DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
Sumário


I - O recurso às declarações para memória futura previsto no artigo 271º do CPP quando estão em causa crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, visa não só proteger a especial vulnerabilidade da vítima, como também conseguir que essas suas declarações sejam prestadas num tempo mais próximo do momento da prática do crime, com acréscimo da fiabilidade das mesmas.

II – Nada impede que essas declarações para memória futura sejam prestadas ainda que ninguém tenha já sido constituído arguido, desde que seja nomeado defensor oficioso e este esteja presente nessa diligência, assim se assegurando o princípio do contraditório.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I - Relatório

Decisão recorrida
No âmbito do Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº 330/21...., do Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Central Criminal ..., foi proferido acórdão no dia 12 de janeiro de 2023, cuja parte decisória se transcreve:

“Por todo o exposto, acordam os Juízes que integram o Tribunal Colectivo do Juízo Central Criminal ...:
a) Absolver o arguido AA da prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo de 438 (quatrocentos e trinta e oito) crimes de abuso sexual de crianças, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 171.º, nº 1 e 177º, nº 1, als. b) e c), nº 7 e nº 8, 14º, 30º, nº 1 e 77º, todos do Código Penal, de que vinha acusado;
b) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo de 93 (noventa e cinco) crimes de abuso sexual de crianças previstos e punidos no artigo 170º por referência ao artigo 171º nº 3 alínea a) do C.P. na pena de 4 (quatro) meses de prisão para cada um deles;
c) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo de 5 (cinco) crimes de abuso sexual de crianças previstos e punidos pelo artigo 171º nº 1 do C.P., na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão para cada um deles;
d) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada de 1 (um) crime de actos sexuais com adolescentes agravado previsto e punido pelos artigos 173º nº 1 e 177º nº 1 alínea c) do CP.na pena de 6 (seis) meses de prisão;
Em cumulo jurídico das referidas penas de prisão, ao abrigo do disposto nos artigos 77º do Código Penal:
na pena única de 4 (quatro) anos de prisão suspensa na sua execução por igual período sujeita a regime de prova (cfr. artigos 50º nºs 1 e 5 do C. P. e nº 4 do artigo 53º do CP).
e) Condenar o arguido AA no pagamento das custas do processo, e individualmente na taxa de justiça que se fixa em 4 UC (artigos 513º nºs 1 a 3, 514º, 524º do Código de Processo Penal e art. 8º nº 9 do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-lei nº 34/2008 de 26/02 por referência à tabela III).
f) Condenar o arguido AA a pagar ao Centro Hospitalar de ..., E.P.E a quantia de € 4.046,28 (quatro mil e quarenta e seis euros e vinte e oito cêntimos) a título de danos patrimoniais, a que acrescerão juros de mora calculados à taxa legal de 4%, desde a data da notificação do pedido ao arguido até efectivo e integral pagamento.
g) Condenar o arguido AA a pagar ao Centro Hospitalar ... quantia de € 1.034,95 (mil e trinta e quatro euros e noventa e cinco cêntimos) a título de danos patrimoniais, a que acrescerão juros de mora calculados à taxa legal de 4%, desde a data da notificação do pedido ao arguido até efectivo e integral pagamento.
h) Condenar o arguido AA a pagar à demandante BB representada pela progenitora CC a quantia de € 12.500,00 (doze mil e quinhentos euros), a título de indemnização civil pelos danos não patrimoniais perpetrados com os crimes cometidos, quantia a que acrescerão juros de mora a contar da data deste acórdão à taxa legal de 4%, até efectivo e integral pagamento, absolvendo o arguido do demais peticionado;
i) Condenar o arguido nas custas do pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar de ..., E.P.E (artigo 4º nº 1 alínea n) do RCP);
j) Condenar o arguido e a demandante BB representada pela progenitora CC nas custas do pedido de indemnização civil na proporção dos respectivos decaimentos (artigo 4º nº 1 alínea n) do RCP e art. 527º nºs 1 e 2 do CPC)”.

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Recurso apresentado

Inconformado com tal decisão, o arguido AA veio interpor o presente recurso e após o motivar, apresentou as seguintes conclusões e petitório, que se reproduzem:

“A - O recorrente não se conforma com a decisão condenatória proferida pelo tribunal a quo, porquanto,
B - O acórdão recorrido tomou como meio de prova e valorou, para além de tudo o mais, as declarações de BB prestadas em 29 de julho de 2021, para memória futura nos termos do artigo 271º do Código de Processo Penal.
C Essas declarações são nulas e por isso não podem servir de prova, porque prestadas em data anterior à constituição do recorrente na qualidade de arguido e que, por isso as não pôde contraditar.
D - Em regra, só podem concorrer para a formação do tribunal as provas produzidas ou examinadas em audiência, nos termos do artigo 355.º, n.º 1 do CPP princípio da imediação
E - Para que as declarações para memória futura possam ser valoradas, o arguido tem que já estar constituído como tal, para que possa estar presente (não ele próprio, mas por intermédio de defensor seu) na diligência de prestação dessas declarações e para que possa confrontar, se assim o entender, a testemunha que as presta, que a possa inquirir, que a possa contrainterrogar
F - No caso dos autos a menor BB foi ouvida pelo senhor juiz de instrução em declarações para memória futura em 29 de julho de 2021 e o arguido apenas foi investido nas vestes desse sujeito processual em 26 de outubro de 2021, com validação pela Ministério Público em 27 de outubro de 2021.
G- Não pôde por isso exercer o direito ao contraditório legal e constitucionalmente previsto.
H- Foi violado, entre o demais, o princípio do contraditório consignado no artigo 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa que significa que nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão, mesmo interlocutória deve ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efetiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar.
I- Nos termos do artigo 64º, nº 1, alínea f) do CPP é obrigatória a assistência de defensor, nos casos a que se referem o artigo 271º e 294º (do Código de Processo Penal). E o caso previsto no artigo 271º do mesmo CPP é precisamente o das declarações prestadas para memória futura em que tem que estar presente obrigatoriamente, entre outros suspeitos processuais, o defensor.
J - Se a lei impõe a presença de defensor é exatamente para garantir a defesa dos direitos do arguido, que, por isso tem que estar já constituído como tal.
K - A existência de um arguido é imprescindível para a salvaguarda de um verdadeiro contraditório, e na sua inexistência não é possível um exercício efetivo do princípio do contraditório.
L - Uma vez que a aquisição antecipada da prova supõe o respeito pelo princípio do contraditório, só se pode recorrer a ela existindo já arguido constituído, já que a finalidade da prova antecipada visa a audiência de julgamento, o que supõe já a constituição de uma pessoa como arguido.
M - A prestação de declarações para memória futura não se afigura como possível sem a prévia constituição ou existência de arguido, porquanto as declarações para memória futura são tramitadas em ambiente com as regras de um autêntico julgamento. Ora, não há julgamento justo sem acusação e arguido. E se o houver não é um julgamento justo, antes um inquisitório sem regras.
N - No presente caso, na data de 29 de junho de 2021, o recorrente não era arguido, não se pode defender, não tinha defensor de coisa que não existia, pelo que foi violado o preceituado no artigo 64º do CPP, que acarreta nulidade insanável nos termos previstos no artigo 119º, alínea c) do CPP, nulidade que aqui se invoca para todos os legais efeitos.
O - Não poderia por isso, o Tribunal a quo valorar e relevar, como valorou e relevou tal meio de prova, que, por ser nulo é de nulo efeito, já que, nos termos do nº 1 do artigo 122º do CPP as nulidades toram inválido o ato em que verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar.
P-O recorrente entende que os factos que o tribunal recorrido julgados provados sob os números 10, 11, 12, 13, 14, 15, 19, 20, 24, 25, 26, 28, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46 deveriam ter sido dados como como não provados. Com efeito,
Q-De acordo como acórdão recorrido, para para considerar provados os factos descritos em 11 a 15 o Tribunal a quo considerou as declarações prestadas pela  menor  BB,  em  29/07/2021,  em  sede  de  declarações para memória futura e transcritas nos autos a fls. 135 e ss. tendo, igualmente, o Tribunal procedido à sua audição.
R -E para considerar tais factos provados o tribunal a quo teve apenas em conta as declarações prestadas pela menor. Nenhuma outra testemunha as corroborou. Nenhuma outra qualquer testemunha presenciou qual facto dos que assim se deram como provados. Nem a mãe da menor que apenas relatou o que lhe relatado por esta.
S. Nem mesmo o senhor médico pedopsiquiatra, confirmou nenhum desses factos. Nunca deles teve qualquer conhecimento. E a referenciação que lhe foi feita, foi antes por insucesso escolar, por violência doméstica e de bullying de que a menor era vítima.
T- As declarações prestadas pela menor, e transcritas a folhas 135 e seguintes dos autos e com o todo o respeito, não foram prestadas de forma totalmente espontânea e natural, e as perguntas que lhe foram feitas, foram feitas, por vezes, muitas, de forma sugestiva.
U- As perguntas feitas quer pelo senhor juiz de instrução, quer pela senhora procuradora eram perguntas sugestivas, que incluíam já a resposta a dar pela menor, quando deveriam ser perguntas simples.
V- As respostas não foram, por conseguinte, espontâneas, escorreitas e naturais. Antes foram sugestionadas pelos interrogadores, que, naturalmente sem intenção e inconscientemente, já continham nas perguntas as respostas que previsivelmente, e face ao que do processo já constava, seriam dadas pela menor depoente.
W- São várias as questões que se colocam relativamente à credibilidade e precisão do testemunho efetuado pela menor BB.
X- Existe um conjunto de problemas relativos ao testemunho da BB que afetam naturalmente a sua credibilidade, entre os quais se contam toda a sua infeliz vivência até hoje, caraterizada pela infância difícil, pela disfunção familiar, pelo abandono do progenitor, pela violência de que foi vítima a sua mãe e ela própria, pela vitimização de que foi alvo na escola, pela bullying contra si exercido, pelo abandono e apontar do dedo dos colegas e amigos, pelo problema psicológico profundo que a morte da sua cadela lhe causou
Y - A credibilidade do testemunho da BB deveria ter sido aferido pelo tribunal a quo por um crivo muito apertado e rigoroso, de finíssima malha que contemplasse as limitações relativas ao seu processo de desenvolvimento e crescimento, nomeadamente a maturação do cérebro, processo precetivo, atenção, pensamento, fantasia, linguagem e comunicação, sugestionabilidade e memória e toda a sua vivência devidamente provada nos autos.
Z - E deveria ainda o tribunal a quo ter relevado as condições da própria mãe da menor BB, o seu percurso de vida, já que foi vítima de violência doméstica peripterada não apenas pelo seu ex-marido e ex- companheiros, mas também pela sua própria mãe. Agressões verbais e físicas presenciadas pelos seus filhos menores. Empréstimo diversos por pagar que lhe causou um nomadismo reiterado. Já em ... foi expulsa da casa abrigo, de diversas casas onde viveu precisamente pro não pagar as rendas. É uma mulher perturbada até pela perturbação dos seus filhos.
AA - Pelo que também as declarações desta testemunha deveriam ter sido filtradas e refiltradas ao ponto de serem consideradas efabuladas.
AB - Além da BB ninguém mais presenciou ou confirmou os factos 10 a 15 que o tribunal recorrido julgou provados, factos que o arguido negou perentoriamente.
AC - Nenhuma outra testemunha presenciou qualquer facto, nem nunca ninguém se apercebeu de nenhum facto suspeito.
AD- E assim nenhum facto sabiam as testemunhas DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ e outras ouvidas em julgamento.
AE - Dos depoimentos prestados pelas testemunhas referidas ressuma que nenhuma das testemunhas presenciou os factos provados 10 a 15. Nunca ninguém os viu, nunca ninguém os assistiu. E eram, na sua grande maioria, testemunhas frequentadoras do local onde supostamente aconteceram. Nunca deles tiveram nenhum conhecimento e nunca presenciaram nenhuma relação suspeita, nenhum detalhe suspeito e menos próprio do comportamento e da relação entre o arguido e a menor BB.
AF - Por outro lado, não consegue o recorrente entender o critério que levou o tribunal a quo a considerar provado que das três vezes semanais que a menor ia à livraria, pelo menos, uma vez por semana, os beijos ocorreram. Relativamente aos apalpões, a menor referiu que er    falta de melhor precisão da ofendida, o Tribunal considerou provado que os mesmos ocorreram, com toda a certeza, pelo menos por duas vezes.
AG - Pelo que deveriam tais factos 10, 11, 12, 13, 14 e 15 - ser dados como não provados.
AH - Relativamente aos factos que o tribunal a quo deu como provados 19, 20, 24, 25, 26, 28 nenhuma testemunha, para além da menor os relatou.
AI - A mãe relatou em Tribunal o que a filha supostamente lhe terá relatado, mas relatos da mãe foram incoerentes, apenas baseados no que menor lhe contou, aos quais a mãe acrescentou outros, conforme lhe era aparentemente conveniente.
AJ Para valoração do depoimento da mãe deveria o tribunal recorrido ter relevado tudo quanto se provou a seu respeito da mãe da menor: já passou por experiências muito traumáticas na sua vida, releva elevado stress vivencial (foi vítima de violência doméstica e sexual) com uma situação financeira complicada e tem uma relação algo conflituosa com as menores
AK - Existe um conjunto de problemas relativos ao testemunho da BB que afetam naturalmente a sua credibilidade, entre os quais se contam toda a sua infeliz vivência até hoje, caraterizada pela infância difícil, pela disfunção familiar, pelo abandono do progenitor, pela violência de que foi vítima a sua mãe e ela própria, pela vitimização de que foi alvo na escola, pela bullying contra si exercido, pelo abandono e apontar do dedo dos colegas e amigos, pelo problema psicológico profundo que a morte da sua cadela lhe causou
AL - A credibilidade do testemunho da BB deveria ter sido aferida pelo tribunal a quo por um crivo muito apertado e rigoroso, de finíssima malha que contemplasse as limitações relativas ao seu processo de desenvolvimento e crescimento, nomeadamente a maturação do cérebro, processo precetivo, atenção, pensamento, fantasia, linguagem e comunicação, sugestionabilidade e memória e toda a sua vivência devidamente provada nos autos.
AM - As menores se foram a ..., foram sempre a convite da mãe do arguido que delas se apiedou, que aconteceram por duas vezes, na vindima e na Páscoa. Ficaram em casa dos pais do arguido sendo que este regressou a ..., para o seu trabalho normal, e nada em ... se passou.
AN - Como nada se passou no caminho da ... a 4 de julho de 2020. Foi uma viagem de carro de ... para ... (...) a conduzir por autoestradas ... e ... com o arguido com as mãos no volante, sem paragens e é absolutamente inverosímil que acontecessem, que não aconteceram, os gestos de que o arguido foi acusado
AO - Pelo que deveriam tais factos - 19, 20, 24, 25, 26 e 28 - ser dados como não provados.
AP - Dando-se como não provados os factos 10, 11, 12, 13, 14, 15, 19, 20, 24, 25, 26 e 28, necessariamente deverão julgados provados os factos que o mesmo tribunal recorrido cuidou provados sob os números 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46.
AQ - O acórdão recorrido violou as seguintes normas: Artigo 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa; Artigo 64º nº 1, alínea f) do Código de Processo Penal (CPP); Artigos 271º e 299º do CPP; Artigo 119º, alínea c) do CPP; Artigo 122º, nº 1 do CPP.
Na sequência do que deverá o arguido ser absolvido de todos os crimes de que veio acusado e bem assim da totalidade dos pedidos cíveis contra si deduzidos.

Assim fazendo Vªs Exªs a Costumada JUSTIÇA”.
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Resposta ao recurso por parte do Ministério Público.

Na primeira instância, o Magistrado do Ministério Público, apresentou resposta ao recurso pugnando pela improcedência do mesmo.

Apresenta as seguintes conclusões, que se reproduzem:
“1- O âmbito do recurso retira-se das respectivas conclusões as quais por seu turno são extraídas da motivação da referida peça legal, veja-se por favor a título de exemplo o sumário do douto Acórdão do STJ de 15-4-2010, in www.dgsi.pt,Proc.18/05.7IDSTR.E1.S1.
2- “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso.
É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso.
3- São assim, as conclusões quem fixam o objecto do recurso, artigo 417º, nº3, do Código de Processo Penal.
4- O arguido não tem passado criminal registado.
5- Aquando da audição da menor BB em declarações para memória futura, esteve o suspeito/ ainda não constituído arguido, representado pela Ilustre Advogada/Defensora Oficiosa, Drª. KK, nomeada para o ato”.
6- Conferir por favor, a acta de 29/7/2021, AUTO DE DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA, pois o recorrente só foi constituído arguido a 26 de outubro de 2021, com validação pela Ministério Público a 27 de outubro de 2021.
7- Não foi beliscado sequer, qualquer normativo da CRP, nem de direito criminal, uma vez que as declarações para memória futura foram prestadas nas condições legais previstas nos artigos: 64º, nº 1, alínea f), 271º e 294, do Código de Processo Penal.
8- A menor BB depôs a perguntas, cujas respostas não foram induzidas, mas somente ajustadas às suas circunstâncias, todavia, respeitando a legalidade e a espontaneidade da inquirida, não devendo proceder a argumentação do recorrente.
9- Todas as pessoas, incluindo a BB e a sua mãe lidaram ao longo das suas vidas com acontecimentos mais ou menos traumatizantes, porém, superaram-nos, de modo positivo, sendo os seus depoimentos essencialmente objectivos, espontâneos e credíveis.
10- Não estando inquinados de modo irremediável pelas circunstâncias da vida que o recorrente vai repetindo.
11- Os Psiquiatras fazem o seu trabalho com a consciência de que ele é necessário, falível e não é uma panaceia, nem se aparenta a vidência.
12- Os factos dados como provados no Douto Acórdão, devem perdurar na totalidade.
13- Pois os argumentos do arguido para os inquinar, não passam de mero exercício de retórica sem base legal ou factual.
14- Não enferma o Douto Acórdão de qualquer erro, vício, nulidade ou irregularidade, nem violou o disposto nos artigos: 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, 64º, nº 1, alínea f), 271º, 299º, 119º, alínea c), e 122º, nº 1, todos do Código de Processo Penal.
15- As qualificações jurídicas mencionadas no Douto Acórdão devem perdurar, por serem legais e adequadas.
16- Teve em linha de conta O Tribunal “a quo” os preceitos legais aplicáveis de Direito Europeu, Direito Constitucional e Direito Criminal.
17- O Douto Acórdão impugnado deve prevalecer intocável”.
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Também a demandante apresentou resposta na qual em síntese e na parte relevante[1], entendido que não deve ser concedido provimento ao recurso interposto pelo arguido.
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Tramitação subsequente

Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o processo foi com vista ao Ministério Público, tendo o Exmº. Senhor Procurador-Geral Adjunto, sufragado a argumentação aduzida pelo magistrado do Ministério Público da 1ª instância, emitindo parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº2 do CPP não tendo sido apresentada resposta.
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Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
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II – Fundamentação.

Cumpre apreciar o objeto do recurso.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas essas questões, as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal[2].

As questões que se colocam à apreciação deste tribunal são, por ordem lógica da sua apreciação, as seguintes:

I - nulidade das declarações para memória futura prestadas pela BB.
II - erro de julgamento da matéria de facto.
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É a seguinte a matéria de facto dada como provada e não provada pelo tribunal “a quo” (transcrição):
“Com interesse para a decisão da causa, provaram-se os seguintes factos:
1. A ofendida BB, nascida a .../.../2006, é filha de CC e de LL.
2. Desde os seus 7 anos de idade que a BB nenhum contacto tem com o seu progenitor em virtude de este não a procurar nem contactar.
3. No dia .../.../14, quando tinha apenas 8 anos de idade, a BB passou a viver na cidade ..., juntamente com a sua mãe, e a sua irmã, MM, numa Casa Abrigo da APAV, onde residiram até outubro de 2014, altura em que foram viver para uma habitação sita na Rua ..., no Bairro ..., em ..., habitação essa que distava cerca de 100 metros da livraria “...”, de que o arguido é dono.
4. Foi neste contexto que o arguido, à data com 51 anos de idade, conheceu a ofendida BB, em virtude de aquele ser dono da Livraria "...", sita na Rua ..., em ..., estabelecimento comercial esse onde para além de existirem livros, materiais e cartazes alusivos e destinados a crianças, sendo que também era habitual aí decorrerem sessões de poesia e actividades com contadores de histórias para crianças, sendo visível no sítio da internet desse estabelecimento (...) diversas iniciativas onde podem participar crianças.
5. Assim, em data não concretamente apurada do segundo semestre do ano de 2014, a mãe da BB, CC, levou aquela sua filha, à data com apenas 8 anos de idade, a assistir a uma actividade que estava a decorrer na livraria do arguido, onde se encontravam várias crianças e adultos a assistir a uma sessão de poesia para crianças com um contador de histórias.
6. Com efeito, a mãe daquela BB conheceu o arguido e a livraria “...”, que promovia inúmeras actividades ligadas à cultura, nomeadamente, lançamento de livros, tertúlias de poesia, sessões de contos, exposições e dinamizava o intercâmbio para a ... para divulgação e conhecimento da cultura portuguesa, de que é exemplo o Projecto cultural designado de "...", através do qual se promove a cultura gastronómica portuguesa, iniciativas essas onde a mãe da BB participava com as suas filhas.
7. Por causa disso, criou-se uma relação de grande proximidade e confiança entre a mãe da menor BB e o arguido, sendo que a partir de data não concretamente apurada a mãe da BB passou a ficar, ela própria, muitas vezes, a tomar conta da livraria, enquanto o arguido tinha actividades literárias no exterior daquele estabelecimento.
8. Ao travar conhecimento com aquela BB e a sua progenitora no supra referido contexto, veio depois a estabelecer-se grande confiança entre as mesmas e o arguido, o que lhe permitiu actuar em relação à menor da forma infra descrita.
9. Deste modo, desenvolveu-se uma relação de amizade e de confiança entre o arguido, a mãe daquela BB e esta, relação essa que se estendeu a toda a família do arguido, ao ponto de a BB passar a chamar a mãe do arguido de “Avó” e passarem ambas as famílias (a da BB e a do arguido) a conviverem regularmente, sobretudo durante a semana.
10. Neste contexto, a BB passou, desde data concreta que não foi possível apurar mas situada em Outubro do ano de 2016 e até Julho de 2018, a deslocar-se apeada, pelo menos três vezes por semana, à livraria do arguido, a qual era perto da sua habitação, sendo igualmente perto da Escola ..., em ..., que a menor frequentava à data, desde os seus 10 anos e até perfazer os 12 anos de idade.
11. Naquelas circunstâncias, pelo menos uma vez por semana, quando a menor chegava à livraria, o arguido dirigia-se àquela BB, e sem que nada o fizesse prever, e aproveitando o facto de ali apenas se encontrarem os dois, sozinhos naquele estabelecimento, cumprimentava-a com um beijo nos lábios.
12. Para o efeito, e nessas ocasiões em que a menor ali se deslocava apeada e sozinha, o arguido dirigia-se àquela BB e, de imediato, beijava-a na boca.
13. Na maioria das vezes, o arguido encostava os seus lábios nos lábios daquela BB e, acto contínuo, beijava-a repentinamente, de forma rápida.
14. Outra vezes, o arguido prolongava a duração dos beijos, mantendo os seus lábios em contacto com os lábios daquela menor durante mais tempo, tornando-os mais duradouros, sem, no entanto, nunca introduzir a sua língua na boca daquela BB, limitando-se a contactos labiais.
15. Em algumas dessas ocasiões, durante um número não concretamente apurado de vezes, mas pelo menos por duas vezes, o arguido, aproveitando-se do facto de se encontrar sozinho com aquela menor e de esta o ver como a sua figura paterna de referência, isto é, o pai que nunca teve, tocava-a nos seios, no rabo e na parte superior e interior das coxas, acariciando-as e percorrendo-as com a sua mão até chegar às virilhas e, acto contínuo, apalpava-lhe essas zonas do corpo, fechando a mão e pressionando-as, após acariciá-las, sendo que o fazia normalmente por cima da roupa daquela BB, embora outras vezes fazia-o por baixo da roupa, tocando-a directamente na pele, sendo que para o efeito o arguido introduzia naturalmente a sua mão debaixo da roupa que a ofendida trazia vestia, sem nunca, contudo, a despir.
16. Entre o ano de 2018 e início de Março de 2020, em virtude de a BB ter mudado de casa e depois de escola, passando a frequentar a Escola Secundária ..., em ..., e de ter, em virtude disso, passado a ter menos tempos livres da parte da tarde, a que acresceu ainda a circunstância de ter passado a frequentar a ..., a BB passou a dirigir-se, com menos frequência à livraria do arguido.
17. Em número não concretamente determinado, e em datas não concretamente apuradas mas situadas entre o ano de 2017 e o ano de 2018, o arguido convidou a BB para ir passar fins de semana à sua habitação sita em ..., ..., concelho ..., bem como, pelo menos uma vez, à sua habitação sita em ..., o que aquela fez, com a autorização da sua mãe, por esta confiar plenamente no arguido, atenta a relação de amizade e confiança que o arguido previamente estabelecera com aquela CC.
18. Com efeito, a BB foi dormir a casa do arguido em data não concretamente apurada mas situada no período das férias lectivas do verão ou no carnaval do ano 2017/2018, quando aquela BB tinha 11 ou 12 anos de idade, tendo esta, a convite do arguido, e a pretexto de naquele fim de semana ocorrer uma actividade literária na Livraria “...” a que a BB queria ir e a sua progenitora não a poder levar por estar a trabalhar, ido passar o fim de semana a casa do arguido, sita no Bairro ..., em ..., tendo aquela ido numa sexta-feira à noite e regressado na segunda-feira seguinte, de manhã.
19. Assim, naquele fim de semana em que ficou em casa do arguido, na cidade ..., a BB, como sucedia frequentemente, teve um pesadelo, motivo pelo qual acordou a meio da noite com medo e, acto contínuo, dirigiu-se até à cama do arguido, pedindo ajuda, ao que aquele deitou-a na sua cama, abraçou-a e aninhou-se junto daquela BB, ficando esta de costas para o arguido e este de barriga virada para as costas daquela menor, ao mesmo tempo que a abraçava mantendo o seu corpo colado ao corpo daquela BB, em posição fetal, em forma de “concha”, e acto contínuo, introduziu a sua mão por baixo do pijama daquela BB, deixando-a pousada em cima da sua barriga, directamente sobre a pele da BB, que assim acabou por se acalmar e adormecer.
20. Quando a BB acordou, na manhã seguinte, o arguido tinha a sua mão por cima do seu seio esquerdo, por baixo do pijama, o que lhe causou desconforto e algum mau estar.
21. Essa foi a única vez que a BB dormiu com o arguido na sua habitação sita em ....
22. Como se referiu em 17, em datas não concretamente apuradas mas situadas entre os anos de 2017 e 2018, o arguido convidou e/ou transportou, por diversas vezes, em número não concretamente apurado mas não inferior a duas, aquela BB até à sua habitação sita na Rua ..., em ..., ..., a fim de aí passarem o fim de semana juntos, nas vindimas ou por outros motivos.
23. Nessas ocasiões em que a BB ia passar o fim de semana a casa do arguido, sita em ..., ..., o arguido transportava sozinho a BB no interior do seu veículo, desde ... até ..., o que fazia sempre ao sábado à noite, regressando sempre na manhã da segunda-feira seguinte, deixando a BB directamente na Escola.
24. Nessas ocasiões, a BB dormia no quarto de hóspedes da habitação do arguido, que distava poucos metros de uma outra habitação autónoma pertencente aos pais do arguido, sendo que, em todas elas, durante a noite, o arguido dirigia-se ao quarto de hóspedes onde a BB dormia e, acto contínuo, introduzia-se na cama onde aquela dormia vestindo apenas umas cuecas e o seu pijama, sendo que enquanto a menor dormia, o arguido introduzia uma das suas mãos por baixo do pijama que aquela vestia e, acto contínuo, tocava-lhe nos seios, acariciando-os, fechando de seguida ligeiramente a mão com que tocava no seio daquela BB e pressionava-o suavemente, apalpando-lhe assim o dito seio, sendo que quando a menor acordava, o arguido tinha a mão colocada sobre os seus seios por baixo do pijama, acabando a menor por se aperceber de que o arguido a tocava nos moldes supra descritos, sem que contudo aquela reagisse, permanecendo imóvel, sem se mexer, apesar de se sentir desconfortável.
25. Nessas ocasiões em que se encontravam na habitação do arguido, sita em ..., o arguido, quando se dirigia ao quarto onde a BB dormia, antes de se deitar na cama daquela, fechava sempre a porta do quarto, sendo que pelo menos uma das vezes trancou-a, para evitar ser surpreendido por alguém.
26. As condutas supra descritas em 24 e 25 ocorreram, em número não concretamente apurado de vezes mas nunca por menos de duas, cujas datas concretas não foi possível apurar mas situadas entre o ano de 2016 e o ano de 2018, quando a BB dormiu sozinha com o arguido, na habitação deste, na localidade de ..., ..., concelho ....
27. Acresce que, em data não concretamente apurada mas situada entre finais de julho e início de agosto de 2020, a mãe da BB, ao ter tomado conhecimento através da rede social “Facebook” de que o arguido ia à ... ao Festival de Poesia que aí iria decorrer, perguntou-lhe se ele poderia levar a BB consigo até à ..., a fim de aquela sua filha poder aí passar uma semana de férias em casa de um casal de amigos em comum, NN, e OO, e a filha destes, de quem a BB gosta muito, tendo o arguido logo se disponibilidade para “dar boleia” à BB, à data com 14 anos de idade, até à ....
28. Quando se encontravam a caminho de ..., no interior do veículo automóvel do arguido, estando este a conduzir e a BB no lugar de “pendura”, o arguido colocou a sua mão direita em cima de uma coxa daquela BB, acariciando-a pela zona interior da coxa até à zona da virilha, por cima dos calções que aquela vestia, aí permanecendo com a sua mão durante algum tempo.
29. Em consequência da conduta supra descrita sentiu-se aquela BB desconfortável e incomodada mas sem capacidade de reacção, mantendo-se imóvel.
30. Desde aquele dia em que o arguido a transportou até à ..., a BB começou a apresentar uma profunda tristeza, com períodos de isolamento e crises de choro, tendo a BB, no dia 5 de novembro de 2020, pedido apoio psicológico na Escola.
31. Em janeiro de 2021, dada a gravidade do estado psicológico em que a BB se encontrava, o psicólogo da Escola encaminhou-a para a Pedopsiquiatria do Hospital de ....
32. Devido a outras factores mas também, em grande parte, em virtude das condutas do arguido, supra descritas, e com o avançar da idade e, subsequentemente, a progressiva compreensão do alcance e finalidades dos actos praticados pelo arguido sobre si, a BB começou, desde Fevereiro de 2021, a automutilar-se nos braços e nas pernas, sentindo sentimentos de nojo e repúdio do seu corpo, bem como, ataques de pânico, de ansiedade e de profunda tristeza, usando, para o efeito, isqueiros, correntes e moedas várias para queimar o corpo e giletes para cortar os pulsos e as pernas, tendo tido necessidade de ser assistida nas urgências hospitalares várias vezes, estando actualmente a ser acompanhada em consultas de pedopsiquiatria no Hospital ..., no ....
33. No dia 22 de abril de 2021 a BB tentou atirar-se da janela da sala de aula da Escola que frequenta.
34. No dia 19 de janeiro de 2022, pelas 18h30m, no interior da sua habitação, a BB tentou suicidar-se através da ingestão de comprimidos e do corte do pulso esquerdo, tendo sido conduzida para as Urgências do Hospital ....
35. Devido a outros factores mas também, em grande parte, como consequência das condutas sobreditas do arguido, sofreu aquela BB grave perturbação a nível mental e comportamental, tendo tido necessidade de receber apoio psicológico e pedopsiquiátrico, que actualmente ainda mantém, bem como diversas cicatrizes lineares esbranquiçadas no braço e antebraço esquerdo e diversas cicatrizes lineares esbranquiçadas na coxa direita; quatro escoriações lineares com crosta na face anterior dos terços médios e inferiores da coxa direita, as três mais distais, paralelas, dirigidas de cima para baixo e de fora para entro, a maior das quais de cerca de 10 cm de comprimento.
36. Ao actuar da forma descrita supra, o arguido agiu, em todas as circunstâncias supra descritas, de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que a ofendida BB tinha a idade que tinha.
37. Ao praticar os factos descritos, o arguido actuou de forma livre, consciente e deliberada, bem sabendo que a menor BB tinha uma idade inferior ou igual a 14 anos de idade e aproveitando-se da confiança que obteve junto da menor e da progenitora do modo supra descrito tendo, inclusivamente, aquela BB à sua guarda durante fins de semana inteiros, sempre com o intuito de satisfazer os seus instintos sexuais, o que quis e conseguiu.
38. Em todas as circunstâncias supra descritas, o arguido quis constranger a menor a manter com o mesmo, actos ou contactos de natureza sexual, o que conseguiu.
39. Em todas as circunstâncias supra descritas agiu o arguido com o propósito concretizado de satisfazer os seus impulsos sexuais lascivos, praticando os actos/contactos sexuais supra descritos na menor BB, fazendo-se valer do ascendente que possuía sobre aquela, decorrente da sua idade e inexperiência, da figura paternal que a menor tinha na pessoa do arguido e da inerente autoridade e confiança que aquela em si depositava, e ainda, da ingenuidade, imaturidade e falta de experiência sexual daquela BB.
40. O arguido sabia que, atenta a idade da ofendida BB e a ascendência que tinha sobre ela resultante da elevada confiança de que o arguido beneficiava junto da criança e da sua progenitora e da circunstância de a BB ver o arguido como “um pai”, a ofendida não tinha o necessário discernimento para livremente consentir na prática de quaisquer actos/contactos sexuais, até porque não tinha capacidade para querer e entender o significado social dos actos por si e nela praticados, bem como sabia que todos os actos supra descritos eram e são de cariz sexual e, não obstante, quis praticá-los com intenção de satisfazer os seus desejos e caprichos sexuais, o que conseguiu.
41. O arguido decidiu praticar os actos sexuais supra descritos com a ofendida BB, bem sabendo que com as suas aludidas condutas, atenta a idade da ofendida, prejudicava o normal e são desenvolvimento físico, psicológico, emocional e sexual da ofendida, influía negativamente na formação da respectiva personalidade na esfera sexual, bem como, ofendia os sentimentos de pudor e vergonha da ofendida BB.
42. O arguido conhecia bem a idade da BB e estava ciente que ao actuar da forma descrita a perturbava e estava a prejudicar, de forma grave e séria, o desenvolvimento da personalidade da mesma, designadamente na esfera sexual e punha em causa o normal desenvolvimento psicológico, afectivo e de consciência sexual da referida menor.
43. Com as condutas supra descritas, praticadas pelo arguido, logrou este pôr em causa o sentimento de vergonha e pudor sexual, bem como a liberdade e autodeterminação sexual da BB, prejudicando deste modo o livre e harmonioso desenvolvimento da sua personalidade, nomeadamente na esfera sexual, o que representou e quis.
44. O arguido, ao praticar todos os factos supra descritos em 11 a 26 bem sabia que a BB era uma pessoa menor 14 anos de idade e que ao praticar os factos descritos em 27 e 28 a menor já tinha 14 anos de idade, sendo ainda assim, inexperiente, em fase de formação da sua personalidade, por conseguinte especialmente vulnerável/frágil, e, não obstante tal facto, não se coibiu de actuar da forma supra descrita.
45. O arguido agiu do modo supra descrito convencido de que a ofendida BB, atenta a sua tenra idade, não iria revelar a ninguém o que ele lhe havia feito, como veio efectivamente a suceder durante algum tempo.
46. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que todas as sobreditas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, e, ainda assim, não se absteve de as levar a cabo, antes as representou e quis levá-las a cabo e alcançar os correspectivos resultados delituosos.
Dos Pedidos de Indemnização Civil
47. Por força da situação descrita em 34, a ofendida foi admitida no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de ..., E.P.E. em 19/01/2022, tendo permanecido internada até 27/01/2022.
48. A assistência que lhe foi prestada, episódio de urgência e internamento orçou em € 4.046,28.
49. A ofendida recorreu aos Serviços do Centro Hospitalar Universitário do ... no período de 27/01 a 09/02/2022, bem como a consulta externa em 29/05/2021 e 20/01/2022.
50. O custo de tal assistência orçou em € 1.034,95.
51. Por força dos comportamentos do arguido supra descritos a ofendida sentiu e continua a sentir grande revolta e humilhação.
52. Os factos descritos em 30 a 35, 47 e 49 foram provocados por diversos factores relacionados com vivências anteriores da menor mas também e, em grande parte, pelos comportamentos do arguido supra descritos.
53. Embora não exclusivamente mas em grande parte, devido às condutas do arguido, a menor, actualmente, não tem auto-estima e sente nojo e repúdio do seu corpo.
54. Evidenciando ansiedade e nervosismo no seu comportamento social diário, bem como ataques de pânico e tristeza.
55. Bem como dificuldades de relacionamento com os outros e bem assim em partilhar sentimentos.
56. Manifestando crises de choro.
57. Evidenciado um decréscimo no rendimento escolar.
58. Atento o quadro emocional que apresenta e também, em grande parte, devido às condutas do arguido, a menor tem vindo a ter acompanhamento psicológico, que necessitária de manter no futuro, por tempo indeterminado.
Da Contestação
59. O arguido é cidadão honesto e ordeiro, com um comportamento cívico e moral exemplar perante a Sociedade.
60. É um filho carinhoso, cortês e afectuoso assim como é respeitador do seu próximo.
61. É um homem integro e sempre se pautou no seu dia a dia por critérios de companheirismo, amizade e ajuda.
62. É proprietário da livraria referida em 3 onde trabalha diariamente.
Mais se provou que:
63. PP é natural de ..., sendo o mais novo de dois descendentes de um casal socialmente integrado e laboralmente activo.
64. O pai trabalhava na área da contabilidade, no aeroporto de ..., e a mãe na universidade da mesma cidade, exercendo funções administrativas.
65. A dinâmica familiar foi avaliada como positiva e centrada em valores e princípios pró-sociais.
66. Na sequência do conflito civil sentido naquele país, a família perdeu os seus bens e viu-se obrigada a regressar a Portugal, fixando residência em ....
67. AA concluiu o ensino superior na área da sociologia reforçado com o mestrado na Extensão e Desenvolvimento Rural.
68. Regista uma longa e variada carreira de actividades laborais, com longos períodos de permanência no estrangeiro.
69. Em 2011 regressa a titulo definitivo a ..., com objectivo de apoiar os pais, já de idade avançada, tendo então aberto a livraria já supra identificada, onde cria espaços e eventos culturais cujos destinatários abrangem as diferentes faixas etárias.
70. O arguido reside num apartamento em ... propriedade dos pais (sem renda atribuída), com quem sempre manteve relacionamento próximo e de apoio mútuo, residentes na aldeia de ..., ....
71. A situação económica do arguido fica essencialmente dependente dos pais, uma vez que a livraria não lhe permite colmatar todas as despesas básicas da mesma, uma vez que a respectiva renda é paga pelo progenitor.
72. Em contexto laboral, AA promove e leva a cabo diferentes actividades educativas e culturais junto de grupos de várias faixas etárias, o que lhe permite realizar diferentes eventos, com a presença de diferentes actores e intervenientes da sociedade civil ligados às temáticas.
73. A sua rede social fica bastante centrada neste contexto social e grupos, no âmbito dos quais estabelece relações de maior proximidade e onde é tido como um indivíduo ajustado, educado e afirmativo ao nível das ideias que veicula.
74. Relativamente à tipologia dos crimes em apreciação no presente processo e pelos quais se encontra acusado, quando analisados em abstracto, o arguido revela capacidade de análise e reflexão, reconhecendo a ilicitude e gravidade de tal prática criminal, identificando consequências para as vítimas, que considera que se perpetuam no tempo.
75. O presente processo é do conhecimento de um grupo vasto de utentes e clientes que frequentam o espaço cultural do qual o arguido é proprietário, os quais reagiram com bastante surpresa e espanto, sendo que, apesar disso, não se regista alteração significativa da sua imagem pública, decorrente da sua constituição como arguido.
76. Do relatório psicológico elaborado em 09/09/2022 e relativo ao arguido concluiu-se que “ao nível da personalidade, trata-se de uma pessoa não conformista, moderadamente impulsiva e egocêntrica. É emocionalmente estável, optimista e activo. Do ponto de vista relacional adapta-se com sucesso a diferentes situações interpessoais embora seja desprendido, algo alienados nas relações afectivas e sociais”.
77. E que “Do ponto de vista cognitivo não evidenciou crenças de legitimação do abuso sexual sobre crianças/adolescentes”, não obstante “verificam-se factores de risco, concretamente: a tendência a ficar facilmente entediado; superficialidade afectiva; dependência parcial dos pais e ausência de objectivos realistas a longo prazo que permitam ultrapassar essa dependência; a impulsividade e ausência de relacionamentos íntimos estáveis”.
78. Mais resultou “como factores protectores: a ausência de psicopatia; não foram referidos antecedentes de doença mental, desvio sexual ou abuso de substâncias; não foram referidos antecedentes de doença mental, desvio sexual ou abuso de substâncias; ausência de comportamento ou atitudes criminais no passado; possui suporte familiar; refere história pessoal sem eventos de vida adversos; descreve a infância com laços emocionais fortes e apoio percebido na família nuclear e encontra-se envolvido em projectos profissionais. Pelo exposto conclui-se existir baixo risco de violência sexual”.
79. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

2.2. FACTOS NÃO PROVADOS:

Não se provaram outros factos interesse para a decisão da causa, designadamente que:

a) No período temporal referido em 3 já existia na livraria do arguido um espaço dedicado ao público destinado à permanência do público infantil.
b) A mãe da BB passou a ficar a tomar conta da livraria nas circunstâncias descritas em 7 dos factos provados a partir de Agosto de 2014.
c) O arguido, aproveitando-se do facto de ter amigos em comum com a mãe daquela BB e de terem interesses em comum, nomeadamente, as actividades promovidas pela “...”, foi-se aproximando paulatinamente daquela CC e, consequentemente, da filha desta, a BB, de forma a ganhar a confiança de ambas e ir estreitando laços de amizade e confiança, passando a conviver quase diariamente com aquela BB.
d) Os convívios descritos em 9 ocorriam também, regularmente, aos fins de semana, alturas em que frequentavam a habitação do arguido e dos pais deste, sita em ... e em ....
e) Nas circunstâncias descritas em 10 dos factos provados, a menor deslocava-se à livraria do arguido com uma frequência diária.
f) Sempre que a BB saía da Escola, que distava cerca de 300 metros da habitação onde residia à data, dirigia-se apeada e sozinha à Livraria do arguido.
g) Os factos descritos em 11 a 14 ocorriam com uma frequência quase diária até julho de 2018, sendo que a partir desta altura, tal passou a ocorrer, em média, uma vez por semana.
h) Nessas alturas, o arguido passou a agarrar aquela BB pela cintura ao mesmo tempo que a beijava nos moldes sobreditos, o que fazia sempre quando a BB chegava à sua livraria ou quando aquela já lá se encontrava, mas nunca à saída.
i) Os factos descritos em 11 a 14 ocorreram com uma frequência diária, também nas habitações do arguido ou do seu veículo automóvel.
j) Os factos descritos em 11 a 14 e 15 sucederam com uma frequência diária, pelo menos até Julho de 2018, inclusive.
k) Tais factos tenham ocorrido sempre na sala de leitura destinada às crianças, que fica ao fundo do amplo compartimento do piso térreo da livraria e na traseira diagonal do balcão, onde o arguido normalmente se encontra, isto é, o piso que se situa ao nível da estrada e da porta de entrada da livraria.
l) Tais factos correram também no interior do veículo do arguido ou das suas habitações, sitas quer na cidade ..., quer em ..., concelho ....
m) Nas circunstancias descritas em 16, a BB deslocava-se á livraria do arguido, sozinha e apeada, em média, uma vez por semana, sendo que, no entanto, quando aí se dirigia o arguido agia do modo descrito em 11 a 14 e 15.
n) Os factos descritos em 18 tenham ocorrido nas férias da Pascoa do ano 2017/2018.
o) Nas circunstâncias descritas em 19 e aproveitando o facto da BB se encontrar a dormir, o arguido acariciou com a sua mão o corpo daquela BB, apalpando-a na zona das coxas, rabo e seios, que se encontravam cobertos apenas pelo pijama, apalpando-os conforme queria.
p) Nas circunstancias descritas em 24, o arguido também introduzia uma das suas mãos por baixo do pijama da dita BB mas por cima das cuecas que aquela vestia e, acto continuo, acariciava-lhe ligeiramente a vagina e, de seguida, fechava ligeiramente a mão e pressionava-a contra a vagina da BB, apalpando-a.
q) Do mesmo modo, e nessas mesmas ocasiões, o arguido também introduzia uma das suas mãos por baixo do pijama da BB mas por cima das cuecas que aquela vestia e, acto continuo, acariciava ligeiramente as nádegas do rabo daquela BB e, de seguida, fechava ligeiramente a mão, pressionando-a contra o rabo, apalpando-a na zona nadegueira daquela BB.
r) Os factos descritos em 17, 22 a 26 ocorreram também em 2019.
s) No dia 15 de Outubro de 2021, a ofendida BB cruzou-se com o arguido na via pública, quando se encontrava a andar a pé na cidade ....
t) Em consequência disso, aquela menor de idade ficou profundamente abalada psicologicamente, tendo-se agravado o seu estado de saúde mental, tendo sido necessário requerer a antecipação da consulta que se encontrava agendada para o dia 29 de Novembro de 2021 no Hospital ... no ..., e inclusivamente, o internamento da BB.
u) A tentativa de suicídio descrita em 34 ocorreu na sequência de uma consulta de pedopsiquiatria ocorrida no dia anterior, onde a menor falou sobre os factos praticados pelo arguido, supra descritos.
v) Em virtude da relação de confiança existente entre o arguido, a menor e a sua progenitora, sobre o primeiro recaí um especial dever de respeitar e proteger a menor.
w) A ofendida era uma aluna de excelência e passou a ser aluna de 3 e 4”.
*
Para tanto motivou a decisão de facto do seguinte modo (transcrição):

“A convicção do Tribunal fundou-se na análise crítica e ponderada da prova produzida em audiência de julgamento e da prova documental e pericial constante dos autos, devidamente conjugada com as regras da experiência comum.
Em audiência de julgamento, o arguido prestou declarações e negou a generalidade dos factos descritos na acusação.
Admitiu ter conhecido a ofendida e a progenitora em finais de 2014 uma vez que estas apareceram numa actividade realizada na livraria ..., sendo que a partir daí se gerou uma relação de alguma amizade entre a mãe das menores BB e MM e o arguido, embora tal se situasse mais numa “onda de solidariedade” uma vez que aquelas tinham sido vitimas de violência doméstica e tinham estado, até então, acolhidas numa casa abrigo. Negou que existisse entre ele e a ofendida uma relação de pai/filha, tendo salientado que nunca viu ou tratou a menor como filha, embora admitisse que aquela o pudesse ver como um pai, uma vez que a figura paterna era ausente da sua vida.
Assumiu que a menor, por vezes, tratava a mãe como avó, mas referiu que tal também nunca foi aceite nem visto como “bons olhos” pela sua progenitora. Negou que alguma vez tivesse dado beijos na boca da menor, na livraria ou em qualquer outro local, sendo que as cumprimentava (a BB e a MM) com um abraço ou eventualmente um beijo na testa, por serem crianças muito afectuosas e carentes (o que aliás acontecia com grande parte das pessoas, que as cumprimentavam da mesma forma). Referiu que a BB nunca teria ido sozinha à livraria, sendo que normalmente ia com a mãe e/ou com a irmã MM.
O arguido negou que a menor alguma vez tenha ido ao seu apartamento em ..., sendo que a ..., em ..., terá ido um fim de semana apenas por duas ou três vezes, no máximo, sendo uma delas na vindima em 2016 tendo ido a BB e a MM as quais dormiram com os pais do arguido na casa daqueles e uma outra, que assumiu ter sido na Páscoa em 2017, na qual foi apenas a BB. Referiu que nessa altura, a BB ficou, efectivamente, a dormir na sua casa, a qual fica ao lado da casa dos pais, em ..., mas tendo a menor ficado no quarto de hóspedes e o arguido no seu quarto, porque quando chegaram já seria tarde para os pais preparem a dormida da menor na casa daqueles.
Mais referiu que a menor, a dada altura, veio ter com o arguido ao seu quarto, referindo que teria medo de dormir sozinha, tendo então o arguido na tentativa de fazer a menor dormir, aconchegado aquela na sua cama, em “conchinha”, abraçando-a mas nada mais do que isso, nunca lhe tendo tocado em qualquer parte do corpo como referido na acusação. Salientou que de manhã, a menor acordou e foi tranquilamente para o seu quarto.
Relativamente ao episódio da ida à ..., o arguido assumiu que terá efectivamente sido a última vez que esteve com a menor, sendo que tal ocorreu em Julho de 2020, tendo o arguido ido a um evento cultural na .... Nessa sequência, referiu que a mãe da menor lhe pediu para dar boleia àquela, levando-a para passar uns dias de férias com a NN e o OO, amigos do arguido e da mãe da menor e ali residentes, ao que o arguido acedeu. Salientou que a viagem decorreu com normalidade, nada tendo sucedido, tendo então deixado a menor no referido evento.
Nas suas declarações em audiência de julgamento, em geral coincidentes com as prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial, o arguido assumiu ter conhecido a menor em 2014, que em 2015 aquela veio a alguns eventos na livraria e que houve maior proximidade em 2016 e 2017 (visitas mais frequentes da menor, irmã e da mãe à livraria, embora não com a frequência diária descrita na acusação), sendo que em 2018, com a mudança de casa e de escola, a menor e a mãe deixaram de aparecer na livraria, tendo igualmente havido um afastamento por razões monetárias (referiu terem aparecido pessoas na livraria a cobrar dívidas ao arguido que seriam da mãe da menor). Referiu que em 2019 não teve qualquer contacto com a menor ou a mãe e em 2020 aconteceu apenas aquele episódio da boleia para a ....
Assim, os factos descritos em 1 resultam do documento de fls. 13, ao passo que os factos descritos em 2 e 3 foram confirmados pela menor, em sede de declarações para memória futura e resultam também do teor dos documentos de fls. 11 e 12 e bem assim da informação do Gabinete de Apoio à Vítima de ... de fls. 358 e ss.
Os factos descritos em 4 a 6 foram confirmados pela generalidade das testemunhas da acusação inquiridas, com excepção do inspector da PJ e foram também assumidos pelo arguido nas suas declarações. Resultam também da análise da reportagem fotográfica de fls. 365 e ss. e das fotografias juntas aos autos com a contestação.
Para prova do facto descrito em 7, teve-se em conta as declarações prestadas pela mãe da menor, CC, que confirmou ter ficado algumas vezes a tomar conta da livraria, sendo que para prova deste facto e bem assim dos demais descritos em 8 e 9 valoraram-se também as declarações da menor, que confirmou tais factos e o depoimento das testemunhas OO e QQ, as quais referiram que existia relação de grande amizade e confiança entre as menores (BB e MM) e o arguido e bem assim entre este último e a mãe das menores. Aliás, a testemunha QQ referiu que ao início, até pensava que o arguido e a CC eram um casal, pela proximidade que evidenciavam, embora depois tenha percebido que não.
O arguido fez questão de negar a existência de uma relação de grande proximidade e confiança com as menores e com a mãe destas, referindo que havia alguma proximidade mas era “mais uma ideia de solidariedade”, mas da generalidade da prova produzida, ficou bem evidenciado a relação de grande proximidade, amizade e confiança que existia. Só assim se justificava, aliás, as menores terem ido passar fins de semana a casa dos pais do arguido, chamaram avó à mãe daquele e o arguido dar às menores beijos na testa e abraços (segundo o que o mesmo referiu). Ademais também a testemunha RR referiu ao Tribunal que era notável “a existência de uma grande ligação da CC e das meninas ao AA” assim como a testemunha SS, testemunha da contestação, que frequentava a livraria, tendo sido lá que conheceu a menor e a mãe, a qual referiu que a menor BB ia para a livraria muitas vezes sozinha, depois das aulas, tendo até recordado uma vez que em que ficou lá sozinha com a BB e a mãe.
Para prova do facto descrito em 10 valorou o Tribunal as declarações prestadas pela menor em sede de declarações para memória futura, a qual referiu que no 5º e 6º ano, com 11 e 12 anos ia com muita frequência à livraria, depois das aulas, embora não fosse todos os dias, não conseguindo, contudo, precisar a frequência com que iria. Tal facto foi igualmente confirmado pela mãe da menor, CC, tendo a mesma referido que a menor ia lá com muita frequência no 5º e 6º ano, havendo até semanas que iria todos os dias e havia outras que iria três dias por semana.
Aliás, o próprio arguido, em sede de primeiro interrogatório judicial, assumiu que no período de 2016 a 2017 a menor ia à livraria cerca de duas a três vezes por semana “nem que fosse para saudar”.
Também as testemunhas DD (a qual trabalhou na livraria no período de Outubro de 2016 a Novembro de 2017) e a já referida testemunha RR confirmaram ao Tribunal que a menor se dirigia à livraria com grande frequência.
Para considerar provados os factos descritos em 11 a 15 o Tribunal considerou as declarações prestadas pela menor BB, em 29/07/2021, em sede de declarações para memória futura e transcritas nos autos a fls. 135 e ss. tendo, igualmente, o Tribunal procedido à sua audição. Ora, procedendo à leitura e sobretudo à audição cuidada daquelas declarações, embora estando a menor inibida na resposta às questões que lhe são colocadas, temos que aquela prestou declarações de forma segura, perfeitamente credível e pormenorizada, relatando diversos factos e negando a existência de outros. Ainda que, por vezes, as perguntas lhe pudessem ser realizadas de forma algo directa (o que, diga-se, é natural neste tipo de crime e atenta a idade, inibição, vergonha e fragilidade da vítima), não teve a menor problemas em assumir alguns factos e negar veemente outros que, mesmo assim, vêm relatados na acusação.
De facto, a menor relatou a existência dos referidos beijos na boca nos termos considerados provados assim como os toques/apalpões na parte de cima das suas coxas, nas mamas, virilha e, por vezes, no rabo.
Salientou que os beijos ocorriam com muita frequência (não era sempre que ia à livraria, mas eram a maioria das vezes ou quase sempre), pelo que, à falta de maior precisão da menor, considerou o Tribunal provado que das três vezes semanais que a menor ia à livraria, pelo menos, uma vez por semana, os beijos ocorreram. Relativamente aos apalpões, a menor referiu que eram “só ás vezes”, pelo que à falta de melhor precisão da ofendida, o Tribunal considerou provado que os mesmos ocorreram, com toda a certeza, pelo menos por duas vezes.
O facto descrito em 16 foi confirmado pela menor em declarações para memória futura, sendo que também a mãe da menor, CC, assumiu ter-se afastado do arguido e da livraria a partir de 2018 quando mudou de casa e começou a trabalhar. O mesmo foi também referido pelo arguido em declarações.
O facto descrito em 17 resultou igualmente as declarações da menor e da sua progenitora. O arguido assumiu que, pelo menos, por duas vezes, a menor foi a ... passar fim de semana embora tenha negado o fim de semana em ....
Para prova dos factos descritos em 18 a 21, valorou o Tribunal o relatado pela ofendida em sede de declarações para memória futura, tendo a menor relatado em pormenor tais factos e tendo inclusive localizado temporalmente os mesmos, quando tinha 11 ou 12 anos, nas férias de Verão ou no Carnaval. Também a progenitora da menor, CC, confirmou que a menor foi passar apenas um fim de semana a casa do arguido em ..., por aquela querer ir a uma actividade, mas a mãe não a poder levar, razão pela qual aquela ficou a dormir em casa do arguido. Relatou a mãe da ofendida que aquela lhe disse que o arguido fez “conchinha” com ela e lhe tocou nas mamas.
Ora o arguido assumiu ter “feito conchinha” com a menor, embora tenha referido que tal ocorreu em outra altura, na Páscoa de 2017, em .... Contudo a menor foi peremptória em afirmar que tal ocorreu em ... o que também foi referido pela progenitora, como lhe tendo sido transmitido pela menor.
Como a menor não precisou ao Tribunal quantas vezes e quando tal terá ocorrido em ... e considerando que a mãe da menor apenas recordou que aquela ficou a dormir em casa do arguido uma vez, o Tribunal considerou provado que estes factos ocorreram apenas por uma única vez (facto descrito em 21).
A menor relatou igualmente os factos descritos em 22 a 25 em sede de declarações para memória futura. Referiu ter ido passar alguns fins de semana a ..., sobretudo na época das vindimas e ali ter dormido sozinha com o arguido mas não conseguiu precisar quantas vezes nem quando tal ocorreu. Por isso, se considerou que apenas foi lá passar, pelo menos dois fins de semana, uma vez que a progenitora efectivamente referiu recordar-se que a menor foi sozinha com o arguido pelo menos por duas ou três vezes, tendo o arguido assumido tal ter ocorrido uma vez na Páscoa de 2017. Cremos que, pelo menos duas vezes terão sido, com toda a certeza, porquanto a menor descreve o comportamento como tendo ocorrido várias vezes, ao passo que se fosse apenas por uma vez, tê-lo-ia dito e recordado dessa forma. Por isso se considerou provado o facto descrito em 26.
Relativamente aos factos descritos em 27 a 29 foram também os mesmos relatados pela ofendida em sede de declarações para memória futura, como tendo sido a última vez que o arguido a abordou desta forma e como tendo ocorrido no Verão de 2020 (em Julho ou Agosto). Também a progenitora da menor confirmou ter pedido ao arguido para dar boleia àquela até à ... e que a menor quando chegou vinha muito triste e introvertida, sendo que a testemunha QQ lhe terá dito que a menor passou o fim de semana no quarto agarrada ao telemóvel. Também as testemunhas QQ e OO que estiveram com a menor em casa daqueles nessa altura, relataram que a menina estava mais introvertida e no telemóvel embora a testemunha QQ tenha referido que atribuiu esse facto á idade da menor (adolescência). Foi igualmente referido pela testemunha QQ que, posteriormente, encontrou na roupa da filha (a qual aquela emprestou à menor naquela altura) um bilhete escrito pela ofendida onde a mesma referia “Acho que não estou a confiar mais em ninguém” mas referiu que não abordou a menor, por ter desvalorizado o assunto.
Efectivamente, o arguido negou a ocorrência destes factos, tendo, aliás, referido que nunca chegou a ficar sozinho com a menor na livraria, mas tal não ficou minimamente demonstrado, antes pelo contrário, sendo que a própria testemunha da acusação, RR que frequentava a livraria com bastante frequência, referiu que a menor BB ia para a livraria muitas vezes sozinha, depois das aulas, tendo até recordado uma vez que em que ficou lá sozinha com a BB e a mãe.
Ademais, analisando as mensagens trocadas entre o arguido e a menor no messenger retiradas do telemóvel do arguido e juntas aos autos a fls. 374 e ss., facilmente se constata que a relação do arguido com a ofendida ia além daquela que foi descrita pelo arguido, sendo que a dada altura é o próprio arguido que chama a atenção da menor para esta ler uma publicação na sua cronologia “da TT acerca de uma mulher que fala sobre homens e escreve algo que é intimo e amoroso”, sendo que quando a menor vai ler considera a publicação “nojenta” tendo o arguido comentado “porque ainda não sabes (não experimentaste) nada sobre o assunto… (cfr. fls. 380). Ora, em julgamento, tendo o arguido sido questionado sobre o teor da referida publicação que pediu à menor para ler e as razões de o ter feito, aquele não deu qualquer explicação ao Tribunal.
A progenitora relatou ao Tribunal de forma muito genérica aquilo que a menor lhe contou sobre estes episódios, mas na verdade, a menor nunca lhe relatou os factos em pormenor, talvez por vergonha, por ser muito reservada e se sentir culpada, para não preocupar ou sobrecarregar a progenitora (que também foi vítima de violência doméstica e sexual no passado), sendo que na generalidade, aquilo que lhe foi relatado, parcialmente pela menor, não é contrário às declarações da ofendida.
As declarações para memória futura mereceram-nos toda a credibilidade. Não cremos, de forma alguma, que as declarações da menor tenham sido manipuladas ou incutidas na BB pela progenitora, como quis o arguido fazer parecer ao Tribunal. É verdade que a progenitora já passou por experiências muito traumáticas na sua vida, releva elevado stress vivencial (foi vítima de violência doméstica e sexual) com uma situação financeira complicada e tem uma relação algo conflituosa com as menores, assim como dificuldades em lidar com o sofrimento da jovem BB e bem assim ao nível da educação das duas menores.
Tal resultou claramente do relatório psicológico de fls. 214 e ss. e do depoimento de algumas testemunhas, nomeadamente GG e UU as quais receberam por curto período de tempo as menores e progenitora nas suas casas e tiveram problemas com aquelas. Todavia, tal não é, só por si, suficiente para retirar credibilidade ao relatado pela menor.
A progenitora também referiu ao Tribunal que a menor teria contado os abusos pela primeira vez ao pedopsiquiatra no Hospital ..., o que na verdade nunca chegou a suceder, conforme nos confirmou o médico pedopsiquiatra, Dr. VV, que acompanhou a menor e foi ouvido na última sessão da audiência de julgamento. Aquele médico referiu que começou por acompanhar a menor apenas em duas consultas e que a mesma não lhe chegou a relatar os abusos sexuais tendo, antes, abordado a situação de violência doméstica da mãe, do bullying de que havia sido vítima na escola mas não os abusos, sendo que tal poderia até vir a suceder nas próximas consultas uma vez que o tratamento estava a ter boa adesão pela jovem. Contudo, referiu o clínico que a mãe mostrou muita resistência ao tratamento e bem assim não administrou à jovem a medicação prescrita, tendo então a mesma abandonado o tratamento por iniciativa da progenitora, sendo que houve “muitas dificuldades na gestão da situação com a progenitora”.
Cremos, contudo, que este simples facto relatado pela progenitora e a forma, talvez menos adequada, como a mesma está a lidar com o sofrimento da jovem também não é só por si suficiente para se concluir que o depoimento da BB lhe foi incutido ou provocado pela mãe. Aliás, não existe nenhum motivo nem o arguido o referiu para a criação de toda esta história pela jovem e pela progenitora contra aquele.
O mesmo se diga do facto de a menor ter também, ela mesmo, já passado anteriormente por experiências traumáticas (ter assistido aos episódios de violência doméstica de que a mãe foi vítima, o facto de ter sido vítima de bullying na escola, de ter perdido o cão que era o seu melhor amigo) também não lhe retira credibilidade. Aliás, é muito frequente que as vítimas de crimes sexuais sejam pessoas especialmente vulneráveis, inseridas em famílias desestruturadas, com poucos factores de protecção e recursos pessoais.
Analisando o relatório psicológico forense de fls. 214 e ss. (elaborado após a realização de duas entrevistas efectuadas à menor e à progenitora, em dois momentos temporalmente distintos) verifica-se que o relatado pela menor ao perito médico é congruente com o que a mesma relatou em declarações para memória futura, embora tal relato tenha sido ali efectuado apenas na generalidade. Dali resulta que a menor BB, apesar de possuir poucos recursos (pessoais, emocionais, afectivos, familiares, sociocomunitários) para lidar com o sofrimento experienciado, apresenta capacidades narrativas. De acordo com o perito médico, o “o seu relato mostra-se congruente, sofrido, espontâneo, e com linguagem ajustada ao seu nível desenvolvimental. Não foram detectados indícios de que o mesmo seja produto de uma mentira, confabulação e ou intervenção de terceiros. Também não são detectados ganhos secundários. Pelo contrário, é revelado grande sofrimento com a perda de uma figura que era representada de uma forma paternal, assim como a perda do contacto com os pais do denunciado que era sentido, por parte da BB, como prazeroso e estruturante”.
Refere-se também no relatório que “sublinhamos que a menor é muito reservada, apresenta muitos sentimentos de culpa e teme ser julgada/incompreendida por terceiros pelo que se admite que possa não estar a providenciar todos os pormenores das suas vivências negativas (e que são várias ao longo da sua história familiar e desenvolvimental)”.
Também no relatório de pedopsiquiatria de fls. 224 e ss. se vê que o relato da menor ao perito médico é, na globalidade, coerente com o relatado em declarações para memória futura. Também ali se conclui que “não foi evidente coacção ou instrumentalização de terceiros. A examinada não apresenta traços de futura perturbação de personalidade.(…) Perante as questões com valor simbólico mais intenso, em termos emocionais, a examinanda reagiu com humor congruente (adequado) ao conteúdo do discurso, foi segura e coerente ao longo da narrativa. Como consequências emocionais dos eventos, a examinanda descreveu inicialmente perplexidade, desconforto e intrusividade até ter progressiva consciência do significado sexual de tais actos, altura em que iniciou crises ansiosas que requereram tratamento clínico”.
Os factos descritos em 30 a 35 resultaram das declarações da jovem em sede de declarações para memória futura, do depoimento da progenitora e da vasta prova documental junta aos autos. A menor confirmou que iniciou as situações de automutilação “como forma de se sentir bem e que tal se deveu a muitas coisas sendo uma delas a situação do AA que a levava a sentir um bocado de nojo do seu corpo”. Não obstante a jovem ter referido que iniciou tais comportamentos em Fevereiro de 2020, resulta evidente que a mesma se equivocou no ano, porquanto resulta claramente que tal teve início apenas em Fevereiro de 2021, quando já estava a ter acompanhamento em pedopsiquiatria. A progenitora referiu igualmente que a jovem iniciou tais atitudes em Fevereiro de 2021 quando já estava a ser medicada. Resulta do documento clínico de fls. 86 a existência de registos de duas vindas ao serviço de urgência: 28/02/2021 (por agitação psicomotora e comportamento autolesivo) e 20/04/2021 (por sintomatologia ansiosa).
Os factos em causa resultaram também provados da análise dos seguintes documentos juntos aos autos: informação do Gabinete de Psicologia da Escola da menor de fls. 31 e ss.; informação escolar de fls. 41 e ss; relatório do INML relativo às lesões descritas em 35 junto aos autos a fls. 51 e ss.; informação do Centro Hospitalar ... de fls. 85 e 86 elaborada pela psicóloga e pelo pedopsiquiatra que ali acompanharam a jovem BB; historial clínico de fls. 114 e ss.; informação do médico de família de fls. 452 e ss.; participação da PSP relativa à tentativa de suicido da jovem de fls. 638 e ss.; elementos clínicos do Centro Hospitalar ... de fls. 753 e ss.; declaração médica relativa a novo episódio de automutilação de fls. 771; relatórios psicológico forense de fls. 214 e ss e de pedopsiquiatria de fls. 224 e ss.
Também para prova destes factos, assim como dos descritos em 51 a 58 se considerou, além da prova documental, pericial e clínica já descrita, a prova testemunhal, nomeadamente o depoimento da progenitora que relatou ao Tribunal a situação actual da jovem nomeadamente a sua enorme fragilidade emocional, o apoio psiquiátrico e psicológico que teve e que vem tendo, as tentativas de suicídio, os episódios de automutilação…
Também se considerou os depoimentos prestados pelas testemunhas WW, XX e YY, todas amigas da progenitora e da menor que relataram as diferenças notadas na jovem ao nível do seu aspecto físico, assim como em termos comportamentais e emocionais.
Para prova dos factos descritos em 47 a 50 valorou o Tribunal o teor dos documentos de fls. 711 e 731 a 739.
Quanto ao nexo de causalidade entre o estado actual da jovem, em termos psicológicos e psiquiátricos, os episódios de automutilação, as tentativas de suicídio, o recurso constante aos serviços médicos e internamento, não temos dúvidas que o mesmo existe e se provou. É verdade que os abusos não terão sido o único e exclusivo factor que contribuiu para o despoletar das crises emocionais da jovem, como aliás resulta evidente da prova testemunhal e da vasta prova documental e pericial junta aos autos. A jovem BB passou, já, por muitas provações e sofrimentos, nomeadamente violência doméstica da progenitora a que terá assistido, bullying em ambiente escolar, a perda de um animal de estimação pelo qual nutria grande apreço e amizade… Todavia, como se refere no relatório psicológico forense a fls. 220, não sendo possível estabelecer um nexo de causalidade exclusivo entre o desequilíbrio psicoafectivo e emocional da jovem e os alegados abusos, também dali resulta que “naturalmente, que a comprovarem-se os alegados abusos, os mesmos contribuem, decisivamente, para um reforço/agravamento de toda a situação clínica da examinanda”.
Como bem referiu o Dr. VV, medico pedopsiquiatra que acompanhou a menor, “o efeito é cumulativo, quanto mais adversidades, mais factores de risco de psicopatia e sintomas”.
Ademais, atenta a produzida e constante dos autos, cremos que é perfeitamente legítimo concluir que foram os abusos perpetrados pelo arguido e a sua revelação com toadas as consequências que daí advêm, que culminaram no desequilíbrio emocional da jovem, ou como se diz na gíria, “foram a gota de água que fez trasbordar o copo”. É que, analisando o historial clinico da jovem de fls. 114 e ss. relativo a 2020, 2019, 2018, 2016 não vemos necessidade de intervenção de qualquer psicólogo ou pedopsiquiatra, tratando-se de registos clínicos normais de uma jovem da idade da BB. Também a escola só nos dá conta da necessidade de apoio psicológico da jovem e existência de distúrbios a partir de Novembro de 2020 (cfr. fls. 31 e ss. e 36 e ss.). As testemunhas inquiridas que privavam com a menor retractaram a jovem BB, antes dos abusos, como uma jovem tranquila, afectuosa, calma, inteligente, meiga. O próprio arguido descreveu a jovem como sendo interessada, com bom desempenho escolar, afectuosa. A testemunha OO identificou a jovem como sendo muito madura e tranquila em contraposição à irmã e por isso a considerava uma óptima companhia para a sua filha, portadora de síndrome de asperger.
De modo que, não sendo um factor exclusivo, os abusos perpetrados pelo arguido terão contribuído, decisivamente, para o desequilíbrio emocional e psicológico que a jovem actualmente atravessa.
Paralelamente, atingiu-se a convicção de que o arguido conhecia as proibições e actuou de forma dolosa, nos termos melhor descritos em 36 a 46.
O elemento subjectivo descrito é por si insusceptível de prova directa, dada a sua natureza, mas sempre o mesmo se extrairia dos factos objectivos provados, que, tendo em conta as regras da experiência comum e com base em presunção natural, permitem de forma segura inferir tal matéria.
O arguido referiu em julgamento que tinha conhecimento da idade da menor, como aliás não poderia deixar de ser, atenta a relação de proximidade que mantinha com esta e com a sua progenitora.
Para prova dos factos relativos às condições sociais e económicas do arguido e à sua situação familiar, descritos em 59 a 75 teve-se em atenção o depoimento prestado pelas testemunhas indicadas na contestação, amigos, conhecidos e familiares do arguido que o descreveram dessa forma assim o teor do relatório da DGRSP junto aos autos com a refª ...35.
Os factos descritos em 76 a 78 resultaram da valoração do relatório de psicologia forense elaborado ao arguido e junto aos autos com a refª ...67.
No que se refere à ausência de antecedentes criminais do arguido referida em 79, o Tribunal considerou o certificado de registo criminal, constante dos autos com a refª ...57.
No que se refere aos factos não provados, efectivamente, cremos que não foi feita em julgamento, prova cabal e suficiente dos mesmos.
Relativamente aos factos descritos em a) e b) não se fez prova suficiente dos referidos momentos temporais, nomeadamente que o espaço infantil já existisse em 2014, tendo o arguido referido que aquele só foi criado posteriormente, em 2016 ou 2017 ao passo que também não se provou concretamente que a mãe da BB ficou a tomar conta da livraria sozinha por algumas vezes, logo a partir de Agosto de 2014.
Também não se fez prova suficiente dos factos descritos em c), uma vez que não terá sido o arguido a procurar a ofendida e a mãe mas antes estas que começaram a frequentar a livraria e a aproximarem-se do arguido.
Relativamente aos factos descritos em d) a q) não se provaram, nomeadamente quanto à frequência dos contactos e visitas da menor assim como os demais actos ali descritos e sua concreta localização espacial e temporal porquanto não foram assim confirmados pela menor em sede de declarações para memória futura.
Relativamente aos facos descritos em r) os mesmos não se provaram por não terem sido confirmados pela menor, sendo certo que o arguido negou a existência de contactos com a menor e a progenitora nesse ano de 2019, o que também foi confirmado pela mãe da menor que referiu ter-se afastado, entretanto, do arguido e da livraria.
Não se fez qualquer prova dos factos descritos em s), t) e u) assim como do facto descrito em v) que aliás é uma conclusão.
Relativamente ao facto descrito em w) cremos que também não se fez prova suficiente do mesmo mas tão somente do facto descrito em 57”.
***
Da alegada nulidade da prova por declarações para memória futura.
A questão que se coloca é a de saber se são nulas as declarações da menor  BB prestadas em 29 de julho de 2021, para memória futura por terem sido prestadas em data anterior à constituição do recorrente na qualidade de arguido.
Considera o recorrente que para que essas declarações para memória futura possam ser valoradas, tinha que já estar constituído como tal, para que pudesse estar presente (não ele próprio, mas por intermédio de defensor seu) na diligência de prestação dessas declarações e para que possa confrontar, se assim o entender, a testemunha que as presta, que a possa inquirir, que a possa contrainterrogar
A menor BB foi ouvida pelo JIC em declarações para memória futura no dia 29 de julho de 2021 e o recorrente foi constituído arguido em 26 de outubro de 2021.

Dispõe o artigo 271º com a epígrafe “Declarações para memória futura”:

1 — Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 — No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
3 — Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
4 — Nos casos previstos no n.º 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do acto processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito.
5 — A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
6 — É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º
7 — O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a acareações.
8 — A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.

O recurso às declarações para memória futura previsto no artigo 271º do CPP prende-se, fundamentalmente em duas ordens de razões: por um lado, a previsível impossibilidade de comparência à audiência de discussão e julgamento originada por doença grave ou deslocação para o estrangeiro e, por outro lado, a especial vulnerabilidade das vítimas em determinados tipos de crime, em particular, o crime de tráfico de pessoas e os crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual.
Segundo António Miguel Veiga [3], “o apontado intuito assumidamente protector em relação à presumível vítima denota, além do mais, a consciência da fragilidade dos meios probatórios no domínio dos crimes sexuais, sobretudo quando entre o momento da prática dos factos a investigar e o momento da produção probatória em audiência de julgamento medeia um período de tempo relevante (…) a cada momento que passa, mais difícil e onerosa, sob diversos pontos de vista, se revela a possibilidade de obtenção dos meios de prova consabidamente dependentes da voluntas e da “oscilação psicológica” humana”.
O crime de abuso sexual de crianças, previsto no artigo 171º está enquadrado no Código Penal, no Livro II, Capítulo V, Secção II com a epígrafe “Crimes contra a autodeterminação sexual”.
Ensina o Senhor Desembargador Cruz Bucho no seu valioso estudo “Declarações para memória futura (elementos de estudo)”, [4], referindo-se a este tipo de crimes que pode, pois, concluir-se que neste domínio o recurso a declarações para memória futura procura: i) evitar os danos psicológicos implicados na evocação sucessiva pelo declarante da sua dolorosa experiência e a sua exposição em julgamento público e, ii) fixar os elementos probatórios relevantes a partir do primeiro relato presumivelmente mais próximo e espontâneo, evitando o perigo de contaminação da prova.
Adianta ainda que “Tratando-se de menores vítimas de crimes do catálogo (n.º 2 do artigo 271.º), não há lugar à justificação sumária da necessidade de
antecipação da prova. Atendendo à natureza dos crimes em questão, à posição do declarante (vítima) e às suas características pessoais (idade inferior a 18 anos) a lei presume juris et de jure a necessidade da antecipação da prova, tornando-a obrigatória”, obrigatoriedade essa que foi introduzida a revisão de 2007, operada pela Lei n.º48/2007, de 29 de Agosto”.  
Adianta ainda o senhor Desembargador Cruz Bucho “Na sua versão originária o n.º 2 do artigo 271.º reconhecia ao arguido, a par do seu defensor, o direito de solicitar ao juiz a formulação de perguntas adicionais. A revisão de 2007 apenas
reconhece o direito de formular perguntas adicionais ao defensor do arguido”.
Apreciando a questão de saber se a prestação de declarações para memória futura pressupõe ou não a prévia constituição de arguido e, consequentemente, se tais declarações podem ou não ser valoradas contra um arguido só constituído enquanto tal após a realização da prova antecipada, elucida lapidarmente que “A jurisprudência claramente maioritária inclina-se também no sentido de que é possível a recolha de declarações para memória futura mesmo que o inquérito não corra contra pessoa determinada.
Embora desiguais e nem sempre claramente enunciados, são vários os argumentos invocáveis a favor desta última posição, que claramente perfilhamos, no sentido de que a prestação de declarações para memória futura não supõe a prévia constituição de arguido.
Antes do mais, a letra da lei.
Como vimos, os pressupostos constantes do artigo 271.º para a prestação de declarações para memória futura são, apenas três:
doença grave ou deslocação para o estrangeiro que previsivelmente impeça a testemunha (assistente, parte civil, perito ou consultor técnico) de ser ouvida em julgamento e crimes do catálogo. Nestes casos pode ocorrer a produção antecipada da prova, com a garantia da sua jurisdicionalização através da obrigatória intervenção do juiz de instrução.
De entre os pressupostos para a prestação de declarações para memória futura mencionados no artigo 271.º não consta, por conseguinte, a exigência de que já tenha havido lugar à constituição de arguido ou sequer de que o inquérito corra contra pessoa determinada.
Em segundo lugar e quanto ao elemento sistemático, importa referir que do n.º 3 do art.º 271.º do Cód. Proc. Penal não decorre que a prestação de declarações para memória futura depende da existência de arguidos constituídos no processo para que possam estar presentes no acto e exercer, logo aí, o contraditório, mas sim que, havendo arguidos constituídos, os respectivos defensores (tal como o Ministério Público) têm de estar presentes no acto.
Por outras palavras, o facto de o art. 271.º do C. P. Penal, nos seus n.ºs 2 e 3, impor que aos arguidos sejam comunicados o dia, a hora e o local do depoimento, para que possam estar presentes e de poderem formular perguntas adicionais, não significa que as declarações para memória futura não possam ser tomadas mesmo que não haja arguidos constituídos”.
(…)
“O que é essencial para a validade dessa prova é que logo nesse acto se assegurem todas as garantias de defesa, o que vale por dizer que a presença de advogado é sempre obrigatória
O respeito pelo princípio do contraditório não exige a constituição de arguido antes da prestação das referidas declarações para memória futura, nem impede que as mesmas venham a ser valoradas, exige, sim, a nomeação de defensor, mesmo que não esteja identificado qualquer suspeito”.
Também assim o defende Pedro Nunes [5] ao escrever “O respeito pelo princípio do contraditório não exige a constituição de arguido antes da prestação das referidas declarações para memória futura, nem impede que as mesmas venham a ser valoradas, exige, sim, a obrigatoriedade de defensor, mesmo que não esteja identificado qualquer suspeito. Além de mais, e encarando a questão do contraditório e das garantias de defesa numa perspetiva distinta, importa não olvidar que a Constituição remete para o legislador a responsabilidade de determinar quais os atos, além do julgamento, que estão subordinados ao princípio do contraditório, assim como os casos em que, assegurados os direitos de defesa, dispensa a presença do arguido”.
No acórdão da Relação de Coimbra de 29/09/2010[6] refere-se com todo o acerto “A circunstância de ainda não haver constituição de arguido não invalida o acerto e a plena aceitação das declarações para memória futura, pois que a referente diligência foi presidida por Juiz e foi assegurado o contraditório possível – na ocasião –, com a presença do defensor nomeado.
É um caso nítido de contraposição de dois valores conflituantes: dum lado um pleno contraditório; doutro a necessidade de recolha e produção antecipada de prova.
Este – em função da inexistência de arguido constituído –, deve, porém, claramente prevalecer, com o mínimo de constrangimento do direito ao contraditório, com um patamar aceitável da respectiva compressão.
E isso manifestamente se verifica quando, não havendo arguido formalmente constituído, a diligência é presidida por juiz e se encontra presente um defensor nomeado ao(s) suspeito(s), potencial(ais)/virtual(ais) arguido(s).
Não há, pois, qualquer violação do preceituado no art.º 32.º, n.º 5, 2.ª parte, da C.R.P.”.
Mais recentemente e no mesmo sentido o ac. da Relação de Lisboa de 23 de março de 2023, [7]onde se afirma “O denunciado ainda não foi constituído arguido no processo, mesmo que existam elementos que levem a considerá-lo suspeito, pelo que não tem de ser notificado para a diligência de declarações para memória futura.
Tem é que lhe ser nomeado defensor oficioso, que tem de estar presente na inquirição, presença esta obrigatória, nos termos do disposto nos arts. 271º, n.º 3 e 64, n.º 1, al. f), ambos do CPP.
O facto de as declarações para memória futura serem prestadas pela vítima antes de o denunciado ter sido constituído arguido, não invalida o seu valor probatório, nem em nada interfere com a regularidade da sua prestação”.  
Salienta por sua vez o ac. da Relação de Lisboa de 7 de fevereiro de 2023 [8] como é sabido, o que se pretende com a tomada de declarações para memória futura é proteger a vítima da indesejada revitimização, que ocorrerá, necessariamente, caso a mesma tenha de prestar declarações perante diversas entidades.
Contudo, se se proceder a tal diligência, que, no caso, foi deferida, em que se pretende tomar declarações para memória futura sobre factos relevantes para a incriminação, antes da constituição como arguido e sem que se propicie o cabal exercício do contraditório ao denunciado/suspeito, com a nomeação de defensor e a sua notificação para comparência no acto, de forma a exercer os direitos que a lei reconhece à pessoa que pode vir a assumir a qualidade de arguido, tal implica, que, caso seja deduzida acusação, necessariamente, a testemunha/vítima tenha de ir a julgamento prestar novamente declarações, não se prevenindo, assim, a vitimização da mesma, que se pretende evitar”.
Temos assim que a defesa do contraditório numa situação em que ainda não existe a constituição de arguido se basta com a nomeação de defensor e a sua presença nessa diligência, sendo que a ausência do defensor no acto de tomada de declarações para memória futura constitui nulidade insanável, nos termos do art. 119º al. c) do CPP”.
Relativamente ao papel do defensor, concorda-se com o defendido pelo senhor Juiz Conselheiro António Gama [9] quando salienta que cabe ao defensor “Desde logo da legalidade, fiscalizando e garantindo o cumprimento da lei, de que a lei é integralmente e escrupulosamente cumprida, de que se verificam os pressupostos da inquirição, que se respeitam procedimentos legalmente estabelecidos, que o depoimento decorre de acordo com as regras legais, sem constrangimentos, podendo e devendo [o defensor] verificar se o depoimento é coerente, formulando as perguntas adicionais que entender em seu critério necessárias. Como que se dá expressão «às garantias de defesa», art.º 32, n.º 1, da Constituição. Depois, defensor do [futuro e eventual] arguido e sempre do arguido”.
No caso em apreço, foi nomeado defensora ao arguido que esteve presente aquando da tomada de declarações para memória futura da menor BB.[10]
Verifica-se deste modo que não estando o recorrente ainda constituído como arguido, o direito de defesa e contraditório, mostrava-se devidamente assegurado, com a participação da advogada nomeada como sua defensora oficiosa.
Não era, pelos motivos expostos, que para tal diligência tivesse lugar que aquele já tivesse a qualidade de arguido, não havendo assim qualquer violação ao disposto no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, nem de qualquer outro normativo legal.
Improcede assim este segmento recursório do arguido.
*
Do alegado erro de julgamento da matéria de facto.
Considera o arguido que os factos provados numerados a 10, 11, 12, 13, 14, 15, 19, 20, 24, 25, 26, 28, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, devem ser dados como não provados.
No que respeita à impugnação da matéria de facto o recorrente face ao disposto no nº 3 do art. 412º do CPP, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e c) as provas que devem ser renovadas.
Terá de indicar, com toda a clareza e precisão, o que é que, na matéria de facto, concretamente, quer ver modificado, apresentando a sua versão probatória e factual alternativa à decisão de facto exarada na sentença que impugna, e dizendo quais os motivos exatos para tal modificação, em relação a cada facto alternativo que propõe, o que exige que o recorrente apresente o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida e o correlacione comparativamente com o facto individualizado que considera erradamente julgado.
Se dessa comparação resultar que o tribunal não podia ter concluído, como concluiu na consideração daqueles factos como provados ou como não provados, haverá erro de julgamento e, consequentemente, modificação da matéria de facto, em conformidade com o desacerto detetado. 
Porém, se a convicção ainda puder ser objetivável de acordo com essas mesmas regras e a versão que o recorrente apresentar for meramente alternativa e igualmente possível, então, deverá manter-se a opção do julgador, porquanto tem o respaldo dos princípios da oralidade e da imediação da prova, da qual já não beneficia o tribunal de recurso, ainda que a prova se encontre gravada.
Conforme se salienta no acórdão desta Relação de Guimarães de 20 de março de 2018, [11] “a imediação, que se traduz no contacto entre o juiz e os diversos meios de prova, confere ao julgador em primeira instância certos meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reações humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de fatores que só são apreensíveis mediante o contacto direto com os depoentes na audiência: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc. As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz da primeira instância, com base na imediação e na oralidade, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum”.
Como bem se refere no acórdão da Relação de Coimbra de 28 de janeiro de 2015 “O julgamento da matéria de facto é feito pelo tribunal de 1ª instância. É na audiência de julgamento que o facto é revelado, de forma e em circunstâncias que não mais poderão ser repetidas, e é este tribunal o único que beneficia plenamente da imediação e oralidade da prova” adiantando ainda que “o recurso da matéria de facto é sempre um remédio para sarar o que é tido por excecional naquele julgamento, o cometimento de erro na definição do facto, não podendo nem devendo ser perspetivado como um novo julgamento, tudo se passando como se o realizado na 1.ª instância pura e simplesmente não tivesse existido”.
O recorrente refere por variadas vezes que o tribunal “a quo” se fundou nas declarações para memória futura prestadas pela menor BB.
Salienta e com total acerto o acórdão desta Relação de Guimarães, de 2 de maio de 2016: “Será o depoimento de um ofendido, de um assistente, suficiente para se dar como provados factos constantes de uma acusação, mesmo que nenhuma outra prova exista, mesmo que o arguido se tenha remetido ao silêncio como lhe permitido por lei? A resposta tem necessariamente de ser positiva.
O tribunal aprecia a prova de acordo com a sua livre convicção, como se encontra estatuído no artigo 127º do Código de Processo Penal e para aceder à certeza, para além da dúvida razoável, de que os factos (ou alguns dos factos) constantes da acusação e que foi o arguido o seu autor, não exige a lei um número mínimo, digamos assim, de depoimentos concordantes. Um depoimento de uma testemunha, ou da ofendida (ou da assistente) pode bastar a esse desiderato como 10 depoimentos podem não ser suficientes para arredar do julgador a dúvida sobre se os factos em julgamento ocorreram pela forma como constam da acusação e/ou se foi o arguido a praticá-los”.
Nada impede assim o tribunal de julgamento, no exercício da sua livre apreciação da prova, valorar decisivamente as declarações prestadas por uma única pessoa, no caso a ofendida, sendo certo que, como é da experiência comum, num tipo de crime como o dos autos, o normal é não existirem testemunhas presenciais.  
Ainda relativamente à sindicância do julgamento da matéria de facto pelo tribunal superior, ensina Damião da Cunha [12] “Uma decisão errada, ilegal ou arbitrária não pode ser sustentada numa simples alegação da discordância entre a convicção do recorrente e a convicção que o julgador livremente formou com base na prova produzida em audiência de julgamento, antes passa necessariamente pela demonstração inequívoca de que o tribunal que a proferiu contrariou as regras da experiência e desrespeitou princípios basilares do direito probatório (v. g. prova legalmente vinculada, provas proibidas etc.). Quando o recorrente pretende apenas por em causa a livre apreciação da prova, o recurso estará irremediavelmente destinado à improcedência. É que, como se referiu, o tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que essa opção seja explicitada e convincente, como é o caso. Cumprida essa exigência, a livre convicção do juiz torna-se insindicável, até porque a documentação dos atos da audiência não se destina a substituir, nem substitui, a oralidade e a imediação da prova. Defender-se uma outra solução, o tribunal de recurso acabaria “por proceder a um juízo, mas com inversão das regras da audiência de julgamento ou, então, numa espécie de juízos por parâmetros”.
Também neste sentido Germano Marques da Silva [13], ao salientar que "o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância".
Por isso é que o legislador consagrou ser ónus do recorrente indicar as provas concretas que impõe para cada um dos precisos pontos sindicados, uma decisão diversa da que foi tomada pelo tribunal recorrido.
Isto posto, há então que apreciar se existiu o alegado erro de julgamento na aludida matéria de facto provada que imponha a sua alteração.
E a resposta, adianta-se já, não pode deixar de ser negativa.
Ao contrário do que alega o recorrente, o médico pedopsiquiatra ouvido em audiência de julgamento, Sr. Dr. VV não infirmou as declarações que tinham sido prestadas pela menor BB pois que o que referiu é que a BB tinha sido encaminhada para a sua conduta pela Psicóloga, face à baixa de rendimento escolar e dificuldades de integração, que teve poucas consultas presenciais com a menor, que esta veio a ser seguida no Hospital ..., que se apercebeu que a BB podia ter sido vítima de violência doméstica, mas que o assunto referente a questões sexuais nunca foi abordado, admitindo que as experiências traumáticas da BB pudessem também ter surgido de situações de abusos sexuais, caso os mesmos tivesse sucedido. 
Também não se pode de forma alguma concordar que fossem sugestivas as perguntas que foram efetuadas pelo senhor Juiz de Instrução Criminal, quer dos esclarecimentos pedidos pela Senhora Procuradora do Ministério Público, aquando da realização das declarações para memória futura, como aliás resulta da transcrição junta a fls. 136 a 187.
Efetuaram perguntas diretas, naturalmente percetíveis para que a menor as pudesse responder, mas sem que de tais perguntas pudesse resultar que a menor desse ou devesse dar uma resposta positiva ao que lhe era questionado, não sendo assim minimamente conduzidas as suas declarações.
Naturalmente que nessa diligência era necessário esclarecer que tipo de toques eram dados, em que zona do corpo, se era por cima ou por dentro da roupa da menor, o que sucedia quando ela dormia na casa do aqui recorrente e ele se introduzia na sua cama.
Não há assim nada a censurar ao modo como foram prestadas tais declarações para memória futura, sendo aliás sintomático disso, o facto de a defensora oficiosa do arguido não ter efetuado qualquer reparo ou objeção ao modo como tal diligência foi conduzida.
Nada nos leva a considerar que o tribunal recorrido não deveria ter dado credibilidade ao depoimento da BB.
Pelo contrário ela prestou as suas declarações de uma forma clara e sem pretender prejudicar o ora recorrente.
Exemplo disso é ter dito que ele não lhe tirava a roupa, e que quando a beijava na boca não introduzia a sua língua.
Também a infância difícil, com a separação dos seus pais, o ter sido vítima de bulling por parte dos seus colegas na escola, o desgosto com a morte da sua cadela, não retiram qualquer credibilidade às declarações prestadas pela BB.
Ela refere nas declarações prestadas ao JIC que para além de estudar, estando a frequentar o 10º ano, praticava voleibol num clube de ... e que tocava violino no Conservatório de Música de ....
Afirmou ainda que quando era uma criança, achava normal a conduta do AA (ora arguido) mas que quando foi com ele à ..., já com 14 anos, e por gostar de ouvir falar sobre o feminismo e os seus direitos é que “começou a juntar algumas peças” e percebeu que as atitudes que ele tinha consigo “não eram de pai e filha como achava que era. E quando ele me tocou quando eu tinha 14 anos eu já…já me senti mais desconfortável”.
Essas declarações ao contrário do pretendido pelo recorrente não são declarações de quem se encontra num estado de degradação psicológica tal que não sabe o que diz, e por isso não podiam ser credibilizadas.
Como bem se salienta no acórdão recorrido: “Analisando o relatório psicológico forense de fls. 214 e ss. (elaborado após a realização de duas entrevistas efectuadas à menor e à progenitora, em dois momentos temporalmente distintos) verifica-se que o relatado pela menor ao perito médico é congruente com o que a mesma relatou em declarações para memória futura, embora tal relato tenha sido ali efectuado apenas na generalidade. Dali resulta que a menor BB, apesar de possuir poucos recursos (pessoais, emocionais, afectivos, familiares, sociocomunitários) para lidar com o sofrimento experienciado, apresenta capacidades narrativas. De acordo com o perito médico, o “o seu relato mostra-se congruente, sofrido, espontâneo, e com linguagem ajustada ao seu nível desenvolvimental. Não foram detectados indícios de que o mesmo seja produto de uma mentira, confabulação e ou intervenção de terceiros. Também não são detectados ganhos secundários. Pelo contrário, é revelado grande sofrimento com a perda de uma figura que era representada de uma forma paternal, assim como a perda do contacto com os pais do denunciado que era sentido, por parte da BB, como prazeroso e estruturante”.
Refere-se também no relatório que “sublinhamos que a menor é muito reservada, apresenta muitos sentimentos de culpa e teme ser julgada/incompreendida por terceiros pelo que se admite que possa não estar a providenciar todos os pormenores das suas vivências negativas (e que são várias ao longo da sua história familiar e desenvolvimental)”.
Também no relatório de pedopsiquiatria de fls. 224 e ss. se vê que o relato da menor ao perito médico é, na globalidade, coerente com o relatado em declarações para memória futura. Também ali se conclui que “não foi evidente coacção ou instrumentalização de terceiros. A examinada não apresenta traços de futura perturbação de personalidade.(…) Perante as questões com valor simbólico mais intenso, em termos emocionais, a examinanda reagiu com humor congruente (adequado) ao conteúdo do discurso, foi segura e coerente ao longo da narrativa. Como consequências emocionais dos eventos, a examinanda descreveu inicialmente perplexidade, desconforto e intrusividade até ter progressiva consciência do significado sexual de tais actos, altura em que iniciou crises ansiosas que requereram tratamento clínico”.
Por outro lado, é normal que as testemunhas ouvidas em audiência DD, EE, ZZ, JJ e HH, não tivessem presenciado os factos numerados 10 a 15, pois que como esclareceu, a BB e o normal é que tal suceda, esses contactos no interior da livraria davam-se quando não estavam outras pessoas presentes.
Relativamente à periodicidade das condutas abusivas, o tribunal recorrido também considerou e bem, as declarações prestadas pela menor BB, tendo efetuado por defeito o cálculo de tais ocorrências abusivas, em benefício do arguido.
Do mesmo modo, nenhuma prova foi produzida que imponha que os factos dados como provados em 19, 20, 24, 25, 26 e 28, devessem ter sido dados como não provados.
O tribunal recorrido fundamentou a resposta dada a essa matéria fundamentalmente nas declarações prestadas pela menor BB que como acima se referiu mostram-se perfeitamente credíveis e sem intuitos persecutórios.
O depoimento prestado pela mãe da menor, que o que sabe foi o que lhe veio a ser contado pela BB, também não pode ser descartado pelo facto de ela ter referido que a sua filha contou pela primeira vez os abusos ao pedopsiquiatra em ..., pois a referida testemunha não disse que assistiu a tal consulta.
Não havendo assim qualquer alteração a essa matéria de facto, consequentemente que também não há que alterar a restante matéria de facto impugnada e que se prendia com o elemento subjetivo dos crimes, sendo certo que o arguido também não alegou qualquer matéria relativa à exclusão da culpa ou da ilicitude da sua conduta, que devesse ser apreciada.
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III – Decisão.

Face ao exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido e em consequência, confirmam o douto acórdão recorrido.
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Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça - artigos 513.º, n.ºs. 1 e 3, do C.P.P. e 8.º, n.º 9, do R.C.P. e Tabela III anexa.
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Notifique.
Guimarães, 31 de outubro de 2023.
(Decisão elaborada pelo relator com recurso a meios informáticos e integralmente revista pelos subscritores, que assinam digitalmente).

Os Juízes Desembargadores,
Pedro Freitas Pinto (Relator)
Ana Teixeira (1ª Adjunta)
António Teixeira (2º Adjunto)  



[1] Naturalmente que a demandante civil carece de legitimidade para, como pretendia, ver alterada a decisão recorrida relativa à suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, ainda mais em sede de resposta ao recurso. 
[2] Cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995 e, na doutrina, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 3ª Edição Atualizada, Universidade Católica Editora, 2009, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1027/1028.
[3] in “Notas sobre o Âmbito e a natureza dos depoimentos (ou declarações) para memória futura de menores vítimas de crimes sexuais (ou da razão de ser de uma aparente “insensibilidade judicial” em sede de audiência de julgamento”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 19, n.º 1, Coimbra Editora, Janeiro –Março 2009, pp. 108 e 109.
[4] Consultável in https://www.trg.pt/gallery/8.1.%20declaracoes-para-memoria-futura.pdf.
[5] Depoimentos para memória futura:
conteúdo dogmático e aplicação prática, dissertação de Mestrado, UAL, Janeiro de 2014.
[6] procº 380/08.0TACTB
[7] procº 894/22.9SXLSB
[8] procº 726/22.8SXLSB
[9] In “Reforma de Código de Processo Penal”, pág. 402.
[10] Cfr. Auto de declarações para memória futura, referência Citius ...30.
[11] Publicado, como os demais citados in www.dgsi.pt.
[12] «O Caso Julgado Parcial», 2002, pág. 37
[13] in Fortim Justitiae, Maio/99.