Decisão RECONHECIDO O VÍCIO DE CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA RECORRIDA E, EM CONSEQUÊNCIA, DETERMINAR O REENVIO DO PROCESSO PARA NOVO JULGAMENTO, RELATIVAMENTE À TOTALIDADE DO SEU OBJECTO.
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CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
SEGURANÇA SOCIAL
DECISÃO
FACTOS RELEVANTES PARA A DECISÃO
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO
Sumário
I - Num processo que tem por objeto um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, previsto e punido pelos arts. 107.º, 1 e 2 e 105.º, 5 do RGIT e 30.º do Código Penal, integram factualidade relevante para a boa decisão da causa (artigo 124º, nº 1, parte final, do Código de Processo Penal), a (in)capacidade financeira da empresa pagar as prestações à Segurança Social e o (não) pagamento efetivo dos salários dos gerentes da sociedade comercial, designadamente para efeitos de determinação das penas concretas. II - Existem contradições insanáveis na fundamentação da sentença (artigo 410º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Penal), quando: a) é considerado provado que a empresa sempre pagou efetivamente os salários dos gerentes e a factualidade também provada dos arguidos terem deixado de receber os seus salários em determinados períodos; b) é considerado provado que a sociedade dispôs sempre de meios financeiros para cumprir as suas obrigações contributivas para com a Segurança Social e, ao mesmo tempo, se confere credibilidade ao depoimento de uma testemunha, contabilista da empresa, de acordo com apenas se os clientes pagassem a sua dívida à empresa é que a empresa poderia ter pago as contribuições à segurança social.
Texto Integral
Processo nº 3409/19.2T9MAI.P1 Data do acórdão: 18 de Outubro de 2023
Desembargador relator: Jorge M. Langweg Desembargadora 1ª adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa Desembargador 2º adjunto: Manuel Soares Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Criminal da Maia
Sumário:
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Acordam, em conferência e por unanimidade, os juízes acima identificados da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
Nos presentes autos acima identificados, em que figuram como recorrentes os arguidos AA eBB;
I - RELATÓRIO
1. Em 11 de Janeiro de 2023 foi proferida nos presentes autos a sentença condenatória proferida na primeira instância que terminou com o dispositivo a seguir reproduzido:
" Em face de tudo o exposto, julgo a Acusação totalmente procedente, por provada e, em consequência:
Quanto à parte criminal
a) Condeno o arguido AA, pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, previsto e punido pelos arts. 107.º, 1 e 2 e 105.º, 5 do RGIT e 30.º do CP, na pena de três anos de prisão.
b) Condeno o arguido BB, pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, previsto e punido pelos arts. 107.º, 1 e 2 e 105.º, 5 do RGIT e 30.º do CP, na pena de dois anos e seis meses de prisão.
c) Suspendo a execução da pena de prisão aplicada aos arguidos, em ambos os casos, pelo período de três anos, nos termos do n.º 5 do art. 50.º do CP, na condição de procederem ao pagamento solidário ao Instituto da Segurança Social, I.P., da quantia de €204.898,67, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, até integral pagamento, sendo que ao arguido BB apenas é imputável o pagamento das cotizações devidas até Janeiro de 2015, pelo que, o mesmo não responderá pelo valor de €39.367,78, referente aos meses que se seguiram à sua renúncia à gerência, que deve ser subtraído ao valor de €204.898,67 .
d) Condeno os arguidos no pagamento da taxa de justiça, que fixo em 2 UC, e demais custas do processo (artigos 513.º e 514.º, n.º 1, do CPP).
Quanto à parte civil:
e) Julgo procedente, por provado, o pedido de indemnização civil e, em consequência:
f) Condeno os demandados a pagarem, solidariamente, ao demandante Instituto de Solidariedade Social, I.P. a quantia de quantia de €204.898,67 sendo que ao arguido BB penas é imputável o pagamento das cotizações devidas até Janeiro de 2015, devendo o valor de €39.367,78, ser reduzido quanto ao valor a pagar pelo arguido BB, e todos os valores acrescidos de juros de mora legais, vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, até integral pagamento.
g) Condeno os demandados nas custas, atento o total decaimento, art. 527.º do CPC.
(…)”
2. Inconformado com a sua condenação, o arguido BB interpôs recurso da sentença, terminando a motivação de recurso com a formulação das seguintes conclusões[1]:
"A – Vício de contradição insanável da fundamentação:
1 - Verifica-se que o Tribunal a quo apesar de dar como provada a renúncia do arguido BB à gerência da extinta sociedade, em manifesta contradição com este facto, dá como provado de forma ilógica e contraditória que este arguido, conjuntamente com o outro coarguido, após tal renúncia, continuaria a ser responsável pela não entrega dos montantes retidos de contribuições à Segurança Social respeitante aos trabalhadores e gerentes, como se lhes impunha.
2 - Tendo em consideração a matéria dada como provada em 2. e 24. da douta decisão, obviamente que deveria considerar-se como provado que o arguido BB não pode ser responsabilizado pelas prestações deduzidas aos trabalhadores e não entregues à Segurança Social após ter renunciado à gerência.
3 - Aliás, o Tribunal a quo na fixação da pena a aplicar ao arguido BB refere o seguinte, que se transcreve: “De notar que esta diferença nas penas concretamente aplicadas se deve ao facto do arguido BB ter renunciado à gerência a 19.01.2015 e, como tal, não são da sua responsabilidade as cotizações referentes aos meses de Fevereiro a Dezembro de 2015, cujo montante em causa se cifra em €39.367,78, a título de cotizações devidas.”
4 - No que concerne à factualidade dada como provada no item 26. e 29., o Tribunal a quo, com base, fundamentalmente, nos documentos que o arguido BB juntou aos autos, que devido ao acidente que foi vítima, ocorrido em 29 de agosto de 2013, esteve de baixa médica desde essa data até 19 de dezembro de 2014, data que lhe foi dada a alta médica, vindo o arguido a reformar-se, tendo antes considerado que a extinta sociedade procedeu ao pagamento dos salários dos gerentes – vide item 12. da sentença –, quando desde junho de 2012 o arguido não aufere qualquer salário, passando a partir de setembro de 2013 a receber pela Companhia de Seguros, por o acidente ter sido qualificado de acidente de trabalho – vide item 26. da sentença.
5 - Também não se alcança o motivo pelo qual o Tribunal a quo em 11. da matéria dada como provada considera que no período de tempo referido no item 8., a sociedade dispôs sempre de meios financeiros para cumprir as suas obrigações contributivas para com a Segurança Social, para a seguir dar como provado em 25. que a sociedade comercial atravessou um período de dificuldades económicas, tendo os arguidos em períodos não concretamente determinados, deixado de auferir as suas remunerações.
6 - A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão pode revestir diversas formas, entre elas, a oposição na matéria de facto dada provada, dando-se como provados dois ou mais factos que estão entre si, em oposição sendo, por isso, logicamente incompatíveis, como foi o que sucedeu com os factos dados como provados acima referidos.
7 - Ora, a ocorrência dos vícios consignados no n.º 2 do artigo 410º do C. P. Penal, determina o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426º, n.º 1 do citado diploma legal, por resultarem do texto da decisão recorrida, o que aqui expressamente se requer.
B – Da discordância da matéria de facto dada como provada:
8 – O incorreto julgamento da matéria de facto que decorre da decisão recorrida prende-se, fundamentalmente, com a ausência de prova suficiente, assim, como a insuficiente avaliação efetuada da prova elencada na sentença recorrida.
9 – O recorrente impugna a matéria de facto dada como provada nos itens 2., 5., 7., 12., 25 e a matéria dada com não provada nas alíneas a) e b) da douta sentença que aqui se sindica.
10 - Quanto aos itens 12. e 25., ao coligir-se os meios de prova supra elencados, designadamente os extratos juntos aos autos de fls…, conjugado com os depoimentos das testemunhas CC e DD e das declarações do arguido BB é perfeitamente claro que os gerentes deixaram de auferir qualquer salário desde o mês de julho de 2012. Aliás, numa interpretação literal, a factualidade vertida no item 12. entronca em manifesta contradição com a vertida em 25., não fazendo sentido afirmar que a sociedade procedeu ao pagamento dos salários dos seus gerentes, para depois infirmar que os arguidos, em períodos não concretamente determinados, deixaram de auferir as suas remunerações.
11- Além disso, inexiste qualquer meio de prova, nem o Tribunal a quo o refere, que os arguidos tenham reclamado as remunerações em sede de processo de insolvência, sendo certo que tal prova poder-se-ia obter facilmente ao requerer-se oficiosamente certidão do apenso de reclamação de créditos.
12 – As declarações de remuneração dos arguidos foram remetidas para a Segurança Social apenas porque a testemunha DD estava convencida que era uma imposição legal, remeter essas declarações apesar dos salários não serem pagos aos arguidos, na qualidade de gerentes.
13 - Não é correto o afirmado pelo Tribunal a quo que os arguidos reclamaram os seus créditos, o que é infirmado pela lista de credores apresentada pelo Administrador de Insolvência junta ao requerimento supramencionado.
14 – Impõe-se, assim, alterar esta factualidade dada como provada sugerindo-se a seguinte redação: 12. Na verdade, a sociedade arguida procedeu ao pagamento dos salários dos seus trabalhadores. 25. A extinta sociedade comercial atravessou um período de dificuldades económicas, tendo os arguidos, desde julho de 2012, deixado de auferir as suas remunerações, apesar do funcionário DD continuar a declará-las junto da Segurança Social.
15 – No que respeita aos itens 2., 5. e 7., sempre com o devido respeito por opinião contrária, os indícios apontados pelo Tribunal a quo são insuficientes para que se possa considerar que o arguido BB, no período que esteve de baixa médica, continuou a exercer de facto as funções de gerente.
16 – Como foi referido pelo arguido BB, suportado pelos depoimentos das testemunhas CC e DD, durante o período que esteve de baixa médica e até renunciar ao cargo de gerente, a extinta sociedade passou a ser totalmente controlada e gerida pelo arguido AA e o seu filho EE.
17 – Aliás, sem lhe ter dado conhecimento contrataram um novo contabilista certificado para prestar serviços à empresa.
18 – Todas as testemunhas confirmaram que, depois do acidente de trabalho que o arguido BB foi vítima, nunca mais os viram nas instalações da extinta sociedade, tendo este referido que se deslocou uma única vez para participar numa assembleia de contas.
19 - Durante o período acima descrito a extinta sociedade passou a ser dirigida em exclusivo pelo arguido AA, incumbindo-lhe a parte da gestão e administração, transmissão de ordens aos funcionários, tratamento de documentação, contabilidade, faturação, encomendas, pagamento de impostos, contratação de pessoal, processamento de salários, recebimento e cobrança de receitas e demais operações comerciais, sendo coadjuvado em tais tarefas pela testemunha DD e pelo seu filho EE.
20 - Dos meios de prova produzidos resulta que fica afastada a gerência de facto pelo arguido BB, uma vez que os funcionários deixaram de o ver, de receber ordens deste, deixando de tratar com ele de qualquer assunto relacionado com a vida da extinta sociedade, deixando de assinar quaisquer documentos, em suma, não praticou de facto quaisquer atos de gerência.
21 – Como foi referido pelo arguido BB, logo a seguir ao acidente o coarguido AA foi a sua casa para que assinasse vários cheques, para viabilizar pagamentos que viessem a ser necessários, uma vez que a extinta sociedade se obrigava com a assinatura de dois gerentes.
22 – É claro que nada disto pode constituir um qualquer ato de gerência, mas apenas facilitar o exercício do cargo de gerente pelo outro sócio/gerente, uma vez que é este gerente que decide a favor de quem os cheques são emitidos, respetivos valores e datas de vencimento.
23 – Do extrato de remuneração junto aos autos resulta que a extinta sociedade manteve a sua atividade até dezembro de 2015, sendo certo que o arguido renunciou ao cargo de gerente em 19.01.2015, não podendo, assim, o arguido assinar cheques até à data que a extinta sociedade deixou de ter atividade.
24 – Além disso, devido às dificuldades financeiras que a extinta sociedade atravessou, alguns dos cheques que o arguido assinou e entregou em branco ao arguido AA vieram a ser devolvidos por falta de provisão das contas bancárias que a extinta sociedade era titular, nomeadamente os cheques que os bancos disponibilizaram e foram entregues por este arguido ao arguido AA, ou seja, os da Banco 1..., S. A. e do Banco 2..., S. A., tendo esta instituições bancárias rescindido à convenção de cheques, ficando, assim, a extinta sociedade impedida de emitir cheques destes bancos desde 3 de dezembro de 2013, como resulta do teor do documento junto aos autos com o requerimento datado de 28 de novembro de 2022, com a REFª. 44008449, pelo que a testemunha DD está completamente confundida e baralhada ao afirmar que os cheques continuaram a ser assinados até à data que a empresa encerrou, uma vez que a empresa deixou de os poder emitir.
25 – Outrossim, fazendo fé no depoimento do arguido BB que referiu, que durante o período que esteve de baixa médica até renunciar ao cargo de gerente, conjugado com o facto de não aceitar as contas apresentadas pelo outro sócio/gerente, a extinta sociedade passou a ser totalmente controlada e gerida pelo arguido AA e o seu filho EE, inclusivamente, sem lhe darem qualquer conhecimento contrataram um novo contabilista certificado.
26 - Assim, conjugando a prova testemunhal e documental produzida com a normalidade do suceder das coisas da vida, impõe-se alterar a matéria de facto dada como provada e não provada no que concerne ao período que o arguido BB exerceu de facto a gerência da extinta sociedade.
27 - Destarte, o arguido BB só poderá ser responsabilizado pelas cotizações retidas e não pagas no período compreendido entre fevereiro de 2012 a agosto de 2013.
28 - Por via disso, a matéria dada como provada deve ser alterada nos seguintes termos: 2. Os arguidos AA e BB foram, desde 1995 e até agosto de 2013 os gerentes de direito e de facto da sociedade, tendo o BB, por ter sido vítima de um acidente de trabalho, deixado de exercer de facto tais funções até à data que veio a renunciar à gerência em 19.01.2015, pelo que durante este período foi o arguido AA o único gerente de facto e, depois dessa data, a ser o único gerente de direito e de facto. 5. No decurso da sua atividade, a sociedade comercial, outrora arguida, representada pelos arguidos AA e BB procedeu, como legalmente lhe competia, ao desconto nas retribuições pagas aos trabalhadores das contribuições devidas à segurança social (taxa de 11%), bem como reteve as quotizaçõesnos salários pagos aos gerentes, MOE (taxas de 9,3% e 11%) no período de fevereiro de 2012 a agosto de 2013, no montante de € 98.422,45, sendo que no período compreendido de setembro de 2013 a dezembro de 2015 a extinta sociedade foi apenas representada pelo arguido AA, cujo valor ascendeu à quantia de €107.524,07. 7. Ora, no período de tempo compreendido entre fevereiro de 2012 a agosto de 2013, os arguidos procederam ao pagamento dos salários aos trabalhadores, mas não entregaram os montantes retidos de contribuições à Segurança Social respeitante aos trabalhadores como se lhes impunha.
29 - Talqualmente a factualidade dada como não provada, a qual deverá ser in totum considerada por provada, uma vez que, como acima se disse, o arguido BB a partir de setembro de 2013 deixou de exercer de facto a gerência da extinta sociedade. 30 - Na sequência do que tem sido alegado, obviamente que os valores que o Tribunal a quo considerou que foram retidos, no que tange aos salários dos gerentes, terão que ser necessariamente corrigidos, uma vez que entre fevereiro de 2012 e agosto de 2013, nenhum dos arguidos auferiu qualquer retribuição. 31 - Porém, ao capear-se os documentos junto aos autos não existem elementos que permitam calcular as verbas mensais respeitantes às quotizações a deduzir nos salários dos gerentes, referentes ao período em causa, pelo que deverá ordenar-se o reenvio do processo à 1ª instância determinando-se a correção dos valores plasmados no item 8. da douta decisão, em conformidade com o ora invocado. C - Da discordância no que concerne ao preenchimento do tipo legal de crime que os arguidos vieram a ser condenados: 32 - O crime de abuso de confiança é um crime eminentemente patrimonial, tem como objeto de ação, uma coisa móvel alheia e revela-se por um ato que traduz o conteúdo da ilicitude numa apropriação. Deste modo, o crime contra a Segurança Social é um crime de apropriação, talqualmente o tipo legal do artigo 205º do C. Penal, na medida em que o abuso de confiança, na sua essência típica, é uma apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que o agente detém ou possui em nome alheio. O agente viola a propriedade alheia através da apropriação, sem quebra de posse ou detenção. 33 - A opção do legislador foi a de acentuar a lesão patrimonial como resultado típico, ao centrar a ilicitude do dano causado ao erário público, ou da segurança social e, assim, no desvalor do resultado, impondo que para a consumação típica do abuso de confiança a não entrega das contribuições retidas fosse acompanhada de apropriação, a qual se traduz na inversão do título de posse ou detenção, passando o agente a comportar-se relativamente à coisa, que recebera uti aliena, como uti dominus. 34 - Assim, não se verifica o tipo de crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, nos casos em que não exista pagamento de remunerações, por o agente não desempenhar o papel legal de substituto tributário, apesar de fazer constarda documentação emitida pela empresa, por imperativo legal, para a contabilidade da sociedade e para relevar perante terceiros, designadamente a Segurança Social, os correlativos montantes contabilizados como deduções para a Segurança Social. 35 - Face ao exposto, depois de serem corrigidos os valores vertidos no item 8. da matéria dada como provada, ao retirar-se as importâncias relativas às quotizações nos salários dos gerentes, no que concerne ao arguido BB, o montante respeitante ao período que integra a sua gerência de direito e de facto, no período compreendido entre fevereiro de 2012 e agosto de 2013, irá ser inferior a €50.000,00. 36 – No caso de assim se decidir, como se espera, o crime que o arguido BB está acusado encontra-se prescrito. 37 – O crime em causa consumou-se em 20 de setembro de 2014. 38 - O crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social é punível com prisão até 3 anos ou multa até 360 dias. 39 - Nos termos do artigo 118º, n.º 1, alínea c) do C. Penal, o prazo de prescrição do procedimento criminal é de 5 anos. 40 - A interrupção da prescrição do procedimento criminal adveio com a constituição de arguido, que ocorreu apenas em 27 de janeiro de 2020.
41 - Assim, não resta quaisquer dúvidas que se encontra prescrito o procedimento criminal, o que aqui se invoca para os devidos efeitos legais.”
3. Mostrando-se inconformado com a medida da pena e da indemnização, o arguido AA também interpôs recurso da sentença, concluindo o respetivo recurso nos seguintes termos: 1 - O Recorrente encontra-se bem inserido social e familiarmente e não tem quaisquer antecedentes criminais e conta atualmente com 84 anos de idade. 2 - Quer as exigências da prevenção especial quer as da prevenção geral, especialmente em face da avançada idade do arguido, encontram-se necessariamente esbatidas, já que o avançar da idade reduz obviamente o perigo da prática e cometimento de novos crimes. 3 - Dispõe o Art.º 72.º n.º 1 do Código Penal que “o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. 4 - Deveria, pois, a pena aplicada ao arguido ser especialmente atenuada, nos termos do n.º 1 do art.º 72 do Código Penal, devendo situar-se a mesma no limite mínimo previsto na primeira parte da alínea b) do n.º 1 do artigo 73.º de tal diploma. 5 - O valor em dívida à Segurança Social diz respeito a quotizações de 4 anos de atividade da sociedade pelo Recorrente gerida, num período de atividade de mais de 20 anos, já que a sociedade iniciou a sua atividade em 1995. 6 - O período durante o qual as cotizações não foram pagas reporta-se ao período da famigerada crise que assolou o nosso país, principalmente na área da construção civil, na qual se inseria ou de que dependia a sociedade em questão, a que não foi alheia a sociedade do Recorrente. 7 - O próprio Recorrente, em determinados períodos, deixou de auferir a sua remuneração, ao contrário dos trabalhadores que sempre foram pagos. 8 - Não se julgando aplicável a atenuação especial da pena, a pena a aplicar, atentas as razões invocadas e as circunstâncias do cometimento do crime, não deveria ser superior a 18 meses de prisão, suspensa por igual período, e não de três anos. 9 - O Recorrente encontra-se reformado auferindo uma pensão de cerca de €2.100,00, sobre a qual incide uma penhora de € 700,00; é viúvo e vive em casa dos filhos; tem despesas inerentes à sua sobrevivência e não tem quaisquer bens para além da sua pensão de reforma. 10 - A idade do Recorrente, a sua condição económica e pessoal não permitem ao Recorrente o pagamento integral da quantia em dívida, acrescida de juros, durante o prazo de suspensão. 11 - Entre a aplicação do disposto no n.º 1 do Art.º 14 do RGIT e o disposto no n.º 2 do art.º 51 do Código Penal deveria o Tribunal a quo encontrar um montante o qual fosse adequado fixar em face das condições económicas do Recorrente, o qual se deveria fixar na ordem de €23.000,00. 12 - Ao não se decidir em conformidade o tribunal "a quo" violou o disposto no n.º 2 do art.º 51, artigo 71.º e n.º 1 do artigo 72, todos do Código Penal.”
4. Os recursos foram liminarmente admitidos no tribunal a quo, subindo nos próprios autos e com efeito suspensivo.
5. O Ministério Público respondeu, concluindo pela improcedência dos recursos.
6. Nesta instância, o Ministério Público[2] emitiu parecer, no qual se pronunciou quanto ao mérito do recurso nos seguintes termos:
“(…)
Atento o teor da decisão recorrida e pelas razões constantes das respostas do MP na 1ª instância, com que estou fundamentalmente de acordo, sou de parecer que os recursos não merecem provimento.
Seja quanto à qualificação jurídica dos factos, seja quanto à medida da pena concreta aplicada a cada uma das arguidas recorrentes, afigura-se não merecerem os recursos provimento.
Na decisão proferida pelo tribunal a quo verificamos pragmática e sinteticamente que todos os elementos de facto e de direito, são ponderados, e devidamente explicados os critérios de valoração e decisão.
Não se verificam quaisquer erros ou omissões e nenhuma norma legal foi violada.
Nestes termos, sem necessidade de outras considerações, somos de parecer que os recursos dos arguidos AA e de BB.
... serem julgados improcedentes, assim se mantendo na íntegra a sentença recorrida.”
Proferiu-se despacho de exame preliminar e, não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos do Código de Processo Penal].
Questões a decidir
Do thema decidendum dos recursos:
Para definir o âmbito dos recursos, a doutrina [3] e a jurisprudência [4] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que os recorrentes extraíram da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito. Das questões a decidir neste recurso:
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir as questões substanciais a seguir concretizadas – sem prejuízo de conhecimento de eventual questão de conhecimento oficioso -que sintetizam as conclusões do recorrente, constituindo, assim, o thema decidendum: A - Recurso do arguido BB:
a) Vício de contradição insanável da fundamentação;
b) Impugnação da decisão da matéria de facto;
c) Erro em matéria de direito, por falta de preenchimento do elemento objetivo do tipo legal de crime;
d) Prescrição do procedimento criminal; B - Recurso do arguido AA:
Erros em matéria de direito:
a) por falta de atenuação especial da pena aplicada; e
b) por excessividade da indemnização.
*
Para decidir as questões controvertidas que importa apreciar, impõe-se concretizar o facto jurídico-processual relevante – a fundamentação em matéria de facto, bem como a fundamentação jurídica da sentença recorrida -.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A – Fundamentação da sentença recorrida:
“III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Matéria de facto provada
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1. A sociedade A..., Lda. encontrava-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial da Maia sob a matrícula n.º ..., e o seu objecto social consistia em fabrico de prefilados, portas de fole, grades de segurança e automatismos metalo transformadora, tendo iniciado a sua actividade em 1995 e cessou actividade e liquidada em 18.10.2017.
2. Os arguidos AA e BB foram, desde 1995 e até 19.01.2015 os gerentes de direito e de facto da arguida sociedade, tendo BB renunciado à gerência em 19.01.2015, data em que o arguido AA passou a ser o único gerente de direito.
3. A sociedade arguida desde a sua criação em 1995 até 19.01.2015, obrigava-se com a assinatura de dois gerentes, e a partir da renúncia à gerência do arguido BB passou a obrigar-se com a assinatura de um gerente.
4. Encontrando-se registados na base de dados da Segurança Social como Membros de Órgão Estatutário (MOE) da arguida sociedade os arguidos AA e BB, apresentando registo de remunerações nessa qualidade.
5. No decurso da sua actividade, a sociedade comercial, outrora arguida, representada pelos arguidos AA, BB procedeu, como legalmente lhe competia, ao desconto nas retribuições pagas aos seus trabalhadores das contribuições devidas à segurança social (taxa de 11%), bem como reteve as quotizações nos salários pagos aos gerentes, MOE (taxas de 9,3% e 11%), no período de Fevereiro de 2012 a Dezembro de 2015 no montante de €205.046,32 (duzentos e cinco mil, quarenta e seis euros e trinta e dois cêntimos).
6. E tais cotizações são determinadas pela incidência das percentagens fixadas na lei sobre as remunerações pagas ou equiparadas, devendo ser descontadas nessas remunerações e pagas pela entidade empregadora juntamente com a contribuição própria Dezembro de 2015, os arguidos, procederam ao pagamento dos salários de trabalhadores e gerentes, mas não entregaram os montantes retidos de contribuições à Segurança Social respeitantes aos trabalhadores e gerentes, como se lhes impunha.
8. Os arguidos retiveram e não entregaram à Segurança Social o valor global de € 204.898,67, devidamente rectificado pelo Instituto da Segurança Social, a que acrescem os juros de mora, e que se discriminam infra:
- Fevereiro de 2012 - cotização retidas e não pagas: €6588,17;
- Março de 2012 - cotizações retidas e não pagas: €5649,24;
- Abril de 2012 - cotizações retidas e não pagas: €5696,17;
- Maio de 2012 - cotizações retidas e não pagas: €5077,67;
- Junho de 2012 - cotizações retidas e não pagas: €6765,96;
- Julho de 2012 - cotizações retidas e não pagas: €6886,21;
- Agosto de 2012 - cotizações retidas e não pagas: €4882,75;
- Setembro de 2012 - cotizações retidas e não pagas: €6149,10;
- Outubro de 2012 – cotizações retidas e não pagas: €5485,49;
- Novembro de 2012 – cotizações retidas e não pagas: €5023,54;
- Dezembro de 2012 – cotizações retidas e não pagas: €3740,22;
- Janeiro de 2013 – cotizações retidas e não pagas: €3270,74;
- Fevereiro de 2013 – cotizações retidas e não pagas: €4991,75;
- Março de 2013 – cotizações retidas e não pagas: €4896,49
- Abril de 2013 – cotizações retidas e não pagas: €4895,70;
- Maio de 2013 – cotizações retidas e não pagas: €3986,14;
- Junho de 2013 – cotizações retidas e não pagas: €4361,00;
- Julho de 2013 – cotizações retidas e não pagas: €5419,43;
- Agosto de 2013 – cotizações retidas e não pagas: €4656,68;
- Setembro de 2013 – cotizações retidas e não pagas: €3837,20;
- Outubro de 2013 – cotizações retidas e não pagas: €4058,86;
- Novembro de 2013 – cotizações retidas e não pagas: €3746,26;
- Dezembro de 2013 – cotizações retidas e não pagas: €2614,84;
7. Ora, no período de tempo compreendido entre Fevereiro de 2012 a Janeiro de 2014 – cotizações retidas e não pagas: €3510,18;
- Fevereiro de 2014 – cotizações retidas e não pagas: €3371,25;
- Março de 2014 – cotizações retidas e não pagas: €3375,36;
- Abril de 2014 – cotizações retidas e não pagas: €3352,67;
- Maio de 2014 – cotizações retidas e não pagas: €3421,65;
- Junho de 2014 – cotizações retidas e não pagas: €4477,78;
- Julho de 2014 – cotizações retidas e não pagas: €4948,42;
- Agosto de 2014 – cotizações retidas e não pagas: €3798,35;
- Setembro de 2014 – cotizações retidas e não pagas: €3362,81;
- Outubro de 2014 – cotizações retidas e não pagas: €3471,11;
- Novembro de 2014 – cotizações retidas e não pagas: €3548,29;
- Dezembro de 2014 – cotizações retidas e não pagas: €6204,85;
- Janeiro de 2015 – cotizações retidas e não pagas: €3520,05;
- Fevereiro de 2015 - cotizações retidas e não pagas: €3527,10;
- Março de 2015 – cotizações retidas e não pagas: €3557,81;
- Abril de 2015 – cotizações retidas e não pagas: €3516,31;
- Maio de 2015 – cotizações retidas e não pagas: €3844,58;
- Junho de 2015 – cotizações retidas e não pagas: €4111,26;
- Julho de 2015 – cotizações retidas e não pagas: €4635,64;
- Agosto de 2015 – cotizações retidas e não pagas: €3275,85;
- Setembro de 2015 – cotizações retidas e não pagas: €3380,18;
- Outubro de 2015 – cotizações retidas e não pagas: €3536,36;
- Novembro de 2015 – cotizações retidas e não pagas: €6133,48;
- Dezembro de 2015 - cotizações retidas e não pagas: €3385,57.
9. O pagamento de tais contribuições à Segurança Social deveria ter sido efectuado até ao dia 10 e 20 do mês seguinte àquele a que as contribuições respeitavam.
10. Para além de tais contribuições não serem entregues no referido prazo, também não foram entregues nos noventa dias seguintes sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.
11. Durante os referidos períodos de tempo acima indicados a sociedade dispôs sempre de meios financeiros para cumprir as suas obrigações contributivas para com a Segurança Social.
12. Na verdade, a sociedade arguida procedeu ao pagamento dos salários dos seus trabalhadores e gerentes.
13. Em 24.08.2017, foi a sociedade arguida notificada através do seu gerente o aqui arguido AA para, no prazo de 30 dias, pagar ou apresentar prova de ter pago o valor das cotizações em dívida à Segurança Social, nos termos do disposto na al. b) do nº 4 do art. 105.º do R.G.I.T., não tendo, até à presente data apresentado qualquer comprovativo do pagamento da importância em dívida.
14. Os arguidos tinham conhecimento de que as contribuições deduzidas do valor dos salários pagos aos trabalhadores e gerentes pertencem à Segurança Social, a quem deveriam ser entregues nos prazos.
15. Adoptaram um comportamento de não cumprimento sistemático de tais obrigações pois, mês após mês, reiteraram o desígnio de não proceder à entrega das contribuições, efectivamente, deduzidas nas remunerações pagas aos seus trabalhadores e gerentes.
16. E ao não entregarem as cotizações estavam a actuar como se as mesmas lhes pertencessem, satisfazendo outros compromissos financeiros e integrando-as no giro económico da sociedade arguida, estando plenamente cientes de que com tal conduta violavam a referida obrigação legal.
17. A supra descrita conduta, foi facilitada pela circunstância de as entidades empregadoras actuarem como substitutos legais da Segurança Social, através do mecanismo da retenção da fonte, pois o próprio sujeito passivo da contribuição tem a obrigação de a auto liquidar e proceder ao seu pagamento.
18. Actuaram, assim, com o reiterado propósito conseguido de fazer da sociedade cada uma das importâncias devidas à Segurança Social e, destarte, com a intenção de obter para si e para a sociedade arguida benefício ilegítimo no valor global actualizado de €204.898,67.
19. Agiram os arguidos de forma livre, voluntária, concertada e conscientemente, de forma reiterada, essencialmente homogénea, com plena consciência de que os seus comportamentos eram proibidos e punidos por lei.
Mais se provou:
20. A assistente/demandante Instituto da Segurança Social, nos processos de Insolvência tanto do arguido pessoa singular como pessoa colectiva não recebeu qualquer montante peticionado nestes autos.
21. A sociedade comercial A..., Lda. foi declarada insolvente por Sentença datada de 4.12.2013.
22. Foi homologado o Plano de Insolvência da sociedade comercial, em Fevereiro de 2014, cuja Sentença foi proferida a 6.06.2014.
23. A Insolvência da sociedade comercial foi qualificada como fortuita.
24. A 19.01.2015 o arguido BB renunciou à gerência da sociedade, por carta registada com aviso de recepção.
25. A sociedade comercial atravessou um período de dificuldades económicas, tendo os arguidos, em períodos não concretamente determinados, deixado de auferir as suas remunerações, mas declararam-nas, ainda assim, junto da Segurança Social e reclamaram-nos em sede de processo de Insolvência.
26. Em 29 de Agosto de 2013, o arguido foi vítima de um acidente de viação quando estava ao serviço da sociedade, que veio a ser qualificado de acidente de trabalho.
27. Devido a esse acidente, desde tal data, o arguido deixou de poder apresentar-se na empresa.
28. Foi atribuído ao arguido uma IPP de 27,6%.
29. No dia que lhe foi atribuído alta médica, em 19 de Dezembro de 2014, o arguido reformou-se.
30. Acontece que, quando lhe remeteram as contas respeitante ao exercício do ano de 2014, por não concordar e as não poder aceitar, recusou-se a assiná-las.
31. Tendo, por comunicação expedida em 19 de janeiro de 2015, renunciado ao cargo de gerente.
32. O arguido deixou de exercer de forma efetiva qualquer poder de administração ou de tomada de decisão sobre a vida da sociedade depois da renúncia.
33. Por essa razão, a administração da sociedade passou a estar concentrada, de forma efetiva e real, no coarguido AA.
34. Passando, assim, a ser o único gerente de facto e de direito da sociedade A..., Lda.
35. O arguido AA está reformado, auferindo cerca de 2.100,00 a título de reforma, incidindo sobre a reforma uma penhora de €700,00.
36. É viúvo e vive sozinho em casa própria.
37. A casa é dos filhos, por doacção do arguido, tem despesas inerentes à sua sobrevivência.
38. Não tem bens registados em seu nome.
39. Estudou até ao 4.º ano de escolaridade.
40. O arguido BB está reformado, auferindo uma reforma de €2.900,00 que se encontra penhorada em valor que não precisou.
41. Vive com a mulher que também está reformada e aufere cerca de €1.000,00 a esse título.
42. Vivem em casa da sogra que foi institucionalizada.
43. Não tem bens registados em seu nome.
44. Estudou até ao 9.º ano
45. Os arguidos não têm registadas no seu Certificado de Registo Criminal quaisquer condenações.
Matéria de facto não provada
Da discussão da causa resultou não provado:
a) O arguido BB deixou de exercer de facto as funções de gerente da sociedade após o acidente de 29.08.2013.
b) No período compreendido entre de 29 de Agosto de 2013 e 19 de Dezembro de 2014, o arguido esteve completamente impossibilitado de se deslocar à sociedade, passando a gestão da sociedade ficado, em exclusivo, a cargo do outro co-arguido.
Motivação da decisão de facto
Em obediência ao disposto no artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, importa indicar as provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal.
Como dispõe o artigo 127.º, do Código de Processo Penal, a prova é apreciada “segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Significa este princípio que o julgador tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base no juízo que se fundamenta no mérito concreto do caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido no processo.
Sendo assim, o Tribunal alicerçou a convicção probatória referente à factualidade provada na apreciação crítica e articulada de toda a prova produzida em Audiência de Julgamento e documental constante dos autos, à luz das elementares regras da experiência, do senso comum e da normalidade.
Concretizando um pouco melhor, mereceram especial importância os diversos documentos juntos aos autos, designadamente, a certidão de registo comercial da inscrição da sociedade arguida, as folhas de remunerações mensais dos trabalhadores e órgãos estatutários, entregues à Segurança Social, bem como os recibos de remunerações, que permitiram confirmar o pagamento dos salários aos trabalhadores e órgãos estatutários, o respectivo desconto das contribuições devidas, os mapas de valores deduzidos e não entregues à segurança social, em que se confirmam as quantias efectivamente retidas e não entregues pelos arguidos aos Serviços da Segurança Social e os documentos que confirmam a notificação efectuada pelos serviços da Segurança Social à sociedade e seu legal representante, para que procedessem ao pagamento voluntário das dívidas existentes àquela, no prazo de 30 dias, previsto na al. b) do n.º 4 do art. 105º do RGIT.
Bem como os elementos clínicos e a renúncia apresentados pelo arguido BB. E, ainda, os documentos juntos pela Segurança Social no que concerne aos montantes em dívida.
Por outro lado, é de destacar, também, as declarações dos arguidos e a demais prova testemunhal produzida.
A saber:
Das declarações dos arguidos, aliadas aos documentos juntos, resultaram provadas as condições de laboração da sociedade comercial. Tendo os arguidos precisado que, dentro da empresa, cada um assumia um departamento, com vista à divisão de tarefas. O arguido AA disse-nos que a parte dele era a fabril. E que os assuntos em causa nos autos seriam da responsabilidade do contabilista. Confirmou que, em média, a empresa tinha cerca de 30 trabalhadores.
Confirmou os encargos da empresa, as dificuldades de tesouraria e o facto de, alguns meses, ele e o co-arguido nem receberem os respectivos salários, não obstante os declarassem à Segurança Social para efeitos de reforma.
Mais continuou com a afirmação que havia clientes que não pagaram. Para os trabalhadores nunca faltou o dinheiro e afirmou que o que tinham em mente era manter a sociedade comercial em laboração.
Além da conjuntura económica o arguido BB teve um acidente de viação, que foi classificado como acidente de trabalho e tal facto veio desestabilizar o funcionamento da empresa. Embora o arguido estivesse a par das suas decisões e, inclusivamente, lhe tivesse entregado cheques assinados em branco para agilizar a actividade da empresa. Sabe que se tem de pagar à Segurança Social.
Não obstante a defesa tentasse passar a ideia que o arguido era destituído de capacidade de gestão, certo é que do seu discurso em Audiência de Julgamento, percebemos que o arguido, com postura autoritária, dificilmente seria permeável a interferências, contando com o arguido BB na gestão da empresa.
Por seu turno, disse-nos o arguido BB que estava mais ligado à parte comercial. Ficou evidente que os trabalhadores auferiam, na sua maioria, o salário mínimo nacional. Mas quem estava dentro de todas estas questões era o contabilista que desenvolvia a sua actividade internamente.
Os arguidos tinham, ainda, os filhos a trabalhar na sociedade, pelo menos, alguns deles.
Em síntese, o arguido assume a gestão da sociedade comercial. Mais referindo que, não obstante seja graduado apenas com o 4.º ano de escolaridade. Trabalhava de dia e de noite, trabalhava desde os 14 anos na área e conseguiu desenvolver a sociedade com o co-arguido.
O arguido BB, por sua vez, conseguiu contextualizar melhor a situação da pessoa colectiva, afirmou que atenta a área da actividade, a mesma teve grandes problemas porque tendo as obras de construção civil escasseado, por força da crise vivida na construção, por volta do ano de 2011, houve clientes que não lhes pagaram. Faziam o esforço de pagar aos trabalhadores e aos fornecedores, para manterem a empresa em laboração.
Para acorrer a estas dificuldades, fizeram a reestruturação da empresa, depois das férias, em Novembro de 2012. Despediram alguns funcionários, cerca de 10 pessoas. Mas não se mostrou suficiente, não havia dinheiro que entrasse na empresa para pagar aos trabalhadores, sendo que auferia um salário na ordem dos €5.200,00, que, como constatamos das fichas de remuneração permitia o pagamento integral das cotizações em dívida e ainda sobrava.
Mais referiu o arguido BB que, em Julho de 2013, tiveram uma reunião com o financeiro, o sócio, no sentido de tomar alguma posição. Não obstante, em Agosto de 2013 teve um acidente de trabalho muito grave, mantendo-se incapacitado para o trabalho até Dezembro de 2014, nesta altura recebia a baixa pelo seguro, por força do seu vinculo contratual à empresa. Depois da alta médica, disse-nos que ia poucas vezes à empresa, acabando por não assinar as contas por não concordar com elas fez a renuncia à gerência.
Quanto ao património da empresa, quando se apresentou a Insolvência, as máquinas e os carros estavam avaliados em mais de 1 milhão de euros.
Os arguidos já se conhecem há cerca de 60 anos, embora estejam, actualmente, com más relações. O arguido BB era o motor comercial da empresa, a filha era técnica de recursos humanos da empresa e a parte operacional era da responsabilidade do arguido AA e dos filhos, que não tendo competência de gestão, eram trabalhadores da empresa.
Confirmou a versão do arguido AA, alegando que houve muitos clientes que deixaram de pagar. O colaborador directo do co-arguido era o filho EE, mas acabou por confirmar que ocorriam reuniões e contactos frequentes, mesmo durante o seu período de baixa médica, para apurar o estado de funcionamento da sociedade comercial. Ainda que o arguido pudesse estar menos activo atenta a sua situação clínica.
Renunciou à gerência quando já não havia hipótese dos arguidos se entenderem, em 19.01.2015 renunciou à gerência. Estava com esperança que ia levantar a empresa. Disse-nos que os bens da empresa foram vendidos em leilão, à empresa do filho. Mas o que é facto é do Processo de Insolvência não resulta qualquer evidência, tendo a mesma sido qualificada como fortuita.
Eram 50 e tal trabalhadores e chegaram a ter 100 trabalhadores. Compraram as máquinas com leasing, tudo com recurso a crédito. As máquinas eram avaliadas em €1.400.000,00.
Mais confirmou o arguido que não recebeu o seu salário todos os meses, porém, acaba por referir que o podia receber mais tarde e que chegou a reclamar valores no processo de insolvência.
O contabilista era o FF, o Dr. CC é que era quem assinava e era o director financeiro e responsável pela escrita da empresa. Dr. DD preparava a papelada toda, o Dr. CC era avençado e o Sr. DD era funcionário da empresa.
Em Julho de 2014 foi aprovado um Plano de Recuperação da Empresa e havia esperança que melhorasse, disse-nos que estava convencido que o plano de recuperação estava a ser cumprido, só no final de Dezembro de 2014 é que soube que não ia seguir. Não obstante, face à posição que ocupava na empresa, nunca se preocupou em se actualizar da situação da empresa, pretendendo dar a ideia que não sabia de nada mas tal é inverosímil. Considerando o Tribunal pouco credível que, ainda que estivesse doente, durante um período tão longo de tempo não fosse mais vigoroso na sua intervenção. Tendo o Tribunal percebido que, inclusivamente, havia reuniões frequentes com as outras testemunhas ouvidas.
Designadamente, GG, nascido a .../.../1969, Técnico Comercial, trabalhou nas A... desde 1995, praticamente, até ao fim, é filho do arguido AA. Disse-nos que as Instalações da sociedade em causa nos autos e da sociedade “dos filhos do arguido” são ao lado da outra, no mesmo sector da zona industrial.
Sabe que os funcionários recebiam todos os salários, já os gerentes, não sabe se recebiam ou não os salários.
A empresa dos irmãos foi constituída cerca de um mês depois de fechar a sociedade em causa nos autos.
HH, nascido a 24.05.1986, pintor de automóveis, foi trabalhador da empresa, desde 2006 até 2013/2014, despediu-se, mas está de bem com os arguidos, ainda chegou a trabalhar na empresa criada pelos filhos do arguido AA, ficou lá dois ou três meses. Confirmou que ficou a trabalhar nas mesmas instalações, com as mesmas máquinas. Disse-nos que sempre recebeu o salário por transferência bancária, ia junto do Sr. DD para assinar o recibo e confirmou que não viu o arguido BB depois do acidente.
II, nascido a 13.08.1986, serralheiro, trabalhou na sociedade comercial desde 2001 ate ao fecho e também foi admitido na sociedade criada pelos filhos do arguido AA. Também confirmou que lhe pagaram sempre o salário, às vezes houve alguns atrasos, recebia por transferência bancária, ia ao escritório assinar. Mais referiu que o arguido AA andava mais no terreno e o arguido BB trataria de outros assuntos. A informação que os arguidos davam aos trabalhadores para justificar o atraso nos pagamentos era que os clientes que não pagavam. Por fim, disse-nos que reclamou os créditos salariais no processo de insolvência, tendo recebido do Fundo de Garantia Salarial.
A testemunha JJ, trabalhou na empresa, 1 de Março de 2010 até Abril de 2016, porque, entretanto, encerraram as instalações de Viseu, onde trabalhava. Foram os dois arguidos que a contrataram. Sempre recebeu os salários, Houve alturas que recebeu mais tarde, mas no processo de insolvência foi tudo pago pelo Fundo de Garantia Salarial. A nível financeiro falava com o EE e em relação à produção o KK. Por seu turno, a testemunha LL, nascido a .../.../1960, reformado, trabalhou na sociedade comercial cerca de oito anos, disse-nos que foi contratado pelo filho do arguido AA, mas quem decidia tudo eram os arguidos. Era operário fabril, o salário foi sempre pago, para o fim já deixaram para pagar. Pagaram tudo aos bocadinhos.
A testemunha MM, nascida a .../.../1964, Técnica do ISS, no Núcleo dos Serviços Centrais de recuperação, analisou processo a pedido do núcleo de investigação criminal. Foi com base no depoimento desta testemunha que nos disse que, quando estava a analisar a dívida, constatou que se verificaram algumas correcções, portanto o valor actualizado da dívida é o do requerimento datada de 21.11.2022, ou seja: € 204.898,67, a alteração deve-se aos meses de Julho a Outubro de 2014, em relação aos quais havia deduções pendentes que foram feitas mais tarde. Em termos técnicos, esclareceu as deduções realizadas pela Segurança Social. Mais esclareceu que esta dívida teve três planos de pagamentos que foram incumpridos, sendo o último DUC pago foi em Agosto de 2013. Até Fevereiro de 2012 não havia quaisquer montantes em dívida.
Como refere, do mapa de retribuições podemos constatar que os arguidos, sempre declararam receber os respectivos salários, sendo o arguido BB, até ter renunciado à gerência em Janeiro de 2015. Como tal, uma vez que a entidade declarou o pagamento dos salários, não compete ao Instituto da Segurança Social apurar se a sociedade pagou ou não a remuneração aos trabalhadores ou aos órgãos estatutários.
Quanto à testemunha FF, nascido a .../.../1963, eng. Civil, direcção técnica, disse-nos que trabalhou cerca de dez anos na empresa, funcionava como consultor, na parte técnica, pois o alvará exigia um Eng. Civil, ele cumpria essa função. Sabe que deixou de receber e actualmente ainda trabalha para a empresa participada pelos filhos do arguido AA, tinha uma relação mais directa com o arguido BB e começou a falar mais com o Sr. AA depois do acidente do arguido BB. Confirmou as dificuldades pelas quais a empresa passou.
DD, nascido a .../.../1954, contabilista independente há 10 anos, trabalhou para a arguida desde de 1995 até quando fechou, em 2016. Exercia funções de chefe de escritório, contabilidade, processamento de salários, a empresa tinha um contabilista externo, NN.
A empresa foi crescendo, em 2011, no tempo da Troika, houve um período muito complicado, muitas insolvências e foram afectados. De 1995 e até 2011 sempre cumpriu com as suas obrigações, designadamente, perante a Segurança Social. A crise abrangeu todas as empresas de construção. Lançaram mão do PER, mas não foi suficiente. Era habitual terem reuniões de gestão todas as semanas com os arguidos e colocava em cima da informação sobre dívidas e créditos. E acabaram por não ter dinheiro.
Confirmou que houve uma altura em que os gerentes deixaram de receber as remunerações, mas também não soube precisar quando, tendo apontado para 2013/2014. Os arguidos recebiam remunerações na ordem dos €5.000,00 e os funcionários recebiam, na generalidade, o salário mínimo nacional. Confirmou a segmentação dos departamentos de cada um dos arguidos, sendo o arguido AA responsável pela parte produtiva e o arguido BB era a parte comercial e orçamentos.
Quando o plano de insolvência foi aprovado, o arguido BB não foi à empresa, ficou acordado pagar prestações, mas não foram pagas as prestações à Segurança Social. Pagaram alguma coisa, durante dois ou três meses. A empresa era gerida pelo outro sócio, AA, durante esse período de tempo. Confirmou que a empresa, em 2014, tinha património de cerca de um milhão de euros, que podiam pagar à segurança social. Disse-nos, ainda que o arguido BB depois do acidente terá ido por volta de meia dúzia de vezes à empresa. Manteve as reuniões mesmo quando o BB estava de baixa médica. A testemunha não informou o outro sócio. A empresa foi apresentada a outra insolvência. Diz que não faz ideia do que aconteceu aos equipamentos, máquinas, carros.
Mais referiu que a empresa, depois de fechar, deu lugar a outra, instalada no mesmo sítio, com os mesmos bens, começou a funcionar logo no dia seguinte. O arguido BB não aprovou as contas de 2014. A minuta da acta era feita pela testemunha mas não se recorda se assinou ou não o documento.
Além da crise que afectou o sector da construção civil, foram realizados maus negócios, quer fosse pelo comercial arguido BB, quer depois pelo AA e pelo filho EE.
Quanto à intervenção do arguido BB na gestão da empresa, disse-nos que os cheques assinados por este arguido só deixaram de aparecer assinados quando a firma acabou, mesmo no período de doença os cheques apareciam assinados. Houve acordo de não terem recebido salário, cerca de meio ano, mas receberiam para futuro. Os valores não foram repostos. O AA voltou a receber e o BB estava a receber.
Houve acordos com a Segurança Social, de dívidas para trás. Anteriormente, já havia problemas de pagamento, mais iam conseguindo regularizar. Só o PER de 2014 é que veio ajudar e foram pagas duas ou três, e não foi só à Segurança Social.
A empresa foi transmitida no âmbito do processo de insolvência, sabe que houve leilão público. O valor adicional resultou da venda da empresa. Sabe que o AA fez suprimentos para comprar matéria prima para se vender, na ordem dos €200.000,00, acha que o AA teria mais flexibilidade financeira.
Também ouvimos a testemunha OO, nascido a .../.../1956, reformado, empregado na sociedade comercial A..., 11/12 anos, desde acha 2004. Recorda-se de ouvir falar do acidente do Sr. BB, depois nunca mais o voltou a ver. Os patrões faziam a ronda e depois nunca mais o viu até ao encerramento da empresa. Houve despedimento de trabalhadores. Recebeu sempre o salário mínimo nacional, Dois/três anos antes houve despedimentos no escritório. Recebeu do Fundo de Garantia Salarial e depois do produto da massa insolvente.
Por seu turno, CC economista, foi contabilista certificado entre 1995 e 2013 da empresa, avençado. Durante o ano fazia visita mensal, no fecho das contas é que a assistência à empresa era maior. A empresa tinha um administrativo, Sr. DD que tinha conhecimentos técnicos e fazia o acompanhamento da contabilidade. Fechou as contas de 2013 e depois abandonou. A partir de 2011 e 2013 a empresa começou a ficar muito mal.
Sucede que, apreciando os elementos documentais, percebemos que do Balanço de 2013 consta um milhão, novecentos e treze mil euros de dívida de clientes. Os activos estavam em cerca de € 500.000,00. O passivo da empresa €500.000,00 à segurança social, se os clientes pagassem pagavam o passivo.
Não se recorda se houve alguma reserva do arguido BB em assinar as contas. Desde Março/Abril de 2014, já estava de saída, só fez o fecho de contas.
A diferença de remuneração entre os arguidos não sabe explicar mas acha que havia equilíbrio remuneratório. Tinha relação com o facto de um ter mais filhos do que o outro. Foi contratado pelos dois. As dívidas deviam ser pagas e alertou os dois e eles estavam conscientes do risco, mas justificavam: “Isto está mau, as encomendas caíram, os clientes não estão a pagar, vamos arriscar para tentar por a máquina em funcionamento a aguardar por dias melhores.”
Do balanço, as despesas com os gastos do pessoal 2012 €1.008.000 e em €2013 cerca de €600.000,00.
A empresa não tinha viabilidade para não haver males maiores. Quem conseguiu aguentar a crise teve pela frente mais uns quantos anos de sucesso.
Não foi o director financeiro da empresa, eles tinham de dar tudo em dinheiro, não havia hipótese, os clientes não pagavam. Sabe que os gerentes deixaram de receber
A partir de Abril de 2013 deixaram de ser enviados os documentos relativos aos gerentes. Não sabia quando o AA veio reformado.
Por fim, a testemunha PP, nascido a 4.04,1975, electricista em nome individual, trabalhou na empresa de 2004 a 2016/2017. Saiu de bem com os arguidos, embora os colocasse em Tribunal para receber os direitos. Foi despedido por uma advogada e o encarregado da fábrica. Não tendo adiantado nada mais com interesse para a decisão da causa.
Assim, os factos provados resultam de todos os elementos de prova, analisados à luz das regras da experiência comum e da normalidade, os quais permitem concluir que ao actuar nos termos em apreço, bem sabendo que não o podia fazer, por se tratar de factos proibidos por lei, os arguidos agiram sempre voluntária e conscientemente, bem sabendo as implicações da sua conduta e os elevados montantes em que lesava o Instituto da Segurança Social, IP.
Os arguidos depuseram também quanto às suas condições pessoais, familiares e económicas, tendo merecido credibilidade, tanto mais que foram confirmados pelos relatórios sociais junto aos autos.
Relativamente aos antecedentes criminais, o Tribunal fundou a sua convicção no teor dos Certificados de Registo Criminal, atento o disposto no art. 169.º do Código de Processo Penal.
No que concerne aos factos tidos por não provados, não foi produzida qualquer prova, sendo impossível ao Tribunal considera-los de forma diversa.
De notar que não nos pronunciamos quanto a factos inócuos para a decisão da causa, alegações de direito ou meras repetições.
*
De Direito Do enquadramento jurídico da conduta
Encontra-se imputada aos arguidos acusados da prática, em co-autoria, um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, previsto e punível pelo art. 30.º, n.º 2 e 79.º do Código Penal e art. 107.º do RGIT, com referência ao art. 105.º, n.ºs 1 e 5 do mesmo diploma legal.
Dispõe o art. 107.º do R.G.I.T., sob a epígrafe “abuso de confiança contra a segurança social” que “as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos números 1 e 5 do art. 105º”.
O bem jurídico protegido pelo crime de abuso de confiança contra a segurança social é o regular funcionamento do sistema fiscal afecto às receitas provenientes das contribuições dos trabalhadores e dos membros dos órgãos sociais, pelas quais o Estado visa alcançar os objectivos que a Constituição da República Portuguesa lhe traça, como sejam os específicosda solidariedade e segundo os quais compete ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado, que proteja os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.
Como referem Tolda Pinto e Reis Bravo, in Regime Geral das Infracções Tributárias e regimes sancionatórios especiais anotados, Coimbra, 2002, p. 343, relativamente à anterior redacção, o actual preceito prescinde da comprovação do elemento apropriação do montante das contribuições legalmente devidas por parte dos trabalhadores e acrescentou a dedução das contribuições devidas aos membros dos órgãos sociais.
As entidades empregadoras acima referidas são os responsáveis pela respectiva administração ou gerência, no caso de sociedades.
Tem-se por prestação tributária os impostos, incluindo os direitos aduaneiros e direitos niveladores agrícolas, as taxas e demais tributos fiscais ou parafiscais cuja cobrança caiba à administração tributária ou à administração da segurança social (cfr. art. 11.º, al. a), do RGIT).
O pagamento ou entrega das contribuições pelas entidades empregadoras nos serviços competentes da Segurança Social deve ser efectuado até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que disserem respeito (art. 5.º, n.ºs 2 e 3 do D.L. n.º 103/80 e art. 18.º do DL nº 140-D/86).
Este regime veio a ser consagrado também no art. 46º, n.º 1 e art. 47º, da Lei n.º 32/2002, de 20 de Dezembro, conjugado com o art. 3º, n.º 2, al. d) do Decreto-Lei n.º 260/99, de 7 de Julho, na redacção que lhe foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 112/2004, de 13 de Maio, ou seja, o pagamento ou entrega das contribuições pelas entidades empregadoras à Segurança Social é legalmente exigível e deve ser efectuado até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que disserem respeito.
Na redacção do art. 107.º do RGIT, como vimos, prescinde-se da apropriação, bastando, somente, que a devedora daquelas quantias as não entregue no tempo devido à Segurança Social, tempo devido este que engloba os 90 dias em apreço (cfr. art. 107º, n.º 2 e 105º, n.º 4, al. a)), enquanto condição de procedibilidade. Acrescem, ainda, nos casos em que se verifica a apresentação ou entrega pelo sujeito passivo de uma declaração de liquidação ou pagamento (como é o caso dos autos), não acompanhada da entrega da prestação tributária devida, a condição de que a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração, não tenha sido paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito (al. b) do n.º 4 do artigo 105º).
Assim, são, actualmente, elementos objectivos do tipo:
a) a dedução do valor das remunerações pagas aos trabalhadores e órgãos dos membros estatutários do montante das contribuições devidas à segurança social;
b) a sua não entrega total ou parcial, no período de 90 dias.
Para que se verifique a prática deste tipo de crime não é necessário, que, em concreto, se verifique um real proveito ou benefício para os autores do mesmo nem tão pouco a apropriação.
Para a verificação do crime, aos elementos objectivos há-de acrescer o dolo do agente, em qualquer uma das modalidades previstas no artigo 14º do Código Penal (cfr. artigo 13º do mesmo diploma).
Ora, é isto que sucede no caso dos autos, conforme se alcança dos factos dados como provados, os arguidos, pessoas singulares, efectivamente, na qualidade de representante legal da sociedade arguida, procederam ao desconto, no valor das remunerações pagas aos trabalhadores, nos períodos em causa nos autos, do montante das contribuições por estes legalmente devido à Segurança Social, e não efectuou, até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitam, nem nos 90 dias subsequentes àquela data, nem até à presente data, a sua entrega nos serviços da Segurança Social, optando por as integrar na sociedade arguida.
Acresce que, em seu nome e no da sociedade, de quem era legal representante, foi notificado, para proceder ao pagamento, no prazo de 30 dias, do valor em dívida relativo às cotizações retidas e não entregues e respectivos juros de mora que se vencessem até integral pagamento, com a advertência de que o seu cumprimento determinaria o arquivamento do presente processo de inquérito. E nem então a arguida procedeu ao cumprimento desta obrigação legal.
Finalmente, provou-se que em todos aqueles períodos de tempo, sabiam os arguidos que o montante que gastaram e utilizaram em proveito da sociedade arguida pertencia ao Instituto de Segurança Social e a este devia ter sido entregue juntamente com as folhas das remunerações processadas, pelo que, não o tendo feito, quiseram e conseguiram os arguidos, através das prestações deduzidas e da sua não entrega à Segurança Social, nos termos e pela forma relatada, obter benefícios que lhes eram vedados por lei.
Agiram os arguidos de forma deliberada, livre e consciente, reiterada no tempo e com o mesmo modo de proceder, no interesse da sociedade arguida procurando, e conseguindo, obter um enriquecimento indevido à custa da Segurança Social, através da não entrega dos montantes provenientes dos descontos efectuados nas remunerações, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e que assim lesava os interesses da Segurança Social.
Pelo exposto, por várias vezes (tantas quantas as quantias retidas e não pagas à segurança social), os arguidos cometeram o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social. Todavia, importa considerar que o fizeram sempre da mesma forma, adoptando a mesma forma de actuar e no âmbito de um mesmo quadro de circunstâncias homogéneas.
De acordo com o disposto no art. 30.º, do Código Penal, “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente” (cfr. n.º 1). Porém, constitui “um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente” (cfr. n.º 2), sendo certo que “o disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima” (cfr. n.º 3).
Vimos já que os arguidos cometeram, diversas vezes, o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, mas fizeram-no sempre da mesma forma, no âmbito das mesmas circunstâncias exteriores e com a mesma intenção, que foi diminuindo a sua culpa, pelo que, se pode concluir que os arguidos praticaram, nos termos da Acusação Pública proferida, um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
B – De jure:
1º - Do vício formal da sentença § 1 – O arguido recorrente BB arguiu o vício formal da sentença de contradição insanável da fundamentação.
Para tanto, alega que o Tribunal a quo considerou provados os factos 26. e 29 com base nos documentos que o recorrente juntou aos autos (v.g. que devido ao acidente de que foi vítima, ocorrido em 29 de agosto de 2013, esteve de baixa médica desde essa data até 19 de dezembro de 2014, data que lhe foi dada a alta médica, após o que o arguido se reformou), tendo antes considerado que a extinta sociedade procedeu ao pagamento dos salários dos gerentes (facto provado 12) quando, desde Junho de 2012, o arguido não aufere qualquer salário, passando a partir de setembro de 2013 a receber pela Companhia de Seguros, por o acidente ter sido qualificado de acidente de trabalho (facto 26) da sentença.
Alega ainda que a sua renúncia à gerência da entretanto, extinta sociedade, contradiz a conclusão de que este arguido, conjuntamente com o outro coarguido, após tal renúncia, continuaria a ser responsável pela não entrega dos montantes retidos de contribuições à Segurança Social respeitante aos trabalhadores e gerentes.
Finalmente, ainda identifica outra alegada contradição que consiste no facto provado de que no período de tempo referido no facto 8., a sociedade ter tido sempre à sua disposição meios financeiros para cumprir as suas obrigações contributivas para com a Segurança Social, para a seguir dar como provado em 25. que a sociedade comercial atravessou um período de dificuldades económicas, tendo os arguidos em períodos não concretamente determinados, deixado de auferir as suas remunerações. § 2 – Em resposta, o Ministério Público concluiu inexistir a alegada contradição, lendo-se na sentença ter sido dado como provado que este arguido renunciou à gerência em 19.01.2015, data em que a sociedade passou a obrigar-se com a assinatura de um gerente, a do coarguido AA, e por isso, quando se lê a matéria de facto dada como provada a partir do ponto 26., consegue perceber-se não existir qualquer contradição insanável, pois os pontos 32., 33. e 34. referem-se ao período pós renuncia à gerência do aqui arguido BB.
Por outro lado, deu-se como provado que BB não é responsabilizado pelas prestações deduzidas e não entregues à Segurança Social após ter renunciado à gerência, muito embora tenha continuado a ser sócio.
Cumpre apreciar e decidir.
Existem anomalias nas sentenças que podem inquinar, total ou parcialmente, o próprio julgamento, se não puderem ser colmatados no tribunal de recurso, como decorre do estatuído nos artigos 410º, 2, 430º, 1 e 431º, a) e c), do Código de Processo Penal.
Trata-se de vícios que devem patentear-se no próprio texto da decisão, por si ou em conjugação com as regras de experiência, sem esforço de análise ou apelo a elementos externos, designadamente a prova concretamente produzida em julgamento
A gravidade de tais erros justifica o seu conhecimento oficioso devendo, pois, ser declarados independentemente de requerimento nesse sentido ou mesmo que a impugnação se limite a matéria de direito.
O elenco legal destes vícios abrange nas alíneas:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (reportada, essencialmente, a hiatos factuais que podiam e deviam ter sido averiguados e se mostram necessários à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição);
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (desdobrável em três hipóteses - contradição insanável de fundamentação, contradição entre os fundamentos e a decisão e contradição entre os factos); e
c) O erro notório na apreciação da prova (em regra associado desconformidades de tal modo evidentes que não passam despercebidas a qualquer pessoa minimamente atenta, ou seja é um erro patente que não escapa ao homem comum) .
Consequentemente, tendo em vista a gravidade das consequências de tais vícios da sentença, importa começar pela sua apreciação, uma vez que a sua eventual procedência poderá influir e mesmo prejudicar a análise das questões restantes.
A contradição insanável na fundamentação da decisão constitui um vício da sentença previsto na alínea b) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
Tal contradição ocorre quando, analisando-se o texto da decisão, nomeadamente, a matéria de facto dada como provada e a não provada, ou entre a decisão da matéria de facto e a fundamentação da decisão em matéria de direito, se chega a conclusões contraditórias, insanáveis e irredutíveis, que não podem ser ultrapassadas, recorrendo-se ao contexto da decisão no seu todo e/ou, ainda, com recurso às regras da experiência comum.
Aplicando tais regras ao caso concreto:
A este respeito, importa destacar os seguintes factos considerados provados na sentença recorrida:
Facto provado 5:
No decurso da sua actividade, a sociedade comercial, outrora arguida, representada pelos arguidos AA, BB procedeu, como legalmente lhe competia, ao desconto nas retribuições pagas aos seus trabalhadores das contribuições devidas à segurança social (taxa de 11%), bem como reteve as quotizações nos salários pagos aos gerentes, MOE (taxas de 9,3% e 11%), no período de Fevereiro de 2012 a Dezembro de 2015 no montante de € 205.046,32 (duzentos e cinco mil, quarenta e seis euros e trinta e dois cêntimos).
Facto provado 11.
Durante os referidos períodos de tempo acima indicados a sociedade dispôs sempre de meios financeiros para cumprir as suas obrigações contributivas para com a Segurança Social.
Facto provado 12:
Na verdade, a sociedade arguida procedeu ao pagamento dos salários dos seus trabalhadores e gerentes.
Factos provados 14 e 15:
Os arguidos (…) Adoptaram um comportamento de não cumprimento sistemático de tais obrigações pois, mês após mês, reiteraram o desígnio de não proceder à entrega das contribuições, efectivamente, deduzidas nas remunerações pagas aos seus trabalhadores e gerentes.”
Porém, o tribunal também deu como provado o seguinte:
Factos provado 21.:
A sociedade comercial A..., Lda. foi declarada insolvente por Sentença datada de 4.12.2013.
Facto provado 22:
Foi homologado o Plano de Insolvência da sociedade comercial, em Fevereiro de 2014, cuja Sentença foi proferida a 6.06.2014.
Facto provado 2:
A sociedade comercial atravessou um período de dificuldades económicas, tendo os arguidos, em períodos não concretamente determinados, deixado de auferir as suas remunerações, mas declararam-nas, ainda assim, junto da Segurança Social e reclamaram-nos em sede de processo de Insolvência.
Facto provado 26:
Em 29 de Agosto de 2013, o arguido foi vítima de um acidente de viação quando estava ao serviço da sociedade, que veio a ser qualificado de acidente de trabalho.
Facto provado 27:
Devido a esse acidente, desde tal data, o arguido deixou de poder apresentar-se na empresa.
Facto provado 29:
No dia que lhe foi atribuído alta médica, em 19 de Dezembro de 2014, o arguido reformou-se.
Para fundamentar a sua convicção em relação a tais factos, o tribunal ponderou o seguinte:
“Concretizando um pouco melhor, mereceram especial importância os diversos documentos juntos aos autos, designadamente, (…) as folhas de remunerações mensais dos trabalhadores e órgãos estatutários, entregues à Segurança Social, bem como os recibos de remunerações, que permitiram confirmar o pagamento dos salários aos trabalhadores e órgãos estatutários. (…)
O arguido AA disse-nos que (…) Confirmou os encargos da empresa, as dificuldades de tesouraria e o facto de, alguns meses, ele e o co-arguido nem receberem os respectivos salários, não obstante os declarassem à Segurança Social para efeitos de reforma.
(…)
Mais referiu o arguido BB que (…) em Agosto de 2013 teve um acidente de trabalho muito grave, mantendo-se incapacitado para o trabalho até Dezembro de 2014, nesta altura recebia a baixa pelo seguro, por força do seu vinculo contratual à empresa. (…)
Mais confirmou o arguido que não recebeu o seu salário todos os meses, porém, acaba por referir que o podia receber mais tarde e que chegou a reclamar valores no processo de insolvência.
(…)
DD, nascido a .../.../1954, contabilista independente há 10 anos, trabalhou para a arguida desde de 1995 até quando fechou, em 2016. (…) Confirmou que houve uma altura em que os gerentes deixaram de receber as remunerações, mas também não soube precisar quando, tendo apontado para 2013/2014.
Por conseguinte, ao mesmo tempo que a sentença considera provado que a sociedade A... Lda. pagou sempre (entre Fevereiro de 2012 e Dezembro de 2015) os salários aos seus gerentes, baseando-se, para o efeito, em prova documental que não analisou criticamente (os recibos de remunerações), também admite que os arguidos, em períodos não concretamente determinados, deixaram de auferir as suas remunerações, tendo valorado nesse sentido as declarações dos arguidos e o depoimento de uma testemunha, às quais atribuíram credibilidade. Além disso, também foram valoradas as declarações do arguido BB, quanto ao facto de não ter recebido o salário da empresa enquanto esteve de baixa por motivo da doença resultante do seu acidente de trabalho, tendo sido compensado pela companhia de seguros.
Daqui resulta existirem contradições entre o facto provado (12) da empresa ter sempre pago efetivamente os salários dos gerentes e a factualidade também provada dos arguidos terem deixado de receber os seus salários em períodos não concretamente apurados, mas situados, pela sua fundamentação, nos períodos temporais da prática do crime.
Por outro lado, embora tenha sido considerado provado que a empresa sempre dispôs de meios financeiros para cumprir as suas obrigações contributivas para com a Segurança Social (entre Fevereiro de 2012 e Dezembro de 2015), ao mesmo tempo foi considerado provado que a sociedade comercial A..., Lda. foi declarada insolvente por Sentença datada de 4.12.2013, tendo sido homologado o Plano de Insolvência da sociedade comercial, em Fevereiro de 2014, tendo atravessado um período de dificuldades económicas.
Para formar a sua convicção, o tribunal considerou o depoimento de DD, contabilista que trabalhou para a arguida desde de 1995 até quando fechou, em 2016. Esta testemunha referiu que de 1995 e até 2011 a empresa sempre cumpriu com as suas obrigações, designadamente, perante a Segurança Social. A crise abrangeu todas as empresas de construção. Lançaram mão do PER, mas não foi suficiente. Era habitual terem reuniões de gestão todas as semanas com os arguidos e colocava em cima da informação sobre dívidas e créditos. E acabaram por não ter dinheiro. Confirmou que houve uma altura em que os gerentes deixaram de receber as remunerações, mas também não soube precisar quando, tendo apontado para 2013/2014. Quando o plano de insolvência foi aprovado, ficou acordado serem pagas as prestações à Segurança Social, mas as mesmas não foram pagas. Confirmou que a empresa, em 2014, tinha património de cerca de um milhão de euros, que podiam pagar à segurança social.
Mas também foi valorado o depoimento da testemunha CC, contabilista da empresa certificado entre 1995 e 2013, de acordo com o qual o balanço de 2013 refletia uma dívida de clientes no valor de um milhão, novecentos e treze mil euros. Os ativos ascendiam ao valor de €500.000,--. O passivo da empresa era de €500.000,00 e apenas se os clientes pagassem a sua dívida à empresa é que a empresa poderia pagar à segurança social.
Do exposto resultam novas contradições, pois o tribunal aceitou acriticamente as declarações contraditórias acima espelhadas, relativamente à (in)capacidade financeira da empresa pagar as prestações à Segurança Social, embora tenha sido considerado provado, contraditoriamente ao depoimento da testemunha CC, que “Durante os referidos períodos de tempo acima indicados a sociedade dispôs sempre de meios financeiros para cumprir as suas obrigações contributivas para com a Segurança Social.”.
Note-se, ainda, que o tribunal não procedeu à análise – se necessário, mediante uma perícia – aos balanços da empresa, de modo a esclarecer se a mesma dispunha, ou não, de meios financeiros para pagar as prestações em dívida à Segurança Social, nem esclareceu o motivo pelo qual considerou provado o facto provado 11 atrás reproduzido, apesar de ter valorado o depoimento de CC, que o contraria – na passagem em que afirmou que a empresa apenas disporia dos meios financeiros para pagar à Segurança Social, caso os clientes da empresa pagassem a sua dívida -.
A fundamentação da decisão não esclarece tais contradições e este Tribunal não poderá decidir a causa, uma vez que a gravidade e os contornos dos vícios acima identificados impedem uma solução fundamentada.
Os factos contraditórios integram factualidade relevante para a boa decisão da causa, designadamente quanto à determinação das penas aos arguidos, constituindo por isso objeto da prova (artigo 124º, nº 1, parte final, do Código de Processo Penal). Pelo exposto, impõe-se determinar o reenvio do processo para novo julgamento (artigo 426º, nº 1, do Código de Processo Penal) relativamente à totalidade do seu objeto, encontrando-se prejudicada a apreciação das demais questões elencadas na motivação dos recursos.
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2º Da alegada prescrição
Uma nota final, somente, quanto à alegada prescrição do procedimento criminal, invocada pelo arguido recorrente BB, com base nos seguintes argumentos:
a) O crime em causa consumou-se em 20 de setembro de 2014.
b) O crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social é punível com prisão até 3 anos ou multa até 360 dias.
c) Nos termos do artigo 118º, n.º 1, alínea c) do C. Penal, o prazo de prescrição do procedimento criminal é de 5 anos.
d) A interrupção da prescrição do procedimento criminal adveio com a constituição de arguido, que ocorreu apenas em 27 de janeiro de 2020.
Uma vez que a questão poderá prejudicar de algum modo o reenvio do julgamento, cumpre apreciar e decidir.
O arguido recorrente foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107.º, 1 e 2 e 105.º, 5 do RGIT, que é punível com uma pena de prisão de um a cinco anos (e não de prisão até 3 anos ou multa). O crime em causa, mesmo que se tenha em consideração apenas o período abrangido pela gerência de direito e de facto do arguido BB, teve por objeto prestações à Segurança Social não pagas no valor global não inferior a 98.375,52 – logo muito superior a 50.000,--, contrariamente ao alegado pelo recorrente, não determinando, por conseguinte, uma alteração do enquadramento jurídico do crime (artigo 105º, nº 5, do R.G.I.T., aplicável por força do artigo 107º, nº 1, do mesmo texto legal)
Por conseguinte, o prazo de prescrição aplicável é de dez anos, nos termos do disposto no artigo 118º, nº 1, al. b), do Código Penal, o qual não se mostra ainda esgotado, mesmo sem contar com as causas de interrupção e de suspensão da contagem do prazo.
Improcede, assim, a alegada prescrição.
Das custas:
Sendo determinado o reenvio do processo para novo julgamento, não há lugar a custas.
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III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam por unanimidade e em conferência, os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, ora subscritores, em reconhecer o vício de contradição insanável da fundamentação da sentença recorrida e, em consequência: - determinam o reenvio do processo para novo julgamento (artigo 426º, nº 1, do Código de Processo Penal), relativamente à totalidade do seu objeto, a realizar pelo tribunal previsto no artigo 426º-A, ainda do mesmo texto legal.
Sem custas.
Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.
Porto, em 18 de Outubro de 2023.
Jorge Langweg
Maria Dolores Silva e Sousa
Manuel Soares ___________________ [1] Transcrevendo-se aqui a sua versão aperfeiçoada, apresentada na sequência de convite nesse sentido dirigida nos termos do disposto no artigo 417º, nº 3, do Código de Processo Penal. [2] Parecer emitido pelo Procuradora-Geral Adjunta Dra. Laura Rios. [3] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V. [4] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme em todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1.