédio que lhe pertence e que mesmo, Ofendido/Assistente nos autos, tentava apropriar-se…- nenhuma prova tendo sido produzida no processo que evidenciasse alguma espécie de perigosidade do mesmo.
6 - Na Sentença proferida em 1ª instância, tal como no Acórdão proferido no TRG, nenhuma decisão e pronúncia foi feita a propósito da declaração de perda das armas a favor do Estado.
7 - Percebe-se que na factualidade apurada, e porque também nada na acusação a tal propósito foi invocado e, ou, articulado, nada consta que permitisse antever que o tribunal tinha a intenção de declarar perdidos a favor do Estado as armas, as máquinas de carregar cartuchos e os cartuchos.
8 - Não existe na Sentença qualquer facto provado que permita antever e muito menos que fundamente a decisão, infeliz, agora proferida pelo tribunal de, muito depois e fora da sentença, declarar aquelas armas, máquinas de carregar cartuchos e cartuchos perdidos a favor do Estado. (…)
9 - Da Sentença proferida nos autos, inalterada pelo Acórdão do Tribunal da Relação, resulta que foi dado como “Não provado”, para além do mais, que: (…)
b) Que no nas circunstâncias referidas em 8. e 9 o arguido esteve munido de uma espingarda caçadeira para reforçar a seriedade do anunciado.
c) Ao longo dos últimos três anos o arguido tem reivindicado parte da propriedade do ofendido, usando de todos os meios, lícitos e ilícitos, para lograr espoliar o ofendido dos seus bens
 d) Desde há muito o arguido tem agido de forma violenta para com o aqui ofendido, seu filho, o que já motivou diversas denúncias e queixas deste contra aquele
e) O arguido faz de tudo para limitar os movimentos do ofendido dentro da sua própria propriedade e mesmo na rua nas proximidades da mesma, porquanto o ameaça sistematicamente, o que causa medo no ofendido que receia pela sua integridade física e mesmo pela sua vida.
f) Com efeito, verifica-se que o arguido age de forma obsessiva em relação à propriedade do ofendido, sendo que a cada ano que passa reclama mais um pouco da mesma a seu favor.
g) Agindo como se fosse o ofendido o invasor de coisa alheia, quando ocorre o inverso.
h) O arguido não se coíbe de ameaçar, constantemente, o ofendido pelo simples facto de este usufruir do seu próprio terreno, estando, constantemente, a controlar os movimentos do ofendido o qual se sente permanentemente ameaçado pelo seu próprio pai.
i) E, desde a data dos factos, 04/05/2020, o ofendido ficou mais convicto de que o seu pai não se limitava às palavras quando ameaçava de que o iria matar, que um dia pegava na caçadeira e lhe dava um tiro, como tantas vezes referiu.
j) Nos presentes autos, o arguido colocou-se em frente à casa do ofendido com uma caçadeira na mão durante toda a noite, sendo manifesto que se o ofendido saísse certamente o seu pai, aqui arguido, atiraria contra si, concretizando, assim, as ameaças que fez.
k) O arguido tem uma personalidade violenta, o qual é reconhecidamente agressivo, o que faz com que o ofendido receie sair sozinho e viva em profundo e sistemático sofrimento.
l) O ofendido não se sente seguro onde quer que seja, nem sequer na sua própria casa, local onde deveria poder descansar de forma tranquila.,
10- Padece, por tudo isso, a decisão recorrida dos vícios invocados e que a afectam de forma insuprível, devendo ser conhecida e declarada a nulidade e também a insuficiência de fundamentação da decisão de declarar perdidos a favor do Estado aquelas armas, máquinas de carregar cartuchos e cartuchos – aplicação conjugada das supra citadas normas legais e ainda do art. 410º nº 1, 2 e 3 do CPP.

SEM PRESCINDIR,
11 - Resulta expressamente dos autos, que as armas e munições apreendidas:
a) não foram instrumento de qualquer crime;
b) nem são produto de qualquer crime;
c) Tal como não está demonstrado nos autos que essas armas e munições ofereçam sério risco e serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
12 - Da factualidade apurada nos autos é muito fácil perceber que:
- O arguido/Recorrente nunca mencionou, durante a discussão que manteve com o filho, que iria buscar a caçadeira para lhe dar um tiro;
- Nunca empunhou qualquer uma das armas com intuitos de ameaçar ou coagir;
- Mesmo quando ficou a tomar conta da cancela que o filho ameaçou arrancar com o Jeep, não tinha junto de si e muito menos empunhava qualquer arma de fogo.
13 - O Recorrente é, há mais de sessenta (60) anos, caçador e utilizava as aquelas armas na prática de tal actividade lúdica, sendo membro do Clube de Caça e Pesca de ..., com o cartão de sócio nº ....
14 - As armas apreendidas estavam e estão registadas e devidamente licenciadas, em nome do Recorrente que é possuidor de licença para uso e porte de arma – Licença n.º .../...3 válida até 10 de Março de 2024.
15 - O Recorrente tem a idade de 90 anos e nunca – antes da decisão proferida nestes autos – foi condenado pela prática de qualquer espécie ou tipo de crime e, por isso, não tem averbado no seu registo criminal a prática de qualquer crime, muito menos relacionado com a posse de tais armas.
16 - Tinha contrato de seguro em vigor com a Apólice n.º ...80.
17 - Nas circunstâncias em que os factos ocorreram – conforme ficou demonstrado, ou melhor, não ficou demonstrado nos autos: que o arguido estivesse munido ou tivesse, em qualquer circunstancia, empunhado qualquer arma - também não se pode concluir que foi posta em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública.
18 - Não pode a MMº Juiz do Tribunal “a quo” depois de proferida Sentença e Acórdão sobre o objecto do processo, sobre as circunstâncias em que ocorreram os factos, sobre o comportamento do arguido/recorrente à data dos factos, ficcionar e atribuir ao Recorrente um novo “comportamento” e, ou, nova “personalidade” (que nunca teve) e decidir que (…) A postura de vigia que adotou e a posse dos objetos apreendidos convencem no sentido de que os destinava à prática do crime ameaçado”.
19 - Traduz a decisão uma compressão injustificada do direito à propriedade, que priva o proprietário não só do direito de disposição, antes inviabiliza, identicamente, o uso e fruição do bem.
20 - A MMª Juiz do Tribunal “a quo” na decisão proferida, sempre teria de atender que:
- na acusação proferida pelo MP, o que ficou reproduzido na pronuncia, não foi invocada, nem articulado qualquer facto que visasse o objectivo de declarar perdidos a favor do Estado, aquelas armas, as maquinas de carregar cartuchos e os cartuchos;
- o arguido/recorrente, porque nada a tal propósito havia sido invocado ou articulado pelo MP, também nenhuma defesa exercitou e nenhum facto contrapôs, para contrariar tal possibilidade;
- na audiência de julgamento, obviamente, nada foi indagado ou perguntado acerca da “possibilidade” de as caçadeiras e demais objectos serem declarados perdidos a favor do Estado;
- pelo que agora se percebeu, parece que não foi realizado o relatório social, e não foi feito nenhuma audiência técnica acerca da “perigosidade” que o arguido pudesse representar;
- não foi atendido que o arguido nunca antes foi condenado pela pratica de qualquer espécie de crime;
- não foi atendido, que o arguido tem 90 anos de idade, um percurso de vida e de trabalho imaculado, tem oito filhos e apenas com um deles – o aqui ofendido/assistente – se encontra incompatibilizado pelos motivos que levaram à prolação daquelas decisões judiciais cíveis e de onde resulta, por prova documental, valida e incontornável – Sentenças judiciais transitadas em julgado - que a entrada do prédio onde foi substituída a cancela velha por uma nova é propriedade e pertence ao arguido/recorrente.
21 - Sendo certo que, em momento algum ficou provado que o arguido tem uma “personalidade violenta” e que a postura de vigia que adoptou dentro do seu prédio, não se destinava exatamente a isso mesmo: vigiar!
22 - Sendo certo que resulta dos autos, que todo o comportamento adoptado pelo arguido/recorrente em relação aos atos ofensivos e ilícitos praticados pelo filho, aqui ofendido, se pautou pelo exercício dos seus direitos nos Tribunais cíveis: seja pela apresentação de procedimento cautelar de restituição provisória de posse, seja pela apresentação de acções e reclamações judiciais relativamente ao reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio em litígio.
23 - Nunca preteriu o recurso ao Tribunal para fazer valer os seus direitos…usando “métodos alternativos”…
24 - Daí que, não existe qualquer fundamento decorrente de prova produzida nos autos que permita atribuir ao arguido/recorrente uma “personalidade violenta”.
25 - As armas e munições apreendidas não foram instrumento de qualquer crime, nem são produto de qualquer crime e não se indicia minimamente que fossem servir para a prática de um crime.
26 - O nosso legislador adoptou um critério de razoabilidade na aplicabilidade do “confisco” de instrumentos, exigindo, não apenas que estes sejam objectivamente susceptíveis de ser considerados perigosos por si, mas que tenham sido utilizados na prática de um facto ilícito típico, ou estivessem destinados a sê-lo.
Acresce ainda dizer,
27 – A declaração de perda não se basta com a verificação do pressuposto “perigosidade”.
28 - Para que o confisco possa ser declarado, é também necessário que os objectos tenham sido usados ou estivessem destinados a ser usados, pelo agente, na prática do facto ilícito típico.
29 - Não está, percute-se, minimamente indiciado que as armas de caça do recorrente, objecto da declaração de perda proferida no despacho recorrido, tenham sido por ele usadas o que significa que, in casu, não está verificado o primeiro pressuposto legal de que depende a declaração de perda de instrumentos.
30 - Estando as armas de caça pertencentes ao Recorrente devidamente legalizadas, sendo este titular de licença de uso e porte de arma, e não estando verificado um dos pressupostos legais de que depende a declaração de perda – a utilização das armas ou, pelo menos, de alguma delas, no cometimento do facto ilícito típico – não pode haver lugar ao confisco, pela declaração da respectiva perda.
31 - Não se verificam, por isso, os requisitos necessários para que fosse declarado o perdimento das armas de caça e demais objectos apreendidos nos presentes autos, tal como estipula o art. 109º do Cód. Penal.
32 - Não poderão ser suspeitas, conjecturas ou meros receios que poderão servir para fundamentar de forma credível um juízo de perigosidade, não das armas apreendidas, mas sim, destas em ligação ao recorrente – “vide gratiae” citado douto acórdão da Relação de Guimarães de 6/2/2012, in www.dgsi.pt.
33 - Quanto a isso, há uma total carência de factos que possam fundamentar a declaração de perda das armas (ambas) a favor do Estado.
34 - No caso dos autos, as armas (de caça) apreendidas e respectivas munições não são objetos proibidos nem são objetos que, pelas suas características próprias, revelem condições de perigosidade excecional.
35 - À data em que o Recorrente praticou os factos e mesmo quando foi proferida a decisão recorrida, encontrava-se habilitado a ter na sua posse tais armas.
36 – Em suma: nem a natureza das armas (de caça) nem as circunstâncias do caso permitem afirmar que põem em perigo a segurança das pessoas ou oferecem sério risco de serem utilizadas para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
37 - Entende o recorrente que a decisão do Tribunal “a quo” violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto no art. 109º nº 1 do CP, ao decretar a perda de objectos que se não destinaram à prática de um facto ilícito típico, pelo que deve ser revogado, por ilegal, e substituído por um que mande entregar ao recorrente as armas e os cartuchos apreendidas e legalizadas, licitamente detidas pelo mesmo, identificadas a fls. 75 a 92 dos autos.
38 - A decisão recorrida, do mesmo passo, viola ainda o disposto no art. 18º nº 2 e 62º da CRP, ao criar, com a interpretação que faz do art.109º nº 1 do CP, uma restrição desnecessária, desadequada e desproporcional ao direito de propriedade do recorrente relativo às armas apreendidas.

Pelo que,
39 - Salvo o devido e merecido respeito, a decisão recorrida violou e, ou, interpretou erradamente, o conjugadamente disposto nos arts.2º, 18º, 29º n.º5, 32º n.º2 e 62º da Constituição da República Portuguesa e o art 109º do C. Penal e ainda, o art. 410º n.º1, 2 3 do C.P.Penal.»
Conclui pedindo que seja dado provimento ao recurso «e, em consequência, ser a decisão de 13/04/2023 – ref. n.º ...21- revogada e substituída por outra que mande restituir ao recorrente as armas, maquinas de carregar cartuchos, cartucho e demais documentos apreendidos, identificados a fls. 75 a 92 dos autos, com todas as devidas e legais consequências.»
O recurso foi admitido.
Na 1.ª instância, o Ministério Público apresentou resposta, com as seguintes conclusões:
«1) Pese embora a decisão final (sentença ou acórdão) constitua o momento adequado para que o tribunal se pronuncie quanto ao destino a dar aos objectos apreendidos nos autos, a omissão de pronúncia quanto a tal questão não gera nulidade (já que não existe nenhuma norma que comine tal omissão com tal consequência), mas tão só mera irregularidade, a qual, por não afectar a decisão do objecto do processo, não determina a invalidade da sentença, pelo que pode o tribunal decidir sobre essa matéria posteriormente.
2) A perda de objectos é uma medida essencialmente preventiva e não reactiva contra o crime, o que justifica seja decretada tendo em vista obviar a perigosidade resultante da sua circulação e, com isso, que novos crimes possam com eles ser cometidos, impondo-se essa perigosidade por si mesma, independentemente da pessoa do agente ou do detentor dos bens.
3) Por se encontrarem reunidos todos os pressupostos que determinaram a prolação do despacho que declarou perdidos a favor do Estado os objectos apreendidos, somos de parecer que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se, na íntegra, a douta decisão recorrida.»
Nesta Relação, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta lavrou parecer, no qual entende que, não tendo sido imputada ao arguido nos autos qualquer actuação que envolvesse o uso das armas apreendidas – pelo que não se mostra provada a perigosidade do arguido – e face aos elementos que habilitam este a deter aquelas armas, não se verificam os requisitos do art. 109.º do Código Penal, devendo o recurso ser julgado procedente, com o despacho recorrido a ser substituído por outro que ordene a restituição ao arguido das armas em causa.
Cumprido o contraditório e colhidos os vistos, realizou-se a conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

A. Delimitação do objecto do recurso
Nos termos do art. 412.º do Código de Processo Penal[1], e face às conclusões do recurso, são duas as questões a resolver:
- se o despacho recorrido padece de algum dos vícios apontados no art. 410.º, nºs. 1, 2 e 3;
- se há fundamento legal para declarar perdidas a favor do Estado as armas e munições apreendidas ao recorrente.

B. Apreciação do recurso
É o seguinte o teor do despacho recorrido (na parte relevante para o recurso):
Encontram-se apreendidos à ordem dos presentes autos, as armas, munições, equipamentos e documentos identificados a fls. 75 a 82, pertença do arguido AA.
O arguido requereu a sua restituição.
O Ministério Público pugnou pela declaração da respetiva perda a favor do Estado.
Nos presentes autos foi o arguido condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime de coação agravada.
Resultou provado que o arguido, dirigindo-se ao ofendido BB, seu filho, por via de desentendimento gerado em torno da colocação de uma cancela, dirigiu-se a este dizendo “se tu puseres a mão na cancela eu dou-te um tiro”, tendo permanecido num anexo da sua residência a vigiar o local entre as 20:39 e as 4h00 do dia seguinte.
Tal atuação ocorreu num contexto de diferendo que o ofendido e o arguido mantêm relativamente à propriedade de uma faixa de terreno utilizada como caminho.
Pese embora tenha resultado não provado que o arguido, no momento dos sobreditos factos, estivesse munido de uma espingarda caçadeira, constata-se que os objetos foram apreendidos no interior de um armário sito num anexo à habitação do arguido.
Nos termos do disposto no artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal “São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática”.
No caso, face à expressão proferida pelo arguido, não restam dúvidas que o mesmo anunciou a prática de facto ilícito típico mediante o recurso a arma de fogo.
A postura de vigia que adotou e a posse dos objetos apreendidos convencem no sentido de que os destinava à prática do crime ameaçado.
Tais objetos são, pela sua própria natureza, suscetíveis de colocar em perigo a segurança das pessoas, evidenciando o arguido, face aos factos cometidos, uma personalidade violenta e desconforme ao direito, o que não nos permite afastar o risco de utilização de tais objetos no cometimento de novos factos ilícitos típicos.

1. Entende o recorrente que o despacho da Mm.ª Juiz a quo, padece dos vícios descritos no art. 410.º, nºs. 1, 2 e 3, nomeadamente nulidade, bem como insuficiência de fundamentação.

Prevê este artigo:
1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.
Ora, a própria formulação do artigo afasta a sua aplicação a despachos: estes obedecem a diversa estrutura – menos complexa, dispensando a enumeração de factos provados – e a diferentes regras, por respeitarem à aplicação de determinadas normas a particulares questões e não à decisão de fundo do processo[2].
Está, portanto, liminarmente afastada a aplicação do art. 410.º, n.º 2, ao despacho recorrido.
Pese embora mais nenhuma disposição legal seja invocada pelo recorrente quando se refere à nulidade do mesmo despacho, o recorrente invoca alguns argumentos, que sucintamente se apreciarão.
Relativamente à omissão, na acusação, de pedido expresso de perda dos objectos em causa a favor do Estado, importa lembrar que o art. 109.º (e seguintes, até ao art. 112.º-A) do Código Penal, embora integre o Título III do Livro I do Código Penal (título que trata das consequências jurídicas do facto), encabeça o Capítulo IX, relativo à perda de instrumentos, produtos ou vantagens.
Tal significa que tem completa autonomia em relação às demais consequências do facto ilícito criminal, nomeadamente às penas (principais ou acessórias) e às medidas de segurança. É totalmente diverso o seu fundamento, que “radica nas exigências, individuais e colectivas, de segurança e na perigosidade dos bens apreendidos, ou seja, nos riscos específicos e perigosidade do próprio objecto e não na perigosidade do agente do facto ilícito (daí que não possa ser considerada uma medida de segurança) ou na culpa deste ou de terceiro (daí que não possa ser vista como uma pena acessória).[3]
Não se tratando de uma pena, o âmbito de aplicação do art. 109.º do Código Penal não está delimitado por qualquer acto do titular da acção penal, nem a menção do destino a dar aos objectos faz parte dos elementos que a acusação deve conter, sob pena de nulidade (art. 283.º, n.º 3).
Portanto, não está obrigado por lei o Ministério Público a formular, na acusação ou em qualquer outra fase do processo, pedido de perda a favor do Estado dos objectos apreendidos nos autos.
Quanto ao exercício do contraditório, também carece de razão o recorrente: se foi ele próprio a requerer a devolução das armas e munições, aí invocou o que entendeu, de forma livre e sem estar limitado por qualquer posição anteriormente assumida pelo Ministério Público (a quem, perante o pedido do arguido, foi naturalmente dado o contraditório).
Resta, ainda em sede de nulidade, a alusão que, de passagem, o recorrente faz à falta de decisão e pronúncia, quer na sentença da 1.ª instância quer no acórdão desta Relação que sobre a mesma versou, a propósito da declaração da perda das armas e munições a favor do Estado.
Quanto àquela sentença, já transitada em julgado e confirmada por acórdão deste Tribunal da Relação – e, por isso, claramente fora do objecto do presente recurso – não se escamoteia que, nos termos do art. 374.º, n.º 3, c), o dispositivo deve conter “a indicação do destino a dar a animais, coisas ou objectos relacionados com o crime, com expressa menção das disposições legais aplicadas”.
Decorre do próprio despacho recorrido que tal não foi cumprido, ou o Tribunal a quo não teria agora de se pronunciar sobre essa matéria.
Porém, como bem refere o Ministério Público na 1.ª instância na sua resposta ao recurso, inexiste nenhuma norma que comine expressamente com a nulidade a omissão de pronúncia da decisão final quanto a esta matéria (conforme arts. 119.º e 120.º): trata-se de uma irregularidade que o Tribunal oficiosamente pode sanar (art. 123.º, n.º 2) – o que fez, no despacho recorrido.[4]
Aliás, se assim não se entendesse, mais difícil – ou até impossível – seria ao recorrente recuperar as armas e munições, já que ele próprio estaria impossibilitado de formular o requerimento que deu lugar…ao despacho contra o qual agora reage.
Conclui-se, portanto, que o despacho recorrido não padece de qualquer nulidade.

2. Cabe, agora, apreciar se há fundamento legal para declarar perdidas a favor do Estado as armas e munições apreendidas ao recorrente, ou seja, avaliar se, perante o caso concreto, o Tribunal a quo violou as normas jurídicas relevantes, nomeadamente a do art. 109.º do Código Penal.
Prevê o respectivo n.º 1: “São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática.
Há, portanto, dois pressupostos, cumulativos, para a declaração de perda: “um pressuposto formal de que os objectos tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática do facto ilícito, (instrumentos) (…) e um pressuposto material relacionado com a perigosidade dos próprios objectos que pela sua natureza intrínseca devem mostrar-se vocacionados para a actividade criminosa.”[5]
Exactamente porque, como já se referiu, o momento mais adequado para apreciar da perda teria sido a sentença, importa ter em conta não só o que aí foi dado como provado, mas também a matéria não provada. Isto porque o primeiro requisito para o perdimento é, como facilmente se constata, concreto: ter o objecto em causa servido ou se destinasse a servir para a prática daquele facto ilícito típico.

Ora, lida a sentença transitada em julgado (ref.ª ...92), dos factos provados constam, com relevância para esta questão (e além do elemento subjectivo do tipo de crime de coacção), os seguintes:

1. O arguido AA é pai do ofendido BB e mantém com este um diferendo relativamente à propriedade de uma faixa de terreno utilizada como caminho (…).
2. Nesse contexto, em Abril de 2020 o arguido solicitou a CC (…), serralheiro de profissão, que fabricasse e colocasse no local uma cancela com fechadura para vedar o acesso a tal caminho.
3. Conforme solicitado, no dia 4/5/2020, durante o período da tarde, o referido CC (…), acompanhado de DD (…), deslocaram-se ao local e iniciaram a instalação de uma cancela.
4. O ofendido BB chegou ao local cerca das 16:30h e exigiu que os identificados sujeitos interrompessem a colocação da referida cancela, uma vez que a propriedade sobre tal local encontrava-se em apreciação judicial.
5. Os serralheiros confrontaram o arguido que lhes ordenou que terminassem o serviço, garantindo que o local onde estava a ser colocada a cancela era de sua propriedade, o que os mesmos acederam, colocando a cancela que foi fechada à chave pelo arguido.
6. O ofendido afirmou ao arguido que tal cancela não ficaria no local, e que a arrancaria com o jipe.
7. O arguido disse então ao ofendido: “se tu puseres a mão na cancela eu dou-te um tiro”;
8. Nesse dia o arguido deslocou-se para um anexo da sua residência situado junto à cancela e manteve-se a vigiar o local pelo menos entre as 20:39h e as 4:00h do dia seguinte.
9. O arguido agiu de forma livre e voluntária, com o propósito concretizado de amedrontar o ofendido BB, manifestando a intenção de atentar contra a sua vida caso o ofendido retirasse uma cancela que havia colocado junto à residência de ambos, à margem do processo judicial, vigiando tal local”.

Há, de facto, uma referência, pelo arguido, a uma arma, instrumento absolutamente necessário para dar um tiro.

Porém, não se podem esquecer os factos do mesmo passo dados como não provados (e aqui pertinentes):
b) Que nas circunstâncias referidas em 8. e 9 o arguido esteve munido de uma espingarda caçadeira para reforçar a seriedade do anunciado. (…)
i) E, desde a data dos factos, 04/05/2020, o ofendido ficou mais convicto de que o seu pai não se limitava às palavras quando ameaçava de que o iria matar, que um dia pegava na caçadeira e lhe dava um tiro, como tantas vezes referiu.
j) Nos presentes autos, o arguido colocou-se em frente à casa do ofendido com uma caçadeira na mão durante toda a noite, sendo manifesto que se o ofendido saísse certamente o seu pai, aqui arguido, atiraria contra si, concretizando, assim, as ameaças que fez.
k) O arguido tem uma personalidade violenta, o qual é reconhecidamente agressivo”.
Da análise conjunta da matéria provada e não provada, é evidente que, desde logo, as armas e munições apreendidas, e objecto do despacho recorrido, não podem considerar-se, para aplicação do art. 109.º, n.º 1, do Código Penal, instrumentos de facto ilícito típico. É que ficou por demonstrar que tais armas e munições, no momento em que o arguido disse ao filho que lhe ia dar um tiro se ele pusesse a mão na cancela, tenham servido para o anúncio desse desígnio: não se provou que, nesse momento, o arguido tivesse uma espingarda caçadeira na mão; nem mesmo que, durante essa noite, ele se tenha colocado em frente à casa do filho exibindo uma caçadeira, o que poderia ser, quando muito, indício de que as armas e munições estavam destinadas a servir para o arguido desferir o tiro sobre o ofendido.
Nem se provou que o arguido tenha uma personalidade violenta: aliás, mesmo a demonstração do contrário não seria suficiente para tornar as armas e munições apreendidas no instrumento do facto ilícito típico em julgamento nos autos, dada a definição da parte final do citado art. 109.º, n.º 1. Os perigos referidos neste artigo “são os relativos ao objeto e não à pessoa do agente do crime[6].
Portanto, falta aos objectos em causa o requisito basilar para que sequer se pondere a sua perda a favor do Estado; por isso, nem sequer se mostra necessário saber se está verificado aquele segundo pressuposto do art. 109.º, n.º 1, relacionado com a perigosidade daqueles.
Ex abundantiae, sempre se dirá que, juntamente com as armas e munições, foram também apreendidos ao arguido, a 28 de Agosto de 2020, os livretes das duas armas (ref.ª ...22), não estando sequer em causa a legalidade da sua detenção, à data, por parte do arguido.
Deve, por isso, proceder o recurso interposto pelo arguido, e ser o despacho recorrido substituído por outro que determine a entrega ao arguido das armas e munições objecto do seu requerimento de 13 de Abril de 2023, caso reúna as demais condições legais para delas ser portador (ref.ª ...46).

III - DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido AA, revogando o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que determine a entrega ao arguido das armas e munições por ele requerida, desde que preencha as condições legais para ser delas portador.
Sem custas.

Guimarães, 31 de Outubro de 2023
(Processado em computador e revisto pela relatora)

As Juízas Desembargadoras

Cristina Xavier da Fonseca
Florbela Sebastião e Silva
Isabel Gaio Ferreira de Castro



[1] Diploma legal donde provêm as normas a seguir citadas sem indicação de origem.
[2] Neste sentido, vide ac. Relação de Évora de 9.2.2021, proc. n.º 1/18.2PTSTR.E1, e da Relação do Porto de 15.2.2012, proc. n.º 918/10.2TAPVZ.P1, este relativo ao recurso de uma decisão instrutória, www.dgsi.pt.   
[3] Ac. Relação de Lisboa de 28.9.2010, no proc. n.º 24/09.2P5LSB-A.L1-5, ibidem.
[4] No mesmo sentido se pronunciaram, entre outros, o acórdão desta Relação de 28.10.2019 (proc. n.º 395/15.1GAVLP.G1) e o da Relação de Lisboa de 11.5.2021 (proc. n.º 418/18.2PKLRS-A.L1-5), ibidem.
[5] Ac. desta Relação de 25.03.2019, no proc. n.º 182/15.7GAMLG-B.G1, na citada base de dados.
[6] Ac. Relação de Lisboa citado na nota 4.