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CRIME DE MAUS TRATOS
CONCEITO
IDOSO DEPENDENTE
COMISSÃO POR OMISSÃO
Sumário
I – O conceito de “maus tratos” não se limita às situações mais evidentes de ofensas à integridade física ou psíquica das vítimas, frequentemente traduzidas em agressões físicas/sexuais, insultos, humilhações ou ameaças, antes abarcando um espetro muito alargado de comportamentos suscetíveis de ofender a saúde física, psíquica e emocional das pessoas às quais são dirigidos, neles se incluindo ausência da prestação de cuidados alimentares e de higiene pessoal exigíveis e adequados a preservar o seu bem-estar e integridade pessoal. II - É de notar que a APAV (Associação Portuguesa de Apoio á Vítima) identifica como exemplo de práticas de violação de direitos de pessoas institucionalizadas, entre muitas outras, «deixar pessoas idosas com dificuldade de mobilização sentadas ou deitadas durante muito tempo, sem ajudá-las a levantar-se» e «não mobilizar regularmente pessoas idosas acamadas», para além de «práticas de violação de direitos ao nível da supervisão técnica», incluindo «Não assegurar que a equipa técnica é qualificada e que há um número adequado de profissionais que a compõem», e de «Práticas de violação de direitos ao nível da higiene pessoal», nomeadamente «Deixar as pessoas idosas sujas (por exemplo, de fezes e urina) durante muito tempo» e «Não lavar as pessoas idosas acamadas na totalidade durante longos períodos de tempo». Acrescenta-se a prática de «Negligenciar a alimentação das pessoas idosas por falta de ajuda durante as refeições». III - Compete à instituição que acolhe pessoas idosas assegurar a execução das tarefas necessárias a garantir o bem-estar e saúde dos respetivos utentes, provendo diariamente pela sua alimentação, higiene e cuidados médicos IV - Comete o crime de maus tratos, por omissão, a instituição e respetivo representante legal (presidente do conselho executivo), que, por não dispor da quantidade de funcionários suficiente, omite a prestação dos cuidados de alimentação, higiene e mobilização dos utentes mais vulneráveis e dependentes, com a frequência e qualidade necessárias, causando-lhes lesões e consequente sofrimento físico e psíquico-emocional.
Texto Integral
Proc. nº 820/21.2T9AVR.P1
Recurso Penal
Juízo de Instrução Criminal de Aveiro – Juiz 2
Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.
I. Relatório
No âmbito do processo comum que, sob o nº 820/21.2T9AVR.P1, corre termos pelo Tribunal de Aveiro, foi proferido despacho de arquivamento do inquérito instaurado pelo Ministério Público contra os arguidos Fundação ..., AA e BB, pela prática, em coautoria material, de um crime de maus tratos, p. e p. pelos artigos 152.º-A, n.º 1, alínea a) e 11.º, n.º 2, do Código Penal.
Inconformado com o despacho de arquivamento, CC, atuando em representação de DD, sua mãe, constituiu-se assistente nos autos e requereu abertura de instrução, na sequência da qual veio a ser proferido o despacho de não pronúncia constante de fls. 487/495.
Inconformado com a referida decisão instrutória de não pronúncia, dela interpôs recurso o assistente, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:
«1. Vem o Recorrente intentar o presente recurso por não concordar com o teor do douto despacho de não pronúncia.
2. Tendo de facto os arguidos sido não pronunciados pelo crime de maus tratos previsto e punido pelo artigo 152.º -A, 10.º e 11.º, n.º 2, todos do Código Penal.
3. Contudo, não pode o Recorrente concordar com o entendimento, vertido na douta decisão recorrida, entendendo que, contrariamente ao constante da mesma, os elementos existentes nos autos impunham que fosse proferida decisão de pronúncia.
4. Na verdade, o Recorrente apresentou denúncia no dia 16 de março de 2021, a qual veio a dar origem aos presentes autos, remetendo-se na íntegra para o teor de tal denúncia, mas denunciando em suma factos que no seu entendimento configuravam maus tratos aos idosos e em particular à sua mãe.
5. Quanto a tais factos, foram inquiridas diversas testemunhas, nomeadamente: EE, cuja inquirição consta a a fls. 102 dos autos; FF, cuja inquirição consta a fls. 104 dos autos; GG, cuja inquirição consta a fls. 116 dos autos; HH, cuja inquirição consta a fls. 119 dos autos; II, cuja inquirição consta a fis. 121 dos autos; JJ, cuja inquirição consta a fls. 126 dos autos.
6. Ora, não obstante, ser mencionado por diversas das testemunhas a falta de funcionários em número suficiente para assegurar os cuidados adequados e necessários aos utentes, designadamente aos mais dependentes, nomeadamente no que concerne a alimentação, higiene e rotação dos mesmos, veio a concluir-se no douto despacho de não pronúncia que, tal situação apenas se poderia reconduzir eventualmente a negligência, “não resultando, assim de atos intencionalmente praticados pelos funcionários do Lar.”.
7. Entendimento com o qual não pode o Recorrente concordar.
8. De acordo com o artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal, “quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez, e (...) lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente (...) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”;
9. Trata-se este de um crime em que o bem jurídico protegido é a pessoa individual e a sua dignidade humana, incluindo o âmbito punitivo deste tipo de crime os comportamentos que, de forma reiterada, lesam esta dignidade.
10. Exige este tipo legal que o agente se encontre numa relação de supraordenação face à vítima: relação/dever de cuidado ou de guarda.
11. Vítima será assim, no que ora interessa quem seja particularmente indefesa em razão da idade, pressupondo o tipo de crime em causa uma reiteração das respetivas condutas.
12. Trata-se, ainda, de um crime doloso, podendo ser um crime de resultado ou de mera conduta, incluindo o dolo em qualquer das suas modalidades.
13. Sendo que, no que ora interessa, o conceito de maus tratos expressa uma conduta praticada contra pessoa idosa, que ocorre num contexto de confiança e viola os direitos humanos, abarcando os mais variados tipos de maus tratos: físico, material e psicológico.
14. A gravidade exigida nos comportamentos para integrarem o crime previsto no art.º 152.º-A CP, verifica-se pela especial violação do dever de garante incumbido ao agente.
15. Estão em causa os casos em que o agente tinha obrigação de atuar sobre outra pessoa de modo a prestar-lhe proteção, auxílio e cooperação, mas, ao invés, comete sobre essa pessoa um ato que lesa a sua integridade física de forma significativa.
16. Cumprindo quanto a este âmbito referir que a Associação de Apoio à Vitima — APAV compilou uma listagem de exemplos de maus tratos suscetíveis de se verificarem em lares da terceira idade, exemplificando como tal designadamente o “não oferecer variedade na comida e na bebida” e ao nível da higiene pessoal, o deixar as pessoas sujas durante elevado tempo — cf. (APAV, 2010). http://apav.pt/idosos/index.php/manual-titono.
17. Podendo assim tal crime ser, conforme decorre do artigo 10.º do Código Penal, praticado por ação ou omissão.
18. Veja-se com relevância para os autos - tese “Maus Tratos a Idosos em Lares”, de Joana Fernandes Cardoso, pág. 25 e ss, disponível em https://repositorio.ucp.Qt/bitstream/10400.14/28144/1TESE%20%20Joana%20Fernandes%20Cardoso.pdf.
19. Podendo ainda ler-se com relevância para a questão em análise o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12-10-2016, proc. n.º 2255/15.7T9PRT.P1, referindo-se à prática do crime nesse caso do artigo 152.º do CP por omissão.
20. Sendo que, não obstante no acórdão atrás referido, o mesmo se referir ao artigo 152.º do Código Penal, o bem jurídico protegido é o mesmo.
21. Ora, no caso em apreço nos presentes autos, resultou de forma clara da inquirição das testemunhas que a instituição, no período em que a mãe do denunciante se encontrou como utente da mesma, padecia de uma falta grave de funcionários.
22. Sendo também claro que em consequência de tal falta de funcionários, os utentes, principalmente os mais dependentes, como era o caso da mãe do denunciante, não eram alimentados devidamente porque os funcionários eram insuficientes e em consequência não tinham tempo,
23. Não sendo além disso devidamente higienizados, passando horas a mais com a mesma fralda, e não sendo movimentados o que implicava passarem muitas horas na mesma posição, gerando feridas de pressão.
24. No caso da mãe do Recorrente o estado em que a mesma se encontrava e que foi expressamente mencionado pela testemunha FF, era em tudo compatível com a omissão de cuidados de que foi vitima enquanto se encontrou aos cuidados da instituição ..., estando de facto muito magra, com um eritema na zona genital decorrente de falta de higienização e com uma grave úlcera de pressão já com tecido necrótico, decorrente da falta de mobilização da mesma.
25. Sendo tais danos físicos decorrentes não apenas de uma conduta negligente, como considerado, mas de uma conduta dolosa e omissiva grave, na medida em que bem sabiam os responsáveis da instituição que existia uma falta grave de funcionários, levando a que não fosse possível de todo prestar os cuidados devidos aos utentes, principalmente aos mais dependentes.
26. Mais sabendo, porque o não podiam ignorar, atendendo às funções desempenhadas, que a falta de prestação dos cuidados que legalmente eram devidos aos seus utentes mais dependentes, como acontecia com a mãe do Recorrente causaria graves danos físicos e psicológicos, por não poderem os utentes prover por si à sua alimentação, higienização e movimentação.
27. Falta de cuidados essa e consequentes maus tratos que foram reiterados, por ser constante a falta de funcionários para assegurar os cuidados aos utentes de forma adequada.
28.À data dos factos, eram membros do Conselho Executivo AA, na qualidade de Presidente, e BB, na qualidade de secretário do Conselho Executivo.
29. Competindo-lhes assim assegurar o bem-estar dos utentes e assegurar que mantinham um quadro de pessoal ajustado às necessidades dos utentes - vide artigo 20.º dos Estatutos da Fundação ....
30. Tendo o Presidente do Conselho Executivo como responsabilidade assegurar a gestão corrente da Fundação, orientando e fiscalizando os respetivos serviços - cf. artigo 21.º dos Estatutos da Fundação ....
31. E o secretário, como funções, coadjuvar o Presidente no exercício das suas funções e substituí-lo nas sua faltas e impedimentos - cf. artigo 22.º dos Estatutos da Fundação ... - cf. doc. n. 0 2 já mencionado.
32. Entendendo assim o Recorrente, com o devido respeito por entendimento diverso, que em face dos elementos recolhidos, se impunha ter sido proferido despacho de pronúncia, sendo a Fundação ... e respetivos responsáveis do Conselho Executivo constituídos arguidos pela prática de um crime de maus tratos, previsto e punido pela alínea a) do n.º 1 do artigo 152.º -A, conjugado com o artigo 10. º e 11.º n.º 2, todos do Código Penal.
33. De facto, nos termos do n.º 1 do artigo 308.º do Código de Processo Penal, quando recolhidos indícios suficientes até ao encerramento da instrução, deve ser deduzido despacho de pronúncia.
34. Pelo que, em face do exposto, e resultando dos elementos de prova recolhidos indícios suficientes da prática do crime pela Fundação ..., AA e BB e do necessário preenchimento no caso em apreço do elemento objetivo e subjetivo do tipo de ilícito de crime de maus tratos, deverá em consequência ser procedente o presente recurso, sendo revogada a douta decisão instrutória e sendo os arguidos pronunciados pelos seguintes factos:
1. A Fundação ... é uma Instituição Particular de Solidariedade Social, que tem uma estrutura residencial para idosos, prestando esse serviço.
2. A ofendida DD, nascida em .../.../1937, foi utente da Fundação ... no período de setembro de 2018 a setembro de 2020, tendo integrado a mencionada estrutura residencial para idosos.
3. Sendo nesse período membros do Conselho Executivo AA na qualidade de Presidente e BB, na qualidade de secretário do Conselho Executivo;
4. Sendo o Conselho Executivo responsável, através do seu Presidente e Secretário, por garantir a efetivação dos direitos dos beneficiários, elaborar o quadro de pessoal, contratar o pessoal necessário, exercer o poder disciplinar e gerir o pessoal da instituição e zelar pelo cumprimento da lei, dos estatutos e das deliberações dos órgãos da Fundação, conforme os estatutos da Fundação ...;
5. DD tinha à data dos factos uma demência que mantém, encontrando-se absolutamente dependente de terceiros para a realização de tarefas básicas, como proceder à sua alimentação, higiene pessoal, tomar medicação, para se movimentar em geral e para se levantar, movimentar e deitar na cama.
6. No período em que a DD foi utente da indicada instituição a mesma apresentava uma falha grave ao nível de funcionários, não tendo funcionários suficientes para prestar adequadamente apoio aos idosos, nas tarefas como alimentação, higienização e mobilização dos idosos que não se movimentam sozinhos.
7. Sendo prática reiterada durante o período em que a DD se encontrou na indicada estrutura residencial, os idosos não autónomos, não serem alimentados devidamente, não sendo além disso assegurada a higienização atempada dos mesmos e não sendo assegurada a sua mobilização e rotação na cama ou sua colocação em cadeiras durante o dia para não se encontrarem sempre na mesma posição.
8. Como consequência direta e necessária da conduta da instituição e dos seus representantes legais, durante o período em que a DD se encontrou na indicada estrutura residencial, a mesma emagreceu consideravelmente.
9. Tendo desenvolvido um eritema na zona genital.
10. Bolhas nas costas.
11. E ainda uma úlcera de pressão na região sacro-coccígia, grau 3, com tecido necrótico.
12. Feridas que demoraram cerca de dois meses e meio a cicatrizarem.
13. Sendo o eritema na zona genital resultado direto da deficiente higienização ou falta de substituição das fraldas com regularidade.
14. E a úlcera de pressão resultado da falta de prestação de cuidados, designadamente por falta de reposicionamento do corpo de duas em duas horas.
15. Tendo assim sofrido dores, as quais demandaram um número de dias para atingir cura não apurado em concreto, mas que terá sido de cerca de dois meses e meio.
16. A direção da ... tinha conhecimento do facto do número de funcionários ao seu serviço na estrutura residencial para idosos não ser suficiente para assegurar os devidos cuidados dos respetivos utentes.
17. Bem sabendo que um elevado número dos seus utentes na estrutura residencial para idosos e designadamente a DD se encontrava em situação de dependência, não tendo autonomia para a realização de tarefas básicas, como proceder à sua alimentação, higiene pessoal, tomar medicação, para se movimentar em geral e para se levantar, movimentar e deitar na cama.
18. Tendo tais cuidados de ser providenciados pela Fundação, que se encontrava obrigada a assegurar a prestação de tais cuidados em face da admissão de tais utentes e designadamente da DD os quais se encontravam na sua dependência.
19. Sabia a Fundação ... e seus responsáveis que detinham ao seu cuidado pessoas particularmente indefesas em razão da idade e das doenças de que padeciam, designadamente a DD a quem deviam prestar assistência e prover às necessidades físicas e emocionais, mas não o fizeram;
20. Cabia à Fundação ... e seus responsáveis prestar os necessários cuidados de saúde e assistência a DD;
21. Contudo, e apesar de terem consciência de tal facto, não prestaram os necessários, adequados e atempados cuidados de saúde a DD;
22. Não dispondo de pessoal suficiente para atender todos os utentes do lar,
23. Nada tendo feito para suprir tal situação.
24. Bem sabendo que a omissão da admissão de um maior número de funcionários impediria a prestação dos devidos cuidados, não sendo assim de forma reiterada assegurada a devida alimentação dos utentes dependentes, a sua devida higienização e reposicionamento.
25. Sabendo ainda que tal omissão originaria assim maus tratos físicos dos utentes dependentes, tal como ocorreu com a utente DD em conformidade com o indicado supra.
26. Sabia assim a Fundação ... e seus representantes que a sua conduta era adequada a causar maus tratos no corpo e saúde de DD, resultado esse que previram e que nada fizeram para evitar.
27. Tendo assim agido deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
28. Constituíram-se assim a Fundação ..., AA e BB, autores materiais de um crime de maus tratos previsto e punido pelo artigo 152.º-A, 10.º e 11.º, n.º 2 todos do Código Penal.
35. Entendendo o Recorrente que ao ser proferido despacho de não pronúncia, violou o indicado despacho o disposto nos artigos 152.º-A, 10.º e 11.º n.º 2 todos do Código Penal e artigo 308.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
NESTES TERMOS E MELHORES DE DIREITO, Sempre com mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, devendo o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine a pronúncia dos arguidos pelos factos supra indicados, fazendo-se deste modo verdadeira objetiva serena JUSTIÇA!!!!»
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O recurso foi admitido para subir nos próprios autos, de imediato e com efeito devolutivo.
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O Ministério Público, em primeira instância, apresentou resposta, reiterando os argumentos invocados pelo Exmo. JIC no despacho de não pronúncia e defendendo, consequentemente, a improcedência do recurso (nos termos constantes do articulado junto aos autos a fls. 527/536 e cujo teor se dá por reproduzido).
Os arguidos/recorridos apresentaram resposta ao recurso, pugnando pela confirmação da decisão instrutória de não pronúncia, com os fundamentos constantes do articulado de fls. 855/860 e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
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O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal, emitiu parecer, no qual se pronunciou pelo não provimento do recurso, reiterando os fundamentos já aduzidos pelo Ministério Público na 1ª instância e salientando que os elementos de prova coligidos no inquérito e na instrução não são suficientemente seguros para que se possa afirmar que a probabilidade de condenação é superior à de absolvição (nos termos constantes de fls. 545/547, cujo teor aqui se dá por reproduzido).
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Cumprido o disposto no art.º 417º, nº 2, do Código do Processo Penal, não foi apresentada resposta.
Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II - Fundamentação
É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigos 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cf., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).
Podemos, assim, equacionar como única questão colocada à apreciação deste tribunal, a seguinte:
1) Existem indícios da prática pelos arguidos do crime de maus tratos, p. e p. pelos artigos 152.º-A, n.º 1, a), 10.º e 11.º, do Código Penal, que lhes foi imputado pelo assistente no requerimento de abertura de instrução?
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Delimitado o thema decidendum, importa reproduzir o teor da decisão instrutória de não pronúncia, objeto do presente recurso, proferida pela Sra. Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Aveiro, na sequência do debate instrutório realizado em 18/4/2023:
«Declaro encerrada a instrução.
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I - Relatório
O Ministério Público deduziu despacho de arquivamento relativamente à factualidade participada por CC, abstratamente configuradora da prática de um crime de maus tratos previsto e punido pelo152º-A e 11º/2, a) do Código Penal, nos termos constantes de fls. 323 a 341, e proferiu acusação contra KK, imputando-lhe a prática dos factos descritos na acusação de fls. 341 e sgs., e consequentemente, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo disposto nos arts. 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1 al. a) e n.º 2, este por referência ao artigo 132.º, n.º 2 al. c), todos do Código Penal.
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Veio a arguida KK requerer a abertura de instrução com o exclusivo fito de obter a suspensão provisória do processo pugnando estarem reunidos todos os requisitos legais – cfr. a fls. 359 e 360,
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Veio também o assistente CC requerer a abertura de instrução alegando, no essencial, existirem indícios da prática do crime de maus tratos, já que a indiciada falta de funcionários em número suficiente para assegurar os cuidados adequados e necessários aos utentes e os danos decorrentes da omissão de cuidados constitui não apenas uma conduta negligente, mas uma conduta dolosa e omissiva grave.
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Admitida a instrução, designou-se data para debate instrutório. Não se vislumbrando qualquer outro ato instrutório cuja prática revestisse interesse para a descoberta da verdade, efetuou-se o debate instrutório, o qual decorreu na ausência dos arguidos, que renunciaram ao direito de estar presentes, com observância do formalismo legal, conforme se alcança da respetiva ata, tudo em conformidade com o disposto nos arts. 298º, 301º e 302º, todos do Código de Processo Penal.
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Cumpre agora, nos termos do art.º 308º do mesmo diploma legal, proferir decisão instrutória.
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II- Saneamento
O Tribunal é competente.
Não há nulidades, ilegitimidades, outras exceções, questões prévias ou incidentais que obstem a uma decisão de mérito.
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III- Fundamentação
A) Critérios legais da decisão
A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), encontrando-se o juiz de instrução limitado pela factualidade relativamente à qual se requereu a abertura de instrução (artigo 287.º, n.º 1 e n.º 2, do Código de Processo Penal).
No caso em apreço, visa-se a comprovação judicial da decisão de arquivar e ainda saber se, relativamente à acusação proferida, estão ou não reunidos os requisitos da suspensão provisória do processo.
A decisão de acusar e arquivar assenta na prévia verificação da existência de indícios suficientes da prática de um crime e do seu autor (artigo 283.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), juízo indiciário que também está subjacente na decisão instrutória, como decorre do artigo 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
De acordo com o disposto no artigo 283.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.”.
Dito de outro modo, por “indícios suficientes”, para efeitos da decisão instrutória, deve entender-se a probabilidade razoável, mais positiva do que negativa, de que o (a) arguido (a) tenha praticado os factos que lhe são imputados e de que lhe será aplicada uma pena ou medida de segurança, devendo o juiz, nas palavras de Germano Marques da Silva, pronunciar o arguido apenas e só “quando pelos elementos constantes dos autos forme a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido” (cf. “Curso de Processo Penal”, Volume III, Verbo, pág.179).
Assim, a suficiência de indícios, analisada no plano fáctico, está dependente de deles resultar, em termos de prognose, a provável futura condenação do arguido ou que esta seja mais provável que a sua absolvição (cf. José Mouraz Lopes, “Garantia Judiciária no Processo Penal - Do Juiz e da lnstrução”, Coimbra, 2000, pág. 68 e ss.).
Traçando o limite de distinção entre o juízo de probabilidade e o juízo de certeza processualmente relevante entre as fases de inquérito e instrução e a de julgamento, ensina-nos Figueiredo Dias “o que distingue fundamentalmente o juízo de probabilidade do juízo de certeza é a confiança que nele podemos depositar e não o grau de exigência que nele está pressuposta. O juízo de probabilidade não dispensa o juízo de certeza porque, para condenar uma pessoa, o conceito de justiça num Estado de direito exige que a convicção se forme com base na produção concentrada das provas numa audiência, com respeito pelos princípios da publicidade, do contraditório, da oralidade de da imediação. Garantias essas que não é possível satisfazer no fim da fase preparatória” (cf. “Direito Processual Penal”, Volume I, 1974, pág. 132-133).
Quer isto dizer que, não se exigindo, nesta fase processual, o juízo de certeza que a condenação impõe - a certeza processual para além de toda a dúvida razoável -, impõe-se, no entanto, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação.
Assim, para a determinação do grau da possibilidade razoável, indícios suficientes existirão quando, através de um juízo de prognose antecipada, se conclua que os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si, fazem pressentir a existência de uma conduta criminalmente tipificada por parte do agente e produzem a séria convicção de condenação posterior e que, com forte probabilidade, esses elementos se manterão e repetirão em julgamento ou se preveja que da ampla discussão da causa em plena audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis e aí reproduzidos, outros advirão no sentido da condenação futura, sempre salvaguardando os princípios que convergem já neste momento, como o princípio da presunção de inocência e o in dubio pro reo (cf. Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, datados de 21.10.2009, proferido no processo n.º 533/02.4TAMTS.P1 e de 21.04.2010, no processo n.º 4307/06.5TDPRT-A.P1, do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 19.02.2002, Processo n.º 00113535, e do Tribunal da Relação de Évora, datado de 1.03.2005, processo n.º 2/05.1, in www.dgsi.pt).
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No caso vertente, a questão a decidir, delimitada tematicamente pelos requerimentos de abertura de instrução, encontra-se perfeitamente delineada: se existem indícios suficientes para pronunciar os arguidos Fundação ..., AA e BB, considerando os elementos probatórios produzidos em sede de inquérito e de instrução. E se se encontram reunidos os requisitos legais para a arguida KK poder beneficiar da requerida suspensão provisória do processo.
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B) Do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente
A (in)suficiência dos indícios
O assistente, sem colocar em causa as diligências realizadas em sede de inquérito, faz uma leitura distinta do Ministério Público quanto aos indícios recolhidos nessa fase, defendendo que os factos indiciariamente apurados se subsumem à prática pelos arguidos Fundação ..., AA e BB de um crime de maus tratos.
Vejamos.
Aos arguidos AA e BB vem imputada a prática de um crime de maus tratos, previsto e punido pelo art.º 152º-A do Código Penal, sendo a ... ainda nos termos do art.º 11º/2, a) do mesmo diploma.
Dispõe o art.º 152º-A/1 do Código Penal que:
«1– Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e:
a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente;
b) A empregar em atividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou
c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2– Se dos factos previstos nos números anteriores resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.».
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Estamos perante um tipo legal de crime que, tendo uma raiz comum com o entretanto autonomizado crime de violência doméstica previsto e punido pelo art.º 152º do Código Penal, teve a sua origem na necessidade de prevenir, por via da criminalização, as frequentes e subtis, mas perniciosas - para a saúde física e psíquica, desenvolvimento da personalidade e bem-estar -, formas de violência no domínio da família, da educação e do trabalho – Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 329.
Adianta ainda Taipa de Carvalho que «A necessidade prática de criminalização das espécies de comportamentos descritos no tipo legal de crime de maus tratos, resultou de um duplo fator: por um lado, o facto de muitos destes comportamentos não configurarem em si o crime de ofensas corporais simples (art. 143º), como é o caso das condutas descritas nas als. b) e c) do nº 1 deste art. 152º; por outro lado, a criminalização destas condutas, com a consequente responsabilização penal dos seus agentes, resultou da consciencialização ético- social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos. A neocriminalização (…) destes comportamentos não significa novidade ou maior frequência deles, nos tempos atuais (…), mas sim uma saudável consciencialização da inadequação (ao fim educativo) e da gravidade e perniciosidade desses comportamentos. (…) foi o resultado da progressiva consciencialização da gravidade destes comportamentos e de que a família, a escola e a fábrica não mais podiam constituir feudos sagrados onde o direito penal se tinha de abster de intervir.».
E se inicialmente se percorreu um caminho mais cauteloso de restringir a tutela penal aos casos mais chocantes de maus tratos a crianças e de sobrecarga a menores e subordinados, exigindo-se que o agente atuasse movido por malvadez e egoísmo (numa reminiscência indesejável do direito penal do agente, em detrimento do direito penal do facto), revelando receio de intervir penalmente em domínios que tradicionalmente se deixavam ao poder quase absoluto do marido, pai, educador e empregador, com a reforma penal de 1995, introduzida pelo D.L. 48/95, de 15/03, o legislador não apenas deixaria cair aquele requisito atinente à personalidade do agente, de um dolo específico, como alargaria sobremaneira o âmbito de proteção da norma incriminatória.
Assim, e seguindo de perto a análise de Taipa de Carvalho, ob. cit., pág. 331, «(…) consciente de que, nestes domínios (familiar, educacional, laboral e conjugal), as humilhações, os vexames, os insultos, etc., constituem, por vezes, formas de violência psíquica mais graves do que muitas ofensas corporais simples, previu, ao lado dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos (…)».
O crime de maus tratos tal qual se desenha atualmente visa, assim, prevenir formas de violência no âmbito da família, da educação e do trabalho, pelo que abrange no seu âmbito, para além dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos, humilhações, provocações, ameaças, curtas privações da liberdade de movimentos, sujeição a trabalhos desproporcionados à idade ou saúde física, psíquica ou mental do subordinado, bem como a sujeição a atividades perigosas, desumanas ou proibidas - cf. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 332.
O bem jurídico protegido pela incriminação dos maus tratos é a saúde física, psíquica e mental, que pode ser afetada por uma diversidade de comportamentos levados a cabo sobre quem se encontre em relação ao agente numa determinada relação de subordinação existencial ou laboral, daí resultando atingida também a própria dignidade da pessoa visada por tais comportamentos.
Pode assim concluir-se que o tipo legal de crime de maus tratos como se encontra previsto sob o art. 152º-A do Código Penal, tutela um bem jurídico complexo que radica na dignidade da pessoa humana.
Temos, por isso, que para poder configurar-se como um mau trato para efeitos de integração deste tipo de crime, a conduta do agente deve consubstanciar uma ofensa que, pelas suas características - a analisar no caso concreto, à luz do específico contexto relacional existente entre o agente e a vítima -, se reflita negativamente na saúde física, psíquica ou mental da vítima e conduza à degradação da sua dignidade pessoal – vide acórdão da Relação de Coimbra de 12/02/2020, relatado por Helena Bolieiro, acedido em www.dgsi.pt.
Nessa medida, poderá afirmar-se que o crime de maus tratos físicos e psíquicos é, por regra, um crime de dano quanto ao bem jurídico e um crime de resultado quanto ao objeto da ação; no entanto, como preconiza Paulo Pinto de Albuquerque, em Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, UCE, 2010, pág. 469, quando em causa estão as condutas típicas de emprego em atividades proibidas ou perigosas, ou a sobrecarga com trabalhos excessivos, estaremos já diante um crime de perigo abstrato (neste último caso abstrato-concreto) e de mera atividade.
Ao nível objetivo, o seu preenchimento basta-se com a prática de uma ação ou uma omissão da qual resulte lesão para a saúde física e/ou psíquica, portanto física ou psiquicamente maltratante, pressuposta uma particular relação existencial ou laboral entre agente a quem essa ação ou omissão são imputáveis, e o sujeito passivo, tendo este que reunir determinadas características que o coloquem em posição de fragilidade perante aquele concreto agente.
No que concerne à conduta típica, os atos praticados pelo agressor, que podem ser de várias espécies, devem poder integrar-se num comportamento global dotado de uma unidade de sentido de ilicitude, cujo elemento característico corresponde, precisamente, ao tipo dos maus tratos previsto no artigo 152º-A do Código Penal.
Explicitando um pouco mais em detalhe o conteúdo das expressões usadas na definição dos comportamentos típicos, começando pelos maus tratos físicos, temos que estes corresponderão, grosso modo, ao crime de ofensa à integridade física, abarcando todas as ofensas ao corpo do sujeito passivo, desde castigos corporais, mas também pequenas privações da liberdade ou ofensas sexuais.
No conceito de maus tratos psíquicos, contêm-se os crimes de ameaça, coação, difamação, injúria, abarcando, porém, comportamento não subsumíveis a tipos legais de crimes, como atos suscetíveis de infligir à vítima humilhação, vexame ou provocação – Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit. pág. 465, e Américo Taipa de Carvalho, ob. cit., pág. 333-
Tratar cruelmente será dispensar um tratamento que causa sofrimento ou dor, revelando insensibilidade do agente que o perpetra; cruelmente constitui gramaticalmente um advérbio de modo, que remete para modo cruel, significando este adjetivo “que gosta de fazer sofrer”; são seus sinónimos malvado, mau, perverso, insensível (referido ao agente da crueldade), doloroso, pungente, atroz (referido ao ato cruel perpetrado) – cfr. https://dicionario.priberam.org/cruelmente.
Segundo Américo Taipa de Carvalho, ob. e loc. cit., tratar cruelmente será o mesmo que dispensar um tratamento desumano, exemplificando com uma reiterada omissão do fornecimento das refeições ou da medicação; já Paulo Pinto de Albuquerque remete, a nosso ver sem sólida base legal, para a ofensa à integridade física qualificada nos termos do art. 145º/1, a), em conjugação com o art. 132º/2, d) (“empregar tortura ou ato de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima”), considerando tratar-se de crime de dano e resultado, a requerer a aplicação da teoria da adequação do resultado à conduta;
O tipo legal de crime de maus tratos exige ainda que interceda entre o agente e o sujeito passivo desses comportamentos uma relação existencial ou laboral, de guarda ou vigilância que agrava o ilícito, como é o caso dos castigos corporais, das privações de liberdade ou das ofensas sexuais, já em si mesmas criminalmente punidas – crime específico impróprio.
Por fim, postula também o tipo que a vítima dos maus tratos seja menor, portanto pessoa com idade inferior a 18 anos, ou pessoa particularmente indefesa.
Na concretização deste conceito indeterminado importa atentar nas coordenadas fornecidas pelo legislador no corpo do nº 1 do art. 152º-A que apontam para uma pessoa que se encontra em situação de especial fragilidade devido à sua idade, precoce ou avançada, deficiência, doença física ou psíquica, ou gravidez – Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 469.
Ou seja, essa especial debilidade ou fragilidade há de resultar (“em razão de”) da verificação na pessoa do sujeito passivo dos comportamentos maltratantes de algum daqueles fatores – idade, doença ou gravidez.
Para a densificação deste conceito de especial fragilidade, que continua a ser indeterminado, importa realizar o paralelo com o que tem vindo a ser entendido pela doutrina e jurisprudência relativamente a idêntica asserção legal inserida sob a alínea c) do nº 2 do art. 132º do Código Penal, na qualificação do homicídio praticado contra pessoa particularmente indefesa.
Segundo Paulo Pinto de Albuquerque em anotação a este preceito – ob. cit., pág. 401 -, a especial censurabilidade da atitude do agente evidencia-se na exploração (“aproveitamento”) da situação de desamparo da vítima.
Na verdade, se atentarmos e decompusermos a expressão usada pelo legislador para caracterizar o sujeito passivo deste tipo de crime, verificamos que terá que tratar-se de pessoa indefesa, ou seja, que está sem defesa, desarmada que não tem “armas” ou meios para sua defesa - https://dicionario.priberam.org/indefesa.
Mas, mais ainda do que ser pessoa sem capacidade para se defender, terá que ser particularmente indefesa.
Ou seja, não basta que se esteja perante pessoa sem meios de defesa tout court, pretendendo, outrossim, proteger-se especialmente de entre essas pessoas sem meios de defesa, aquelas que, atenta a sua condição pessoal, neste caso atinente à doença ou doenças de que padecem (poderá ser também por reporte à idade ou estado de gravidez), se encontram mais vulneráveis aos comportamentos maltratantes do que a generalidade das pessoas.
No acórdão do STJ, de 26/11/2015, relatado por Manuel Braz, acedido em www.dgsi.pt, a propósito do disposto no art. 132º/2, c) do Código Penal, tendo a vítima 75 anos de idade, sofria de diabetes e vivia sozinha, entendeu-se que:
«Pessoa particularmente indefesa é aquela que se encontra à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz, em função de qualquer das qualidades previstas na norma. Estará nessa situação a pessoa que, em razão da idade, doença ou deficiência física ou psíquica, não tem capacidade de movimentos, destreza ou discernimento para tomar conta de si e, logo, para verdadeiramente se defender de uma agressão, encontrando-se numa situação de completa ausência de defesa.».
Subscrevendo este entendimento, mais recentemente, no acórdão da Relação do Porto de 14/07/2021, relatado por Francisco Mota Ribeiro, acedido em www.dgsi.pt, abordando uma situação em que as vítimas seriam pessoas idosas, concluir-se-ia que o que importa determinar para efeitos do preenchimento da norma penal, e para desse modo se respeitar o princípio da legalidade e da tipicidade, é, antes de mais, saber se a vítima se encontrava, face aos factos concretamente dados como provados, numa situação de particular ou especial incapacidade de se defender.
Relativamente ao elemento subjetivo do tipo, este é um crime doloso, devendo à conduta típica estar subjacente um estado interior do agente correspondente a qualquer uma das formas que pode revestir o dolo, como previsto no art. 14º do Código Penal: direto, necessário e eventual.
É, naturalmente, pressuposto que o agente tenha informação correta sobre a identidade e características – doença, idade ou gravidez – do sujeito passivo.
Ora, descendo ao caso dos autos constata-se, começando pela forma como se encontra alegada a factualidade na acusação deduzida pelo assistente, em primeiro lugar, que não é atribuída aos arguidos AA e BB a prática de um qualquer ato concreto suscetível de integrar o tipo legal de crime de maus tratos.
Na verdade, percorridos os factos aí elencados, verificamos que quanto a estes arguidos não é individualmente atribuído um concreto papel na (com)participação criminosa.
Não pode olvidar-se que estamos em sede penal, em que a responsabilidade a apurar é pessoal, não é uma responsabilidade objetiva que possa decorrer do mero facto de assumir um cargo dirigente da pessoa coletiva (IPSS) arguida.
Na verdade, para além dos arguidos beneficiarem da presunção de inocência, não há no inquérito elementos indiciários que pudessem sustentar a atribuição a AA e BB de uma concreta conduta, ativa ou omissiva, que pudesse considerar-se maltratante.
E porque é de factos e não de conjeturas que pode resultar uma condenação criminal, afigura-se-nos altamente improvável que estes arguidos venham a ser condenados em julgamento pelo ilícito penal de maus tratos imputado.
No que respeita à arguida, pessoa coletiva, ..., da concatenação dos depoimentos recolhidos em inquérito e documentos juntos ao processo, indicia-se suficientemente a existência de deficiências e carências nos serviços prestados aos utentes no Lar, as quais se traduzem essencialmente, num défice de trabalhadores, para prestar todos os cuidados necessários aos utentes daquela Instituição (embora não se tenha concretamente apurado qual o número de trabalhadores adequado a tal desiderato).
Tais situações motivaram, inclusivamente, a apresentação de reclamações pelos familiares dos utentes, as quais mereceram resposta por parte do Centro Distrital ..., que elaborou recomendações em função dos problemas apresentados.
Não obstante, e com exceção do episódio relacionado com a utente LL, não foram recolhidos indícios suficientes de concretos maus tratos perpetrados contra os utentes do Lar Fundação ....
Com efeito, todas as testemunhas – funcionárias do lar, enfermeiros e médicos que ali prestaram serviços, negaram a existência de situações de maus tratos, físicos e/ou psíquicos, sendo perentórias ao afirmar que nunca presenciaram tais situações. Além disso, todas as situações relatadas por essas testemunhas, reconduzem-se a situações de negligência, manifestada em falhas nos cuidados de higiene, alimentação e supervisão dos utentes, as quais, segundo afirmaram grande parte das testemunhas, são devidas à insuficiência de funcionários, para fazer face às solicitações e necessidades de todos os idosos, não resultando, assim, de atos intencionalmente praticados pelos funcionários do lar.
E no caso concreto, relacionado com a mãe do assistente, DD, não é possível afirmar que o estado da mesma se agravou em resultado de maus tratos infligidos no Lar Fundação ....
Neste conspecto, a testemunha MM, médico que prestou serviço na referida instituição e que acompanhou a idosa aquando da sua institucionalização no Lar e após a saída desta para a sua residência em ..., afirmou que o motivo da deterioração da condição clínica da idosa se prende com a sua idade e doença e não devido a maus tratos, situação que foi confirmada pela testemunha NN, médica que prestou serviço no aludido Lar e que conheceu a idosa aquando da sua institucionalização, bem como, pelas funcionárias do Lar que prestaram serviços à utente, as quais afirmaram, que o estado de deterioração de DD, se deveu à avançada idade da mesma e da sua doença e não a quaisquer maus tratos praticados no Lar.
Da análise dos elementos probatórios juntos aos autos, conclui-se, tal como concluiu o Ministério Público em sede de despacho final de inquérito, pela inexistência de indícios suficientes da prática do crime de maus tratos, por não ter sido detetada qualquer conduta dolosa perpetrada pelo Lar Fundação ... contra os utentes, pese embora se tenha verificado eventuais situações de negligência a nível da prestação de cuidados e assistência aos utentes por parte da respetiva Instituição.
Para além disso, não se pode ainda olvidar que conforme vem entendendo a nossa jurisprudência, o artigo 152.º-A do Código Penal, enquanto previsão de natureza penal, se encontra reservado a situações de especial gravidade – nas quais não se enquadra a situação indiciariamente apurada nos autos.
Por esse motivo, entendemos não existir uma probabilidade razoável de que o Lar Fundação ... venha a ser condenado, em sede de julgamento, pela prática do crime maus tratos.
Consideram-se, assim, não indiciados os factos imputados aos arguidos no artigo 40.º do requerimento de abertura de instrução, mormente, sob os números 4., 7. a 21., e 23. a 27.
Pelo exposto, e em face dos motivos invocados, impõe-se a não pronúncia dos arguidos AA, BB e do Lar Fundação ....»
*
Existência de indícios suficientes da prática de um crime de maus tratos pelos arguidos – apreciação do mérito do recurso.
Estabelece o art.º 308.º, n.º 1 do Código Processo Penal que “Se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Segundo o art.º 283.º, n.º 2, para onde remete o art.º 308.º, n.º 2, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança”.
Correlacionado com estes preceitos e por se tratar da fase de instrução, está o disposto no art.º 286.º, n.º 1, segundo o qual “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Como se observa no acórdão deste TRP, de 23/11/2011, disponível em www.dgsi.pt, a exegese da existência de indícios suficientes deve ajustar-se aos princípios constitucionais da dignidade humana, da preservação do bom nome e reputação, bem como do princípio “in dubio pro reo”, como a jurisprudência tem tido o cuidado de salientar, desde logo no seu aresto mais representativo, tirado pelo STJ, no acórdão de 18 de Maio de 2001 [1]. Aí se disse, a dado momento, que “aquela “possibilidade razoável” de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa”, em que “o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido” ou, então, que os indícios são suficientes quando haja “uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
Prossegue o mencionado acórdão do TRP, de 23/11/2011, salientando que “[…] a prova produzida, não deve ser aferida de modo estanque, mas sim na sua globalidade, e na divergência ou contradição entre os diversos depoimentos prestados, que tantas vezes destoam de um depoente para outro, dever-se-á procurar elementos objetivos de prova, que possam suportar, de modo convincente e para além de qualquer dúvida razoável, umas das versões suscitadas (a da acusação ou a da defesa), sendo certo que caso subsista aquela dúvida, aplica-se o princípio “in dubio pro reo”.
Isto significa que no culminar da fase de instrução, o juízo de pronúncia deve, em regra, passar por três fases.
Em primeiro lugar, por um juízo de indiciação da prática de um crime, mediante a indagação de todos os elementos probatórios produzidos, quer na fase de inquérito, quer na de instrução, que conduzam ou não à verificação de uma conduta criminalmente tipificada.
Por sua vez e caso se opere essa adequação, proceder-se-á, em segundo lugar, a um juízo probatório de imputabilidade desse crime ao arguido, de modo que os meios de prova legalmente admissíveis e que foram até então produzidos, ao conjugarem-se entre si, conduzam à imputação desse(s) facto(s) criminoso(s) ao arguido.
Por último, efetuar-se-á um juízo de prognose condenatório, mediante o qual se conclua que predomina uma razoável possibilidade de o arguido vir a ser condenado por esses factos e vestígios probatórios, estabelecendo-se sempre um juízo indiciador semelhante ao juízo condenatório a efetuar em julgamento.”.
Assim, a “natureza indiciária da prova significa que não se exige prova plena, mas apenas a probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança criminal” [2].
É, portanto, inequívoca a aplicação do princípio in dubio pro reona aferição da suficiência dos indícios – sendo este princípio aplicável em qualquer fase do processo, como se salienta no acórdão deste TRP, de 28/11/2018 [3].
Para além disso, consideramos que a análise da prova indiciária deve ficar sujeita aos restantes princípios e regras processuais que regem a apreciação da prova, designadamente ao princípio da livre apreciação da prova, contemplado no art.º 127º do CPP – com a consequência de que a prova indiciária deverá ser apreciada “segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Significa o princípio da livre apreciação da prova, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.
Em síntese, a comprovação dos “pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança” deve assentar na totalidade da prova produzida – aferida segundo juízos de normalidade/probabilidade/plausibilidade e de critérios de lógica e de racionalidade – e respeitar o princípio in dubio pro reo.
Vejamos, então, se em face da prova colhida no inquérito e na instrução, se pode concluir por uma “possibilidade razoável” de condenação – o que pressupõe que, num juízo de prognose, se conclua que é mais provável a futura condenação dos arguidos/recorridos, do que a sua absolvição [4].
Estabelece o n.º 1, do art.º 152.º-A do Código Penal que, “1 - Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e: a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente; b) a empregar em atividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou c) a sobrecarregar com trabalhos excessivos; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
Esta incriminação resulta da autonomização do crime de violência doméstica relativamente ao de maus tratos que constava, antes da revisão do Código Penal de 2007, do art.º 152º Código Penal, segundo a redação que lhe foi introduzida pelo D. L. 48/95, de 15.03., entretanto modificada pelas Leis 65/98, de 02.09, e 7/2000, de 27.05, o qual tutelava diferentes formas de violência no seio da família, da educação e do trabalho.
Ainda que o bem jurídico coincida com o tutelado pelo crime de ofensa à integridade física, na medida em que «em causa estará então em ambos os casos, no essencial, a proteção de um estado de completo bem-estar físico e mental», como observa Nuno Brandão (in A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Revista Julgar nº12 (especial), ASJP, Lisboa, Set.- Dez. 2010, p. 13 e ss.), trata-se de assegurar a integridade da saúde física e mental de pessoas mais vulneráveis, o seu bem-estar físico, psíquico e emocional (cf. A. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, p. 299).
Por isso, o bem jurídico protegido é a saúde, entendida como um bem jurídico complexo suficientemente amplo e nas suas múltiplas dimensões para se identificar com a integridade do ser humano, em todas as suas componentes - física, psíquica e moral, abrangendo ainda a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra, nos mesmos termos em que se encontra protegida no art.º 25º da CRP.
Tal como acentuado na exposição de motivos inserta na Proposta de Lei n.º 98/X, Anteprojecto da Lei 59/2007, de 4 de setembro, do qual resultou este art.º 152.º- A do CP, a razão de ser desta incriminação é o fortalecimento da defesa dos bens jurídicos visados, especialmente «o reforço da tutela de pessoas particularmente indefesas».
O referido preceito visa, pois, a prevenção, combate e repressão de frequentes e quase sempre subtis formas de violência física, psíquica e sexual dirigidas contra pessoas com menor capacidade de reação ou defesa, tidas como mais frágeis ou vulneráveis a partir de certos índices, como a idade, doença, ou condição física ou psíquica ou gravidez e quando envolvidas num contexto relacional muito específico com o agressor: trata-se de relações de poderes/deveres de cuidado, de guarda, de direção ou educação, ou de natureza laboral que criam, pela sua própria existência, um certo ascendente natural ou posição mais privilegiada ou preponderante do agressor em relação ao agredido.
O vínculo de dependência existencial da vítima em relação ao autor do crime já não se funda na coabitação, nas relações familiares ou de namoro e afins, como na violência doméstica, mas numa ligação institucional: o art.º 152º-A «(…) tem por objeto os maus tratos praticados nas escolas, hospitais, nas creches ou infantários, em lares de idosos ou instituições ou famílias de acolhimento de crianças, bem como os maus tratos cometidos na própria casa de habitação (por exemplo contra a empregada doméstica ou “baby-sitter”) ou na empresa, não deixando de fora, ainda e por exemplo, as pessoas que assumam, espontânea e gratuitamente, o encargo de tomar conta de “pessoas particularmente indefesas”, nomeadamente crianças, idosos, doentes ou pessoas com deficiência» (Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume II, artigos 152º e 152ºA, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 536).
É, aliás, essencialmente, neste vínculo que o crime de maus tratos se distingue do de violência doméstica.
Assim, vítima ou sujeito passivo só pode ser uma pessoa que, simultaneamente, preencha dois requisitos positivos - o de que se encontre em relação de subordinação existencial ou laboral com o agente, ou seja, que a vítima esteja ao cuidado, à guarda ou sob a responsabilidade da direção ou educação do agente ou a trabalhar ao seu serviço; o de que seja menor ou particularmente indefesa em razão da idade (avançada), de deficiência, da doença ou da gravidez - e um outro, negativo - o de que não exista entre o agente e a vítima uma relação de coabitação, pois, nesse caso, estará em causa um crime de violência doméstica, nos termos da al. d) do nº 1 do art.º 152º.
Os modos de ação típica são muito diversificados em sintonia com a amplitude e complexidade do bem jurídico, estando enumerados exemplificativamente os comportamentos suscetíveis de qualificação como maus tratos físicos ou psíquicos, ao invés de uma enumeração taxativa, que não esgotaria todo o espectro de atos potencialmente lesivos do bem jurídico visado proteger com a incriminação do art.º 152º-A do CP.
O crime consuma-se tanto com as condutas integradoras de ofensas à integridade física simples (os maus tratos físicos), ou seja, todas as agressões que envolvam alguma perturbação no corpo e saúde da vítima, como com os maus tratos psíquicos, incluindo humilhações, provocações, quer estas se reconduzam ou não a atos, gestos, palavras, expressões, escritos, etc., englobando quaisquer comportamentos que ofendam a integridade moral ou o sentimento de dignidade da vítima, como as injúrias, humilhações, ameaças e outros e compreendem, a par das estratégias e condutas de controlo, o abuso verbal e emocional puníveis, em si mesmas, ou não, como crimes de injúria e difamação, de ameaça ou de coação.
O crime de maus tratos proíbe também o tratamento cruel, que não se traduz, necessariamente, na imposição de lesões físicas, mas pode incluir outros tipos de comportamentos que impliquem um desgaste constante na vítima, devendo caracterizar-se pela sua adequação à inflição de sofrimento físico ou psicológico com uma certa tónica de reiteração ou permanência.
Este tipo proíbe ainda a sujeição a atividades desumanas, perigosas ou proibidas, que assim deverão ser qualificadas por referência às características e fragilidades específicas de cada vítima que, respetivamente, as humilhem ou degradem, ou com utilização de meios particularmente perigosos, ou na colocação da vítima em situações, também elas, especialmente perigosas, ou que correspondam à prática de factos ilícitos.
Por fim, entre as modalidades de maus tratos também se contam os trabalhos excessivos. A excessividade dos maus tratos afere-se também atendendo às características da vítima e ao tipo de trabalhos concretamente impostos.
Segundo o critério do resultado material, tanto podem ser classificados como crimes de resultado – quando a execução típica se traduz em maus tratos físicos ou em privações da liberdade - como de mera atividade – no caso de a conduta integradora do tipo constituir provocações, ameaças ou o emprego em atividades perigosas, desumanas ou proibidas - sendo que, nos primeiros, o resultado é elemento do tipo de crime e nos segundos, apenas constitui motivo da incriminação.
De acordo com o critério da intensidade da lesão do bem jurídico, estes crimes também podem ser crimes de dano, por exemplo no caso de ofensas sexuais ou corporais e das privações de liberdade, ou crimes de perigo, nas situações em que ocorram ameaças ou humilhações ou o emprego em atividades perigosas. Nos primeiros, a efetiva lesão do bem jurídico é elemento do tipo legal, enquanto nos segundos o tipo legal apenas exige a colocação em perigo do bem jurídico.
Trata-se de um crime específico que será impróprio quando as condutas integradoras do crime de maus tratos, isolada e autonomamente consideradas, já constituam crime (v.g. os maus tratos físicos que traduzirão sempre ofensas à integridade física e certas modalidades de maus tratos psíquicos reconduzem-se aos crimes de injúria, ameaça, difamação, coação sequestro), na medida em a qualidade do autor do facto ou o dever que sobre ele impende, não servem para fundamentar a responsabilidade, mas unicamente para a agravar.
Se as condutas não configurarem, em si mesmas consideradas, qualquer outro ilícito penal, como tal previsto na parte especial do CP, o crime de maus tratos será, então, um crime específico próprio pois, nestes casos, como quando se submete a vítima a atividades perigosas, a trabalhos excessivos, a certas formas de crueldade, é a qualidade do agente que constitui o motivo da incriminação.
No que especificamente concerne aos idosos, a Organização Mundial de Saúde define maus tratos como um ato único ou repetido, ou ainda, ausência de ação apropriada que cause dano, sofrimento ou angústia e que ocorra no contexto e desenvolvimento de um relacionamento de confiança que atenta contra a sua vida, ou é lesiva da sua integridade física ou psíquica, da sua liberdade, segurança económica ou compromete o desenvolvimento da sua personalidade (Action on Elder Abuse (AEA, 1993) e adotada pela Organização Mundial de Saúde - WHO/INPEA. Missing voices: views of older persons on elder abuse. Geneva: WHO; 2002, https://apps.who.int/iris/handle/10665/67371).
Assim, dentro destes limites e com estas características, podem enumerar-se como formas de maus tratos a idosos: qualquer forma de agressão física (espancamentos, golpes, queimaduras, fraturas, administração abusiva de fármacos ou tóxicos, relações sexuais forçadas, que se reconduzem à modalidade maus tratos físicos); os maus-tratos psicológicos ou emocionais, materializados em condutas que causam dano psicológico como manipulação, ameaças, humilhações, chantagem afetiva, desprezo ou privação do poder de decisão, negação do afeto, isolamento e marginalização; a negligência traduzida em não satisfazer as necessidades básicas (negação de alimentos, cuidados higiénicos, habitação, segurança e cuidados médicos), que se reconduz a tratamento cruel, assim como condutas de abuso económico, como seja, impedir o uso e controlo do próprio dinheiro, exploração financeira e chantagem económica, ou permitir a exposição incontrolada a formas de auto-negligência resultantes da incapacidade de um indivíduo desempenhar tarefas de cuidado consigo próprio indispensáveis à sua sobrevivência e à satisfação de necessidades essenciais do quotidiano, (cf., Hirsch CH, Stratton S, Loewy R., The primary care of elder mistreatment. WEST J MED 1999 Jun; 170 (6): 353-8; Fernández-Alonso MC, Herrero-Velázquez S. Maltrato en el anciano: posibilidades de intervención desde la atención primaria (I). Aten Primaria 2006 Ene; 37 (1):56-9; Howard M. Fillit, Kenneth Rockwood, John B Young, Brocklehurst's Textbook of Geriatric Medicine and Gerontology E-Book pp 943 e 944 https://www.us.elsevierhealth.com/ e Briony Dow e Melanie Joosten, Entendendo o abuso de idosos: uma perspetiva de direitos sociais, Janeiro de 2012, Psicogeriatria Internacional 24(6): 853-5 DOI: 10.1017/S1041610211002584 https://www.cambridge.org/core). [5]
Em princípio, a estrutura objetiva do tipo implica a reiteração, pois que a lesão do bem jurídico complexo protegido (a saúde) envolverá uma pluralidade de condutas da mesma ou de diferentes espécies repetidas por um período mais ou menos prolongado, embora com a expressão de «modo reiterado ou não» se admita que certas condutas isoladas, desde que dotadas de gravidade bastante, podem também operar a consumação dos maus tratos.
A imputação subjetiva do tipo, pese embora as diferentes modalidades que pode revestir, tem o seu fundamento exclusivo no dolo em qualquer das suas modalidades que, justamente por causa das diferentes formas que a consumação do crime de maus tratos pode revestir, tem conteúdo variável.
Implica, desde logo, sempre, o conhecimento da existência dos deveres inerentes à assunção da relação laboral, ou do vínculo de proteção-subordinação, do estado de menoridade, deficiência, velhice, doença ou gravidez da vítima.
Na vertente de maus tratos físicos, o dolo abrange o resultado, traduzindo-se na consciência e a vontade de causar a lesão da integridade física da vítima e, nos restantes casos, implica a consciência e vontade de criar o risco de lesão da saúde da pessoa do ofendido ou do perigo de afetação do normal desenvolvimento da criança aos cuidados do agente ou de criação de prejuízos para a saúde da vítima.
Existe, ainda, dolo (necessário ou eventual) quando o agente, não pretendendo diretamente causar o resultado danoso, tem consciência de que este ocorrerá como consequência necessária ou possível da sua conduta e com isso se conforma (cf. o art.º 14.º, nºs 2 e 3 do CP).
O art.º 10º do CP equipara, em geral, a omissão à ação, nos crimes de resultado, estabelecendo que, quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a ação adequada a produzi-lo como também a omissão adequada a evitá-lo. São os crimes comissivos por omissão imprópria, porque o evento antijurídico pertinente à consumação do crime, segundo a sua descrição típica, resulta do incumprimento do dever jurídico de evitar esse resultado, nisso se distinguindo dos crimes omissivos puros que se caracterizam pela simples abstenção de agir e são crimes de mera atividade.
A punibilidade do omitente depende da existência de um específico dever jurídico que o obrigue a agir, para evitar o resultado. Só há equivalência entre o desvalor da ação e o desvalor da omissão, porque o agente tem uma posição de garante da não produção do resultado, à luz de um dever jurídico de agir que constitui o fundamento da punição e sem o qual a punibilidade da omissão constituiria uma intromissão intolerável na esfera privada de cada um.
O facto típico materializa-se na «criação de um risco de verificação de um resultado típico» que existirá sempre que esse perigo se verifica ou é intensificado por efeito da omissão, traduzida na ausência da ação esperada e exigível por referência àquilo que, segundo a descrição típica, é necessário para obstar à verificação do resultado previsto no tipo legal e desde que o omitente esteja em condições de poder levar a cabo a ação devida ou necessária a evitar o resultado (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, Coimbra editora 2ª ed., págs. 927 e 928).
O dever jurídico de garante da não ocorrência do resultado antijurídico pode resultar diretamente da lei (dever legal especial), de um contrato, de situações de criação de perigo e/ou relações familiares íntimas de solidariedade e confiança que importem a aceitação de facto de deveres cuja execução importe ingerência/apoio entre o omitente e o titular do bem jurídico que suporte o dever de agir, numa posição de proteção ou de uma posição de controlo.
No presente caso, em linha com o Ministério Público, que decidiu arquivar o inquérito, considerou o tribunal de instrução criminal que «não há no inquérito elementos indiciários que pudessem sustentar a atribuição a AA e BB de uma concreta conduta, ativa ou omissiva, que pudesse considerar-se maltratante». Já no que respeita à arguida, pessoa coletiva, ..., considerou o tribunal que, «da concatenação dos depoimentos recolhidos em inquérito e documentos juntos ao processo, indicia-se suficientemente a existência de deficiências e carências nos serviços prestados aos utentes no Lar, as quais se traduzem essencialmente, num défice de trabalhadores, para prestar todos os cuidados necessários aos utentes daquela Instituição [...]», não tendo sido recolhidos indícios suficientes de concretos maus tratos perpetrados contra os utentes do Lar Fundação ....
Finaliza o tribunal a quo argumentando que «da análise dos elementos probatórios juntos aos autos, conclui-se, tal como concluiu o Ministério Público em sede de despacho final de inquérito, pela inexistência de indícios suficientes da prática do crime de maus tratos, por não ter sido detetada qualquer conduta dolosa perpetrada pelo Lar Fundação ... contra os utentes, pese embora se tenha verificado eventuais situações de negligência a nível da prestação de cuidados e assistência aos utentes por parte da respetiva Instituição. Com efeito, todas as testemunhas – funcionárias do lar, enfermeiros e médicos que ali prestaram serviços, negaram a existência de situações de maus tratos, físicos e/ou psíquicos, sendo perentórias ao afirmar que nunca presenciaram tais situações. Além disso, todas as situações relatadas por essas testemunhas, reconduzem-se a situações de negligência, manifestada em falhas nos cuidados de higiene, alimentação e supervisão dos utentes, as quais, segundo afirmaram grande parte das testemunhas, são devidas à insuficiência de funcionários, para fazer face às solicitações e necessidades de todos os idosos, não resultando, assim, de atos intencionalmente praticados pelos funcionários do lar.»
Delimitado dogmaticamente o tipo de crime de maus tratos, analisemos, assim, se em face da prova colhida no inquérito e na instrução se encontra indiciada a prática pelos arguidos – e, reflexamente, pela arguida ... – de factos suscetíveis de integrarem os elementos objetivos e subjetivos do referido tipo de ilícito, para além do respetivo tipo de culpa.
Em primeiro lugar, importa assinalar que não encontramos qualquer razão válida para que o tribunal a quo não tivesse considerado suficientemente indiciadas as lesões físicas que a idosa DD apresentava quando o assistente, seu filho, a retirou da instituição, e o nexo de causalidade entre tais lesões e a deficiente prestação de cuidados recebidos pelos idosos institucionalizados naquele local.
Com efeito, essas lesões encontram-se evidenciadas nas fotografias juntas aos autos (cf. fls. 16 a 18) e foram comprovadas, não só pelo assistente, mas também pela testemunha FF, enfermeira que assistiu a vítima DD.
É verdade que esta testemunha, não exercendo funções na instituição em causa, não podia, naturalmente, garantir que aquelas lesões – em particular, o eritema na zona genital e a úlcera de pressão na região sacro-coccígia, grau 3, com tecido necrótico – foram causadas por falta de prestação de cuidados devidos no lar, tendo, porém, referido que a sua ocorrência está normalmente associada a deficiente higienização dos utentes ou a falta de substituição das fraldas com regularidade e, também, à falta de reposicionamento do corpo de duas em duas horas ou à execução incorreta desse movimento (cf. depoimento constante de fls. 104).
Contudo, a generalidade das testemunhas inquiridas afirmou que a instituição não dispunha de funcionários suficientes para prestar adequadamente os necessários cuidados aos idosos, designadamente para prover à sua alimentação e higiene pessoal e, ainda, para a mobilização daqueles que, como a vítima DD, não se podiam movimentar sozinhos.
Assim, GG, que exerceu funções de auxiliar de ação direta no lar da ... durante oito anos, referiu que “o número de funcionários era insuficiente para prestar o apoio aos utentes dependentes que se encontravam acamados, designadamente para fazer a rotação do corpo e para prestar cuidados de higiene, como por exemplo trocar as fraldas, pelo que os doentes acabavam por estar mais tempo do que deviam imobilizados em determinada posição e as fraldas eram trocadas muito tempo depois do que seria aconselhado e necessário”. Acrescentou que, normalmente, existiam quatro funcionárias (duas em cada andar) para quarenta e seis utentes, na sua maioria dependentes de terceiros para alimentação e higiene (cf. o depoimento constante de fls. 116/117).
A testemunha II, tendo exercido funções de ação direta e chefe de equipa, durante 14 anos, com término em outubro de 2020, referiu que “o número de funcionários da instituição era insuficiente para atender todos os idosos dependentes de terceiro para se alimentar, pelo que alguns idosos não seriam alimentados da forma mais adequada”, acrescentando que nos últimos três/quatro anos em que trabalhou na instituição “verificou que a qualidade dos serviços prestados aos utentes se deteriorava, passando os utentes com maior grau de dependência a estar mais tempo do que deviam na mesma posição, sem que fosse efetuada a rotação do corpo, assim como as fraldas eram mantidas mais tempo do que aquele que seria aconselhável”.
Do mesmo modo, a testemunha JJ – que trabalhou no lar da ... durante um ano e tem, atualmente, a seu cuidado a mãe do assistente – salientou que a instituição tinha um número insuficiente de funcionários para prestar os devidos cuidados aos utentes, a maior parte deles dependentes e acamados. Como consequência, a alimentação era fornecida aos utentes de forma a demorar o mínimo de tempo possível. Acrescentou que a insuficiência de funcionários também se notava no apoio aos utentes dependentes que se encontravam acamados, designadamente para fazer a rotação do corpo, colocando-os em cadeirões, por exemplo, e nos cuidados de higiene, em particular no procedimento de troca de fraldas, sendo que muitos utentes apenas durante a tarde eram intervencionados pelas auxiliares, não havendo tempo, durante o período da manhã, para realizar estas tarefas a todos os que delas careciam (cf. o depoimento constante de fls. 126/127).
Perante este circunstancialismo, não temos qualquer dúvida em afirmar que se encontram indiciariamente demonstrados os factos enunciados pelo assistente no artigo 40 – e melhor descritos nos pontos 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 15 deste artigo – do requerimento de abertura de instrução e, consequentemente, o emagrecimento e as lesões evidenciadas pela mãe do assistente, diretamente causados pela omissão da prestação de cuidados necessários e atempados de alimentação, higiene e mobilização/rotação do seu corpo.
Como foi reconhecido na decisão instrutória, DD padecia, à data dos factos, de uma demência, encontrando-se absolutamente dependente de terceiros para a realização de tarefas básicas, nomeadamente as relacionadas com a sua alimentação, higiene pessoal e toma de medicação, sendo ainda incapaz de se locomover sozinha, carecendo por isso de apoio de terceiros para se levantar, movimentar e deitar na cama (cf. o ponto 5 do requerimento de abertura de instrução).
Trata-se, assim, de uma «pessoa particularmente indefesa», em razão da sua idade e doença, elemento indispensável para o preenchimento do tipo de ilícito objetivo do crime de maus tratos que nos ocupa.
Ora, a Fundação ... é uma Instituição Particular de Solidariedade Social, que tem uma estrutura residencial para idosos, prestando esse serviço, tendo sido utente desta estrutura a ofendida DD (nascida em .../.../1937), no período compreendido entre setembro de 2018 e setembro de 2020 (factos 1) e 2) do ponto 40 do requerimento de abertura de instrução, já considerados indiciariamente demonstrados pelo tribunal de primeira instância).
Deste modo, competia à Fundação ... assegurar a execução das tarefas necessárias a garantir o bem-estar e saúde dos respetivos utentes, provendo diariamente pela sua alimentação, higiene e cuidados médicos.
Está, assim, configurada a sua posição de garante da saúde física, mental e do bem-estar emocional dos utentes que tinha a seu cargo, particularmente da ofendida, derivada do especial contexto relacional de confiança e de apoio à satisfação das necessidades a que a instituição arguida estava contratualmente obrigada e, ainda, a situação de vulnerabilidade e dependência, fruto da doença e idade avançada da vítima, que integra o nº 1 do art.º 152º-A do CP.
Sucede que a instituição arguida, aparentemente por não dispor da quantidade de funcionários suficiente, omitiu a prestação dos cuidados de alimentação, higiene e mobilização dos utentes mais vulneráveis e dependentes, com a frequência e qualidade necessárias, como sucedeu com a ofendida DD, causando-lhe as lesões já descritas e consequente sofrimento físico e psíquico-emocional.
Podemos, assim, concluir que, impendendo sobre a instituição arguida e respetivos representantes (os arguidos AA e BB, respetivamente presidente e secretário do Conselho Executivo – cf. os pontos 3 e 4 do artigo 40 do requerimento de abertura de instrução e os estatutos da Fundação ... constantes de fls. 373 e 374/379) o dever de garante em relação à ofendida DD e demais utentes a seu cargo, omitiram os arguidos os atos adequados a evitar tais ofensas à sua saúde e integridade física, que podiam e deviam ter sido adotados, ocorrendo, por essa via, uma situação de maus tratos, imputável a título omissivo.[6]
Na verdade, e como já tivemos de salientar, o conceito de “maus tratos” não se limita às situações mais evidentes de ofensas à integridade física ou psíquica das vítimas, frequentemente traduzidas em agressões físicas/sexuais, insultos, humilhações ou ameaças, antes abarcando um espetro muito alargado de comportamentos suscetíveis de ofender a saúde física, psíquica e emocional das pessoas às quais são dirigidos, neles se incluindo ausência da prestação de cuidados alimentares e de higiene pessoal exigíveis e adequados a preservar o seu bem-estar e integridade pessoal.[7]
Resta analisar se, como sustenta o assistente, se encontra indiciariamente demonstrada uma atuação dolosa por parte dos arguidos. E, neste âmbito, importa reiterar que o elemento subjetivo do tipo de ilícito compreende o dolo em qualquer das suas modalidades – direto, necessário e eventual -, não se exigindo, para além disso, um “dolo específico”.
Assim sendo, pode verificar-se uma atuação dolosa por parte dos arguidos, mesmo que as falhas nos cuidados de higiene, alimentação e supervisão dos utentes, devidas à insuficiência de funcionários para fazer face às solicitações e necessidades de todos os idosos, como salientaram as testemunhas já indicadas, não hajam resultado de atos intencionalmente praticados pelos funcionários do lar – circunstância que, tanto quanto podemos perceber da leitura da decisão recorrida, afastaria o dolo dos recorridos na perspetiva do tribunal a quo.
E a resposta a esta questão é, na nossa opinião, claramente afirmativa no caso do arguido AA.
Efetivamente, resulta dos estatutos da Fundação ... que ao Conselho Executivo compete a gestão corrente da instituição e representá-la, incumbindo-lhe, designadamente, garantir a efetivação dos direitos dos beneficiários, assegurar a sua organização e funcionamento, elaborar o quadro de pessoal, contratar o pessoal necessário, exercer o poder disciplinar e gerir o pessoal da instituição (cf. o documento constante de fls. 374/379 – artigo 20.º).
Ao arguido AA competia, na sua qualidade de Presidente do Conselho Executivo, entre outras funções, “superintender na gestão corrente da Fundação, orientando e fiscalizando os respetivos serviços” (cf. o art.º 21.º dos Estatutos).
Por seu turno, o arguido BB tinha por atribuições, na sua qualidade de Secretário do Conselho Executivo, “coadjuvar o Presidente no exercício das suas atribuições e substituí-lo nas suas faltas e impedimentos”, para além de “lavrar as atas das sessões do Conselho Executivo e superintender nos serviços de expediente”, “preparar a agenda de trabalho para as reuniões do Conselho Executivo, organizando os processos dos assuntos a serem tratados” e “superintender nos assuntos de secretaria” (cf. o art.º 22.º dos Estatutos e o documento constante de fls. 373).
Ora, resulta claramente da prova testemunhal produzida nos autos que o arguido AA era o “diretor” da instituição, pessoa que geria o lar conjuntamente com a Dra. OO, e a quem, na expressão da testemunha II, “todos deviam obediência” (cf., em sentido idêntico, os depoimentos prestados pelas testemunhas GG – que salientou que o “Pastor AA”, como era conhecido, era o diretor da instituição e tratava dos assuntos sempre com OO, passando frequentemente pelo lar -, HH, JJ e PP, este último constante de fls. 124. A testemunha QQ, também funcionária do lar da Fundação ..., salientou que o “Pastor AA” é o “patrão”, “a pessoa que gere a instituição” – cf. fls. 129).
Temos de concluir, assim, que o arguido AA, estando ciente das referidas deficiências nos serviços prestados - sendo disso, aliás, alertado, como apontou a testemunha II -, nada fez para corrigir a situação, designadamente mediante a contratação de novos funcionários ou otimização dos recursos humanos existentes [8], apesar de ter consciência que não estavam a ser prestados os cuidados adequados aos utentes.[9]
Relativamente ao arguido BB, apesar de estatutariamente dever coadjuvar o arguido AA no exercício das suas atribuições, temos de reconhecer que a prova indiciária reunida nos autos não suporta a conclusão, para além da dúvida razoável – e, portanto, com o grau de certeza exigido para a superação do princípio in dubio pro reo -, [10] de que estava realmente ciente da deficiente prestação de cuidados aos utentes, nos moldes já enunciados e suscetíveis de configurar “maus tratos”, e, para além disso, efetivamente capaz de adotar as medidas necessárias para corrigir tal situação.[11]
Em conclusão, não se encontra indiciariamente demonstrado um comportamento omissivo por parte do arguido BB, adequado a evitar a produção dos resultados lesivos da saúde física e do bem-estar emocional da ofendida DD, que lhe possa ser imputado, pelo menos, a título de dolo eventual.
Já quanto ao arguido AA e à Fundação ..., a sua responsabilidade criminal resulta da circunstância de terem omitido os atos adequados a evitar as descritas ofensas à saúde e integridade física da ofendida, que podiam e deviam ter sido adotados, ocorrendo, por essa via, uma situação de maus tratos, imputável a título omissivo, tendo o primeiro arguido atuado, pelo menos, com dolo eventual.
Deste modo, e na procedência parcial do presente recurso, revoga-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra, da qual resulte a pronúncia dos arguidos Fundação ... e AA pelos factos descritos no requerimento de abertura de instrução (devidamente adaptados, considerando a manutenção da decisão de não pronúncia quanto ao arguido BB, por falta de demonstração do dolo respetivo), suscetíveis de integrarem a prática, na forma consumada, de um crime de maus tratos, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 152.º-A, n.º 2, alínea a), 10.º, n.ºs 1 e 2 e 11.º, n.ºs 2, 4, 5 e 7, todos do Código Penal.
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III – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso do assistente, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra, da qual resulte a pronúncia dos arguidos Fundação ... e AA pelos factos descritos no requerimento de abertura de instrução (devidamente adaptados, em particular os descritos nos pontos 16), 19), 21), 25), 26) e 27) do requerimento de abertura de instrução, considerando a manutenção da decisão de não pronúncia quanto ao arguido BB, por falta de demonstração do respetivo dolo), suscetíveis de integrarem a prática pelos arguidos/recorridos de um crime de maus tratos, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 152.º-A, n.º 2, alínea a), 10.º, n.ºs 1 e 2 e 11.º, n.ºs 2, 4, 5 e 7, todos do Código Penal.
Custas pelo assistente/recorrente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal (art.º 515.º, n.º 1, alínea b), do CPP).
Podendo estar indiciada a prática do crime de maus tratos por OO, pessoa referenciada pela generalidade das testemunhas como sendo a “administradora do lar”, e dispondo este ilícito de natureza pública, comunique-se ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes (cf. os artigos 241.º e 242.º, n.º 1, b), do CPP).
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(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).
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Porto, 18 de outubro de 2023.
Liliana de Páris Dias
José Piedade
Maria dos Prazeres Silva
______________ [1] Relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira e disponível em www.dgsi.pt. [2] Cf. o acórdão deste TRP, de 9/1/2019 (relatado pela Desembargadora Elsa Paixão e disponível em www.dgsi.pt). [3] Relatado pelo Desembargador Neto de Moura e disponível em www.dgsi.pt. [4] Conforme salientado no acórdão deste TRP, de 28/11/2018 (Desembargador Neto de Moura), uma posição intermédia (denominada teoria da probabilidade dominante, que, reconhecidamente, é a que tem apoio na letra da lei) considera que para acusar ou pronunciar alguém é necessário que, num juízo de prognose, se conclua que é mais provável a sua futura condenação do que a sua absolvição. Neste sentido, pode ver-se o acórdão do STJ de 08/10/2008 (Cons. Soreto de Barros), acessível em www.dgsi.pt, em que se afirma que «possibilidade razoável» é a que se baseia num juízo de probabilidade, “uma probabilidade mais positiva do que negativa, de que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha”. [5] Cf., neste sentido, o acórdão do TRL de 23/2/2022, relatado por Cristina Almeida e Sousa, disponível em www.dgsi.pt, e que aqui seguimos de perto. [6] Cf., neste sentido, para além do acórdão do TRL de 23/2/2022, já citado, também o acórdão deste TRP de 12/10/2016, relatado pelo Desembargador José Carreto, igualmente disponível para consulta em www.dgsi.pt. [7] Cf., neste sentido, para além do acórdão do TRL de 23/2/2022, já citado, também o acórdão deste TRP de 12/10/2016, relatado pelo Desembargador José Carreto, igualmente disponível para consulta em www.dgsi.pt. É de notar que a APAV (Associação Portuguesa de Apoio á Vítima) identifica como exemplo de práticas de violação de direitos de pessoas institucionalizadas, entre muitas outras, «deixar pessoas idosas com dificuldade de mobilização sentadas ou deitadas durante muito tempo, sem ajudá-las a levantar-se» e «não mobilizar regularmente pessoas idosas acamadas», para além de «práticas de violação de direitos ao nível da supervisão técnica», incluindo «Não assegurar que a equipa técnica é qualificada e que há um número adequado de profissionais que a compõem», e de «Práticas de violação de direitos ao nível da higiene pessoal», nomeadamente «Deixar as pessoas idosas sujas (por exemplo, de fezes e urina) durante muito tempo» e «Não lavar as pessoas idosas acamadas na totalidade durante longos períodos de tempo». Acrescenta-se a prática de «Negligenciar a alimentação das pessoas idosas por falta de ajuda durante as refeições», todas elas verificadas no presente caso – cf. https://apav.pt/publiproj/images/yootheme/PDF/Titono_PT.pdf. [8] Resulta da prova testemunhal que o número de funcionárias era escasso e, mesmo assim, duas ainda eram afetadas aos serviços domiciliários e, outra, à cozinha, pelo que frequentemente apenas se encontravam três funcionárias, distribuídas por dois pisos, para atender cerca de cinquenta utentes, na sua maioria acamados, o que se afigura manifestamente insuficiente (cf., em particular, o depoimento da testemunha JJ). [9] É de notar que a testemunha II referiu que, tanto o arguido, tratado por “Pastor AA”, como a Dra. OO – administradora do lar e superior hierárquica das funcionárias, aqui se incluindo as testemunhas inquiridas -, quando confrontados com as falhas da instituição, diziam: “Quem não está bem muda-se, a porta da rua é a serventia da casa”. [10] A decisão da matéria de facto, em processo penal, constitui, não só a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do arguido. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno (cf., neste sentido, o acórdão do TRP de 14/7/2020, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível em www.dgsi.pt). [11] É de notar que nenhuma das testemunhas alude ao arguido/requerido nos seus depoimentos, pelo que ficamos com sérias dúvidas de que este acompanhasse de perto a gestão dos assuntos da Instituição ou, pelo menos, que estivesse a par dos problemas com que esta se deparava na prestação de cuidados aos respetivos utentes.