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CONTRATO DE MÚTUO
RESERVA DE PROPRIEDADE
CLÁUSULA NULA
REGISTO
ILISÃO DA PRESUNÇÃO
Sumário
I - A cláusula de reserva de propriedade incluída no contrato de financiamento para aquisição dum veículo automóvel a um terceiro celebrado entre o mutuante e o mutuário é nula porque legalmente impossível, nos termos conjugados dos artigos 409º, n.º 1 e 280º, n.º 1 do Código Civil. II - Sendo nula a cláusula de reserva de propriedade que serviu de base ao registo, a presunção do registo está ilidida mediante prova do contrário, nos termos do artigo 350º, n.º 2 do Código Civil.
Texto Integral
Processo n.º 3074/17.1T9PRT-P.P1
Relator: William Themudo Gilman
1º Adjunto: Francisco Mota Ribeiro
2º Adjunto: Maria Dolores Silva e Sousa
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Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:
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1 - RELATÓRIO
No Processo Comum (Tribunal Coletivo) n.º 3074/17.1T9PRT-P, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal do Porto - Juiz 10, a Sra. Juíza do processo no dia 14.07.2023 proferiu despacho em que concordando na íntegra com a promoção do Ministério Público entendeu que a reserva de propriedade invocada pelo requerente Banco 1... não era suscetível de afetar o arresto do veículo, donde se conclui que indeferiu o requerido levantamento do arresto de tal veículo.
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Não se conformando com esta decisão, o Banco 1... recorreu para este Tribunal da Relação, concluindo na sua motivação o seguinte (transcrição):
«A) Entendeu o Tribunal a quo que uma cláusula de reserva de propriedade não prevalece sobre o arresto decretado;
B) A recorrente entende, por outro lado, que existiu uma interpretação errónea da garantia Reserva de propriedade.
C) A cláusula de reserva de propriedade suspende o efeito translativo da propriedade, até à verificação do cumprimento integral do devedor, o que não se verificou in casu, nem se verificará, face à resolução contratual e execução judicial da dívida.
D) A Recorrente procedeu à resolução do contrato e lançou mão de uma ação executiva, reclamando o pagamento do seu crédito e a recuperação do veículo, de modo a lograr a venda e amortização ou liquidação da dívida.
E) No entendimento maioritário da doutrina, o Arguido não pode considerar-se dono da coisa, em virtude de não a ter adquirido, por força do incumprimento do contrato.
F) A Recorrente, em virtude do arresto, encontra-se impedida de proceder à remoção da viatura, posterior venda e ressarcimento dos valores em dívida.
G) O ora arguido era apenas detentor de uma espectativa de aquisição, a qual também se malogrou irremediavelmente, diante do incumprimento do contrato.
H) A garantia de execução da livrança não teria qualquer efeito prático, porque todo o património do Arguido foi arrestado.
I) Aquando do registo do arresto, a reserva de propriedade já se mostrava registada há cerca de dois anos, pelo que o Tribunal não poderia olvidar que o veículo não pertencia ao Arguido, sem prejuízo de ter tomado conhecimento posteriormente, em particular, da execução da divida.
J) A manutenção do arresto prejudica os interesses legalmente tutelados da Recorrente.
K) Caso assim não fosse, de nada valeria proceder a um registo de reserva de propriedade…
L) Pior ainda é o Tribunal pretender olvidar o facto de que o veículo em causa não pertence ao Arguido e urge ser vendido no processo executivo instaurado pela Recorrente – o que já teria sucedido, não fosse o registo de apreensão.
M) A propriedade reservada não é, de todo, uma propriedade plena, nem esse foi o pensamento legislativo subjacente à criação do instituto…
N) Pelo que deverá o arresto ser levantado/cancelado, uma vez que se mostra devidamente explicada a ausência de pagamento da totalidade do valor contratado.
O) E, sem ausência de cumprimento do contrato, não poderá nunca considerar-se o Arguido proprietário do veículo pois, neste momento, nem mesmo é detentor duma mera espectativa de aquisição.
P) De todo o exposto resulta que deverá ser concedido provimento ao presente Recurso, revogando-se o despacho recorrido e substituindo a decisão proferida por outra decisão que ordene o cancelamento do Arresto sobre a viatura RENAULT ..., matrícula ..-SR-..
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO QUE V. EXAS. SUPRIRÃO:
Deve ser, por V. Exas., dado provimento ao recurso, revogando-se a sentença proferida
Assim se fazendo JUSTIÇA!»
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O Ministério Público, nas suas alegações de resposta, pronunciou-se pela negação de provimento ao recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões (transcrição):
«1 – O douto despacho ora em recurso fez uma correcta interpretação dos factos e aplicação do direito.
2 - A clausula de reserva de reserva de propriedade do veiculo em causa nestes autos, enquanto garantia de bom cumprimento do contrato, surge associada a um contrato mútuo, enquanto financiamento da aquisição, celebrado entre a instituição bancária, não alienante - a ora recorrente, e o comprador.
3 - O art.º 409 do Código Civil, sob a epígrafe, reserva de propriedade, consigna
“1- Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.
2 – Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a clausula constante do registo é oponível a terceiros”.
4 - Deste modo, a nosso ver o legislador apenas previu a aposição da clausula de reserva de propriedade aos contratos de alienação, no pressuposto do domínio do bem com a titularidade da respetiva propriedade, e já não para os contratos de mutuo, como o aqui em causa.
5 - Nesta conformidade, a nosso ver, do citado normativo legal não se descortina assim qualquer referência ao estabelecimento de reserva de propriedade a favor do mutuante, pelo que não poderá a mesma produzir quaisquer efeitos, designadamente prevalecendo sobre o arresto decretado nos presentes autos.
6 - Acresce que, o alegado registo na Conservatória da clausula de reserva de propriedade não tem natureza constitutiva.
7 - Por todo o exposto, entendemos que bem andou o Tribunal a quo ao decidir que a clausula de reserva de propriedade não prevalece sobre o arresto decretado nos presentes autos, não tendo ordenado o seu levantamento/cancelamento.
Nestes termos e nos demais de direito, que os Venerandos Desembargadores se dignarão suprir, negando provimento ao recurso e, em consequência mantendo o Douto Despacho, far-se-á a já costumada justiça.».
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Nesta instância o Exmo. Procurador-geral Adjunto, no seu parecer, acompanhou a resposta do Ministério Público junto da 1ª instância, pronunciando-se no sentido da negação de provimento ao recurso.
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Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2 do CPP.
Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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2- FUNDAMENTAÇÃO
2.1- QUESTÕES A DECIDIR
Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, a questão a apreciar é a de se saber se a reserva de propriedade sobre o veículo automóvel inscrita no registo a favor do recorrente prevalece sobre o arresto posteriormente decretado nos presentes autos e registado.
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2.2-A DECISÃO RECORRIDA E CIRCUNSTÂNCIAS RELEVANTES EXTRAÍDAS DOS AUTOS.
Com relevo para a resolução da questão colocada importa, desde logo, considerar como pertinentes o despacho recorrido e as circunstâncias que a seguir se descrevem.
2.2.1- O despacho recorrido.
O teor do despacho recorrido é o seguinte:
«Requerimento junto sob a ref.ª nº 36182100 de 10/07, pelo “Banco 1...”- Atento o teor do contrato junto e concordando, na íntegra, com o teor da douta promoção que antecede, não se considera que a existência de uma cláusula de reserva de propriedade que incide sobre o veículo arrestado da marca Renault ... matrícula ..-SR-.., seja susceptível de afectar o arresto, pois como é referido na douta promoção que antecede, esta garantia que o ora requerente, o “Banco 1...” consagrou no contrato celebrado é mais uma garantia para além da livrança que não prevalece sobre o arresto decretado, pois trata-se de um mútuo não abrangido no artigo 409º, do C.Civil. Notifique. *** »
2.2.2- A promoção do Ministério Público.
«Ref.ª 36182100 de 10/07:
Vi o contrato de credito celebrado entre “Banco 1...” e o arguido AA e afigura-se-nos ser de manter o arresto sobre o veiculo automóvel ... matrícula ..-SR-...
Com efeito, nos termos do art.º 409° do Código Civil apenas num contrato de alienação se pode ajustar uma cláusula de reserva de propriedade, na medida em que estatui esta disposição legal que só ao alienante é lícito reservar para si a propriedade da coisa num contrato de alienação. Conforme resulta do contrato ora junto aos autos o “Banco 1...” é apenas uma mera entidade mutuária. Acresce que, no caso de falta de pagamento o Banco 1... se encontra salvaguardado pela livrança assinada pelo arguido AA.
***»
2.2.3- O requerimento do Interveniente Acidental/Recorrente.
«EXMO.(A) SR.(A) JUIZ DE DIREITO,
Vem a Interveniente Acidental Banco 1..., nos autos à margem melhor identificados, notificada para o efeito, expor e requer a V. Exa. como segue:
1. O Banco 1..., S.A não procedeu ao registo da penhora da viatura com a matrícula ..-SR-.. nem à sua remoção, mantendo apenas o registo da Reserva de propriedade, cf. doc nº1 que se anexa.
2. A penhora de viatura com Reserva de propriedade, fica provisória pelo prazo de um ano ou mesmo encontrando-se o direito de propriedade de veículo automóvel inscrito em nome do executado mas com propriedade reservada em nome do próprio exequente, o registo da penhora deverá ser recusado nos termos do art. 7º, no 1, do D.L. no 54/75, se previamente não for registada a extinção da reserva de propriedade, porquanto é inaceitável a execução da própria coisa do exequente (cfr. art.s 601º do C.C. e 821º do C.P.C.)."
3. Existindo ainda a necessidade de pagamento de emolumentos à respetiva Conservatória .
4. O Arguido AA pretende devolver veículo, atenuar o valor em dívida para com o Banco 1..., S.A .
5. Todavia, tal não se mostra exequível, atendendo ao registo do arresto preventivo à ordem desse processo desde 09/04/2019.
6. Assim, de forma a comprovar a sua pretensão, a requerente pode comprometer-se a juntar aos autos o registo de penhora ou de retoma, mediante a indicação que o arresto será levantado após a junção desse documento.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, SE REQUER A V/EXA. SE DIGNE ORDENAR O LEVANTAMENTO DO ARRESTO E ADMITIR À REQUERENTE A SATISFAÇÃO DO SEU CRÉDITO, POR VIA DA EXECUÇÃO DOS SEUS DIREITOS CONTRATUALMENTE CONSIGNADOS.»
2.2.4- Circunstâncias extraídas dos autos.
1- Em 1.04.2019 foi deduzida acusação pelo Ministério Público contra vários arguidos, incluindo AA, imputando a este último mais de uma vintena de crimes, incluindo corrupção passiva, recebimento indevido de vantagem, falsificação de documento, violação de segredo, tráfico de influência e abuso de poder. Na acusação foi requerido o arresto preventivo (artigo 228º do CPP) e o arresto (artigo 10º da Lei 5/2002) dos saldos de contas bancárias, do veículo automóvel ..-SR-.., de 220€ em dinheiro e de um telemóvel, para garantia do pagamento do montante global de 158.942,25€.
2- Em 02.04.2019 o Juiz de Instrução decretou o arresto nos termos requeridos.
3- Em 09.04.2019 foram arrestados saldos de contas bancárias e dinheiro no montante de cerca de 46.000€, bem como o veículo ..-SR-...
4- Em 30.04.2020 foi proferido na primeira instância acórdão, confirmado na parte que ao caso dos autos interessa por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24.02.2021, que condenou o arguido, além do mais, na pena única de 6 anos de prisão e julgou procedente o pedido de perda de produtos e vantagens, nos termos do disposto no artigo 110º, nº1, alínea b) e nº4, do C.Penal, no valor de 30.915, 21 €, bem como declarou perdido a favor do Estado, nos termos do art. 7º da Lei nº5/2002, o montante de 118.658,46€.
2- Em 09.04.2019 foi registado o arresto do veículo ..-SR-.., sendo provisório por estar inscrita com data de 18.04.2017 a reserva de propriedade a favor do Banco 1... Consta no registo como proprietário AA.
3- Em 04.07.2023 o recorrente apresentou o acima transcrito requerimento par levantamento do arresto.
4- Em 10.07.2023, após notificado para tal, o recorrente juntou aos autos o contrato celebrado com o arguido AA, o qual aqui se dá por reproduzido.
5- Em resumo, nesse contrato, apelidado de ‘Contrato de Crédito’ intervieram o arguido AA e o Banco 1... SA, surgindo este último como financiador do primeiro para a aquisição a um terceiro, intitulado de fornecedor (BB), do veículo ..-SR-... O preço de venda do bem era de 17.500€ e o Banco financiava relativamente à compra 15.500€ a que acrescia o financiamento complementar (comissões, seguros, etc…), chegando o total financiado à quantia de 17.861,34€, a ser paga em 72 prestações mensais, com a taxa de juros anual efetiva global de 9,9€. Como garantias do contrato figuraram uma livrança em branco subscrita pelo AA e a reserva de propriedade sobre o veículo.
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2.3- APRECIAÇÃO DO RECURSO.
Pretende o Recorrente o levantamento/cancelamento do arresto do veículo ..-SR-.., argumentando, em resumo, que «aquando do registo do arresto, a reserva de propriedade já se mostrava registada há cerca de dois anos, pelo que o Tribunal não poderia olvidar que o veículo não pertencia ao Arguido» e que «a propriedade reservada não é, de todo, uma propriedade plena, nem esse foi o pensamento legislativo subjacente à criação do instituto» e «não poderá nunca considerar-se o Arguido proprietário do veículo pois, neste momento, nem mesmo é detentor duma mera espectativa de aquisição.»
O Ministério Público argumenta com o disposto no artigo 409º do Código Civil, o qual na sua interpretação apenas prevê a aposição da cláusula de reserva de propriedade aos contratos de alienação, no pressuposto do domínio do bem com a titularidade da respetiva propriedade, e já não para os contratos de mútuo, como o aqui em causa. E que como o registo na Conservatória não tem natureza constitutiva bem andou a decisão recorrida ao não ordenar o levantamento/cancelamento do arresto.
Vejamos, começando pelas regras do registo.
Nos termos do artigo 7º, n.º 1, CRP, aplicável ex vi artigo 29.º do Decreto-Lei 54/75, de 12 de fevereiro, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
Só que se trata de uma presunção ilidível mediante prova do contrário, nos termos do artigo 350º, n.º 2 do Código Civil, podendo a ilisão da presunção fazer-se através da prova da nulidade do registo, da invalidade do negócio ou ato jurídico que lhe serve de base, ou pela prova de que o direito a que se reporta o registo pertence a outrem.
O Recorrente invoca a seu favor a presunção do registo, o Ministério Público contra-argumenta com a nulidade da cláusula do negócio jurídico que serviu de basse ao registo e invocando o artigo 409º do Código Civil.
Dispõe o artigo 409º, n.º 1 do Código Civil, sob a epígrafe ‘Reserva da propriedade’ que «Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.»
Na nossa lei civil vigora como regra supletiva o princípio da transferência da propriedade por força do contrato, podendo as partes afastá-lo através da cláusula de reserva de propriedade, estipulando que tal transferência se opere apenas com o cumprimento total ou parcial das obrigações do adquirente, ficando então a transferência sob condição suspensiva. A reserva de propriedade é estabelecida, frequentemente, nas vendas a prestações e nas vendas com espera de preço, representando uma valiosa defesa do vendedor contra o incumprimento e a insolvência do comprador[1].
Face à letra da lei (‘nos contratos de alienação’), a jurisprudência dos tribunais superiores tem-se dividido quanto à validade da cláusula de reserva de propriedade nos contratos de mútuo constituída a favor da entidade que financiou a compra dum bem efetuada pelo mutuante a um terceiro.
Desde logo no Supremo Tribunal de Justiça há divergência de posições, como por exemplo, nos Ac. STJ de 02.10.2007, 07.07.2010, 31.03.2011, 12.07.2011 [2], onde se defendeu, em resumo, que o artigo 409.º, n.º 1, do CC, apenas permite ao alienante reservar para si a propriedade da coisa e já não ao (eventual) financiador do negócio, o qual, ao conceder ao comprador os meios económicos para realizar o negócio, não intervém no contrato de alienação, não sendo válida a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador/mutuante constante do contrato de mútuo, porque legalmente inadmissível; e a posição defendida no Ac. STJ de 30.09.2014[3], onde se defendeu em síntese que é válida a transferência da propriedade reservada do vendedor para o terceiro mutuante, como garantia do crédito concedido por este ao comprador.
Nos Tribunais da Relação também há divergências quanto à mesma questão, sendo que no Tribunal da Relação do Porto, da jurisprudência publicada em www.dgsi.pt, há unanimidade no sentido de que o artigo 409º não permite a inclusão de tal cláusula nos contratos de mútuo, pois que dele «resulta de uma forma clara que a estipulação da reserva de propriedade sobre uma coisa só é válida nos contratos de alienação, pois que, suspendendo ela apenas os efeitos translativos inerentes a um contrato de alienação, só poderá ser estipulada nesse contrato. No contrato de mútuo, tendo por finalidade o financiamento de aquisição de um determinado bem, apesar da conexão que possa existir entre os dois contratos, o mutuante não pode reservar para si o direito de propriedade sobre esse bem, pela simples razão que não é o seu titular, sendo juridicamente impossível que alguém reserve um direito de propriedade que não tem.[4] »
A conclusão retirada por esta jurisprudência é a de que a cláusula de reserva de propriedade a favor da entidade mutuante, porque legalmente impossível, ter-se-á de considerar nula, nos termos do n.º 1 do art.º 280.º do Código Civil.[5]
Estamos de acordo com a orientação seguida pelo Tribunal da Relação do Porto.
Com efeito, face à letra da lei com referência expressa à licitude da cláusula «nos contratos de alienação», a que acresce o argumento de que suspendendo apenas os efeitos translativos inerentes a um contrato de alienação só poderá ser estipulada nesse contrato, bem como o facto de apenas poder reservar o direito de propriedade sobre um bem quem é o vendedor, pois só ele é o titular do direito reservado, não parece que seja possível no contrato de mútuo, tendo por finalidade o financiamento de aquisição de um determinado bem, apesar da conexão que possa existir entre os dois contratos, o mutuante poder reservar para si o direito de propriedade sobre esse bem, pela simples razão que não é seu titular, sendo juridicamente impossível que alguém reserve um direito de propriedade que não tem[6].
Assim, a cláusula de reserva de propriedade incluída no contrato de financiamento para aquisição dum veículo automóvel a um terceiro celebrado entre o mutuante (o Recorrente) e o mutuário (o Arguido) é nula porque legalmente impossível, nos termos conjugados dos artigos 409º, n.º 1 e 280º, n.º 1 do Código Civil.
Sendo nula a cláusula de reserva de propriedade que serviu de base ao registo, a presunção do registo está ilidida mediante prova do contrário, nos termos do artigo 350º, n.º 2 do Código Civil.
Em função do afastamento da cláusula de reserva de propriedade, o Recorrente não demostra ser titular do direito de que se arroga, o que prejudica o deferimento da sua pretensão.
Concluindo, é de negar provimento ao recurso, confirmando-se o despacho recorrido.
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3- DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
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Custas pelo recorrente.
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Notifique.
Porto, 18 de outubro de 2023
William Themudo Gilman
Francisco Mota Ribeiro
Maria Dolores Silva e Sousa
_______________ [1] Cfr. sobre esta matéria, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 4ª edição, 1984, p.198 e Antunes Varela, Das Obrigaões em Geral, vol I, 4ª edição, 1982, p. 260-261. [2] Acs. do STJ de 02.10.2007, Proc.07A280 (Fonseca Ramos), STJ de 07.07.2010, proc. 117/06.8TBOFR.C1.S1 (Moreira Alves), STJ de 31.03.2011, proc. 4849/05.0TVLSB.L1.S1 (Álvaro Rodrigues), STJ de 12.07.2011, proc. 403/07.07.0TVLSB.L1.S1 (Garcia Calejo), in www.dgsi.pt. [3] Ac. do STJ de 30.09.2014, proc. 844/09.8TVLSB.L1.S1 (Maria Clara Sottomayor), com um voto de vencido, in www.dgsi.pt. . [4] Cfr. o Ac. TRP de 14.11.2022, proc. 741/22.1T8VLG.P1 (Manuel Domingos Fernandes), in www.dgsi.pt. [5] Cfr.: Ac. TRP de 14.11.2022, proc. 741/22.1T8VLG.P1 (Manuel Domingos Fernandes), Ac. do TRP de 14.05.2020, proc. 1497/14.7TBSTS-F.P1 (Fernando Baptista) TRP de 10.10.2016, proc. 2548/TBVNG-D.P1 (Isabel Soeiro São Pedro), TRP de 26.04.2010, proc. 1710/09.2TBVCD.P1 (Anabela Luna de Carvalho), TRP de 15.01.2007, proc. 065196 (Cura Mariano), in www.dgsi.pt. [6] Argumentação expendida logo no mais antigo dos acórdãos da Relação do Porto citados, o Ac. TRP de 15.01.2007, proc. 065196 (Cura Mariano), in www.dgsi.pt, e na mesma senda os demais citados da Relação do Porto.