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CRIME DE INJÚRIA
ATUAÇÃO OBJETIVA DA POLÍCIA
DIREITO DE CRÍTICA
Sumário
I. Não tem idoneidade objetiva para preencher o crime de injúria a conduta do arguido que, dirigindo-se a dois militares da GNR que haviam sido chamados a local onde tinha sido reportada a ocorrência de um furto, disse: «A Guarda não serve para nada. Só querem a minha identificação em vez de fazerem o seu trabalho. A Guarda é uma merda neste país. Fazei mas é o vosso trabalho». II. Tais expressões não configuram um juízo sobre as concretas pessoas dos agentes a quem são dirigidas, mas antes e acima de tudo uma opinião crítica, embora pouco cortês e até grosseira, sobre a atuação em geral da instituição Guarda Nacional Republicana, que «não serve para nada», «é uma merda». III. Também não há imputação de factos eventualmente desonrosos às concretas pessoas dos dois agentes, apenas sendo expresso um juízo sobre as suas atuações objetivas naquele momento e enquanto elementos da força policial a que pertencem: «Só querem a minha identificação em vez de fazerem o seu trabalho», «Fazei mas é o vosso trabalho».
Texto Integral
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção Penal)
I. RELATÓRIO
No processo comum singular n.º 512/18...., do Juízo Local Criminal ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi submetido a julgamento o arguido AA, com os demais sinais dos autos.
A sentença, proferida a 5 de junho de 2023 e depositada no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:
«Nestes termos, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, decido:
I- Em sede de ilícitos criminais:
A) Condenar o arguido AA pela prática em autoria material de dois crimes de injúria, p. e p. pelo art.º 181º e 184º do Código Penal na pena, cada um, de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros);
B) Em cúmulo jurídico, condenar o arguido AA pela prática dos crimes a que se aludem nas alíneas a) na pena única de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros) pela prática dos crimes a que se alude em a);
C) Mais vai o arguido condenado no pagamento das custas do processo, por força do disposto nos artigos 513.º e 514.º do C.P.P., com taxa de justiça que se fixa em 3 U.C.`s, de acordo com a tabela III do Regulamento das Custas Processuais;
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Após trânsito, remeta boletins ao registo criminal – art. 5.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto.
***
A presente sentença será depositada (art. 373.º, n.º 5, do CPP).
Dê a correspondente baixa na estatística oficial.»
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Inconformado, o arguido AA interpôs recurso, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:
«1 - Incorre na prática do tipo legal de crime previsto no art.º 181.º, n.º 1, do Código Penal, “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração”.
2 - O ilícito em análise preenche-se com um comportamento activo do agente que, utilizando a linguagem no seu sentido mais lato, imputa factos a outra pessoa ou dirige-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração.
3 - De acordo com o disposto no artigo 184º do Código Penal, a pena prevista naquele artigo sofrerá uma agravação se a vítima for uma das pessoas previstas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132º, do Código Penal, entre as quais se encontram os agentes das forças públicas ou serviços de segurança, no exercício das suas funções ou por causa delas.
4 - A estes elementos objectivos constitutivos do crime, há-de acrescer o elemento subjectivo, no caso o dolo em qualquer uma das suas modalidades, o qual tem de abranger também as circunstâncias que determinam a agravação – cfr. artigo 14.º do Código Penal.
5 - Face aos factos dados como provados e da actuação do arguido entendemos que não estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos tipificadores do crime.
6 - É que temos de ter em conta as circunstâncias em que as alegadas injúrias ocorreram.
7 - Na verdade o arguido foi surpreendido com um assalto que tinha acabado de ocorrer na casa do seu sogro.
8 - O arguido foi chamado ao local pois que os seus familiares que haviam chamado a GNR e dado conta do ocorrido não se sabiam expressar muito bem na língua portuguesa.
9 - O arguido chegado ao local e num estado de nervos e sobressaltado face ao ocorrido foi confrontado, não com o questionamento sobre os factos, mas antes sobre a sua identificação, sobre os seus documentos de identificação.
10 - Sem perceber, porque não lhe foi explicado, para o que é que a GNR pretendia os seus elementos de identificação em primeiro lugar sem antes se inteirar do ocorrido, o arguido, visivelmente nervoso proferiu tais expressões mostrando o seu descontentamento.
11 - Sucede que em momento algum pretendeu injuriar ou por em causa a honra e consideração dos militares da GNR, tanto mais que não se lhes dirigiu pessoalmente, nem lhes imputou factos.
12 - Aliás, da matéria de facto dada como provada na sentença proferida pelo Tribunal a quo, não resulta que o Recorrente tenha ofendido a honra e consideração dos ofendidos, pois,
13 - Por um lado, as expressões proferidas não assumem gravidade suficiente, para em abstrato constituírem ofensas, sendo que estas, por isso, deverão ser entendidas não como injúrias, mas antes como manifestações de desentendimento e/ou desagrado.
14 - Por outro lado, o Recorrente não agiu com o intuito de ofender a honra e consideração dos ofendidos, mas tão somente, como forma de demonstrar o seu desagrado com a "situação" relatada nos autos.
15 - É forçada, descontextualizada e ilegítima, e por isso não se pode aceitar, a conclusão da Mª Juiz “a quo” quando afirma que “os ofendidos, militares da GNR que se encontravam em exercício das suas funções, devidamente fardados e caraterizados enquanto força de segurança e que tendo sido chamada ao local perante uma situação de assalto, foram apelidados como sendo inúteis e que a Guarda, isto é a força de segurança de natureza militar que é constituída por militares organizados num corpo especial de tropas, dos quais os ofendidos fazem parte, foi apelidada de merda, sendo o mesmo que dizer que os elementos que a compõem são uma “merda”, já que a instituição não é algo intangível, mas sim corpóreo e tangível como sejam os militares que a compõem”.
16 - Note-se que tais expressões apenas foram ouvidas pelos Ofendidos já que no local eram os únicos que entendiam português e daí terem chamado o arguido.
17 - Não é pois verdade que o Recorrente tenha proferido as expressões que ora lhe são imputadas, com o intuito de ofender a honra e consideração dos ofendidos, que nem foram directamente interpelados ou visados nas suas pessoas,
18 - Pelo que não se aceita a punição do Recorrente, uma vez que as expressões proferidas nas circunstâncias de tempo, modo e lugar, indubitavelmente não assumem dignidade penal, o que nos autos importa.
19 - Veja-se a esse título o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no Processo 294/19.8PABCL.G1 de 24-05-2021 onde no seu sumário se pode ler:
I- As palavras dirigidas pelo arguido ao assistente, dizendo-lhe que “ele não prestava, que era um mau profissional e que era um arrogante”, no contexto em que estas palavras foram proferidas, relativo a um caso de estacionamento de veículo automóvel indevido na via pública, visaram direta e essencialmente a ação do assistente, enquanto agente da PSP no exercício da sua atividade de polícia, e não a pessoa deste.
II- Quem exerce funções públicas, de que é exemplo os agentes das forças de segurança, encontra-se sujeito à critica objetiva. E, neste contexto, são compreensíveis os exageros na crítica, a animosidade, os excessos de linguagem, a grosseria e a má educação, sendo exigível a quem exerce funções públicas disponha da capacidade de aceitar a crítica, ainda que injusta ou imerecida, a falta de civismo e de pacífica convivência social.
III- O direito penal tutela valores fundamentais da vida em sociedade e deverá promover a pacificação social, sendo um direito de ultima ratio, pelo que fazendo aqui apelo ao princípio da proporcionalidade e à concordância prática entre, por um lado, o direito ao bom nome e à reputação, e o direito à liberdade de expressão e ao direito de critica objetiva por outro, consideramos que as palavras dirigidas pelo arguido ao assistente não têm suficiente dignidade penal para o efeito de integrar o tipo legal de crime de injúria.
20 – (…)É nesse contexto que surge o direito que cada pessoa tem de divulgar a opinião e de exercer o direito de crítica, como uma das manifestações da liberdade de expressão, consagrada no artigo 37.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que preceitua o seguinte: “Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”.
21 - A liberdade de expressão, para além de constitucionalmente consagrada constituiu, nas palavras repetidamente utilizadas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática, caracterizada ainda pelo pluralismo, tolerância e espírito de abertura, e uma das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento de cada um.
22 - Por outro lado, como se ensina no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.01.2015, Processo n.º 168/12.TRPRT.S1, relatado pelo Sr. Conselheiro Manuel Braz, publicado em www.dgsi.pt, citando o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 12/06/2002, no processo nº 332/02, do mesmo relator, “o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado.
23 – (…) sendo o assistente A. C. agente da PSP, no exercício das suas funções à data dos factos, como se assinala no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Proc.515/17.1PHSNT.L1, de 17.04.2018, relatado pela Sr.ª Desembargadora Maria Margarida Bacelar, publicado em www.pgdlisboa.pt, deveria ter uma acrescida tolerância a estas formas de expressão, porventura transgressora das regras do civismo exigível na convivência social, e não revelar, como revelou, uma especial sensibilidade e/ou dificuldade em lidar com este tipo de crítica.
24 - Tudo isto para reiterar que, em nossa opinião, as expressões dirigidas pelo arguido ao assistente têm acolhimento no direito à crítica constitucionalmente consagrado na constituição da república portuguesa não sendo assim reconduzíveis ao crime de injúria que lhe era imputado na acusação pública.
25 - Também o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no Processo nº 1500/10.0GBGMR.G1 em 17-02-2014 refere no seu sumário:
“Não comete o crime de injúria quem profere a expressão “vocês são uns palhaços, não sei como o povo vos escolheu”, dirigida a um presidente de Junta de Freguesia no âmbito de uma contenda motivada por questões relacionadas com a atuação dos membros da autarquia, por a mesma se traduzir num juízo de valor em que se exerce o direito de crítica”.
26 - Refere a douta Sentença “a quo” na sua motivação que “Obviamente que estes militares tendo deposto sempre num registo sério e isento, declararam que se sentiram enxovalhados e ofendidos na sua honra e consideração”.
27 - Ora, conforme consta no Acórdão acabado de citar: “Note-se que não basta que alguém se considere difamado ou injuriado para que a ofensa exista pois, como se escreve no acórdão desta Relação, proferido no processo nº 2281/06-1 http://www.dgsi.pt/jtrg., (…) o direito penal não se destina a tutelar o eventual excesso de sensibilidade de determinadas pessoas perante afirmações que lhes sejam dirigidas. Antes pretende punir factos que sejam objectivamente graves e geradores de ofensas a bens juridicamente protegidos. A vivência em sociedade traz contrariedades, normais, por todos sentidas, sem que isso seja, todavia, bastante para fundamentar a prática de ilícitos criminais.
Tal como aí, concluímos que as afirmações produzidas pelo arguido não são suficientes para abalar moralmente os assistentes, reduzindo a sua auto-estima, não os fazem ser alvo de falta de consideração ou desprezo públicos, nem prejudicam a sua liberdade de determinação, pelo que não se encontra preenchida, objectivamente, a previsão dos artºs 181°, nº 1, 183º e 184º, todos do C.P., pelo que tem aquele que ser absolvido”.
28 - Do mesmo modo o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no Processo nº 349/17.3GCVNF.G1 em 09-11-2020 diz no seu Sumário:
I) A expressão "palhaço", dirigida pelo arguido, enquanto cronometrista de um jogo de hóquei em patins, ao assistente, na qualidade de árbitro que o expulsou do campo pelo facto de ele não ter acatado o pedido de dar o sinal sonoro para chamar as equipas para o ringue, entendendo o arguido que não lhe devia obedecer, traduz-se num juízo de valor em que o mesmo pretendeu exercer o direito de crítica relativamente àquela decisão, considerada injusta, mas não de humilhar ou vexar o assistente.
II) Por conseguinte, à luz dos padrões médios de valoração social, a expressão em apreço, no contexto e circunstâncias em que foi dirigida pelo arguido ao assistente, não é suscetível de ofender, de modo jurídico-penalmente relevante, a honra e consideração do visado, por não visar nitidamente a esfera da sua dignidade pessoal, não indo além de uma mera violação das regras de cortesia, delicadeza e boa educação, inserindo-se no âmbito de tolerância necessária, devido à normal conflitualidade e animosidade decorrente da vida em sociedade, sem atingir o âmago do mínimo de respeito indispensável a esse relacionamento.
(…)
VI - Parte da jurisprudência dos nossos tribunais superiores vem sufragando a orientação acabada de aludir, que se acolhe, sendo que de acordo com a mesma se deve entender que o direito de expressão, na sua vertente de direito de opinião e de crítica, quando se exerça e recaia nas concretas áreas atrás referidas e com o conteúdo e âmbito mencionados, caso redunde em ofensa à honra, se pode e deve ter por atípico, desde que o agente não incorra na crítica caluniosa ou na formulação de juízos de valor aos quais subjaz o exclusivo propósito de rebaixar e de humilhar.”
29 - O Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido no Processo nº 18/22.2GCCUB.E1 em 14-03-2023 refere no seu Sumário: O que é absolutamente necessário para se aquilatar se determinada palavra/expressão deve ser considerada injuriosa não são os dicionários mas sim o contexto em que as mesmas foram dirigidas.
30 - Também é certo que a lei tutela a dignidade e o bom-nome do visado, e não a sua susceptibilidade ou melindre. E tal valoração far-se-á de acordo com o que se entenda por ofensa da honra num determinado contexto temporal, local, social e cultural. Pois, voltando a Beleza dos Santos, “nem tudo aquilo que alguém considera ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria puníveis” (Algumas Considerações sobre Crimes de Difamação ou de Injúria, RLJ 92, p.167).
31 - Também Oliveira Mendes alerta para que “nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts. 180º e 181º, tudo dependendo da intensidade ou perigo da ofensa” (O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, p. 37)
32 - Por último o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17-04-2018 (Crime de injúria. Ofendidos agentes da PSP. Expressões susceptíveis de afetar a honra e consideração) proferido no Proc. 515/17.1PHSNT.L1 5ª Secção, refere no seu Sumário:
1. As expressões “vocês são uns palhaços”, “não valeis nada”, “ide-vos foder” dirigidas pela arguida a agentes da PSP que a tinham acabado de chamar a atenção sobre um seu comportamento, inculcam a ideia de que a arguida criticou um comportamento mas não expressamente as pessoas dos ofendidos.
2. Mesmo que se possa considerar que se trata de uma crítica directamente dirigida à atuação dos ofendidos é patente que ela se situa na área do seu comportamento estritamente profissional e não atinge o núcleo da dignidade pessoal dos ofendidos.
3. No contexto em que foram preferidas, as expressões não têm outro significado que não seja a mera verbalização de linguagem grosseira, ordinária, sendo absolutamente incapazes de pôr em causa o carácter, o bom nome ou reputação dos visados”.
33 – (…) Ora, não descurando que a linguagem usada pela recorrente foi forte e excessiva, o certo é que as expressões proferidas o foram num exercício de crítica exagerado, mas não são susceptíveis de afectar a honra e a consideração das pessoas a quem eram dirigidas de modo a merecer a tutela penal. Efectivamente, o teor das expressões em causa inculca a ideia de que se criticou um comportamento mas não expressamente as pessoas dos ofendidos.
34 - Mas mesmo que se possa considerar que se trata de uma crítica directamente dirigida à actuação dos ofendidos é patente que ela se situa na área do seu comportamento estritamente profissional e não atinge o núcleo da dignidade pessoal dos ofendidos.
35 - São juízos de valor sobre actuações dos ofendidos no âmbito das suas funções e não propriamente sobre as suas pessoas.
36 - Não será despiciendo considerar que os Agentes das forças de segurança no exercício da sua actividade profissional, não podem ser particularmente sensíveis a alguns destemperos ou incorrecções de linguagem usados por um cidadão mais exaltado, (in casu até aparentemente alcoolizada, como é referido pela testemunha BB) devem construir uma carapaça que os proteja contra comportamentos que ferem as regras do civismo exigível na convivência social.
37 - No contexto em que foram proferidas, as expressões: vocês são uns palhaços, não valeis nada, ide-vos foder, não têm outro significado que não seja a mera verbalização de linguagem grosseira, ordinária, sendo absolutamente incapazes de pôr em causa o carácter, o bom-nome ou a reputação dos visados.
38 - E que «Como se escreveu em Acórdão desta Relação de Évora, no Proc. 488/09.4TASTB.E1, relatado pela Ex° Desembargadora Ana Brito, ao qual se adere por inteiro «o direito penal reveste natureza fragmentária, de tutela subsidiária (ou de última ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal, ou, o que é dizer o mesmo, de bens jurídicos cuja lesão se revela digna de pena (Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 43).
39 - Tutela apenas os valores essenciais e fundamentais da vida em sociedade, obedecendo a um princípio de intervenção mínima, bem como de proporcionalidade imanente ao Estado de Direito.
40 - Assim, nem tudo o que causa contrariedade, é desagradável, pouco ético ou menos lícito, mesmo até quando formalmente pareça integrar-se num tipo de crime, será relevante para esse núcleo de interesses penalmente protegidos.
41 - No caso, a lei tutela a dignidade e o bom-nome do visado, e não a sua susceptibilidade ou melindre. E tal valoração far-se-á de acordo com o que se entenda por ofensa da honra num determinado contexto temporal, local, social e cultural. Pois, voltando a Beleza dos Santos, nem tudo aquilo que alguém considera ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria puníveis (Algumas Considerações sobre Crimes de Difamação ou de Injúria, RLJ 92, p.167).
42 - Em face da vasta jurisprudência supra transcrita, entendemos que a sentença ora sindicada, violou entre outras, as normas jurídicas constantes dos artigos 31 e 181º ambos do C. Penal e artigos 1 e 26, nº 1, ambos da Constituição da República Portuguesa.
43 - Pelo que, deverá o Recorrente ser absolvido da prática de um crime de injúrias agravado, e consequentemente, a Sentença recorrida ser revogada e proferido Acórdão tendo em conta o supra exposto.»
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães com o regime e efeito adequados.
A Senhora Procuradora da República que representou o Ministério Público na 1ª instância respondeu, concluindo da seguinte forma:
«I – A prova produzida em audiência de discussão e julgamento é suficientemente elucidativa da prática dos factos pelos quais o arguido vinha acusado e evidenciou o seu cometimento.
II – Com efeito, essa prova, produzida, apreciada, ponderada e valorada pelo tribunal segundo os cânones legais - cfr. artigo 127º do Código de Processo Penal - suporta objectivamente os factos dados como assentes na sentença recorrida e empresta a todo o processo decisório de formação da convicção da M. Juíza, foros de justeza, correcção e comportabilidade juridicamente atendíveis.
III – A pena aplicada na sentença recorrida, obedeceu a rigorosos critérios de dosimetria penal, observando escrupulosamente a culpa e a reintegração do recorrente, bem como, ponderou as exigências decorrentes das necessidades de prevenção geral e especial, é equilibrada, adequada ao caso, obedece aos critérios legais na sua determinação, não ultrapassa a medida da culpa, razões pela qual deverá valer e permanecer.
IV - A sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada, quer de facto quer de direito, e não é possuidora de qualquer vicio que inquine a sua validade substancial ou formal, devendo ser mantida nos seus precisos termos, julgando-se assim o recurso improcedente»
Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral adjunto emitiu parecer, igualmente no sentido da improcedência do recurso, tendo por pressuposto que, para além da «verificação dos elementos objetivos e subjetivos do crime de injúria», o recurso teria também por objeto a «violação do princípio da livre apreciação da prova» e a «medida da pena exagerada».
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, com resposta do arguido, mostrando-se surpreso por o parecer, na senda da resposta do Ministério Público na 1ª instância, ignorar a questão suscitada no recurso, pronunciando-se sobre outras que nele não são sequer colocadas.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme é jurisprudência assente o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer[1].
1. Questões a decidir
A questão a decidir circunscreve-se a saber se a factualidade dada como provada na sentença preenche os elementos objetivos e subjetivos de dois crimes de injúria agravada, ou se não atinge dignidade para tal, devendo ser entendida como mera manifestação de desentendimento e/ou desagrado com a atuação dos agentes da GNR, no exercício de um legítimo direito à crítica.
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2. Factos Provados
Segue-se a enumeração dos factos provados e respetiva motivação, constantes da sentença recorrida.
«A) Factos Provados
1) No dia 1 de Agosto de 2018, cerca das 15 horas, na Rua ..., em ..., Guimarães, o arguido dirigiu-se aos militares da GNR CC e DD, devidamente uniformizados, que se deslocaram ao local por ter sido reportado um furto, e disse “A Guarda não serve para nada. Só querem a minha identificação em vez de fazerem o seu trabalho. A Guarda é uma merda neste país. Fazei mas é o vosso trabalho”.
2) O arguido ao proferir as mencionadas palavras fê-lo de viva voz, com o propósito concretizado de ofender a credibilidade, o prestígio e a honra e consideração dos ofendidos, que sabia serem militares da GNR e que ali se encontrava no exercício da sua profissão.
3) O arguido agiu livre e deliberadamente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
4) O arguido não tem qualquer condenação averbada no seu registo criminal;
5) O arguido encontra-se emigrado em ... e foi julgado na ausência;
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B) Factos Não Provados
Inexistem.
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III – CONVICÇÃO DO TRIBUNAL
Para a formação da sua convicção quanto à factualidade provada e não provada, o tribunal atentou na análise crítica e conjunta da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, apreciada segundo as regras da experiência e da livre convicção do julgador.
Para a prova da factualidade dada como demonstrada de 1) a 3), o Tribunal valorou primacialmente os depoimentos dos ofendidos, militares da GNR que se encontravam em exercício das suas funções, devidamente fardados e caraterizados enquanto força se segurança e que tendo sido chamada ao local perante uma situação de assalto, foram apelidados como sendo inúteis e que a Guarda, isto é a força de segurança de natureza militar que é constituída por militares organizados num corpo especial de tropas, dos quais os ofendidos fazem parte, foi apelidada de merda, sendo o mesmo que dizer que os elementos que a compõem são uma “merda”, já que a instituição não é algo intangível, mas sim corpóreo e tangível como sejam os militares que a compõem.
Obviamente que estes militares tendo deposto sempre num registo sério e isento, declararam que se sentiram enxovalhados e ofendidos na sua honra e consideração. Relativamente ao dolo do arguido, da conjugação de toda a prova produzida, concretizada e objectivada nos actos materiais praticados pelo mesmo, é legitimo e seguro, à luz das regras da experiência, afirmar a sua verificação.
No que respeita à ausência de antecedentes criminais, valorou-se o CRC constante da ref.ª ...35.»
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3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
O recorrente sustenta que as expressões que dirigiu aos agentes da GNR não têm dignidade penal, por corresponderem a mera manifestação de desentendimento e/ou desagrado com a atuação daqueles, no exercício de um legítimo direito à crítica.
Os crimes pelos quais o arguido foi condenado, de injúria agravada, são previstos e puníveis pelos artigos 181.º e 184.º do Código Penal.
O tipo base do crime de injúria é o artigo 181.º, n.º 1, que estabelece:
«Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.»
Protege-se deste modo (através de uma restrição da liberdade de expressão) a honra das pessoas, nas suas dimensões normativa e fática, a reputação ou consideração exterior do indivíduo e o seu valor pessoal ou interior[2], que sendo expressão da própria personalidade, radicam na garantia da proteção da dignidade humana.
O crime de injúria tutela assim o bem jurídico (pessoalíssimo e imaterial) honra, com o significado que acabamos de delimitar.
O crime de injúria tem a natureza de crime de perigo (abstrato-concreto) na medida em que o perigo não surge como simples motivo da incriminação (perigo abstrato), nem é ali incluído como efeito do facto típico (perigo concreto), encontrando-se antes referido ao modo de ser da ação típica (perigo abstrato concreto) a qual encerra em si mesma uma genérica aptidão para produzir o efeito danoso (ofensa da honra ou consideração alheias).
Porque assim é, o dolo não está relacionado com o próprio dano, mas sim com o perigo. Não sendo necessário que o agente, com a sua conduta, queira ofender, nem mesmo que se conforme com esse resultado, ou sequer que haja previsto o perigo, bastando a simples consciência da genérica perigosidade da conduta ou do meio de ação previsto na norma incriminadora.
Na verdade, há muito que não é exigível o dolo específico (o «animus injuriandi vel difamandi»), bastando a consciência do agente de que a sua conduta é de molde a ofender a honra e consideração de alguém.
A injúria é agravada se «a vítima for uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade», caso em que o crime tem inclusive natureza semipública (cfr. artigos 184.º e 188.º, n.º 1, al. a) do Código Penal).
Na apreciação da subsunção jurídica da realidade ao crime de injúria assume particular importância o contexto em que foram feitas as imputações ou formulados os juízos, pois em cada caso haverá que proceder à harmonização do direito ao bom nome e reputação (pressuposto da intervenção penal) com o direito à liberdade de expressão. Já que a Constituição da República Portuguesa ao mesmo tempo que reconhece o direito à integridade moral, ao bom-nome e reputação (nos artigos 25.º, nº 1 e 26.º, nº 1) reconhece igualmente o direito à palavra e à liberdade de expressão (no artigo 37º, nº1), sofrendo este último as limitações que a lei penal lhe impõe (nos termos do n.º 3 do mesmo artigo 37.º).
Neste âmbito, os tribunais portugueses, tradicionalmente muito restritivos no domínio da interpretação do direito à liberdade de expressão, tenderam a valorizar a honra em detrimento da liberdade de informação e de expressão. Esquecendo que o direito à liberdade de expressão é consagrado em termos muito amplos no artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, dando causa a inúmeras condenações de Portugal no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem[3].
Não obstante aquela Convenção ser também direito interno, por ter sido assinada e ratificada pelo Estado português em 1978, entrando em vigor na ordem jurídica nacional a 9 de novembro.
Afirma-se, contudo, uma outra corrente jurisprudencial, cada vez mais representativa, que mostra uma franca evolução no sentido da consolidação da garantia do pluralismo de ideias e opiniões livremente expressas, em que assenta a sociedade democrática.
Dessa corrente é claro exemplo – entre muitos outros – o elucidativo acórdão do STJ, de 7 de março de 2007, proferido no processo 07P440, e relatado por Oliveira Mendes[4], onde se pode ler:
«No conflito entre o direito à honra e a liberdade de expressão, tem vindo a verificar-se um ponto de viragem, tendo por base e fundamento o relevo, a dignidade e a dimensão da liberdade de expressão considerada numa dupla dimensão, concretamente como direito fundamental individual e como princípio conformador e essencial à manutenção e aprofundamento do Estado de Direito democrático, reconhecendo-se que o exercício do direito de expressão, designadamente enquanto direito de informar, de opinião e de crítica, constitui o próprio fundamento do sistema democrático, o que justifica a assunção de uma nova perspectiva na resolução do conflito.»
E particularmente no que ao direito de crítica respeita – que é a vertente do direito à liberdade de expressão relevante para o caso em apreço nos autos – acrescenta ainda o mesmo aresto:
«(…) temos vindo a defender, na esteira da orientação assumida por Costa Andrade, deverem considerar-se atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista, do desportista, do profissional em geral, nem atingem a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica.
Mais entende aquele insigne Mestre que a atipicidade da crítica objectiva pode e deve estender-se a outras áreas, aqui se incluindo as instâncias públicas, com destaque para os actos da administração pública, as sentenças e despachos dos juízes, as promoções do MP, as decisões e o desempenho político de órgãos de soberania como o Governo e o Parlamento.»
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Revertendo diretamente ao caso em apreço, da factualidade apurada resulta que o arguido, dirigindo-se a dois militares da GNR, devidamente uniformizados, que se haviam dirigido ao local onde tinha sido reportada a ocorrência de um furto, disse:
«A Guarda não serve para nada. Só querem a minha identificação em vez de fazerem o seu trabalho. A Guarda é uma merda neste país. Fazei mas é o vosso trabalho».
Ora, as expressões transcritas não configuram um juízo sobre as concretas pessoas dos agentes a quem são dirigidas, mas antes e acima de tudo uma opinião crítica, embora pouco cortês e até grosseira, sobre a atuação em geral da instituição Guarda Nacional Republicana, que «não serve para nada», «é uma merda».
Também não há imputação de factos eventualmente desonrosos às concretas pessoas dos dois agentes, apenas sendo expresso um juízo sobre as suas atuações objetivas naquele momento e enquanto elementos da força policial a que pertencem: «Só querem a minha identificação em vez de fazerem o seu trabalho», «Fazei mas é o vosso trabalho».
E embora a factualidade considerada apurada não caraterize devidamente os contornos da situação, sabe-se que a deslocação dos dois agentes da GNR ao local se ficou a dever à comunicação da ocorrência de um furto, o que causa sempre alguma perturbação e exaltação aos ofendidos e até a outras pessoas que aí se encontrem. Tendo os agentes das forças policiais que estar preparados para lidar com essas situações, nas quais o grau de tolerância relativamente ao que as pessoas então possam dizer tem necessariamente de ser maior, ou a intervenção das forças policiais seria amiudamente fator de conflito em vez de fator de reposição da paz social, como é seu mister.
Neste contexto, pode censurar-se o modo descortês e grosseiro com que o arguido se expressou, que pode por isso mesmo ter causado o desagrado dos agentes, mas o certo é que não foram formulados juízos sobre as pessoas daqueles agentes, nem lhes foram imputados factos ofensivos das suas honra e consideração.
A realidade é que o conteúdo das afirmações do arguido não tem idoneidade objetiva para preencher o crime de injúria, não atingindo aquele patamar que justifica a imposição de limites ao exercício do direito à liberdade de expressão e crítica, designadamente com sanções penais.
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Assim sendo, a falta de preenchimento do elemento objetivo dos dois tipos de ilícito de injúria agravada pelos quais o arguido foi condenado é incompatível com a prova da factualidade relativa ao dolo, constante dos pontos 2 e 3 dos Factos Provados.
Esta contradição inultrapassável emerge por si só e de forma evidente do texto da sentença recorrida, afetando-a na sua própria estrutura e propagando-se à decisão de mérito, integrando o vício da al. b) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
A reparação deste vício pode ser feita nesta instância, como permite o artigo 431.º, al. a) do Código de Processo Penal, uma vez que os autos dispõem de todos os elementos probatórios que sustentaram a decisão recorrida. Levando a que se retire dos factos provados a factualidade descrita nos pontos 2 e 3, que passa para os não provados.
Com a consequente absolvição do arguido dos crimes de injúria agravada pelos quais havia sido condenado e revogação em conformidade da sentença recorrida.
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III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães, em conceder total provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, revogando a sentença recorrida e decidindo, em substituição, absolvê-lo da prática dos dois crimes de injúria agravada, previstos e puníveis pelos artigos 181.º e 184.º do Código Penal, pelos quais vinha condenado.
Sem custas.
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Guimarães, 31 de outubro de 2023
(Elaborado e revisto pela relatora)
Fátima Furtado (Relatora)
Isabel Cristina Gaio Ferreira de Castro (1ª Adjunta)
Ana Teixeira (2ª Adjunta)
[1] Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V. [2][2] In José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 607, §§14 e 15. [3] Cfr., designadamente, os casos: Lopes Gomes da Silva c. Portugal (Queixa nº 37698/97); Urbino Rodrigues c. Portugal (Queixa nº 75088/01); Almeida Azevedo c. Portugal (Queixa no 43924/02); Roseiro Bento c. Portugal (Queixa nº 29288/02); Colaço Mestre e SIC c. Portugal (queixas nºs 11182/03 e 11319/03); Leonel Azevedo c. Portugal (queixa nº 20620/04); Campos Dâmaso c. Portugal (Queixa nº 17107/05); Público – Comunicação Social, S.A. e outros c. Portugal (Queixa nº 39324/07); Conceição Letria c. Portugal (Queixa nº 4049/08); Gouveia Gomes Fernandes e Freitas e Costa c. Portugal (Queixa nº 1529/08); Laranjeira Marques da Silva c. Portugal (Queixa nº 16983/06); Pinto Coelho c. Portugal (Queixa no 28439/08); Pinto Pinheiro Marques c. Portugal (Queixa nº 26671/09). Com os respetivos textos integrais disponíveis em http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/search.asp?skin=hudoc-fr. [4] Disponível em www.dgsi.pt.