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JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
RECURSOS INTERCALARES
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
INCUMPRIMENTO CONTRATUAL
INTERESSE CONTRATUAL POSITIVO
RESOLUÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
Sumário
Sumário
I– Sendo de natureza excepcional a possibilidade de junção de documentos em fase de recurso, não é a mesma possível depois da apresentação das alegações, por a lei não admitir a prorrogação do prazo constante do art. 651º, nº 1 do CPC” ; II– tal junção não é igualmente legalmente permitida nos quadros do art. 6º, nº 1 do mesmo diploma – dever de gestão processual a cargo do juiz – pois este, tendo por desiderato uma tramitação processual célere e expedita, funciona dentro dos mecanismos previstos na lei, não sancionando a realização de atos não permitidos por lei ; III– donde, o documento superveniente à alegação só pode ser junto, e feito valer, em eventual recurso de revista, caso se verifique o caso excecional do art. 680-1, igualmente do Cód. de Processo Civil ; IV– nos quadros do artº. 631º, do Cód. de Processo Civil, a legitimidade para recorrer é aferida pelo prejuízo sofrido pela parte, podendo assim recorrer a parte que tenha sido prejudicada pela decisão pretendida impugnar ; V– todavia, para que possa recorrer, é ainda necessário que a parte retire alguma utilidade ou vantagem da procedência do recurso, isto é, é ainda indispensável que tenha interesse em recorrer ; VI– desta forma, apesar de objectivamente vencida, pode a parte não ter interesse em agir recursoriamente, nomeadamente quando nenhuma utilidade efectiva ou real pode extrair da eventual alteração da decisão proferida ; VII– in casu, relativamente ás decisões contidas nos despachos recorridos, um eventual juízo de procedência dos recursos interpostos, não determinaria qualquer utilidade para a Recorrente Ré ; VIII– com efeito, apesar desta ter ficado objetivamente vencida pelo deliberado naquelas decisões, um putativo juízo de procedência dos recursos interpostos, conducente a que o depoimento de parte fosse prestado por intermedio do seu procurador, devidamente credenciado, nenhuma vantagem lhe traria, atenta a finalidade do depoimento de parte requerido pela Autora, natureza da matéria factual objecto do mesmo e o reconhecimento que aquele meio probatório nunca poderia ter por desiderato ou tutela o cumprimento do ónus probatório daquela matéria factual, que compete à Ré Apelante ; IX– num contrato bilateral com prestações recíprocas tornando-se impossível o cumprimento da prestação, por causa imputável ao devedor (impossibilidade culposa), ocorre situação de incumprimento definitivo, responsabilizando-o pela totalidade dos prejuízos ou perdas que cause á contraparte credora – o artº. 801º, do Cód. Civil ; X– em tal situação o credor, para além do direito à indemnização, pode resolver o contrato bilateral por incumprimento da contraparte, assim se desvinculando da contraprestação e, caso a já tenha cumprido, exigir integralmente a sua restituição ; XI– ou seja, operada a resolução contratual por incumprimento da contraparte, ocorre supressão das prestações principais, que não dos deveres secundários e acessórios, assim se mantendo o dever de indemnizar o contraente fiel relativamente á totalidade dos danos suportados, nestes se incluindo os danos negativos ou de confiança e, prima facie e por princípio, as vantagens que lhe adviriam pelo pontual cumprimento do contrato, ou seja, os danos positivos ou do cumprimento ; XII– efectivamente, não devendo a resolução prejudicar o credor fiel, a indemnização a atribuir-lhe deve, por princípio, colocá-lo na situação em que estaria caso o contrato tivesse sido devidamente cumprido, assim se tutelando o seu interesse contratual positivo ; XIII– assim, mesmo nas situações em que ocorre resolução do contrato bilateral por incumprimento da contraparte, é de admitir a indemnização pelo interesse contratual positivo, pois aquela (a resolução) deve ser entendida na consideração dos interesses do lesado, credor fiel, confrontado com a frustração negocial decorrente do inadimplemento da contraparte, e não como mero meio de destruição da relação contratual ; XIV– traduzindo-se, quer a resolução, quer a indemnização, em diferenciadas ou distintas tutelas, pois aquela permite a restituição do prestado ou a desvinculação na contraprestação, e esta o total ressarcimento dos prejuízos suportados pelo incumprimento contratual ; XV– todavia, tal admissibilidade da cumulação da resolução contratual com a indemnização dos danos decorrentes da violação do interesse contratual positivo, não prescinde duma necessária ponderação casuística, a operar à luz do princípio da boa fé, e de acordo com os concretos interesses em equação (exemplificativamente, o tipo contratual em causa), de forma a que sejam evitadas situações de grave desequilíbrio na relação de liquidação, ou a atribuição de um injustificado benefício ao credor lesado ; XVI– isto é, na aferição da admissibilidade cumulativa, urge sempre considerar as particularidades do caso concreto, de forma a decidir-se se a tutela indemnizatória deverá abranger os danos decorrentes do interesse contratual positivo.
Sumário elaborado pelo Relator – cf., nº. 7 do artº. 663º, do Cód. de Processo Civil
Texto Integral
ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte[1]:
I–RELATÓRIO
1–O………, LDA., com sede no Centro E………, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra F………, S.A., com sede no Parque ………,
deduzindo o seguinte petitório: a)-Ser a R. condenada a restituir à A. o montante de € 337.596,00 (trezentos e trinta e sete mil quinhentos e noventa e seis euros); b)-Acrescido de juros à taxa legal em vigor para operações comerciais de 7% ao ano, contados ao dia, o que na presente data ascende ao montante de € 4.143,54 (quatro mil cento e quarenta e três euros e cinquenta e quatro cêntimos); c)-De juros vincendos até integral pagamento; d)-E de uma indemnização à A. no valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros).
Para tanto, alegou, em súmula, o seguinte:
Ø é uma empresa com actividade na distribuição por grosso de medicamentos para uso humano e outros produtos de saúde, tais como dispositivos médicos, suplementos alimentares, biocidas, reagentes, testes de diagnóstico, cosméticos, entre outros ;
Ø a Ré é uma empresa com actividade na mesma área, onde está presente há várias décadas ;
Ø no âmbito das relações comerciais que mantém com a Ré, encomendou-lhe vários produtos cujo preço ascendia ao montante de 337.596,00 € ;
Ø tendo pago antecipadamente tal quantia, conforme processo de encomenda comercial que as partes vinham mantendo, tendo sido emitidas facturas proforma ;
Ø apesar dos sucessivos pedidos que efectuou, a Ré não forneceu nem pretende fornecer à Autora os produtos encomendados ;
Ø não tendo, ainda, devolvido a quantia que lhe foi paga, que se encontra assim indevidamente retida, apesar das sucessivas datas propostas para tal devolução ;
Ø o não fornecimento dos produtos acarretou-lhe prejuízos, nomeadamente os decorrentes de mais-valias de vendas não concretizadas, computáveis no montante de 50.000,00 € ;
Ø pois, atento o valor das encomendas não entregues pela Ré, “calculando um hipotético mark up de 30% (trinta por cento) nas vendas, e reduzindo esse valor para metade”, determina-se tal valor de 50.000,00 €. 2–Devidamente citada, veio a Ré apresentar contestação – cf., fls. 34 a 38 -, aduzindo, em resumo, que:
confirma a encomenda dos produtos e o recebimento da quantia mencionada ;
apresentou uma participação criminal por ilícitos praticados por um seu ex-funcionário e pelo gerente da Autora, consubstanciados num conluio entre ambos no sentido de prejudicá-la, desviando clientes desta para a Autora ;
tal conduta causou prejuízos no montante de, pelo menos, 855.000,00 € ;
a retenção da quantia em causa resultou do exercício de acção directa, com vista a cautelar o seu direito de indemnização ;
tendo, para tal, requerido no processo crime instaurado, com base na denúncia que apresentou, uma providência cautelar de arresto e irá exercer nesse processo o direito à indemnização por factos ilícitos, em obediência ao princípio da adesão ;
pretendendo exercer, igualmente, o direito à compensação do crédito detido pela Autora, com o crédito por si detido na procedência do pedido de indemnização civil que vier a ser deduzido ;
os eventuais lucros da Autora seriam concretizados à sua custa, de quem, em conluio com um seu ex-funcionário, pretendia continuar a adquirir produtos bem abaixo do preço de mercado ;
pelo que sempre seriam ilegítima e ilicitamente auferidos à sua custa ;
pelo que, retendo os montantes no exercício legítimo de um direito de garantia patrimonial, fica excluída a ilicitude do facto constitutivo da peticionada responsabilidade.
Conclui, no sentido da improcedência da acção, com a sua consequente absolvição do pedido, declarando-se antes lícito o exercício da acção directa de apropriação e retenção da quantia em garantia patrimonial do direito emergente da responsabilidade civil por factos ilícitos. 3–Em resposta, veio a Autora invocar a existência de abuso de direito e má fé da Ré, requerendo a condenação desta por litigância de má fé no pagamento de multa e indemnização, para satisfação das despesas e prejuízos sofridos, em montante nunca inferior a 50.000,00 €. 4–A Ré veio responder a tal pedido de condenação por litigância de má fé, conforme requerimento de fls. 69 a 72, pugnando pela sua improcedência. 5– Foi realizada audiência prévia, conforme acta de fls. 78 e 79, no âmbito da qual:
Ø foi proferido saneador stricto sensu ;
Ø foi fixado o valor da causa ;
Ø foram convidadas as partes a pronunciarem-se sobre a possibilidade de imediata pronuncia, e parcial, acerca do mérito da causa, nomeadamente quanto ao pedido formulado na alínea a) do petitório accional, de condenação da Ré no pagamento da quantia de 337.596,00 €. 6–Apresentadas as pronúncias e junta a prova documental, foi parcialmente apreciado o mérito da causa, proferindo-se SENTENÇA que, na sua parte conclusiva, determinou o seguinte:
“DECISÃO Face ao exposto, condeno a ré a pagar à autora o montante de € 337.596,00 (trezentos e trinta e sete mil quinhentos e noventa e seis euros), acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor para operações comerciais, desde 11.05.2018, até integral e efetivo pagamento. Custas nesta parte pela ré e na proporção de vencido (artº 527º/1 do CPC). Registe e notifique”. 7–Logo após tal prolação, determinou-se que a acção prosseguiria para apreciação do pedido indemnizatório formulado, consignando-se o objecto do litígio - Indemnização pelos danos causados à autora pela ré em virtude da recusa de fornecimento dos produtos que lhe haviam sido encomendados por aquela – e os temas da prova - Danos sofridos pela autora nos termos invocados na p. i.-, e designando-se data para a realização da audiência final. 8–Tal decisão foi objecto de recurso de apelação, o qual tramitou em separado, identificado sob o apenso A. 9–Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, respeitando os formalismos legais, como resulta das actas de fls. 344 a 346. 10–Posteriormente, foi proferida sentença – cf., fls. 347 a 354 -, traduzindo-se o Dispositivo nos seguintes termos: “DECISÃO
Face ao exposto, julgo procedente, na parte aqui apreciada, a ação e, em consequência, condeno a ré a pagar à autora a quantia de 50.000€ (cinquenta mil euros).
Custas da ação integralmente pela ré (artº 527º/1 e 2 do CPC).
Registe e notifique”. 11–Inconformada com o decidido, a Ré interpôs recurso de apelação, por referência à sentença prolatada. 12–Mediante Acórdão desta Relação datado de 09/09/2021, decidiu-se o seguinte: 1.-“determinar a ampliação da matéria factual apurada, no que concerne aos pontos factuais feitos constar nos artigos 8º a 30º da contestação, relacionados quer com o alegado conluio manipulatório existente entre a Autora, através do seu legal representante e o indicado S……..., então funcionário da Ré, do inserir dos contratos equacionados na petição inicial nesse procedimento e da afirmada desconformidade entre os valores apostos nos aludidos contratos e aqueles que correspondiam ao normal trato comercial da Ré ; 2.- consequentemente, determinar, nos termos do artº. 662º, nº. 2, alín. c) e 3, alín c), do Cód. de Processo Civil, a anulação da sentença recorrida/apelada, devendo o julgamento a efectuar cingir-se apenas à produção probatória citada, sem prejuízo “da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições” ; 3.- após, deverá ser prolatada nova sentença, na qual deverá figurar resposta à matéria factual omitida e proceder ao enquadramento jurídico que tiver por pertinente ou adequado ; 4.-em considerar, atento o supra exposto e, pelo menos, por ora, ocorrer prejudicialidade no conhecimento das demais questões objecto da presente apelação(fundamentalmente no que concerne á alegada violação por parte do Tribunal a quo dos princípios do inquisitório e do contraditório)”. 13–De acordo com o decidido, em 23/11/2021, foi proferido o seguinte despacho:
“Em face do doutamente decidido pela Relação de Lisboa, adita-se à base instrutória a matéria de facto constante dos artigos 8º a 30º da contestação, “relacionados quer com o alegado conluio manipulatório existente entre a Autora, através do seu legal representante e o indicado S………, então funcionário da Ré, do inserir dos contratos equacionados na petição inicial nesse procedimento e da afirmada desconformidade entre os valores apostos nos aludidos contratos e aqueles que correspondiam ao normal trato comercial da Ré”.
Convido as partes a, no prazo de 10 dias, indicarem a pertinente prova quanto a tal factualidade. Notifique”. 14–Procedeu-se à realização de nova audiência de discussão e julgamento, respeitando os formalismos legais, como resulta das actas de fls. 578, 579, 607, 625 e 626. 15–Posteriormente, em 19/07/2022, foi proferida sentença – cf., fls. 627 a 633 -, traduzindo-se o Dispositivo nos seguintes termos: “DECISÃO
Face ao exposto, julgo procedente, na parte aqui apreciada, a ação e, em consequência, condeno a ré a pagar à autora a quantia de 50.000€ (cinquenta mil euros).
Custas da ação integralmente pela ré (artº 527º/1 e 2 do CPC).
Registe e notifique”. 16–Inconformada com o decidido, a Ré interpôs recurso de apelação, por referência à sentença prolatada e três dos despachos anteriormente prolatados.
Apresentou, em conformidade, a Recorrente as seguintes CONCLUSÕES (que ora integralmente se reproduzem, ignorando-se as notas de rodapé):
“A.1 1.ª-A A. requereu o depoimento de parte dos Administradores da Ré Exmos. Senhores JOAQUIM……... e LUIS……… à matéria constante dos artigos 10.º, 12.º, 21.º, 22.º, 25.º a 28.º da contestação. 2.ª-Os artigos 10.º, 12.º, 21.º, 22.º, 25.º a 28.º da contestação, não são factos desfavoráveis à depoente. 3.ª-Em audiência de julgamento de 10.05.2022, a Ré requereu que o depoimento de parte fosse prestado por António……… que, munido de Credencial e da acta n.º 31 de reunião do Conselho de Administração da Ré de 9/5/2022 (e que foram juntas aos autos), se apresentou em tal diligência 4.ª-O Mmª Juiz a quo decidiu, por despacho, que aqui se recorre, indeferir o requerido. 5.ª- Ora, o depoimento de parte é um meio de prova por confissão que deve recair exclusivamente sobre factos do conhecimento pessoal da parte, de acordo com o estabelecido no artº 454º do CPC. 6.ª-O requerimento de parte, sendo requerido parte contrária, tem como objecto os factos sobre os quais há-de recair, conforme dispõe o artigo 452.º, n.º do CPC. 7.ª-Os factos que A. indicou para depoimento de parte, não se tratam de factos do conhecimento directo e pessoal exclusivos dos Administradores da Ré, e a A. nada alegou a esse respeito. 8.ª-A Ré é uma Sociedade Anónima e o artº 8º dos Estatutos da Sociedade, na sua redacção de 11 de Janeiro de 2022, estabelece que “A sociedade obriga-se com a assinatura de um administrador ou procurador com poderes para o acto”, e tal forma de obrigar consta da matrícula de registo, consultável com o código de acesso n.º 3532-7637-3829 (copiada supra). 9.ª-A representação das pessoas colectivas, em juízo ou fora dele, cabe a quem os estatutos o determinarem ou na falta de disposição dos estatutos, à administração ou a quem por ela for designado, de acordo com o estabelecido no art.º 163.º nº 1 do Código Civil. 10.ª-É entendimento dominante da nossa jurisprudência que o depoimento de parte dos membros do conselho de administração de uma sociedade anónima pode ser prestado por quem estes mandatarem para o efeito e que tenha conhecimento dos factos. 11.ª-A Jurisprudência plasmada nos Acórdãos do STJ de 12.09.2007, processo n.º 07S923, da Relação de Évora de 14/06/2012, processo n.º 294/08.3TBFAR-B.E1 (e outros aí citados designadamente da R.L. de 21/10/2009 proc. nº 3813-05.3TTLSB.L1-4; da R.P. de 18/05/2009 proc. nº 75/08.4TVPRT-AP1), Relação do Porto de 20/09/2021, processo n.º 3080/18.9T8OAZ-C.P1; e da mesma R.P de 14/03/2022, processo 8428/20.3T8PRT.P1, todos disponíveis em www. dgsi.pt. 12.ª-Pelo que, em face do acima invocado o douto despacho recorrido violou o disposto nos artºs 453.º, n.º 2 e 454.º, n.º 1, ambos do CPC e ainda os artºs 163.º n.º 1, 167.º e 356.º, todos do Código Civil.
A.2 13.ª- Na mesma audiência de julgamento de 10.05.2022, finda a inquirição da testemunha Fr........., pelo Mm. Juiz foi proferido o seguinte: “DESPACHO / Em face da prova que foi produzida o Tribunal considera imprescindível a presença dos legais representantes da Ré, Joaquim……… e Luís………, pelo que a falta dos mesmos na próxima audiência, sem justificação, será considerada recusa de prestação de depoimento.” 14.ª-Salvo sempre o devido respeito, a razão que motivou o despacho – “em face da prova que foi produzida” – é vaga, não permitindo descortinar quais os factos que, para o Tribunal, tornam imprescindível a presença dos legais representantes da Ré, Joaquim……… e Luís………, e qual a prova que se pretende produzir. 15.ª-O despacho prevê antecipadamente que a não presença dos legais representantes da Ré, Joaquim……… e Luís………, será considerada recusa de prestação de depoimento, sucede que não indicou o que pretende obter com a presença dos legais representantes da Ré, Joaquim……... e Luís………, nem a prova pretendida, não se compreende como será possível aplicar o disposto no n.º 2 do art.º 417.º do CPC. 16.ª-Aliás, mesmo que se entenda que o despacho tenha enquadramento legal no disposto no artigo 452.º, n. 1, do CPC, certo é que, conforme José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre em anotação ao artigo 452.º do CPC, “pode ouvir a parte sobre quaisquer factos relevantes para a decisão da causa, sem estar vinculado a indicar, no despacho que determine a comparência, aqueles factos sobre os quais a quer ouvir, mas com sujeição ao disposto no artigo 454”. 17.ª-De modo que, tendo o Meritíssimo Juiz a quo, conhecimento pela documentação que lhe foi exibida e junta no início da audiência de julgamento, designadamente a credencial, a acta n.º 31 de reunião do Conselho de Administração da Ré de 9/5/2022 e o seu teor, que António………, à data responsável financeiro da sociedade, tinha conhecimento da factualidade cuja discussão ainda persiste nos autos, inexistia fundamento para ouvir daqueles legais representantes o que, afinal de contas, poderia ouvir de António……… . 18.ª-De modo que, o despacho recorrido é nulo por falta de fundamentação nos termos do artigo 615.º, n.º 1, b), ou a assim não se entender, por violação do disposto nos artigos 417.º, n .º 2, 452.º, n.º1, 454.º todos do CPC.
B.–
19.ª- Na audiência de discussão e julgamento realizado no dia 21/06/2022, pela Ré, requereu a inquirição de António………, na qualidade de procurador da Ré, nos termos já anteriormente requeridos. 20.ª-Em face do requerido, o Meritíssimo Juiz a quo proferiu o seguinte despacho, que se encontra vertido na acta de fls.: «O Tribunal, conforme já referiu no despacho proferido da anterior sessão, já decidiu o que tinha a decidir sobre a questão do depoimento de parte da Ré, ao que acresce o facto do Tribunal ter determinado oficiosamente ser importante a prestação de declarações pelas pessoas em causa com base na prova produzida, prova essa que decorreu do depoimento da testemunha S………, o qual mencionou expressamente o nome de Joaquim……… e Luís……… como tendo sido determinantes na questão da celebração do contrato de compra dos medicamentos que aqui está em causa. /O que importa nesta fase é apurar os factos, independentemente de quem tenha o ónus de prova dos mesmos, podendo e devendo o Tribunal ordenar as diligências que entenda necessárias./ O Tribunal, em face da falta dos mencionados legais representantes, irá, pois, extrair as devidas consequências pois que, conforme resulta da conduta dos mesmos, existe recusa em prestar declarações perante o Tribunal./Deste modo indefere-se, mais uma vez, o requerido e condena-se a Ré nas custas do incidente anómalo a que deu causa por insistir neste requerimento, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC./ Notifique. 21.ª-Despacho com o qual não se concorda e que constitui também objecto do presente recurso. 22.ª-O requerimento da Ré e o despacho sub judice, têm como antecedentes os despachos proferidos em audiência de 10/05/2022 sobre os quais à data pendiam recursos interpostos pela Ré em 25/05/2022, em que se havia requerido a atribuição de efeito suspensivo, sem que os mesmos tivessem sido admitidos e visto o seu efeito atribuído até à data da audiência de julgamento de 21/06/2022. 23.ª-Na procedência do alegado supra em A., conforme se espera, deverá o despacho de 21/06/2022, ser revogado em conformidade. 24.ª-O requerimento da Ré, apresentado naquela audiência de julgamento de 21/06/2022 e sobre o qual recaiu o despacho ora em crise, visava a prestação de depoimento de parte da Ré, por intermédio da pessoa designada para o efeito pela mesma. 25.ª-A questão relativa à determinação oficiosa da prestação de declarações de Joaquim……… e Luís……… deriva de despacho proferido na diligência de 10/05/2022, e que é também objecto do presente recurso no ponto A.1, por se entender ser aquele despacho nulo por falta de fundamentação nos termos do artigo 615.º, n.º 1, b), ou a assim não se entender, por violação do disposto nos artigos 417.º, n .º 2 , 452.º, n.º1, 454.º todos do CPC, é uma questão distinta. 26.ª-No despacho ora recorrido, o Meritíssimo Juiz a quo procura “emendar” tal despacho de 10/05/2022, quando, ao aplicar a “sanção” de recusa em prestar declarações, especifica, agora, qual a prova produzida da qual se afiguraria “ser importante a prestação de declarações pelas pessoas em causa”.
27.ª- Porém, se o Tribunal não indicou no despacho inicial (de 10/05/2022) o que pretenderia obter com a presença dos legais representantes da Ré, Joaquim……… e Luís……..., nem a prova pretendida, nunca poderá aplicar o disposto no n.º 2 do art.º 417.º do CPC, não se podendo admitir que um despacho que se afigura ilegal nos termos que se expôs no recurso que sobre ele se interpôs, possa ver extraída qualquer consequência, não servindo o despacho recorrido de qualquer complemento do despacho de 10/05/2022. 28.ª-Assim, o despacho recorrido violou, entre outros, o disposto nos artigos, 417.º, n.º 2, 452.º, n.º 1, 453.º n.º 2, e 454.º, n.º 1, todos do CPC, e ainda os artºs 163.º nº 1, 167.º e 356.º do C. Civil.
C.– 29.ª-A recorrente considera incorretamente julgados os pontos 9 a 11 da matéria de facto julgada como provada, bem como se mostra igualmente mal julgada, a matéria de facto dada como não provada e que havia sido elencada nos artigos 8º a 30º da contestação.
C.1.A)–
30.ª- Os factos que sob os pontos 9 a 11 da matéria de facto foram julgados como provados, deveriam ser julgados como não provados, já que, além de sobre eles apenas ter recaído prova testemunhal, dela não se pode inferir a prova dos mesmos. 31.ª-As testemunhas Ana……… enquanto funcionária da A. o seu gerente, Rui………, têm a sua credibilidade diminuída por terem interesse na causa, e limitaram-se a referir genericamente que houve cancelamento de encomendas, não indicando qual ou quais encomendas em concreto não foram satisfeitas. 32.ª-A testemunha S……… declarou que presta serviços para a A., mas para o Tribunal a quo, para além do quanto se demonstrará mais adiante, não poderia ficar a dúvida de que ele é realmente mais que isso, aliás a testemunha Paulo……… na audiência de discussão e julgamento de 10/05/2022 [Ficheiro: 20220510155559_5838017_2871207 entre minutos 00:27:18 e 00:28:19], declarou que actualmente por intermédio da empresa Velvet Med faz negócios com a A. e é S……… quem lhe envie e-mails da parte desta, afigurando-se pouco credível que alguém que se apresenta como mero prestador de serviços por intermédio de outra empresa, conforme respondeu aos costumes, utilize o próprio e-mail da A. para realizar negócios. 33.ª-Resulta igualmente das decisões proferidas no procedimento cautelar de arresto preventivo, proferido no apenso D do inquérito n.º 968/18.0T9VIS (a que: «(…) No que concerne à sociedade O……..., verifica-se que, pese embora ter como único sócio o arguido Rui ………, a verdade é que era também gerida de facto pelo arguido S……... e, pelo que se percebe, com a ajuda do também já co-arguido António ……… . Os contactos mantidos entre os arguidos S……… e Rui ………, através da rede social Whatsapp, são disso bem elucidativos (por exemplo, ver fls. 27 a 73 e 124 a 132 do inquérito). (…) Mas há mais: os arguidos porventura desconhecem, mas foram objecto de escutas telefónicas e vigilâncias que confirmam a estreita relação entre os arguidos. O tribunal, sem querer estar a revelar o exacto conteúdo das mesmas, dirá, por exemplo, que algumas conversas mantidas entre os arguidos Rui……… e António……… são por demais reveladoras de que o arguido S………, enquanto trabalhava para a assistente F……..., desenvolvia uma actividade paralela na gestão da O……..., utilizando os seus recursos, contactos e conhecimentos na área da comercialização de medicamentos, para angariar clientes e negócios vantajosos para esta empresa, em detrimento, claro está, da aqui requerente F…….., com quem detinha um contrato de trabalho. (entre outras, ver súmulas de fls. 280-281, 386-387, 468-471)» 34.ª-Ou seja, S……… participa, na verdade, na gestão da própria A., aliás como já o fazia, paralelamente, enquanto era funcionário da Ré. 35.ª-Nos autos não se fez qualquer prova documental sobre a existência de encomendas; também não há prova documental sobre transferências de 81 dinheiro que a A. teria recebido antecipadamente por conta de tais encomendas. 36.ª-Era por via de encomendas (se as houvesse) e adiantamentos (se os houvesse), que se poderia aferir a margem de lucro da A. 37.ª-Contudo, não foram juntos elementos probatórios pela A. que permitam concluir qual a margem de lucro que teria com a venda dos produtos AVAMYS e KELO-COTE, inexistindo também elementos probatórios que permitam concluir que a A. não pudesse usar as quantias para outros negócios, pois que, em rigor não se sabe que outros negócios teria. 38.ª-A testemunha Paulo………, aludida pelo Tribunal a quo como corroborante da margem de lucro entre 15% e 20%, na verdade, apenas se pronunciou sobre as margens da Ré, e não da A., e na audiência de discussão e julgamento de 10/05/2022 [Ficheiro: 20220510155559_5838017_2871207 entre minutos 00:11:08 e 00:11:32], quanto instado pelo Mandatário da Ré para esclarecer qual a margem de lucro dos produtos AVAMYS e KELO-COTE, referiu nem no caso concreto da Ré sabia qual a margem de lucro na venda dos produtos AVAMYS e KELO-COTE. 39.ª-Neste caso, o erro de julgamento da matéria de facto elencada sob os n.º 9º a 11º dos factos provados deriva da inadequada apreciação dos meios de prova aduzidos para fundamentar a decisão, porque, por um 82 lado, da prova testemunhal, atenta o seu interesse na causa e a falta de credibilidade, não se poderia extrair tal resultado probatório, sendo a mesma insuficiente para o resultado probatório, até porque não corroborada por qualquer outra prova. 40.ª-Os factos elencados nos pontos 9 a 11 da matéria de facto julgada como provada, deveriam, em remédio do decidido pelo Tribunal a quo, ser julgados como não provados.
C.1.B)– 41.ª-Os factos julgados como não provados pelo Tribunal a quo, que em obediência do decidido pelo Tribunal da Relação foram aditados à “base instrutória”, designadamente os artigos 8º a 30º da contestação, ao invés de não provados, deveriam ser dados como provados. 42.ª-A matéria de facto a que se reportam estes artigos 8º a 30º da contestação inclui factualidade pertinente e também factualidade instrumental que serve para demonstrar essa mesma factualidade pertinente, que é a da existência de conluio manipulatório existente entre a testemunha S……… e o legal representante da A., Rui……… . 43.ª-Em remédio do decidido pelo Tribunal a quo existe prova documental que, se devidamente apreciada, permitia diferente julgamento de facto, designadamente: i) a queixa crime que a Ré apresentou contra Rui……... e S……… (e também contra a A.), junta sob doc. 1, ao requerimento probatório da Ré entrado nos autos em 03/12/2021 (refª 11678618), e ii) junto com o mesmo requerimento, sob os docs. 2, 3 e 4, informação sobre os prejuízos das vendas realizadas por S……… a diversos clientes e à A.; iii) perícia contabilística e financeira, junta pelo DIAP Regional de Coimbra, em 16/03/2022 (Refª 12089577), e oficiosamente determinados pelo Juiz de Instrução estão juntas iv) as decisões proferidas no âmbito do arresto preventivo [Cfr. Ofício do Juízo de Instrução Criminal de Viseu - Juiz 2, de 27/03/2019, junto a estes autos na mesma data – refª citius 8157738 e ofício de 15/07/2019, junto a estes autos em 16/07/2022 – refª citius 8584722]. 44.ª-Ora, tanto a queixa crime como as decisões do procedimento cautelar de arresto preventivo atestam, sem margem para dúvidas, que foi apresentada uma queixa-crime pela Ré, resultando do seu teor, e também do teor das próprias decisões de arresto apenso ao inquérito, o coluio existente entre Rui……… e S………, que nesse inquérito figuram como arguidos, conforme alegado em 8º e 9.º da contestação. 45.ª-Ou seja, deve dar-se como provado, em remédio do decidido pelo Tribunal a quo, que: 8º- Em virtude da prática de factos suscetíveis de integrar ilícitos penais, por conluio entre a A., o seu Gerente, Rui……... e o ex-funcionário da Ré S………, foi deduzida em 84 04.04.2018 participação criminal que deu origem aos autos principais de inquérito com o n.º 968/18.0T9VIS, que corre termos no DIAP de Coimbra; 9º-No âmbito do mencionado Inquérito Criminal, encontram-se constituídos arguidos, entre outros, a A., o seu Gerente, Rui……… e o ex-funcionário da Ré, S………. 46.ª-Esses mesmos documentos (queixa-crime e decisões de arresto) demonstram, conforme alegado em 10º da contestação, que S……… foi trabalhador da Ré, o que também foi declarado pelo próprio S………, quando aos costumes em audiência de julgamento de 10/05/2022 referiu ter sido trabalhador na F…...... por volta de 16 anos, e que saiu em 2018 [Ficheiro: 20220510150316_5838017_2871207, entre minutos 00:02:05 e 00:02:38.], o que também na mesma diligência foi referido pelas testemunhas Paulo……… [Ficheiro: 20220510155559_5838017_2871207, entre minutos 00:03:04 e 00:04:49] e Fr……… [Ficheiro: 20220510163851_5838017_2871207,entre minutos 00:02:46 e 00:03:50], que trabalharam com S…...... na Ré. 47.ª-Em consequência deve ser dado como provado, em remédio do decidido pelo Tribunal a quo, que: 10º- S……… foi trabalhador da ora Ré até Agosto de 2018, exercendo as funções de Diretor Comercial 48.ª-Em sede de declarações de parte, Rui……..., apresentou-se como sócio e gerente da A.; da procuração forense junta aos autos pela Ré por requerimento com a REFª: 29392971 de 11/06/2018, consta também que o mesmo é gerente e Sócio único da A., o que também resulta confessado do artigo 52.º da PI, pelo que sempre deveria ser dado como provado que: 11º- Rui……… é o sócio único e gerente da sociedade O………, Lda., A. nos presentes autos. 49.ª-As funções desempenhadas por S………, enquanto funcionário da Ré, resultam do quanto declaram as testemunhas Paulo……… [Ficheiro: 20220510155559_5838017_2871207, entre minutos 00:03:04 e 00:04:49] e Fr……… [Ficheiro: 20220510163851_5838017_2871207, entre minutos 00:02:46 e 00:03:50], que na audiência de julgamento de 10/05/2022, declararam que trabalharam com S……… na Ré. Também dos emails e documentos que os acompanham, juntos sob doc. 1 e 2 à PI, têm como interlocutor, e emitente das pro-formas, S………, pelo que, deve ser dado como provado, em remédio do decidido pelo Tribunal a quo, que: 12º No exercício das suas funções e no âmbito da relação laboral existente com a ora Ré, competia ao arguido S…….. contactar com clientes e fornecedores, negociar condições de compra e de venda dos produtos intermediados pela ora Ré, bem como elaborar e apresentar propostas em concursos públicos internacionais. 50.ª-A matéria de facto dada como não provada e alegada pela Ré na contestação sob os artigos 13 a 21, deveria ser dada como provada porque resulta demonstrada das decisões do processo de arresto preventivo (apenso D do inquérito n.º 968/18.0T9VIS) das quais resultou provado que:
«7.- Em data não concretamente apurada, mas a partir do mês de Maio de 2017, o arguido S………, por solicitação do também arguido Rui ……... e mediante promessa de vantagem patrimonial, nomeadamente comissões nas vendas e, eventualmente, promessa de contrato de trabalho no futuro, fazendo uso dos contactos e conhecimentos que obteve em virtude das funções exercidas enquanto trabalhador da ora Requerente, passou a encaminhar clientes e pedidos de fornecimento dirigidos à ora Requerente, para que fossem atendidos e fornecidos pela denunciada O……… . 8.- O arguido S……… recebia dos clientes da ora Requerente pedidos de cotação para fornecimento de diversos medicamentos e produtos médicos e farmacêuticos e, ao invés de dar seguimento aos pedidos de cotação e fornecimento pela ora Requerente, de acordo com o seu dever funcional, encaminhava os pedidos de cotação para a arguida O………, através de contacto com o arguido Rui………, designadamente através da rede social Whatsapp e de uma funcionária da O……… . 9.- Sendo conhecedor dos stocks existentes na F……….., ora Requerente, dos medicamentos solicitados e das respectivas condições comerciais praticadas para cada cliente, nomeadamente preço e prazo de pagamento, o arguido S……… informava a funcionária da O……..., ou o arguido Rui…..…., sobre as condições que deveria fazer constar nas propostas a elaborar por esta empresa. 10. De seguida, os pedidos dos clientes eram fornecidos através da arguida O……..., com as mesmas condições comerciais que teria se o fornecimento fosse efectuado através da F…...... 11.- Após a aceitação da encomenda pelo cliente, o arguido S……… instruía a O……... para proceder à compra dos medicamentos na F……... ou directamente aos fornecedores e posterior facturação e envio ao cliente. 12.- Era o arguido S……… que, no âmbito das suas funções de Director Comercial, estabelecia as condições comerciais praticadas pela F…...... para a O……… . 13.- Desta forma, o arguido S……… garantia a concessão de condições comerciais mais vantajosas para a O………, para que esta fizesse sua a margem comercial resultante do diferencial entre as condições negociadas para a O……… e as condições comerciais que deveriam ser praticadas com os clientes.» 51.ª–A testemunha Paulo……… que na sessão de 10/05/2022 [Ficheiro: 20220510155559_5838017_2871207, entre minutos 00:13:16 e 00:14:40 e entre 00:23:07 e 00:23:55], declarou ter-se apercebido, a partir das necessidades de clientes que eram colocadas no sistema informático da Ré, que existia uma ou mais entidades que pagariam mais por aquele produto do que a O……… estava a pagar e, que a diferença de preços era grande, na grande maioria das situações. 52.ª–Assim, as decisões proferidas no apenso D do inquérito 968/18.0T9VIS e as declarações da testemunha Paulo………, permitem, ao invés do decidido pelo Tribunal quo, julgar provado que: 13º- Em data não concretamente apurada, mas a partir do mês de Maio de 2017, o S………, por solicitação de Rui………. e mediante promessa de vantagem patrimonial, nomeadamente, comissões nas vendas e, eventualmente, promessa de contrato de trabalho no futuro, fazendo uso dos contactos e conhecimentos que obteve em virtude das funções exercidas enquanto trabalhador da ora Ré e em violação dos seus deveres funcionais e dos especiais deveres de confidencialidade e não concorrência a que se encontrava adstrito, passou a encaminhar clientes e pedidos de fornecimento dirigidos à ora Ré, para que fossem atendidos e fornecidos pela O………, A. nos presentes autos. 14º- S……… recebia pedidos de cotação para fornecimento de diversos medicamentos e produtos médicos e farmacêuticos dos clientes da ora Ré. 88 15º- S……..., no entanto, ao invés de dar seguimento aos pedidos de cotação e fornecimento pela ora Ré, de acordo com o seu dever funcional, encaminhava-os pedidos de cotação para a A. Originpharma, através de contacto com o arguido Rui......... . 16º- Sendo conhecedor dos stocks da ora Ré dos medicamentos solicitados e das respetivas condições comerciais praticadas para cada cliente, nomeadamente preço e prazo de pagamento, o arguido S……… informava a A. O……..., ou o arguido Rui……..., sobre as condições que deveria fazer constar nas propostas a elaborar por esta empresa. 17º- De seguida, os pedidos dos clientes eram fornecidos através da A. O………, com as mesmas condições comerciais que teria se o fornecimento fosse efetuado através da R. 18º- Após a aceitação da encomenda pelo cliente, o denunciado S……… instruía a A., para proceder à compra dos medicamentos na R. ou diretamente aos fornecedores e posterior faturação e envio ao cliente. 19º- Era S……… que, no âmbito das suas funções, estabelecia as condições comerciais praticadas pela ora R. para a A. 20º- Desta forma, S……… garantia a concessão de condições comerciais mais vantajosas para a A. de forma a que esta fizesse sua a margem comercial resultante do diferencial entre as condições negociadas para a A. e as condições comerciais que deveriam ser praticadas com os clientes. 21º- Em face dos factos apurados e que constam do mencionado processo de inquérito, foi possível constatar que, desde Maio de 2017, data de constituição da sociedade A., as vendas efetuadas pelo arguido S……... à A. foram sempre efetuadas com margem negativa, isto é, com preço de venda inferior ao preço de custo da ora Ré, ou com margens inferiores às normalmente praticadas com outros clientes do mercado. 53.ª–Com o requerimento probatório da Ré entrado nos autos em 03/12/2021 (refª 11678618), sob documento n.º 2, não impugnado pela parte contrária, estão descritas as vendas de produtos realizada pela testemunha S……… à O......... . 54.ª–A leitura de tal documento permite concluir que em vendas efectivas de €3.134. 512,28, realizadas por S……… à O………, a Ré perdeu relativamente ao lucro normal a receber a quantia de € 865.906,19. 55.ª–A testemunha Paulo……… na sessão de 10/05/2022 [Ficheiro: 20220510155559_5838017_2871207, entre minutos 00:19:59 e 00:21:07], referiu ter realizado um documento com idêntica função, embora não tenha conseguido, face ao tempo já decorrido, precisar o que dele constasse, pode, ainda assim, indicar a metodologia seguida. 56.ª–Daquele documento 2, não impugnado, e do depoimento da testemunha Paulo………, na passagem identificada, resulta um prejuízo infligido por S……… e Rui……… à Ré, em pelo menos € 855.000, correspondente ao lucro da A.; por conseguinte, deveria ser dado como provado que: 22º Na análise efetuada ao volume total de vendas no período decorrido desde a data de início da atividade da A., foi possível constatar que os arguidos S………., Rui………. e a A., em conluio entre si e com o intuito de fazerem sua a margem apurada para entre si a repartirem, pelos métodos supra descritos, infligiram à ora requerente prejuízos que se calculam em, pelo menos, € 855.000,00 (oitocentos e cinquenta e cinco mil 90 euros), correspondentes à diferença entre os preços praticados para esta sociedade e os preços a que cada um dos produtos era anteriormente vendido aos clientes ou colocado no mercado. 57.ª–O artigo 23 da contestação é uma decorrência e encerra uma conclusão em relação ao quanto anteriormente se alegara, que deverá ser dado como provado. 58.ª–Porque, a repartição dos lucros da actividade ilícita entre Rui……... e S……… resulta bem demonstrada da perícia contabilística e financeira realizada no âmbito do inquérito 968/18.0T9VIS [- Cfr. ofício do DIAP Regional de Coimbra, de 16/03/2022 (Refª 12089577), a fls.], onde se concluiu, além do mais que: (...) 4.- Foram identificadas duas transferências nos montantes de 18.000€ (2/10/2017) e 54.000€ (15/12/2017), efetuadas da conta da O……… na CGDnº 012..........30para a conta de Rui…...... com o nº 05........66 domiciliada no Montepio Geral. 5.- Nos dias que se seguiram a cada uma dessas transferências, foram transferidos 50% desses mesmos montantes (9.000€+27.000€) da conta de Rui......... para contas dos filhos de S……... em que, na ficha de abertura de conta, ele consta como autorizado. (…) 9.- Foi ainda identificada uma transferência de Rui………. no montante de 626,57€ efetuada a 17/03/2017 da conta da CGD nº 0007........000 para a conta do NB de S……… nº 0008......28; 59.ª–Não é coincidência que os valores retirados das contas da A. tenham passado para a conta do seu sócio único e gerente, que por sua vez, divide a quantia em partes iguais, transferindo 50% para as contas bancárias dos filhos da testemunha S………, contas bancárias que o mesmo estava autorizado a movimentar; S………, confrontado na audiência de julgamento de 10/05/2022 [Ficheiro: 0220510150316_5838017_2871207 entre minutos 00:27:37 e 00:30:14] com o resultado de tal relatório, apresentou uma justificação inverosímil a vários níveis, porque ora referiu que era o pagamento de dívidas antigas de Rui……... para consigo, mas não conseguindo explicar porque foram realizadas transferências para conta dos seus filhos, logo referiu que eram doações; questionado sobre quanto lhe devia Rui……..., disse não fazer ideia. 60.ª–Deveria ser dado como provado, em remédio do decidido pelo Tribunal a quo que: 23º Montante do qual se apropriaram, através da sociedade O………, ora A., por aqueles constituída visando os fins ilícitos descritos. 61.ª–No enquadramento dos os artigos 8º a 22º da contestação resulta demonstrada a factualidade vertida dos artigos 24.º a 28.º da contestação, relativamente à concreta venda dos produtos AVAMYS e KELO- COTE GEL, que assim devem ser dados como provados. 62.ª–Com o requerimento probatório da Ré junto aos autos em 03/12/2021 (refª 11678618), foram juntos sob documentos n.º 3 e n.º 4, não impugnados pela parte contrária, documentos referentes aos valores de venda dos produtos AVAMYS e KELO- COTE GEL, resultando dos mesmos uma venda dos produtos abaixo do valor de mercado pelos quais a Ré normalmente os vendia. 63.ª–O Tribunal a quo, na motivação, refere-se a estes documentos (juntos a fls. 483 verso e 484) assumindo como justificativo de os preços praticados em relação à A. serem, nas palavras do próprio Tribunal, “em média mais baixos”, com o facto desta comprar em maior quantidade. 64.ª–Ora, a compra em maior quantidade só existe na esteira do alegado nos artigos 16 a 20 da contestação, em virtude da substituição da Ré pela O……… no fornecimento dos produtos, uma vez que S……..., mancomunado com Rui…..…., desviava os pedidos realizados à Ré para a A. garantindo-lhe a concessão, pela Ré, de condições comerciais mais vantajosas para que esta fizesse sua a margem comercial resultante do diferencial entre as condições aplicadas à A. e as condições comerciais que deveriam ser praticadas com os clientes da Ré. 65.ª–As vendas do produto AVAMYS, conforme se encontra retratado no documento n.º 3, junto com requerimento probatório da Ré entrado nos autos em 03/12/2021 (refª 11678618), vêm uma redução substancial do preço de venda a partir do surgimento da O……… como cliente. 66.ª–Desse documento n.º 3 resulta que no mês de Março de 2018 foram feitas vendas do produto AVAMYS ao preço de € 6,10 e € 6,25, neste caso, para um cliente que comprou 20.000 caixas desse produto, o preço foi de € 6,25, ou seja, em momento algum, foi praticado o preço de € 5 indicada na proforma FP 2018/9205, de 20-03-2018. 67.ª–O negócio da venda do produto AVAMYS titulado pela referida pro-forma FP 2018/9205, de 20-03-2018, não há dúvida que foi realizado por S………, conforme demonstra o documento 1 junto com a PI e o próprio S……… assim o declarou; porém não é crível a atribuição à Administração da responsabilidade pelo preço a que foi vendido o produto AVAMYS, no ambiente de pressão para vender 30.000 unidades do produto na tarde de uma quinta feira-santa, conforme o declarou S……... na audiência de julgamento de 10/05/2022 [Ficheiro: 0220510150316_5838017_2871207 entre minutos 00:04:27 e 00:07:38]. 68.ª–A pro-forma em causa está datada de 20/03/2018 e não de 29/03/2018, que seria a tal quinta-feira santa. 69.ª–Apanhado na mentira, S………, a instâncias do mandatário da Ré, na audiência de julgamento de 10/05/2022 [Ficheiro: 0220510150316_5838017_2871207 a minutos 00:17:57], acabou por referir que a factura pro-forma pode ser alterada, o que foi contrariado pelas testemunhas ouvidas na mesma data, Paulo ……… [Ficheiro: 20220510155559_5838017_2871207, a minutos 00:08:08 a 00:08:53] e Fr……… [Ficheiro: 20220510163851_5838017_2871207, entre minutos 00:08:03 e 00:09:22], referindo estas testemunhas que a pro-forma era emitida depois de acordados os termos do negócio. 70.ª–É assim difícil de acreditar o “quadro pintado” por S……… sobre a urgência e a pressão em que foi realizado o negócio da venda dos AVAMYS, porque a pro-forma, junta aos autos pela própria A. com a PI sob doc 1., está datada de 20 de Março de 2018, o e-mail pelo qual ela terá sido enviada pela A. data de 28 de Março, o comprovativo de transferência bancária para pagamento da pro-forma data de 28 de Março, com agendamento para 03 de Abril, uma pro-forma é emitida quando o negócio já havia sido acordado; 20 de Março de 2018, foi uma terça-feira, igualmente se diga que 28 de Março de 2018 foi uma quarta-feira e não quinta-feira santa. 71.ª–Quanto ao produto KELO-COTE, revela o documento 4 junto com o requerimento da Ré de 03/12/2021 (refª 11678618), que desde que a A. passou a comprar o produto, em substituição da Upfront Pharma Lda., o preço pelo qual o produto passou a ser vendido, e unicamente à O………, baixou significativamente, de € 12 (que ainda assim com desvio à margem normal de venda) para € 10, passando para € 9,82 e posteriormente € 10,25. 72.ª–Aquele preço fora fixado por forma a que a O……… se substituísse à Ré no fornecimento daqueles que anteriormente eram os seus clientes e que na sua grande maioria compravam o produto a € 17, o que foi desenvolvido no âmbito do plano delineado entre S……… e Rui ………, conforme descrito nos artigos 13º a 23º da contestação, e no encadeamento da factualidade descrita nestes artigos, da qual resulta o conluio manipulatório estabelecido entre S……... e Rui……… e os documentos juntos com o requerimento da Ré de 03/12/2021 (refª 11678618), não impugnados pela A., permitem ter uma real dimensão do prejuízo. 73.ª–No encadeamento da factualidade descrita nos artigos 13º a 23º da contestação, da qual resulta o conluio manipulatório estabelecido entre S……… e Rui………, os documentos juntos com o requerimento da Ré de 03/12/2021 (refª 11678618), não impugnados pela A., permite dar como provado que: 24º-Decorre da factualidade descrita nos presentes autos que também quanto aos produtos constantes das faturas FP2018/9205 e FP2018/9192, era intenção da A. e dos arguidos naquele processo, obter uma vantagem patrimonial ilegítima 25º-De facto, os mencionados medicamentos AVAMYS constantes da fatura FP2018/9205 eram normalmente colocados no mercado pela R. ao preço unitário de € 6,60. 26º-E foram vendidos à A., pelo ex-funcionário S…….., ao preço unitário de € 5,00. 27º-Os medicamentos KELO-COTE GEL 15G constantes da fatura FP2018/9192 eram normalmente colocados no mercado pela R. ao preço unitário de € 15,00. 28º- E foram vendidos à A., pelo ex-funcionário S………, ao preço unitário de € 12,10. 74.ª–Em conexão com a circunstância de a Ré ter apresentado queixa crime quando verificada a existência do conluio existente entre S……… e Rui………, conforme vertido no artigo 8º da contestação, e da materialidade do quanto resulta dessa mesma queixa crime conforme vertido nos artigos 9º a 23º da contestação, materialidade também confirmada nas decisões de arresto do apenso D do inquérito 968/18.0T9VIS, da constatação desse mesmo conluio no negócio em causa nestes autos pelas vendas realizadas por valores abaixo das margens normais de venda e com prejuízo, conforme vertido nos artigos 24º a 28º da contestação, resultam necessariamente provados os factos 29º e 30º da contestação. 75.ª–A Ré não forneceu os produtos à A. porque se o fizesse agravaria o seu prejuízo. 76.ª–Pelo que, cumpridos os ónus previstos no artigo 640.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil pelo recorrente, impõe-se a reapreciação da prova, garantindo-se, assim um duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, confiando-se que seja alterado o decidido pelo Tribunal a quo, relativamente aos pontos 9 a 11 da matéria de facto dada como provada e 8 a 30 da contestação, que foi dada como não provada, julgando-se não provados aqueles pontos 9 a 11 da matéria de facto dada como provada e provados os artigos 8 a 30 da contestação da ré.
Nesta parte, o Tribunal a quo violou, por erro de interpretação, entre outros, os artigos 370.º, 371.º e 396.º, todos do Código Civil, e 607º, n.º 5 do Código de Processo Civil.
C.2– 77.ª–Para a condenação da Ré no pagamento da indemnização de € 50.000, o Tribunal a quo toma posição no sentido de admitir a cumulação da resolução com a indemnização pelos danos positivos, entendendo que é maioritária a doutrina e jurisprudência actual que admite tal cumulação, citando, em apoio a tal posição, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.01.2017, proferido no proc.º nº 1725/13.6TVLSB.C1.S.
Ora, 78.ª–E no âmbito de tal jurisprudência, conforme expressamente se escreveu em tal acórdão e é citado pelo Tribunal a quo, que «Há, pois, que ponderar os interesses em jogo no caso concreto e, perante eles, conceder ou denegar o caminho, particularmente estreito, da indemnização pelo interesse contratual positivo. Nesta ponderação, tem uma palavra a dizer o princípio de boa fé". 79.ª–Neste particular quanto a verificação do princípio da boa-fé, admite porém, o Tribunal a quo, que em face do quanto deu como provado, a actuação da Ré contraria de forma intensa os ditames da boa-fé e que não se provou que existiu um conluio manipulatório dos preços praticados pelo ex-funcionário da ré em benefício da autora. 80.ª–Ora, os autos demonstram que assim não foi, e por isso, no âmbito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto procurou evidenciar-se ter-se provado factualidade que, na sua génese, sempre afastaria a simples conclusão que o Tribunal a quo formulou de que «A ré não cumpriu simplesmente porque não quis cumprir e ainda reteve também dolosamente as quantias que foram pagas pela autora». 81.ª–De facto, conforme confiadamente se espera, na procedência sobre a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com a reapreciação da prova indicada, será possível concluir o conluio existente entre o, à data, funcionário da Ré, S………, e a A. e o seu gerente Rui……... . 82.ª–Da factualidade alegada em 8 a 30 da contestação da Ré, que se espera seja dada como provada por este Tribunal de recurso, se funda o incumprimento de um contrato de compra e venda porque se tratou de um negócio fraudulento, num conluio arquitectado entre a Autora e um ex- 99 funcionário da Ré, tendo por objectivo obter uma vantagem patrimonial ilícita para o próprio e para a Autora, em prejuízo da Ré. 83.ª–Perante tal quadro factual, não é de admitir que na esteira da doutrina e jurisprudência actual seja validada à luz do princípio da boa fé, que perante aquele exacto contexto do negócio, se possa admitir poder a A. ser indemnizada por qualquer violação do interesse contratual positivo. 84.ª–Por outro lado, A. não indicou a quem venderia os produtos, como não indicou por quanto os venderia. 85.ª–E a A. também não alegou que negócios deixou de realizar por ter realizado o negócio com a Ré. 86.ª–A A. limitou-se a “atirar” no art. 65.º da PI que “Atento o valor das encomendas não entregues pela R., calculando um hipotético mark up de 30% (trinta por cento) nas vendas, e reduzindo esse valor para metade, pede-se a condenação da R. numa indemnização à A. no valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros).” 87.ª– Ora, as percentagens indicadas não têm qualquer critério ou quadro factual de apoio. 88.ª–Não indica a A. por quanto venderia os produtos comprados, o que deveria fazer porque, como é comum, as margens de lucro não são constantes, variando de produto para produto. 89.ª–Era à A. que incumbia a alegação e prova dos danos, o que não se verificou. 90.ª–Na esteira do decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.02.2018, proferido no proc.º nº 7461/11.0TBCSC.L1.S1 deveria ser desatendida a indemnização pelos danos positivos, porque, neste caso, o mesmo traduz-se em benefício injustificado para a A. 91.ª–Mais importa considerar que, pretendendo o Tribunal a quo indemnizar à A. pelo interesse contratual positivo, é necessário partir da posição hipotética que as partes teriam se o contrato tivesse sido cumprido. 92.ª–Se o contrato tivesse sido cumprido, a A. pagaria à Ré, receberia os produtos e depois realizaria as vendas, e da diferença entre a compra e venda, poderia obter um lucro. 93.ª–Logo, a A. não ficaria com o dinheiro, e nessa medida, não lograria receber quaisquer juros sobre os mesmos ou, a receber juros, para o caso de capitais próprios se tratarem, não os recebia segundo as taxas em vigor para operações comerciais. 94.ª–O Tribunal a quo, julgou procedente o pedido da A. de que a Ré fosse condenada a restituir o montante de € 337.596,00 acrescido de juros à taxa legal em vigor para operações comerciais de 7% ao ano, contados ao dia. 95.ª–A Ré nunca poderia ser condenada a restituir um valor acrescido de taxas de juros em vigor para operações comerciais e lucros cessantes. 96.ª–E ao mesmo tempo indemnizar a Ré por vantagens patrimoniais que alegadamente deixou de auferir, mas que se desconhecem, de todo, com excepção do preço anormalmente baixo obtido por intervenção do ex-funcionário da Ré, S……… . 97.ª–A mais, nada se apurou quanto a negócios alternativos que a A. tenha visto frustrados, nem os preços, quantidades ou a quem revenderia os produtos em causa. 98.ª–De modo que, salvo o devido respeito, não poderia o Tribunal a quo condenar a Ré num valor sem o mínimo de sustentáculo factual a título de incremento económico presumido. 99.ª–Ao decidir como decidiu, nesta parte, o Tribunal a quo violou, por erro de interpretação, entre outros, os artigos 289.º, n.º 2 e 3, 562.º, 566.º, n.º 2 e 3, 801.º, n.º 2, 805.º e 806.º, todos do Código Civil”.
Conclui, no sentido da procedência do recurso, devendo-se, consequentemente, revogar-se “os doutos despachos recorridos, e, quando aplicável, substituindo-os por outros que reconheçam a Ré o direito de ser ela a designar o seu representante ou a pessoa que deva prestar o depoimento de parte, com todas as demais consequências legais daí decorrentes. Mais requer, que seja julgado procedente o recurso interposto sobre a douta sentença proferida em 19/07/2022, revogando-se a mesma em conformidade, absolvendo-se a Ré do pedido contra ela formulado.”
17– A Recorrida/Apelada apresentou contra-alegações, nas quais apresentou as seguintes CONCLUSÕES (que ora integralmente se reproduzem):
“A.-Quanto ao efeito do recurso, o 647.º, n.º 4 do CPC dispõe que: “fora dos casos previstos no número anterior, o recorrente pode requerer, ao interpor o recurso, que a apelação tenha efeito suspensivo quando a execução da decisão lhe cause prejuízo considerável e se ofereça para prestar caução, ficando a atribuição desse efeito condicionada à efetiva prestação da caução no prazo fixado pelo Tribunal”. B.-Competia à Recorrente alegar e demonstrar que a decisão a quo lhe causa prejuízo considerável, porém em nenhuma passagem aquela demonstra o prejuízo considerável que poderia eventualmente resultar da não atribuição de efeito suspensivo, sendo que além disso, existe já decisão transitada em julgado por Acórdão do STJ, que condena a Recorrente a devolver a totalidade dos montantes ilegalmente apropriados pela Ré em prejuízo da Autora. C.-É a Recorrida quem esteve – e assim se mantém! - privada da compensação pecuniária legítima pelos danos causados pela Recorrente, sendo a Recorrida quem foi prejudicada pela frustração dos negócios posteriores e uma vez que a retenção ilegal dos montantes perdurou, pela indisponibilidade dos recursos financeiros ilegal e abusivamente retidos pela Recorrente. D.-O pedido de atribuição do efeito suspensivo apenas se compreende pela vontade da Recorrente atrasar o cumprimento da obrigação de indemnização imposta pelo Tribunal a quo que visa assegurar a justa compensação pela retenção ilegal do montante de € 337.596,00 (trezentos e trinta e sete mil, quinhentos e noventa e seis euros). E.-Quanto à rejeição dos depoimentos de parte por outros sujeitos que não sejam representantes legais, deve recordar-se que a figura do depoimento de parte visa obter a confissão, sendo esta, nos termos do artigo 352.º do CC, caracterizada como o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária, deste modo, nunca poderia a Recorrente retirar qualquer utilidade para si do depoimento de parte. F.-A eventual prestação de depoimento de parte por outros sujeitos diferentes dos que estavam efetivamente envolvidos e que foram identificados pela Autora por assumirem a 30 representação legal das sociedades, desvirtua as regras processuais e o valor probatório do depoimento de parte. G.-Por outro lado, a decisão de indeferimento dos depoimentos de parte do Tribunal a quo requeridos inicialmente pela Autora (Recorrida) não prejudica a Recorrente pois da produção daquele meio probatório apenas poderia resultar benefício para a Autora que obteve total provimento na ação. H.-Além de não existir fundamento legal para o pretendido pela Recorrente, daquele depoimento de parte não poderia resultar nenhum proveito para a Recorrente, pelo que a inadmissibilidade legal é agravada ainda pela falta de interesse de agir em sede de recurso, pelo que o recurso quanto a essa matéria deve ser improcedente, mantendo-se a douta decisão do Tribunal. I.-Quanto ao recurso da decisão condenatória que conclui pela condenação da Recorrente ao no pagamento à Recorrida da quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), é também evidente que da retenção ilegal de tão avultados montantes teriam de resultar necessariamente danos emergentes e lucros cessantes que foram naturalmente exigidos e peticionados pela Recorrida. J.-Ora, foi já decidido e transitou em julgado que o preço da encomenda nunca recebida pela Recorrida foi pago antecipadamente à Recorrente para aquisição de várias unidades de produto que nunca foram entregues de forma consciente, intencional e mal intencionada – aliás, tal como conclui o Tribunal: “a exigência efetuada pelos administradores da autora do pagamento antecipado do montante total da encomenda, que era de valor muito elevado – indicia que, conforme referido pela testemunha S.........,se tratou de uma espécie de cilada para a ré se apropriar do montante em causa da forma como o fez e resulta bem expresso desta ação. Significa isso que neste concreto negócio, nunca se poderia concluir que a ré desconhecia as condições de venda dos produtos à autora, sendo que - conforme resulta bem expresso do douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido nos autos e que apreciou a decisão que condenou a ré a pagar o montante de capital peticionado – as questões relativas às relações em geral da ré com a autora e que fundamentam o processo crime em nada interessam a este processo, sendo apenas relevante o concreto negócio que originou este processo.” (evidenciados nossos) K.–Uma vez que já foi apreciada e transitada em julgado o pedido correspondente à devolução do valor pago pela encomenda (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido neste processo) a ação prosseguiu apenas para apreciação do pedido indemnizatório no montante de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) em virtude dos prejuízos causados pelo incumprimento contratual e pela retenção ilegal daqueles montantes. L.–Neste campo, provou-se que a margem de lucro da autora na revenda dos produtos em causa situa-se entre 15% e 20% e que os 15% do montante ilegalmente retido pela Recorrente ascende a 50.639,40€, consumindo integralmente a quantia peticionada a título indemnizatório, pelo que a condenação é justa e acertada (sob pena de condenação ultra petitum, vide art.º 609º/1 do CPC). M.-A globalidade da prova testemunhal, arroladas pela A. e pela R., bem como, as declarações de parte prestadas pelo representante da aqui Recorrida, autênticas e coerentes, conduzem à conclusão – até conservadora face às margens praticadas – de que que a margem média de lucro se fixaria entre os 15% e 20%. 32 N.-Assim, o valor dos danos deve ser calculado em razão dos lucros não obtidos em resultado do incumprimento da R., neste caso, aplicando a margem média de lucro, correspondente a pelo menos, 15% do valor investido nos produtos pela Recorrida, o que se afigura correto em face da análise concatenada da realidade empresarial farmacêutica e dos vários elementos de prova trazidos ao processo por ambas as partes. O.-Por outro lado, a Recorrente defende-se alegando que houve um conluio manipulatório entre a Autora (ora Recorrida) e um antigo funcionário da Recorrente para adquirir a preços inferiores, sem prejuízo do que se demonstra e conclui, trata-se, pois, de absurdo uma vez que se assim fosse, então a Recorrente deveria ter recusado a entrega e devolvido os montantes recebidos ao invés de retê-los ao limite do possível – após a ação judicial, recursos até às instâncias superiores, tentando até através de arrestos noutros processos bloquear a transferência dos valores devidos à Recorrida. P.-De facto, não houve qualquer conluio manipulatório e de forma clara e inequívoca a testemunha Fr……… afirmou que os preços praticados eram normais, não tendo identificado qualquer desvio relativamente àquilo que é a normalidade dos negócios, acrescentando ainda que a ora Recorrente continua a fornecer produtos à Recorrida e mantendo assim as relações comerciais. Q.-Pese embora a prova produzida ser clara quanto à inexistência de qualquer conluio manipulatório, reitera-se que o Acórdão do STJ que colocou termo à questão da condenação à devolução do montante de €337.596,00 pago para aquisição dos produtos e considerou ilegal a alegada ação direta que a Recorrente invocava para reter os montantes, naturalmente que compete agora a esta ser responsabilizada pelas consequências dos seus atos. 33 R.-Independentemente das questões suscitadas no processo n.º 968/18.0T9VIS no DIAP – 3ª Secção de Coimbra, a decisão cível sobre a retenção ilegal de montantes não depende da resolução do conflito penal que corre naquele processo – pois não se verificam os pressupostos de ação direta – pois o que seria de um sistema jurídico-legal em que se admitiria que para compensar alegados danos que se encontram sob investigação penal, um sujeito (neste caso a aqui Recorrente) por sua iniciativa pudesse ficcionar uma encomenda para de forma dolosa e abusiva locupletar-se à custa da ora Recorrida, sob justificação de um pretenso dano ou ato criminal que a primeira entenda ter sido praticado. S.-Aliás, todas as referências ao processo n.º 968/18.0T9VIS são despiciendas e destituídas de fundamento, sobretudo, porque todos os arrestos requeridos pela Recorrente no âmbito desse processo foram improcedentes – foram todos objeto de revogação pela primeira instância e pelos Tribunais superiores por não se verificarem os fundamentos para nenhuma ação direta sendo sancionável a retenção unilateral e ilegal dos montantes pela Ré aqui Recorrente – conforme página 27 do Acórdão STJ de 08 de Abril de 2021 proferido nos presentes autos (Apenso A), que se transcreve: “mostra-se provado que nos autos de procedimento cautelar de arresto nº 968/18.0T9VIS-D, em que é requerente F……..., SA e é requerida O………, Lda, foi proferida decisão, em 24.6.2019, que julgou procedente a oposição ao arresto deduzida pela O……..., revogando-se a providência cautelar de arresto anteriormente decretada” (evidenciados nossos). T.-Com efeito, o Acórdão do STJ então referido determinou a devolução dos montantes ilegalmente retidos pela ora Recorrente à aqui Recorrida, decisão que já se consolidou e que terá de ser necessariamente considerada no presente recurso, pois os atos ilegais geraram danos sobre a Recorrida. U.-E em face da decisão definitiva e transitada em julgado sobre a ilegalidade da retenção dos montantes em causa é impossível negar-se que não tenham sido causados danos decorrentes dessa retenção ilegal já consolidada na ordem jurídica, sendo que o valor apurado parece ser razoável e encontrar respaldo na prova documental e testemunhal carreada aos autos. V.-Assim, andou muito bem o Tribunal a quo ao condenar a Recorrente ao pagamento de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) à Recorrida, a título de indemnização pelos danos causados em razão do incumprimento contratual, sendo simultaneamente devidos os juros comerciais legalmente estabelecidos, pois além da frustração do negócio que geraria o lucro identificado, a Recorrida ficou também prejudicada pela imobilização dos montantes durante todo este período, sendo igualmente devidos os juros comerciais a esse respeito. W.-Por isso e no que concerne à obrigação de indemnizar pelo incumprimento contratual da Recorrente, deverá reconstituir-se a situação que existiria se não se tivesse verificado o incumprimento (cfr. artigo 562.º do Código Civil) e abrangerá não só o dano emergente, como também os lucros cessantes (cfr. artigo 564.º, n.º 1 do Código Civil). X.-Ficou provado que a Recorrida pretendia comprar produtos à Recorrente e que com eles iria fazer uma margem média sempre superior a 15%, sendo que todos os depoimentos apontaram para valores médios esperados bastante superiores àquele que foram fixados pelo Tribunal a quo, porquanto a decisão se afigura consentânea com os depoimentos das testemunhas e com a restante prova carreada aos autos, não havendo qualquer erro na apreciação da prova. Y.-Demonstrou-se também que a Recorrente não cumpriu porque não quis cumprir e ainda reteve também dolosamente as quantias que foram pagas, também não se verificou impossibilidade de cumprimento ou responsabilidade alheia face ao incumprimento, sendo que a retenção ilícita foi feita ao abrigo de uma pretensa ação direta cujos pressupostos não se verificam tal como será facilmente percetível para qualquer homem médio. Z.-Aplicando uma compensação pelo cálculo de 15%, correspondente ao valor médio de lucro esperado sobre o investimento na aquisição de produtos no valor de € 337.596,00, retido pela Recorrente, o valor de prejuízo ascenderá, pelo menos, a €50.639,40. AA.-Concomitantemente e apesar de a decisão recorrida apenas incidir sobre a condenação da Recorrente ao pagamento de a €50.000,00, a imobilização do montante de € 337.596,00, gerou dificuldades de tesouraria, na gestão de cash-flow e impediu a concretização dos negócios já acordados com terceiros, atenta a falta de entrega dos produtos adquiridos e pagos e assim, frustrou-se o lucro e forçou-se o recurso a crédito bancário e danos à credibilidade da Recorrida junto dos seus clientes internacionais devido à não concretização dos negócios já acertados, isto é cuja previsibilidade e certeza se comprovou pelas faturas pró-forma, pelas declarações de parte da A. e pelo depoimento da testemunha Ana……… . BB.-Assim, a indemnização pelos lucros cessantes não se basta apenas com o vencimento dos juros legais sobre o montante, pois além da frustração do negócio que já se havia acertado com clientes da Autora aqui Recorrida, facto é que aquele valor apenas corresponde aos lucros que haveria, sendo que os juros, enquanto custo de indisponibilidade do dinheiro, visam a compensação pela imobilização daqueles montantes – não havendo qualquer duplicação de compensações pois trata-se de compensar dois danos distintos. CC.-Ainda que se entendesse que a indemnização da Recorrida não devesse ser analisada pela perspectiva dos lucros cessantes - o que seria desajustado à lei e à jurisprudência dominante e consolidada na ordem jurídica nacional – poder-se-ia calcular os danos causados pelos danos emergentes do incumprimento da Recorrente, mormente, encargos de crédito e contas caucionadas, impossibilidade de efetuar pagamentos a pronto das encomendas de produtos farmacêuticos (com redução de margens de lucro), imagem comercial afetada. DD.-Pelo exposto, deve a Ré Recorrente ver a sentença a quo confirmada quanto ao pagamento à Recorrida do montante de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), a título de indemnização pelos lucros cessantes”.
Conclui, no sentido da improcedência do recurso interposto, mantendo-se, na íntegra, a sentença proferida.
18–Tal recurso foi admitido por despacho de fls. 751, como apelação, a subir de imediato e nos próprios autos, tendo-se-lhe, ainda, atribuído efeito meramente devolutivo.
19–Entretanto, conforme despacho de 08/08/2023, alterou-se para suspensivo o efeito atribuído ao recurso, aproveitando-se a caução já prestada nos autos.
20–Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.
*** II– ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO
Prescrevem os nºs. 1 e 2, do artº. 639º do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:
“1–o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão. 2–Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a)-As normas jurídicas violadas ; b)-O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas ; c)-Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do artº. 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação da recorrente Apelante que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente,apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
A presente apelação tem, no essencial, dois diferenciados objectos recursórios.
Por um lado, três despachos intercalares: 1.–datados de 10/05/2022: a)- indefere a requerida prestação de depoimento de parte por intermédio de pessoa designada pela administração da Ré, e credenciada para o efeito ; b)- considera imprescindível a presença dos legais representantes da Ré, Joaquim……… e Luís………; 2.–datado de 21/06/2022: a)-indefere a requerida prestação de depoimento de parte por intermédio de António………, na qualidade de procurador da Ré, e decide existir recusa em prestar declarações.
Por outro, a sentença datada de 19/07/2022.
Pelo que, no sopesar das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede determina o conhecimento das seguintes questões:
- no que concerne aos despachos intercalares:
Ø identificado em 1.a): do enquadramento jurídico e da pretendida revogação – Conclusões 1ª a 12ª ;
Ø identificado em 1.b): da nulidade do despacho: i.-por falta de fundamentação (o artº. 615º, nº. 1, alín. b), do CPC) ; ou, caso assim não se entenda, ii.- por violação do disposto nos artºs. 417º, nº. 2, 452º, nº. 1 e 454º, todos do Cód. de Processo Civil - Conclusões 13ª a 18ª ;
Ø identificado em 2.a): do enquadramento jurídico e da pretendida revogação - Conclusões 19ª a 28ª.
- no que concerne á sentença:
1.–da IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO, o que implica a eventual reapreciação da prova produzida (inclusive a gravada):
A.- da dada como PROVADA:
factos 9º a 11º =» da pretensão que sejam considerados NÃO PROVADOS - Conclusões 30ª a 40ª ;
B.- da dada como NÃO PROVADA:
factualidade constante dos artºs. 8º a 30º da contestação =» da pretensão que sejam considerados PROVADOS - Conclusões 41ª a 76ª; 2.–aferir acerca do ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA CAUSA, tendo em consideração o alegado erro quanto à apreciação e valoração da prova, com consequente erro na decisão do mérito da causa – Conclusões 77º a 99ª.
Aprioristicamente, urge conhecer acerca das seguintes questões: a)-da (in)admissibilidade da superveniente junção de documentos por parte das Recorrente Ré e Recorrida Autora ; b)-da eventual inadmissibilidadedos recursos incidentes sobre os despachos intercalares, por carência de legitimidade da Recorrente Ré.
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QUESTÕES PRÉVIAS:
- Da (in)admissibilidade da superveniente junção de documentos
Na pendência da presente fase recursória, veio a Recorrente Ré, mediante requerimento datado de 11/08/2023 – referência 46304278 -, pugnar pela junção aos autos “da acusação pública proferida nos autos de inquérito 968/18.0T9VIS do DIAP Regional de Coimbra, com sua consequente valoração em sede de julgamento da presente instância recursiva”.
Alega, em súmula, ter sido notificada de tal acusação em Maio de 2023, e que esta, enquanto documento superveniente, tanto objectiva como subjectivamente, “pese embora os arguidos tenham requerido a abertura de instrução, é um documento que se afigura de todo imprescindível para a descoberta da verdade material”.
Acrescenta decorrer da mesma a descrição do modus operandi utilizado para a feitura do negócio em causa nestes autos, servindo, ainda, a mesma acusação para avaliar acerca da “credibilidade do depoimento da testemunha S………, em razão do seu interesse na causa, que põe em causa a sua isenção e a fé, o que deve relevar como um dos fatores a ter em conta na apreciação do seu depoimento”.
Notificada de tal pretensão, veio a Recorrida Autora, mediante requerimento de 25/08/2023 – referência 46360451 -, alegar, em súmula, o seguinte:
de acordo com o quadro legal, o concreto momento expressamente previsto de posterior apresentação da prova documental é “o da apresentação da alegação ou contra-alegação de recurso”, o que não se verifica in casu, pois a pretensão de junção ocorre após a apresentação das alegações e contra-alegações ;
caso assim não se entenda, tal documento apenas consubstancia um entendimento explanado, sendo certo que a Autora Recorrida já requereu a abertura de instrução, imperando o princípio in dúbio pro reoaté trânsito em julgado da decisão judicial condenatória ;
não prevalecendo minimamente tal documento “sobre o princípio da imediação e oralidade, nem tão pouco sobre a livre convicção do Tribunal”.
Conclui, no sentido:
- do requerimento, e documento anexo, ser considerado processualmente inadmissível e, consequentemente, ordenado o seu desentranhamento dos autos ;
- caso assim não se entenda, deve ser julgado improcedente, por infundado, o requerido, sendo proferido Acórdão que negue provimento ao recurso ;
- de serem admitidos aos autos, nos termos dos artigos 651º, 425º e 417º, do CPC, dois documentos, nomeadamente:
ü- o requerimento para abertura de instrução apresentado no âmbito do processo nº. 968/18.0T9VIS ;
ü- a decisão instrutória proferida no âmbito do processo nº. 2587/18.8T9VIS, “a qual aprecia a matéria igualmente em apreço nestes autos e que pronuncia os Arguidos F………, S.A., Joaquim……… e Luís……… pela prática do crime de burla qualificada (tendo apenas os 2ºs Arguidos apresentado recurso da mesma)”.
Decidindo:
Prescreve o nº. 1 do artº. 651º, do Cód. de Processo Civil que “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância”.
O artº. 425º dispõe, por seu lado, que “depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
Relativamente à junção de documentos na presente fase recursória, aduz Rui Pinto – Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2018, pág. 312 e 313 – que os documentos enunciados no artº.425º devem ser objectiva ou subjectivamente supervenientes, devendo “acompanhar as alegações ou contra-alegações do apresentante”.
Exigível é, todavia, que “a parte consiga demonstrar a referida superveniência, objectiva ou subjectiva. De outro modo, está liminarmente excluída a apresentação de documento que a parte já tinha ou podia ter em sua posse e que, como tal, deveria ter junto nos termos (amplos) do artigo 423º”.
Ora, in casu, inexistem dúvidas quanto à superveniência objectiva dos documentos pretendidos juntar, em virtude de terem sido produzidos depois do encerramento da discussão em 1ª instância.
Todavia, a sua junção não é requerida juntamente com as alegações ou contra-alegações, pois, sendo documentos datados de 05/05/2023, 13/07/2023 e 02/05/2023, aquelas foram apresentadas, respectivamente, em 10/10/2022 e 22/11/2022.
Deste modo, aludindo o transcrito artº. 651º, nº. 1, à junção da prova documental com as alegações, após a apresentação destas é legalmente interdita a junção de documentos objectivamente supervenientes relativamente à data daquelas ?
Aferindo acerca dos antecedentes legais do normativo em equação, referenciam José Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre – Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3º, 3ª Edição, Almedina, pág. 140 – reproduzir o nº. 1, em parte, o antecedente artº. 693º-B, do CPC de 1961, aditado pelo DL nº. 303/2007, introduzido em transposição do antecedente artº. 706º, nº. 1.
Acrescentam que aquele DL nº. 303/2007 “eliminara, não só a norma da 2ª parte do nº. 2, mas também a da 1ª parte do mesmo número e a do nº. 3 do referido art. 706 do CPC de 1961”, sendo que a primeira “possibilitava a junção, até aos vistos aos juízes, dos documentos supervenientes, enquanto a segunda sujeitava a junção de documentos e pareceres às normas hoje constantes dos arts. 442 e 443, cabendo ao relator autorizá-la ou recusá-la”.
Acrescentam os mesmos Autores – pág. 143 e 144 - que o “confronto da redação do n." 1 com a do n." 2 não deixa margem para apoio literal à ideia de que documentos supervenientes relativamente à data de apresentação da alegação da parte possam ainda ser apresentados, desde que antes do início do prazo para a elaboração do projeto de acórdão. Esta interpretação foi por nós defendida, já um tanto forçadamente, na edição de 2008 desta obra, perante o texto oriundo do DL 303/2007, entendendo que a imposição da apresentação dos documentos com as alegações se limitava àqueles que já à data existissem e fossem conhecidos, não parecendo ter sido propósito do DL 303/2007 impedir a apresentação, na instância do recurso de apelação, de documentos supervenientes à alegação da parte ou de pareceres de advogados professores ou técnicos, nomeadamente quando as últimas alegações produzidas tenham determinado a necessidade da junção. Tendo o CPC de 2013 mantido (com a argumentação referida) a norma do n.º 1, apesar de lhe acrescentar, para os pareceres, a do nº. 2, e vincando assim não querer regressar, quanto aos documentos, ao regime anterior a 2007, esta opinião deixou de ser sustentável”.
Assim, “concorde-se ou não com a orientação legal e sem prejuízo da exceção derivada da observância do princípio do contraditório quando a apresentação só se tome necessária com a última alegação produzida, o documento superveniente à alegação só pode ser feito valer em eventual recurso de revista, se se verificar o caso excecional do art. 680-1. Repare-se que também os documentos que não tenha sido possível apresentar, na 1ª. instância, até ao encerramento da discussão só podem ser feitos valer em recurso (art. 425)” (sublinhado nosso).
Referencia-se no douto aresto do STJ de 12/09/2019 – Relator: Rosa Ribeiro Coelho, Processo nº. 1238/14.9TVLSB.L1.S2, in www.dgsi.pt – resultar do disposto no nº. 1, do artº. 651º, do Cód. de Processo Civil, que “a junção de documentos, em fase de recurso, apenas é consentida com as alegações”, e que a invocação do disposto no nº. 1, do artº. 6º, do mesmo diploma, não legitima nem permite ultrapassar aquele balizamento temporal legalmente estatuído, pois, através deste normativo, pretende-se “obter uma tramitação expedita dentro dos mecanismos previstos na lei, e não a realização de atos não permitidos por lei, como seria a aceitação da prática de ato processual fora do prazo perentório a que está sujeito”.
Desta forma, aduz, “seria ato não permitido a admissão de documento apresentado depois do prazo legal; sendo a junção de documento possível apenas com a apresentação da alegação de recurso, isso envolve a existência de um prazo perentório, já que se não prevê a possibilidade da sua prorrogação – cfr. art. 141º, nº 1”.
O que determinou que se sumariasse que “a faculdade de junção de documentos em fase de recurso é de natureza excecional e não é possível depois da apresentação das alegações, por a lei não admitir a prorrogação do prazo constante do art. 651º, nº 1 do CPC”, sendo que tal junção em momento posterior “não pode ser permitida ao abrigo do art. 6º, nº 1 do mesmo diploma – dever de gestão processual a cargo do juiz – por este visar uma tramitação expedita dentro dos mecanismos previstos na lei, e não a realização de atos não permitidos por lei” (sublinhado nosso).
Donde, sem ulteriores delongas, na adopção de tal entendimento doutrinário e jurisprudencial, decide-se pela inadmissibilidade de junção dos documentos apresentados pela Ré Recorrente e Autora Recorrida e, consequentemente, determina-se o seu desentranhamento (físico), com consequente devolução às apresentantes, bem como a sua eliminação do processo electrónico.
Custas dos presentes incidentes anómalos a cargo da Ré Apelante e Autora Apelada, fixando-se a taxa de justiça em 1,5 UC – cf., artº. 7º, nºs. 4 e 8 e Tabela II, do Regulamento das Custas Processuais.
- da eventual inadmissibilidadedos recursos incidentes sobre os despachos intercalares, por carência de legitimidade da Recorrente Ré
Na resposta contra-alegacional, referencia a Autora Recorrida que relativamente “àrejeição dos depoimentos de partepor outros sujeitos que não sejam representantes legais, deve recordar-se que a figura do depoimento de parte visa obter a confissão, sendo esta, nos termos do artigo 352.º do CC, caracterizada como o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária, deste modo, nunca poderia a Recorrente retirar qualquer utilidade para si do depoimento de parte”.
Desta forma, acrescenta, a “eventual prestação de depoimento de parte por outros sujeitos diferentes dos que estavam efetivamente envolvidos e que foram identificados pela Autora por assumirem a representação legal das sociedades, desvirtua as regras processuais e o valor probatório do depoimento de parte”.
Por outro lado, “a decisão de indeferimento dos depoimentos de parte do Tribunal a quo requeridos inicialmente pela Autora (Recorrida) não prejudica a Recorrente pois da produção daquele meio probatório apenas poderia resultar benefício para a Autora que obteve total provimento na ação”.
Donde, para além de inexistir fundamento legal para o reivindicado pela Recorrente Ré, “daquele depoimento de parte não poderia resultar nenhum proveito para a Recorrente, pelo que a inadmissibilidade legal é agravada ainda pela falta de interesse de agir em sede de recurso, pelo que o recurso quanto a essa matéria deve ser improcedente, mantendo-se a douta decisão do Tribunal”.
Pelo que, entende que o recurso, no que concerne a tais despachos não deve ser admitido, aludindo à falta de legitimidade da Recorrente, com legal enquadramento no artº. 631º, do Cód. de Processo Civil.
Apesar de notificada de tal pretensão, a Recorrente Ré não apresentou qualquer pronúncia acerca da reclamada inadmissibilidade.
Analisemos.
Em primeiro lugar, apreciamos a forma como, cronologicamente, se suscitou o meio probatório em equação:
em 09/09/2021, foi prolatado Acórdão desta Relação que determinou a ampliação da matéria factual apurada, relativamente aos pontos factuais feitos constar nos artigos 8º a 30º da contestação, “relacionados quer com o alegado conluio manipulatório existente entre a Autora, através do seu legal representante e o indicado S………, então funcionário da Ré, do inserir dos contratos equacionados na petição inicial nesse procedimento e da afirmada desconformidade entre os valores apostos nos aludidos contratos e aqueles que correspondiam ao normal trato comercial da Ré” ;
e que, consequentemente, determinou a anulação da sentença apelada, por despacho do Tribunal a quo de 23/11/2021 ;
após, foram as partes convidadas para, no prazo fixado, indicarem a pertinente prova quanto a tal factualidade – cf., fls. 474 ;
em resposta, veio a Autora, mediante requerimento de 09/12/2021, requerer a produção probatória, entre outros, do depoimento de parte dos Administradores da Ré Joaquim ……… e Luís……..., relativamente á matéria constante dos artigos 10º, 12º, 21º, 22º e 25º a 28º ;
circunscrevendo que tal meio probatório, entre outros, reportava-se “à indicação da contraprova da factualidade alegada pela Ré nos artigos 8º a 30º da contestação” – cf., fls. 487 vº.
Os despachos recorridos decidiram, no essencial, acerca do seguinte:
Ø indeferiu a requerida prestação de depoimento de parte por intermédio de pessoa designada pela administração da Ré, credenciada para o efeito – datado de 10/05/2022 ;
Ø considerou imprescindível a presença dos legais representantes da Ré, Joaquim……… e Luís……… - datado de 10/05/2022 ;
Ø indeferiu a requerida prestação de depoimento de parte por intermédio de António………, na qualidade de procurador da Ré, decidindo existir recusa em prestar declarações - datado de 21/06/2022.
Prevendo acerca da prova por confissão das partes, e especificamente sobre o depoimento de parte, prescreve o artº. 452º, do Cód. de Processo Civil poder o juiz “em qualquer estado do processo, determinar a comparência pessoal das partes para a prestação de depoimento, informações ou esclarecimentos sobre factos que interessem à decisão da causa 2-Quando o depoimento seja requerido por alguma das partes, devem indicar-se logo,de forma discriminada, os factos sobre que há de recair”.
Acrescenta o nº. 2, do artº. 453º, do mesmo diploma, estatuído acerca de quem pode ser exigido, poder requerer-se o depoimento de representantes de “pessoas colectivas ou sociedades”, situação em que “o depoimento só tem valor de confissão, nos precisos termos em que (….) estes possam obrigar os seus representados”.
Aduz o nº. 1 do normativo seguinte – 454º -, prevendo acerca dos factos sobre que pode recair, que “o depoimento só pode ter por objeto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento”.
Em concatenação com a regulação processual de tal meio probatório, em termos substantivos ou materiais, enuncia o artº. 352º, do Cód. Civil, sobre a noção de confissão, ser esta “o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária”, a qual, segundo as modalidades, “pode ser judicial ou extrajudicial” – o artº. 355º, do mesmo diploma -, sendo que, relativamente às formas da confissão judicial, “a confissão judicial provocada pode ser feita em depoimento de parte ou em prestação de informações ou esclarecimentos ao tribunal”.
A propósito da declaração confessória, acrescenta o nº. 2, do artº. 357º, ainda do Cód. Civil, que “se for ordenado o depoimento de parte ou o comparecimento desta para prestação de informações ou esclarecimentos, mas ela não comparecer ou se recusar a depor ou a prestar as informações ou esclarecimentos, sem provar justo impedimento, ou responder que não se recorda ou nada sabe, o tribunal apreciará livremente o valor da conduta da parte para efeitos probatórios”, aduzindo o nº. 1, do artº. 358º, a propósito da força probatória da confissão, que “a confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente”.
Por fim, enunciando acerca do valor do reconhecimento não confessório, aduz o artº. 361º, igualmente do Cód. Civil, que “o reconhecimento de factos desfavoráveis, que não possa valer como confissão, vale como elemento probatório que o tribunal apreciará livremente”.
Entendem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre – Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª Edição, Almedina, pág. 282 – que o depoimento de parte “não tem constituído, no nosso direito, um testemunho da parte, livremente valorável em todo o seu conteúdo, favorável ou desfavorável ao depoente (…), mas um meio de provocar a confissão”.
Todavia, tendo em atenção o presente quadro legal, nomeadamente o decorrente da introdução da prova por declarações de parte, que redundará num relato de factos favoráveis ao próprio declarante, aduzem não descortinarem “motivo para excluir a possibilidade de valoração de relatos favoráveis que surjam na sequência da prestação do depoimento de parte”, o que sucederá à luz do princípio da livre apreciação da prova.
Relativamente à oficiosidade na produção do depoimento de parte, inequivocamente consagrada, ressalvam não ser este confundível “com a prestação de informações e esclarecimentos ao tribunal, nos termos do art. 7-2, a qual respeita, não à prova dos factos, mas ao esclarecimento da sua alegação, bem como da fundamentação de direito das posições tomadas pelas partes” – pág. 283 e 284.
Acrescentam que “sendo a confissão o reconhecimento da realidade dum facto desfavorável a quem a faz, a contraparte do confitente é com ele beneficiada”, razão pela qual “é-lhe atribuída, em primeiro lugar, a faculdade de requerer o depoimento de parte, dado este ter por finalidade a obtenção da confissão”.
Criticam, todavia, algum entendimento jurisprudencial, no sentido de que, “visando o depoimento de parte a obtenção de confissão, a parte só pode ser ouvida sobre os factos que lhe sejam desfavoráveis, estando excluído o seu depoimento sobre aqueles que lhe sejam favoráveis (…), dos quais, em princípio, tem o ónus da prova”.
Argumentam, no juízo crítico efectuado, que “um facto positivo tem sempre, como inverso, um facto negativo e, se um é favorável a uma parte, o outro é-lhe desfavorável. O depoimento da parte sobre um facto que tenha o ónus de alegar e provar pode conduzir à conclusão de que esse facto não se verificou, o que constitui consequência desfavorável ao depoente” – pág. 288 e 292.
Defendendo esta posição criticada, referenciam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa – Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2019, Reimpressão, pág. 519 e 520 – que constituindo o depoimento de parte “um meio processual cujo objectivo fundamental é o de provocar e obter de alguma das partes a confissão judicial, enquanto declaração de ciência através da qual se reconhece a realidade de um facto desfavorável ao declarante e favorável à parte contrária”, o mesmo “só pode incidir sobre factos desfavoráveis ao depoente”, pelo que a parte “que pretenda que a outra preste este tipo de depoimento deve logo enunciar os factos sobre que o mesmo haverá de incidir, para permitir ao juiz aferir da viabilidade do objeto do depoimento”.
Ressalvam, porém, que não se consumando a obtenção de tal declaração com valor confessório, “nem por isso as declarações deverão ser desvalorizadas”, ou seja, “o depoimento de parte, naquilo que não apresente valor confessório, constitui um meio de prova sujeito à livre apreciação do tribunal”, assim sendo reconhecido ao depoimento de parte “virtualidades probatórias irrecusáveis perante um sistema misto de valoração da prova em que, a par da prova tarifada, existem meios de prova sujeitos a livre apreciação”.
Conceptualizando a noção de confissão, Luís Filipe Pires de Sousa – Direito Probatório Material Comentado, Almedina, 2020, pág. 84 e 85 – define-a como “uma declaração de ciência, judicial ou extrajudicial, espontânea ou provocada, nos termos da qual o declarante, com capacidade para obrigar-se e no âmbito de um conflito de interesses com outro sujeito, reconhece a veracidade de um facto, o qual é suscetível de produzir efeitos jurídicos e releva para a decisão da controvérsia, assumindo tal facto uma natureza bifronte: é desfavorável ao declarante e favorável ao beneficiado”.
No âmbito das declarações, referenciam João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa – Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL, 2022, pág. 541 – distinguir-se a confissão “pelo seu objecto: um facto desfavorável ao declarante (confitente) e favorável à parte contrária. É aquilo que os antigos chamavam contra se pronuntiatio (…)”, aludindo-se a este propósito à figura da “confissão-prova”.
Não constituindo um negócio jurídico, mas antes “um ato jurídico em que a produção dos seus efeitos decorre diretamente da lei e não da intenção do declarante”, ressalva que “o reconhecimento incide sobre um facto, quid material, e não sobre opiniões, valorações, relações ou qualificações jurídicas, uma vez que estas não vinculam o juiz de acordo com o princípio iura novit curia”, assentando a confissão “no princípio da autorresponsabilidade das partes e na regra da experiência segundo a qual ninguém reconhece um facto desfavorável, salvo se o mesmo for verdadeiro. Pelo que pode dizer-se que o legislador transformou uma constatação de normalidade num juízo histórico normativo”.
Acrescenta que “a confissão judicial provocada pode ser feita em depoimento de parte ou no âmbito de declarações de parte. O depoimento de parte só pode ter por objeto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento. O facto é pessoal quando é «conhecido pela parte, trate-se de ato por ela própria praticado, ou praticado com a sua intervenção, de ato de terceiro perante ela praticado (incluindo as declarações escritas de que tenha sido destinatária) ou de mero facto ocorrido na sua presença. Facto de que a parte deve ter conhecimento é aquele que é de presumir que ela tenha conhecido, pois o termo "deve" que consta do artigo tem o sentido de juízo de probabilidade psicológica e não de conduta ética»” – citando Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit., pág. 290.
Relativamente à interpretação do nº. 2, do artº. 357º, nomeadamente á degradação do dever de colaborar aí enunciada, aduz “que tal conduta omissiva pode ser erigida à categoria de facto indiciário”, acrescentando que “uma conduta processual pode constituir a base de um indício endoprocessual verificados que sejam certos requisitos” – pág. 90 e 92.
Por fim, relativamente á exigência para a consideração da desfavorabilidade do facto confessado, entende-se que na confissão “a relação de legitimidade exprime-se na desfavorabilidade do facto ao sujeito do acto, isto é, na contrariedade do efeito jurídico que desse facto resulta ou pode resultar ao interesse do confitente (C. C., art. 352). Eis que, ao invés do que normalmente acontece no campo do negócio jurídico, a legitimidade é, no acto da confissão, expressa sob a perspetiva do objecto (facto desfavorável) e não sob o ponto de vista do sujeito; mas a indagação a fazer para verificar se o sujeito está ou não legitimado para confessar é semelhante à que se efectua no campo negocial e a coincidência em que, da perspectiva do sujeito, a relação de legitimidade se deverá traduzir será, como além, entre o sujeito interveniente no acto e o titular do interesse em causa”.
Donde, para que o facto confessado se entenda como desfavorável ao confitente, “é necessário atender, por um lado, ao tipo de efeito que, em abstracto, ele é idóneo a produzir e, por outro lado, à titularidade concreta, pelo confitente, da situação jurídica inicial ou final que, se se tratasse dum negócio jurídico, exprimiria a legitimidade para a sua prática” – assim, José Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, Coimbra Editora, 1991, pág. 103 e 104.
Tendo-se enquadrado o meio probatório decorrente da confissão das partes, com especial incidência no que concerne ao depoimento de parte, que subjaz às decisões intercalares objecto de recurso, afiremos, agora, acerca da alegada ilegitimidade da Ré para recorrer acerca do decidido ou, eventualmente, acerca da ausência de preenchimento de qualquer outro pressuposto que a incapacite de figurar como recorrente, tendo em consideração o objecto decisório.
Sob a epígrafe quem pode recorrer, prescreve o artº. 631º, do Cód. de Processo Civil que: “1-Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido. 2-As pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias. 3-O recurso previsto na alínea g) do artigo 696.º pode ser interposto por qualquer terceiro que tenha sido prejudicado com a sentença, considerando-se como terceiro o incapaz que interveio no processo como parte, mas por intermédio de representante legal”.
Referenciam João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa – Ob. Cit., Vol. II, pág. 168 – que a legitimidade para recorrer é aferida “pelo prejuízo sofrido pela parte”, podendo assim recorrer “a parte que tenha sido prejudicada (…) pela decisão que pretende impugnar”.
Todavia, “para que a parte possa recorrer, é ainda necessário que retire alguma utilidade da procedência do recurso, ou seja, é ainda indispensável que tenha interesse em recorrer”.
Em regra, parece inquestionável que o interesse em recorrer acompanha a legitimidade para recorrer. Porém, “enquanto a legitimidade para recorrer é aferida pelo prejuízo causado à parte pela decisão impugnada, o interesse em recorrer é determinado em função da utilidade que para ela pode resultar da procedência do recurso”.
Aduz, exemplificando, que “numa acção pendente, o réu apresentou a sua contestação; o tribunal entendeu que o articulado foi entregue fora de prazo, pelo que o mandou desentranhar; apesar disso a acção foi julgada improcedente; o réu é parte vencida quanto à decisão que mandou desentranhar a contestação, pelo que tem legitimidade para dela recorrer; mas não tem interesse em recorrer, porque não pode obter uma decisão mais favorável que a de improcedência” (sublinhado nosso).
Acrescenta António Santos Abrantes Geraldes – Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª Edição, Almedina, pág. 78 e 79 – não dever confundir-se “o pressuposto da legitimidade com o do interesse em agir. A legitimidade afere-se através do prejuízo que a decisão determina na esfera jurídica do recorrente. Já o interesse em agir (….) está ligado à utilidade prática que emana da utilização de meios jurisdicionais e, concretamente, em sede de recursos, aos efeitos que decorrem da intervenção do Tribunal Superior, o que permite excluir casos em que, apesar de a parte ter ficado objectivamente vencida, nenhuma vantagem pode extrair da eventual revogação, alteração ou anulação da decisão”.
Desta forma, acrescenta, pressupõe o mecanismo de recurso “que se aperceba a existência de uma utilidade na posterior intervenção de um Tribunal Superior. Não foi criado para satisfazer interesses meramente subjectivos do recorrente, para dirimir questões puramente académicas ou para mero conforto moral, sem qualquer repercussão no resultado da lide, antes para alterar, revogar ou anular a decisão, com o cortejo de efeitos que dela emanam” (realce nosso).
Acerca deste pressuposto processual recursório do interesse em agir, podemos elencar, exemplificativamente, os seguintes arestos (todos in www.dgsi.pt):
- do STJ de 17/03/2016 – Relator: Lopes do Rego, Processo nº. 806/13.0TVLSB.L1.S1 -, no qual se referencia que por via do critério material ou objectivo aplicável ao vencimento/decaimento, “só pode considerar-se como parte vencida aquela que não obteve a decisão mais favorável aos seus interesses objectivados, independentemente da procedência ou improcedência das razões esgrimidas sobre a matéria litigiosa: ora, no caso dos autos é manifesto que a herdeira/interveniente activa não pode considerar-se como parte objectivamente prejudicada pela decisão que considerou terceiro obrigado a prestar contas à herança, não podendo a utilidade inerente à interposição de recurso basear-se apenas na satisfação de interesses meramente subjectivos do recorrente, para dirimir questões puramente académicas ou para mero conforto moral do recorrente, sem qualquer repercussão relevante e efectiva na sua esfera jurídica” ;
- do STJ de 14/10/2021 – Relator: Rijo Ferreira, Processo nº. 5985/13.4TBMAI.P1.S1 -, no qual se referencia, ainda que no âmbito da impugnação da matéria de facto, mas adoptando princípio de observância geral, impender sobre o recorrente o ónus, “decorrente do pressuposto processual do interesse em agir e do princípio da proibição de actos inúteis (art.º 130º do CPC), de justificar o interesse nessa impugnação, não sendo de admitir que o tribunal desperdice os seus recursos na apreciação de situações de que o recorrente não possa tirar qualquer benefício” (sublinhado nosso) ;
- da RP de 08/02/2021 – Relator: Jorge Seabra, Processo nº. 4177/19.3T8VNG-B.P1 –, no qual, aferindo-se acerca do pressuposto do interesse em agir em sede de recurso, enuncia-se que em termos doutrinários são normalmente apontadas duas razões para a sua consideração ou existência: “- pretende-se, por um lado, evitar que as pessoas sejam precipitadamente forçadas a vir a juízo para organizarem, sob cominação de uma sanção grave, a defesa dos seus interesses, numa altura em que a situação da parte contrária não o justifica; - por outro, procura-se não sobrecarregar a actividade dos tribunais, cujo tempo é escasso para acudir a todos os casos em que é realmente indispensável a intervenção jurisdicional”.
Apelando ao ensinamento de Miguel Teixeira de Sousa - As partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, 1995, pág. 99-101 -, acrescenta “que “o interesse processual é um pressuposto processual respeitante à parte activa e correlativamente ao réu, que é aferido pela posição de ambas as partes perante a necessidade de tutela jurisdicional e a adequação do meio processual escolhido pelo autor.””.
Donde, ter-se sumariado que “de acordo com o critério plasmado no artigo 631º, do CPC, apenas tem legitimidade para recorrer a parte que tenha ficado vencida, no sentido de parte objectivamente afectada ou prejudicada pela decisão e em função do seu objecto e conteúdo”.
Todavia, “ainda assim, a parte objectivamente vencida pode não pode ter interesse em agir, para efeitos de recurso, quando nenhuma utilidade efectiva pode extrair da eventual alteração da decisão proferida” (sublinhado nosso) ;
- desta RL de 15/06/2023 – Relator: Adeodato Brotas, Processo nº. 6833/21.7T8SNT.L1-6 -, onde se referencia que “enquanto a legitimidade para recorrer é aferida pelo prejuízo causado à parte pela decisão impugnada - no sentido de ter visto desatendido o efeito jurídico a que se propunha - o interesse em recorrer é determinado em função da utilidade que para ela possa resultar do recurso (….).Ou seja, a parte principal vencida tem interesse em recorrer se, por intermédio do recurso pode obter a revogação da decisão que lhe foi desfavorável, isto é, a revogação da decisão que desatendeu o efeito jurídico pretendido”.
Aqui chegados, é tempo de extrair conclusões.
E, nesse desiderato, consideramos que:
- os despachos recorridos em equação decidiram que a requerida prestação de depoimento de parte pelos indicados legais representantes da Ré - Joaquim……… e Luís………– não poderia ser efectuado por intermédio de pessoa designada pela administração da Ré (e credenciada para o efeito), nomeadamente por António……..., assim se decidindo existir recusa em prestar declarações ;
- bem como que era considerado imprescindível a presença daqueles legais representantes da Ré para a prestação do depoimento de parte ;
- ora, o enunciado depoimento de parte dos indicados administradores da Ré foi requerido pela Autora (e não pela Ré, o que, evidentemente, era legalmente vedado), pelo que a não produção de tal meio de prova acabou por frustrar a sua pretensão probatória, e não a da ora Recorrente Ré ;
- por outro lado, a matéria incidente sobre tal meio probatório reportava-se a matéria factual aduzida pela Ré em sede de contestação, nomeadamente nos artigos 10º, 12º, 21º, 22º e 25º a 28º ;
- incidindo tal matéria factual sobre as específicas funções exercidas pelo indicado S……... enquanto funcionário da Ré (artºs. 10º e 12º), e alegado conluio existente entre tal funcionário e a Autora, na pessoa do seu legal representante Rui………, com consequentes prejuízos para a Ré (artºs. 21º, 22º e 25º a 28º) ;
- ora, o ónus probatório desta matéria factual sempre incumbiria à Ré, quer se entenda estarmos perante impugnação motivada, quer se entenda estarmos perante dedução de defesa por excepção ;
- por outro lado, estamos igualmente perante matéria relativamente à qual nunca a Autora requerente poderia obter a confissão judicial provocada da Ré, pois, o reconhecimento daquela matéria factual não constituiria um faco desfavorável para a depoente, nem beneficiaria (antes pelo contrário) a contraparte da putativa confitente, ou seja, a Autora ;
- explicitando, constituindo o depoimento de parte o meio processual com a finalidade ou desiderato de provocar e obter da contraparte a confissão judicial, enquanto declaração de ciência ou acto jurídico através da qual se reconhece a realidade de um facto desfavorável ao confitente declarante, e favorável à contraparte, o mesmo teria necessariamente que incidir sobre factualidade desfavorável à Ré ;
- o que não sucede com a factualidade indicada, cuja eventual prova apenas beneficiaria a posição processual substantiva da mesma Ré, pois não estamos perante factualidade a esta desfavorável ;
- o exposto, não olvida a possibilidade da valoração de relatos favoráveis que surjam na sequência da prestação do depoimento de parte, ou seja, que relativamente à eventual produção do depoimento de parte da Ré, na pessoa dos indicados administradores, não pudesse surgir factualidade favorável à mesma Ré, que devesse ser valorada à luz do princípio da livre apreciação da prova ;
- todavia, esta eventual valoração surge no âmbito da produção daquele meio probatório, e por causa de tal produção, e não como finalidade ou desiderato prosseguidos, de forma a que aqui se possa reconhecer um eventual direito à produção do mesmo meio probatório pela parte que o não impulsionou (ou seja, pela Ré) ;
- ademais, conforme enunciado, depondo uma parte, no âmbito do depoimento prestado, acerca de factos de que tivesse o ónus alegatório e probatório, pode tal depoimento, por falta de idoneidade, conduzir à conclusão de que tal factualidade não ocorreu, o que não deixa de constituir consequência desfavorável ao próprio depoente ;
- concretizando, in casu, o putativo depoimento de parte a prestar pela Ré, sobre a indicada factualidade da qual tinha o ónus probatório, sempre poderia levar o Tribunal a concluir pela sua não verificação, o que tutelaria a posição processual da Autora requerente, que não a da Ré ;
- ora, independentemente da sua legitimidade ou interesse processual recursório, é facto concludente que a Autora, requerente do depoimento de parte da Ré, conformou-se com o decidido pelo Tribunal ;
- por outro lado, não resulta da sentença recorrida, nomeadamente da fundamentação da matéria factual fixada, que a atitude adoptada pela Ré, de inviabilizar o requerido depoimento através dos indicados administradores, tenha produzido quaisquer efeitos probatórios, nomeadamente os decorrentes daquela putativa omissão, de forma a traduzi-la num qualquer factor indiciário quanto à não ocorrência daquela factualidade sobre a qual deveriam depor, no âmbito da livre apreciação da valoração de tal conduta, para efeitos probatórios, nos quadros do nº. 2, do artº. 357º, do Cód. Civil ;
- factualidade que, reafirmamos, não sendo desfavorável à Ré, nunca a Autora requerente poderia obter a confissão judicial provocada da Ré, pois, o reconhecimento daquela não constituiria um facto desfavorável para a depoente, nem beneficiaria (antes pelo contrário) a contraparte da putativa confitente, ou seja, a Autora.
Pelo exposto, entendemos que, relativamente ás decisões contidas nos despachos recorridos, um eventual juízo de procedência dos recursos interpostos, não determinaria qualquer utilidade para a Recorrente Ré.
Efectivamente, apesar desta ter ficado objetivamente vencida pelo deliberado naquelas decisões, um putativo juízo de procedência dos recursos interpostos, conducente a que o depoimento de parte fosse prestado por intermedio do seu procurador, devidamente credenciado, nenhuma vantagem lhe traria, atenta a finalidade do depoimento de parte requerido pela Autora, natureza da matéria factual objecto do mesmo e o reconhecimento que aquele meio probatório nunca poderia ter por desiderato ou tutela o cumprimento do ónus probatório daquela matéria factual, que compete à Ré Apelante.
Pelo exposto, por falta de preenchimento do pressuposto recursório interesse processual, não se admitem os recursos interpostos pela Ré sobre os despachos intercalares datados de 10/05/2022 e 21/06/2022, supra identificados em 1., alíneas a) e b) e 2., alínea a).
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III–FUNDAMENTAÇÃO
A–FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na sentença recorrida/apelada, foi considerado como PROVADO o seguinte (assinalam-se com * os factos objecto de impugnação ; adita-se, a negrito, a factualidade aditada, conforme decisão infra):
Na sentença que apreciou parcialmente do pedido foram considerados provados os seguintes factos: 1.º- A A. é uma empresa com atividade na distribuição por grosso de medicamentos para uso humano e outros produtos de saúde, tais como dispositivos médicos, suplementos alimentares, biocidas, reagentes, testes de diagnóstico, cosméticos, entre outros. 2.º- A R. é uma empresa com atividade na mesma área. 3.º-O processo de encomenda comercial entre A. e R. segue sempre o mesmo programa: a)-pedido de informação da A. sobre dado(s) produto(s), incluindo preço e prazo de entrega; b)-resposta da R. com cotação e factura proforma; c)-pagamento pela A. da encomenda por transferência bancária antecipada, com cópia da ordem de transferência para a R.; d)-entrega imediata do produto pela R. após confirmada a recepção do valor da encomenda na sua conta bancária. 4.º-Foi o procedimento seguido no final de março – princípio de abril do corrente ano de 2018 com duas encomendas que deram origem à fatura proforma FP 2018/9205, de 20-03-2018, referente a produtos AVAMYS, no valor de € 159.000,00 (cento e cinquenta e nove mil euros), enviada por correio eletrónico pela R. à A. a 28 de março, com transferência ordenada a 3 de abril. 5.º-E à fatura proforma FP2018/9192, de 16-03-2018, referente a produtos KELO-COTE, no valor de € 178.596,00 (cento e setenta e oito mil quinhentos e noventa e seis euros), enviada por correio electrónico pela R. à A. a 3 de abril, com transferência ordenada a 4 de abril. 6.º-A ré não forneceu à autora os produtos acima mencionados, nem os pretende fornecer. 7.º-A autora exigiu que a ré devolvesse as quantias acima referidas até 11 de maio de 2018 (artº 35º da p. i.). 8.º-A ré não devolveu à autora as quantias acima referidas. Da matéria controvertida para a apreciação da parte do pedido que falta apreciar provou-se o seguinte: 9.º-O referido supra em 6.º teve como consequência o cancelamento por parte dos clientes da autora das encomendas efetuadas e a quem seriam fornecidos os produtos em causa. * 10.º-A retenção por parte da ré das quantias referidas em 4.º e 5.º determinou que a autora não pudesse usá-las para outros negócios. * 11.º-A margem de lucro da autora na revenda dos produtos referidos em 4.º e 5.º situa-se entre 15% e 20%. *
Da matéria factual constante dos artigos 8º a 30º da contestação, objecto de impugnação: 12º-Imputando a prática de factos suscetíveis de integrar ilícitos penais, por conluio entre a Autora, o seu Gerente Rui……… e o ex-funcionário da Ré S…….., foi deduzida em 04.04.2018 participação criminal que deu origem aos autos principais de inquérito com o n.º 968/18.0T9VIS, que corre termos no DIAP de Coimbra ; 13º-No âmbito de tal Inquérito Criminal, encontram-se constituídos arguidos, entre outros, a Autora, o seu Gerente Rui……… e o ex-funcionário da Ré, S……… ; 14º-S……... foi trabalhador da ora Ré até data não concretamente apurada de meados de Agosto de 2018, exercendo funções na área comercial, como director de vendas ; 15º-Rui……… é o sócio único e gerente da sociedade O……..., Lda., Autora nos presentes autos ; 16º-No exercício das suas funções e no âmbito da relação laboral existente com a ora Ré, competia a S……… contactar com clientes e fornecedores e negociar condições de venda dos produtos intermediados pela ora Ré ; 17º-As vendas documentadas nas facturas pró-forma identificadas em 4º e 5º, foram efectuadas pelo ex-funcionário da Ré S……… ; 18º-Tendo-o feito, relativamente ao produto Avamys, ao preço unitário de 5,00 €, e relativamente ao produto Kelo-Cote, ao preço unitário de 12,10 €.
Fazendo-se constar, relativamente à FACTUALIDADE NÃO PROVADA o seguinte:
Nada mais se provou do alegado pela autora quanto aos prejuízos invocados.
Também nada se provou do alegado pela ré quanto à matéria de facto indicada nos artºs 8º a 30º da contestação. Da concretizada matéria factual não provada, decorrente da parcial procedência da impugnação da matéria de facto exarada nos artigos 8º a 30º da contestação (nos termos infra decididos): a)-que para além do descrito em 16º, competisse igualmente ao S……... negociar condições de compra de tais produtos, bem como elaborar e apresentar propostas em concursos públicos internacionais ; b)-que aquando das vendas referenciadas em 17º e 18º, o produto Avamys fosse normalmente colocado no mercado pela Ré ao preço unitário de 6,60€, e o produto Kelo-Cote ao preço unitário de 15,00 €. Mantendo-se, no demais, como não provada, a matéria factual constante dos artigos 8º a 30º da contestação.
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B–FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
I)–DA IMPUGNAÇÃO da MATÉRIA de FACTO
Prevendo acerca da modificabilidade da decisão de facto, consagra o artigo 662º do Cód. de Processo Civil os poderes vinculados da Relação, estatuindo que: “1–A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. 2–A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: a)-Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento; b)-Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova; c)-Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta; d)-Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.
Para que tal conhecimento se consuma, deve previamente o recorrente/apelante, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o ónus a seu cargo plasmado no artigo 640º do mesmo diploma, o qual dispõe que: “1–Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a)-Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b)-Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c)-A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2.– No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a)-Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b)-Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3.– O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
No caso sub judice, a prova produzida em audiência foi gravada. E, tendo a Recorrente/Apelante dado cumprimento ao preceituado no supra referido artigo 640º, nº. 2, alín. a), do Cód. de Processo Civil, nada obsta a que o presente Tribunal proceda à reapreciação da matéria factual fixada, operando-se, assim, à devida audição da indicada prova, bem como à leitura dos excertos transcritos.
Não se desconhece que “para negar a admissibilidade da modificação da decisão da matéria de facto, designadamente quando esta seja sustentada em meios de prova gravados, não pode servir de justificação o mero facto de existirem elementos não verbalizados (gestos, hesitações, posturas no depoimento, etc.) insusceptíveis de serem recolhidos pela gravação áudio ou vídeo. Também não encontra justificação a invocação, como factor impeditivo da reapreciação da prova oralmente produzida e da eventual modificação da decisão da matéria de facto, da necessidade de respeitar o princípio da livre apreciação pelo qual o tribunal de 1ª instância se guiou ou sequer as dificuldades de reapreciação de provas gravadas em face da falta de imediação”.
Pelo que, poderá e deverá a Relação “modificar a decisão da matéria de facto se e quando puder extrair dos meios de prova, com ponderação de todas as circunstâncias e sem ocultar também a livre apreciação da prova, um resultado diferente que seja racionalmente sustentado” [2].
Reconhece-se que o registo dos depoimentos, seja áudio ou vídeo, “nem sempre consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal a quo. Como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que porventura influenciaram o juiz da 1ª instância.
Na verdade, existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador”.
Efectivamente, e esta é uma fragilidade que urge assumir e reconhecer, “o sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1ª instância a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo aos tribunais retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”.
Todavia, tais dificuldades não devem justificar, por si só, a recusa da actividade judicativa conducente à reapreciação dos meios de prova, ainda que tais circunstâncias ou fragilidades devam ser necessariamente “ponderadas na ocasião em que a Relação procede à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados” [3] (sublinhado nosso).
- Dos factos provados 9º a 11º e da pretensão que sejam considerados não provados
Os presentes factos têm a seguinte redacção:
“9.º-O referido supra em 6.º teve como consequência o cancelamento por parte dos clientes da autora das encomendas efetuadas e a quem seriam fornecidos os produtos em causa. 10.º-A retenção por parte da ré das quantias referidas em 4.º e 5.º determinou que a autora não pudesse usá-las para outros negócios. 11.º-A margem de lucro da autora na revenda dos produtos referidos em 4.º e 5.º situa-se entre 15% e 20%”.
Referencia a Ré Impugnante que a presente factualidade deve ser julgada como não provada, pois, tendo sido proferida sobre os mesmos apenas prova testemunhal, não é possível extrair desta a prova de tal factualidade.
Aduz que as testemunhas “Ana……... enquanto funcionária da A. o seu gerente, Rui………, têm a sua credibilidade diminuída por terem interesse na causa, e limitaram-se a referir genericamente que houve cancelamento de encomendas, não indicando qual ou quais encomendas em concreto não foram satisfeitas”.
Acrescenta que a “testemunha S……… declarou que presta serviços para a A., mas para o Tribunal a quo, para além do quanto se demonstrará mais adiante, não poderia ficar a dúvida de que ele é realmente mais que isso, aliás a testemunha Paulo ……… na audiência de discussão e julgamento de 10/05/2022 [Ficheiro: 20220510155559_5838017_2871207 entre minutos 00:27:18 e 00:28:19], declarou que actualmente por intermédio da empresa Velvet Med faz negócios com a A. e é S……... quem lhe envie e-mails da parte desta, afigurando-se pouco credível que alguém que se apresenta como mero prestador de serviços por intermédio de outra empresa, conforme respondeu aos costumes, utilize o próprio e-mail da A. para realizar negócios”.
Acrescenta, invocando as decisões proferidas no procedimento cautelar de arresto preventivo – apenso D do inquérito nº. 968/18.0T9VIS -, que o mencionado S……… “participa, na verdade, na gestão da própria A., aliás como já o fazia, paralelamente, enquanto era funcionário da Ré”.
Aduz, inexistir nos autos “qualquer prova documental sobre a existência de encomendas; também não há prova documental sobre transferências de dinheiro que a A. teria recebido antecipadamente por conta de tais encomendas”, sendo que era por via de tais encomendas e adiantamentos, caso existissem, “que se poderia aferir a margem de lucro da A.”.
E, adita, não foram, ainda, “juntos elementos probatórios pela A. que permitam concluir qual a margem de lucro que teria com a venda dos produtos AVAMYS e KELO-COTE, inexistindo também elementos probatórios que permitam concluir que a A. não pudesse usar as quantias para outros negócios, pois que, em rigor não se sabe que outros negócios teria”.
Explicita que a testemunha Paulo………, “aludida pelo Tribunal a quo como corroborante da margem de lucro entre 15% e 20%, na verdade, apenas se pronunciou sobre as margens da Ré, e não da A., e na audiência de discussão e julgamento de 10/05/2022[Ficheiro: 20220510155559_5838017_2871207 entre minutos 00:11:08 e 00:11:32], quanto instado pelo Mandatário da Ré para esclarecer qual a margem de lucro dos produtos AVAMYS e KELO-COTE, referiu nem no caso concreto da Ré sabia qual a margem de lucro na venda dos produtos AVAMYS e KELO-COTE”.
Assim, conclui existir erro no julgamento da matéria de facto elencada sob os n.º 9º a 11º dos factos provados, a qual deriva “da inadequada apreciação dos meios de prova aduzidos para fundamentar a decisão, porque, por um lado, da prova testemunhal, atenta o seu interesse na causa e a falta de credibilidade, não se poderia extrair tal resultado probatório, sendo a mesma insuficiente para o resultado probatório, até porque não corroborada por qualquer outra prova”.
Na resposta apresentada, referencia a Recorrida Autora ter-se provado que a sua margem de lucro, na revenda dos produtos em causa, “situa-se entre 15% e 20% e que os 15% do montante ilegalmente retido pela Recorrente ascende a 50.639,40€, consumindo integralmente a quantia peticionada a título indemnizatório, pelo que a condenação é justa e acertada (sob pena de condenação ultra petitum, vide art.º 609º/1 do CPC)”.
Acrescenta que a globalidade da prova testemunhal, quer a arrolada pela Autora, quer a arrolada pela Ré (identificando expressamente e detalhadamente, com referência parcial ao seu teor, os depoimentos de Ana....….., Paulo……… e S………), bem como as declarações de parte do representante da Autora, que qualifica como “autênticas e coerentes, conduzem à conclusão – até conservadora face às margens praticadas – de que que a margem média de lucro se fixaria entre os 15% e 20%”.
Desta forma, conclui que o “valor dos danos deve ser calculado em razão dos lucros não obtidos em resultado do incumprimento da R., neste caso, aplicando a margem média de lucro, correspondente a pelo menos, 15% do valor investido nos produtos pela Recorrida, o que se afigura correto em face da análise concatenada da realidade empresarial farmacêutica e dos vários elementos de prova trazidos ao processo por ambas as partes”.
Na sentença apelada, relativamente a tal matéria, consta o seguinte: “A convicção do tribunal quanto aos factos provados resultou da prova testemunhal produzida em audiência. O que importava acima de tudo provar era saber qual a margem de lucro da revenda dos produtos. Da mencionada prova resultou que essa margem se situava nos termos mencionados supra em 11.º, o que foi corroborado pelo administrador da autora que prestou declarações de parte e, também, por P........., testemunha indicada pela ré e que foi seu funcionário. Este referiu que a margem seria entre 5% e 50%, pelo que a margem de 15% a 20% será até uma margem média baixa”.
Corroborando o sustentado, enuncia, em notas de rodapé, partes dos depoimentos prestados pelas testemunhas:
Ana ………, directora financeira da Autora ;
Paulo………, comercial ;
S……...,
bem como extracto das declarações de parte prestadas pelo administrador da Autora, Rui……... .
Analisemos.
Em primeiro lugar, entendemos não ser legalmente admissível, por parte da Ré Impugnante, a impugnação da factualidade ora em equação – factos provados 9º a 11º.
O que passaremos a explicitar.
Tal factualidade foi considerada provada, qua tale, na primeira sentença prolatada, aí figurando igualmente sob os pontos 9º a 11º.
Interposto recurso de tal sentença, entre os fundamentos recursórios a apreciar por esta Relação, no Acórdão antecedentemente proferido, figurava, para além do mais, aferir acerca da alegada impugnação da matéria de facto.
Nesta mesma decisão colegial, conheceu-se como questão apriorística da eventual rejeição do recurso, na vertente da aludida impugnação da matéria de facto.
E, no conhecimento de tal questão, concluiu-se nos seguintes termos:
“Ora, compulsadas as alegações e as conclusões recursórias apresentadas pela Ré/Apelante, verifica-se o seguinte:
- desde logo não resulta claro que a Ré Recorrente, apesar da declarada pretensão de “reapreciação da prova gravada”, tenha tido a efectiva e real pretensão de impugnar a matéria de facto, o que não resulta de forma evidente e devidamente explicitada ou organizada ;
- efectivamente, na alusão á existência de erro quanto à apreciação da prova na decisão de mérito da causa,não é efectuada qualquer alusão aos concretos pontos da matéria de facto considerados incorrectamente julgados, nem é indicada, por outro lado, qual a decisão que deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas ;
- Com efeito, o que se questiona são fundamentalmente as conclusões feitas constar da sentença apelada, extraídas da matéria factual provada, e não propriamente o teor desta – cf., artº. 47º do corpo alegacional ;
- bem como o facto da mesma sentença, na fixação da ponderável matéria factual, ter tido em consideração apenas a posição da Autora, nomeadamente a prova dos danos por esta alegadamente suportados, desconsiderando, por outro lado, a posição da Ré apelante e as razões invocadas para se recusar a cumprir o contrato – cf., exemplificativamente, os artºs. 80º, 92º, 107º e 110º do corpo alegacional ;
- limita-se, ainda, a pretensa impugnação factual a reivindicar o dever do Tribunal a quo em “considerar tudo quanto seja objecto de prova e cujas evidências constam ostensivamente dos autos”, bem como ao dever de “convocar para a decisão todos os elementos alegados pelas partes e outros de que tivesse conhecimento”, mas sem efectuar qualquer concretização dos factos omitidos ou desconsiderados, nem delimitando as questões factuais objecto de impugnação – cf., artºs. 94º e 129º do corpo alegacional ;
- reiterando, inclusive, tal reivindicação com alusão totalmente genérica e carecida de qualquer precisão, nomeadamente factual, ao referenciar que o Tribunal não poderia “deixar de tomar em consideração todos os factos que, segundo o direito substantivo aplicável, tenham influência sobre a existência ou conteúdo da relação controvertida”, mas sem indicar com precisão a que factos se reporta, ou de que forma tal afecta o elenco factual fixado e dado como provado - cf., artº. 132º do corpo alegacional ;
- ora, tal incerteza do objecto aparentemente impugnatório, decorre da circunstância de não constar, nem do corpo alegacional, nem das conclusões, qualquer indicação, por medianamente evidente que seja, dos concretos pontos de facto da sentença apelada que são objecto de impugnação, isto é, dos pontos factuais que a Recorrente pretende ver modificados, nem em que sentido pretenderá tal putativa modificação ;
- Ou seja, e concretizando, compulsado o teor do corpo alegacional, não figura qualquer especificação ou casuística indicação dos factos alegadamente objecto de impugnação, sendo totalmente omissa a sua alusão, por referência à factualidade provada, e sem se indicarem, logicamente (atenta aquela omissão), qual a decisão que deveria ser proferida relativamente a tal núcleo factual ;
- sendo por demais evidente uma total omissão da concretização ou indicação da decisão proferenda sobre as pretensas questões factuais impugnadas ;
- resultando, ainda, uma total omissão da indicação dos meios probatórios capazes de sustentarem ou imporem diferenciada decisão sobre os pontos factuais pretensamente objecto de impugnação, com excepção de uma aparente impugnação do facto provado 9º (sem sequer o indicar ou especificar), ao questionar a inexistência de prova documental das referenciadas encomendas, mas sem sequer indicar qual a decisão que deveria ser proferida sobre tal ponto ;
- decorrendo, assim, com nitidez, existir incumprimento do enunciado ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto recursório e das pretendidas consequências da pretensa ou putativa impugnação da matéria factual, não devendo este Tribunal substituir-se á Apelante na concretização ou definição do objecto recursório.
Pelo que, na constatação de tal omissão, e sendo certo que esta não permite o apelo a despacho de aperfeiçoamento [4], impõe-se, nos termos das alíneas a) e c), do nº. 1, do artº. 640º, do Cód. de Processo Civil, a total rejeição da apelação interposta, relativamente à impugnação da matéria de facto pretensamente apresentada pela Ré Recorrente”.
No dispositivo decisório desse mesmo Acórdão consignou-se, para além do mais, o seguinte: 1.–“determinar a ampliação da matéria factual apurada, no que concerne aos pontos factuais feitos constar nos artigos 8º a 30º da contestação, relacionados quer com o alegado conluio manipulatório existente entre a Autora, através do seu legal representante e o indicado S……..., então funcionário da Ré, do inserir dos contratos equacionados na petição inicial nesse procedimento e da afirmada desconformidade entre os valores apostos nos aludidos contratos e aqueles que correspondiam ao normal trato comercial da Ré ; 2.–consequentemente, determinar, nos termos do artº. 662º, nº. 2, alín. c) e 3, alín c), do Cód. de Processo Civil, a anulação da sentença recorrida/apelada, devendo o julgamento a efectuar cingir-se apenas à produção probatória citada, sem prejuízo “da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições” ; 3.–após, deverá ser prolatada nova sentença, na qual deverá figurar resposta à matéria factual omitida e proceder ao enquadramento jurídico que tiver por pertinente ou adequado”.
Ora, a determinada ampliação da matéria factual apuranda surge devidamente delimitada, decidindo-se, ainda, na sequência da anulação da sentença recorrida/apelada, que o julgamento a efectuar deveria cingir-se apenas àquela produção probatória, ressalvando-se, contudo, a necessidade de apreciação de outros pontos da matéria de facto, de forma a evitarem-se contradições.
Ou seja, foi efectuado o devido balizamento do objecto factual probatório - pontos factuais feitos constar nos artigos 8º a 30º da contestação, relacionados quer com o alegado conluio manipulatório existente entre a Autora, através do seu legal representante e o indicado S……..., então funcionário da Ré, do inserir dos contratos equacionados na petição inicial nesse procedimento e da afirmada desconformidade entre os valores apostos nos aludidos contratos e aqueles que correspondiam ao normal trato comercial da Ré -, do qual não constava a matéria de facto aposta nos pontos 9º a 11º provados, verificando-se, ainda, não ter existido necessidade de afectação da redacção destes no intuito de salvaguardar quaisquer putativas contradições.
Desta forma, tendo-se decidido no antecedente Acórdão, no sentido da total rejeição da apelação, no que concerne á impugnação da matéria de facto pretensamente apresentada, não poderia a Ré, no novo recurso interposto, e ora em apreciação, voltar a questionar a matéria de facto que não sofreu qualquer alteração, nem fazia parte do balizado objecto factual do julgamento a realizar.
Efectivamente, ocorreu, nesta parte, preclusão no conhecimento da impugnação apresentada, sendo que o facto daquela ter merecido juízo de total rejeição na antecedente decisão colegial, não reaviva ou ressuscita um qualquer direito da Ré Impugnante em vir agora questioná-la. Donde, neste segmento, por preclusão, urge concluir no sentido de ser legalmente inadmissível o conhecimento da impugnação factual apresentada.
Todavia, ainda que assim não se considerasse, sempre urgiria concluir pela insustentabilidade da modificação reclamada.
Vejamos porquê.
A Impugnante Ré sustenta tal inviabilidade probatória no depoimento de Paulo………, aludindo que este apenas se pronunciou acerca da margem de lucro da Ré, e não da Autora.
Ouvida a totalidade do depoimento deste, referenciou desconhecer qual o preço normal dos produtos em causa (Avamys e Kelo-Cote), que os preços praticados, determinantes das margens de lucro da Ré, dependem da forma de pagamento, do cliente em causa e das quantidades e, perante a insistência para que balizasse tais margens de lucro (após lhe ter sido referenciado o que dissera no antecedente julgamento), situou-as entre 5% e 50%, fazendo-o claramente relativamente à Ré, e não relativamente à Autora.
Inquirido, mencionou, ainda, ter-se apercebido, em determinada altura, que faziam a venda de alguns produtos a outros clientes a preços superiores aos que estavam a ser feitos à Autora, que o contacto com esta era feito pelo S……... e que tal diferença nos preços permitiria à Autora revender tais produtos com lucro a outros clientes, pois estava-se perante valores elevados.
Esclareceu, ainda, mediante interpelação, que na maioria das vezes o preço de venda à Autora era inferior ao preço de venda aos outros clientes, que desconhece se outros clientes compraram estes produtos a preços inferiores aos facturados e, inquirido acerca possibilidade de terem sido vendidos produtos inferiores ao preço de custo, referenciou ser tal possível, pois o sistema informático não bloqueava tal possibilidade relativamente ao preço de venda, pelo que era sempre possível vender a preço inferior ao preço de custo.
A presente testemunha foi funcionário da Ré entre 2013 e 2019, conhecendo a Autora por ser cliente da Ré e por ser actualmente sua cliente, pois desempenha funções de comercial na empresa Velvetmed. Enquanto funcionário da ora Ré, trabalhou juntamente com o S………, fazendo-o no sector das compras, enquanto o S……… desempenhava as funções de director de vendas, ou seja, negociava as condições de compra enquanto o S……... negociava as condições de venda.
No depoimento prestado denotou alguma hesitação nas respostas dadas, e mesmo algum receiono declarado, no sentido de não pretender ficar comprometido. Ainda assim, evidenciou global credibilidade no declarado, a merecer a devida ponderação.
Acerca da mesma matéria, a testemunha Ana……... referenciou ter tido conhecimento deste negócio e do teor da encomenda efectuada, com prévia emissão de factura pró-forma e pagamento, e que o mesmo produto nunca foi entregue.
Acrescentou que já tinha tal produto encomendado por vários clientes e não dispunha do mesmo para satisfazer tais encomendas, situando a margem de lucro daquele negócio entre os 15% e os 18%.
Esclareceu que como o dinheiro não foi devolvido, tiveram que recorrer a crédito bancário para ocorrer às dificuldades de tesouraria, indicando o montante mutuado e o valor dos juros e outros encargos assumidos, bem como a necessidade de deixar de pagar aos fornecedores a pronto pagamento, o que também inviabilizou a obtenção de melhores condições negociais.
Por fim, referenciou que as condições do negócio foram tratadas directamente pelo administrador Rui……... .
A presente testemunha desempenha as funções de directora financeira da Autora desde 2018, sendo que anteriormente, trabalhando noutra empresa, já prestava serviços em part-time à Autora.
No declarado, evidenciou aparente seriedade e isenção, inexistindo fundamento para colocar em causa a veracidade do relato efectuado.
Relativamente à presente matéria é, ainda, referenciado o depoimento de S……… .
Todavia, conforme melhor esclarecemos infra aquando do conhecimento da demais impugnação factual, o presente depoimento, por total ausência de credibilidade, não merece qualquer valoração.
Ora, com especial enfâse no depoimento supra exposto da testemunha Ana……… (e mesmo sem necessidade de alusão ao teor das declarações de parte do legal representante da Autora, feitas constar na sentença sob sindicância), sempre haveria que concluir pela sustentabilidade da prova considerada como provada nos pontos factuais em equação.
O que, aliás, sempre se configura conforme a normalidade das coisas, atenta a declarada rotatividade existente no negócio de tais produtos, sendo evidente, normal e baseado na experiência comum que o não fornecimento de tais produtos tivesse afectado a sua posterior comercialização, inviabilizando-a, e que a retenção do valor correspondente ao preço pago inviabilizasse a posterior utilização de tais montantes noutros negócios.
Donde, ainda que não se tivesse concluído pela preclusão no conhecimento da impugnação factual, no que à presente matéria factual concerne, sempre seria de concluir pelo indeferimento da pretensão que a mesma passasse a figurar como não provada.
O que determina, neste segmento, total falência da pretensão recursória.
- Da factualidade não provada constante dos artigos 8º a 30º da contestação e da pretensão que seja considerada provada
Entende a Ré Impugnante que a matéria factual mandada aditar na antecedente decisão colegial desta Relação, correspondente à alegada nos artigos 8º a 30º da contestação, deverá ser considerada provada, em virtude de conter “factualidade pertinente e também factualidade instrumental que serve para demonstrar essa mesma factualidade pertinente, que é a da existência de conluio manipulatório existente entre a testemunha S……... e o legal representante da A., Rui…...…”.
Acrescenta existir prova documental que, se devidamente apreciada, permitiria diferenciado julgamento da matéria de facto, designadamente:
“i)- a queixa crime que a Ré apresentou contra Rui……… e 83 S……... (e também contra a A.), junta sob doc. 1, ao requerimento probatório da Ré entrado nos autos em 03/12/2021(refª 11678618), e ii)- junto com o mesmo requerimento, sob os docs. 2, 3 e 4, informação sobre os prejuízos das vendas realizadas por S……… a diversos clientes e à A.; iii)- perícia contabilística e financeira, junta pelo DIAP Regional de Coimbra, em 16/03/2022 (Refª 12089577), e oficiosamente determinados pelo Juiz de Instrução estão juntas iv)- as decisões proferidas no âmbito do arresto preventivo[Cfr. Ofício do Juízo de Instrução Criminal de Viseu - Juiz 2, de 27/03/2019, junto a estes autos na mesma data – refª citius 8157738 e ofício de 15/07/2019, junto a estes autos em 16/07/2022 – refª citius 8584722]”.
Para além desta prova, a Ré Impugnante referencia igualmente vários depoimentos ou declarações prestadas, pelo que, prima facie, apreciemos acerca da valoração destes, em conjugação com o já supra conhecido e referenciado.
A testemunha S………, identificou-se como cliente e fornecedor da Autora por via da empresa de que é administrador, desde há 4 anos, referenciando conhecer a empresa Autora desde há 6 anos.
Mencionou, ainda, ter trabalhado na Ré durante aproximadamente 16 anos, até 2018, e que existe litígio com a Ré, do qual o presente processo faz parte.
Descreveu a forma como se procedeu ao negócio referenciado nos autos, aludindo a que na quinta-feira santa foi interpelado pelo administrador da Ré Joaquim……... quanto à necessidade de vender 30.000 caixas, naquele mesmo dia, em que o pagamento também tinha que ser efectuado, do produto Avamys. Diz ter respondido que era difícil, mas que efectuou várias diligências junto de vários clientes (que se afirmavam receosos quanto à eventual saída do genérico), tendo conseguido a venda junto de vários, mas que foi interpelado no sentido de ser a feita a venda, na sua totalidade, a apenas um cliente.
Afirma ter, então, contactado a Autora, que a aceitou com um desconto no preço, aduzindo que o mesmo administrador aceitou tal venda pelo proposto preço de 5,00 € a caixa, e que o comprovativo de pagamento veio no mesmo dia.
Inquirido, respondeu inexistir qualquer tabela de preços, pois a intenção era vender ao melhor preço possível, que anteriormente nunca tinha sido vendida uma tão grande quantidade daquele produto a um só cliente, que o Avamys tinha por preço de custo aproximadamente 2,00 € a caixa e que foram vendidas menores quantidades de tal produto a preços inferiores e superiores.
Relativamente ao produto Kelo-Cote, mencionou que a venda foi efectuada na segunda-feira de Páscoa seguinte, tendo o administrador da Ré Luís……… autorizado o preço de 12,50 € desde que o pagamento fosse antecipado e que o custo de tal produto, para a Ré, situava-se nos 8,00 €.
Negou que qualquer dos produtos tivesse sido vendido abaixo do preço de custo, o que não era possível acontecer, pois a Ré facturava anualmente 40 milhões de euros, sendo que os administradores eram presentes na gestão, negando que alguma vez lhe tivesse sido colocada a questão dos preços efectuados à Autora.
Confrontado com a disparidade das datas indicadas com as apostas nas facturas pró-forma que alegadamente sustentaram os negócios efectuados, pois estas surgem com datas antecedentes às em que alegadamente se desenvolveram os negócios, deu uma explicação nada convincente, aludindo a uma forma pessoal de trabalhar, em que emitiria facturas pró-forma antes mesmo do início de qualquer negociação. E, confrontado com a distonia entre o declarado e as datas das transferências, também não foi capaz de dar uma explicação consistente.
Confrontado, ainda, com as várias transferências de dinheiro efectuadas pelo Rui………, legal representante da Autora, para as filhas do depoente, de acordo com o relatório pericial junto aos autos, começou por afirmar que pessoalmente nada recebeu, não se lembrar se o filho recebeu, mas confirmando posteriormente o recebimento de tais quantias pelos três filhos, alegando serem doações efectuadas pelo Rui………, mas que existiam dívidas antigas, desconhecendo todavia quanto o Rui……… lhe devia, e que presentemente nada lhe deve.
O presente depoimento revelou-se totalmente ausente de convencimento, revelador de falta de seriedade e isenção, sendo imerecedor de qualquer valoração ou relevância, pois claramente assente em artifícios, respostas nada esclarecedoras e desculpabilizantes e sem conseguir minimamente justificar o declarado.
A testemunha Paulo………, para além do declarado, referenciou, ainda, que quando a factura pró-forma é emitida já os termos do negócio estão delineados e as condições acordadas, não sendo possível alterar a data da sua emissão.
Mencionou que era o S…….. que efectuava os contactos com os clientes, nomeadamente com a Autora e que a administração, a determinada altura, pediu-lhe que efectuasse um documento comparativo entre os preços efectuados à Autora e aos outros clientes, apurando-se as diferenças, referenciando desconhecer porque é que existiriam tais diferenças, que confirmou.
Referiu ter conhecido o legal representante da Autora numa festa de aniversário do S……..., na casa deste, que aqueles eram amigos e que chegaram a ser vizinhos e que presentemente, sendo a Autora uma das clientes da empresa onde trabalha (Velvetmed), é o S……… que figura nas negociações com a Autora, utilizando o e-mail desta, o que sucede, pelo menos, desde o final de 2021, desconhecendo desde quando é que o mesmo trabalhará para a Autora.
Confrontado expressamente, até por que a testemunha S……... declarado que trabalhavam em open space, e que os colegas tinham ouvido a conversa, referenciou não se recordar de qualquer conversa do administrador Joaquim……… com o S……… sobre a necessidade de vender aqueles produtos nos termos por aquele declarado, referenciando que os mesmos tinham rotação comercial.
Por fim, a testemunha Fr………, assistente administrativo da Ré, desde há 19 anos, referenciou conhecer a Autora por ser cliente da Ré, e ter trabalhado com o S……… na parte comercial, sendo como que assistente administrativo do mesmo.
Referenciou desconhecer qualquer normalidade ou anormalidade nos preços praticados com a Autora, pois desconhece que preços eram praticados, sendo que era o S……... quem contactava os clientes e fazia “as margens ou preços dele”, o que igualmente sucedia com a Autora.
Relativamente à emissão das facturas pró-forma, esclareceu que estas eram emitidas já com as condições anteriormente acordadas, ou seja, tudo iniciava-se com as negociações e uma cotação, sendo depois emitida a factura pró-forma e, depois e eventualmente, com a concretização da venda.
Mencionou nunca se ter pessoalmente apercebido de qualquer relação especial do S……… com a Autora, sendo que presentemente esta é ainda cliente da Ré, relação comercial que vem decorrendo normalmente.
Inquirido expressamente, mencionou não se recordar do administrador Joaquim……… ter querido vender o produto Avamys a determinado preço e num determinado dia, referenciando que os produtos vendidos na altura à Autora tinham saída, não se acumulando em stock.
No declarado foi, aparentemente, totalmente isento e sério e, como tal, merecedor da devida ponderação.
Ora, tendo por referência os vários artigos da contestação, afiremos acerca da pertinência do requerido.
- Dos artigos 8º e 9º
Referencia-se que “tanto a queixa crime como as decisões do procedimento cautelar de arresto preventivo atestam, sem margem para dúvidas, que foi apresentada uma queixa-crime pela Ré, resultando do seu teor, e também do teor das próprias decisões de arresto apenso ao inquérito, o coluio existente entre Rui……... e S………, que nesse inquérito figuram como arguidos, conforme alegado em 8º e 9.º da contestação”.
Pelo que, deve-se dar como provado que: “8º- Em virtude da prática de factos suscetíveis de integrar ilícitos penais, por conluio entre a A., o seu Gerente, Rui…….. e o ex-funcionário da Ré S………, foi deduzida em 84 04.04.2018 participação criminal que deu origem aos autos principais de inquérito com o n.º 968/18.0T9VIS, que corre termos no DIAP de Coimbra; 9º- No âmbito do mencionado Inquérito Criminal, encontram-se constituídos arguidos, entre outros, a A., o seu Gerente, Rui……... e o ex-funcionário da Ré, S………”.
Decidindo:
Do teor da prova documental referenciada, resulta que pelo menos parte da matéria factual referenciada encontra sustento probatório.
Donde, sem delongas, decide-se aditar à matéria factual provada, dois novos pontos, que figurarão como 12º e 13º, com a seguinte redacção:
“12º-Imputando a prática de factos suscetíveis de integrar ilícitos penais, por conluio entre a Autora, o seu Gerente Rui……… e o ex-funcionário da Ré S………, foi deduzida em 04.04.2018 participação criminal que deu origem aos autos principais de inquérito com o n.º 968/18.0T9VIS, que corre termos no DIAP de Coimbra” ; 13º-No âmbito de tal Inquérito Criminal, encontram-se constituídos arguidos, entre outros, a Autora, o seu Gerente Rui……… e o ex-funcionário da Ré, S……...”.
- Do artigo 10º
Acrescenta a Ré impugnante que tais documentos - queixa-crime e decisões de arresto - demonstram que “S……… foi trabalhador da Ré, o que também foi declarado pelo próprio S………, quando aos costumes em audiência de julgamento de 10/05/2022 referiu ter sido trabalhador na FHC por volta de 16 anos, e que saiu em 2018[Ficheiro: 20220510150316_5838017_2871207, entre minutos 00:02:05 e 00:02:38.], o que também na mesma diligência foi referido pelas testemunhas Paulo……...[Ficheiro: 20220510155559_5838017_2871207, entre minutos 00:03:04 e 00:04:49]e Fr……...[Ficheiro: 20220510163851_5838017_2871207,entre minutos 00:02:46 e 00:03:50], que trabalharam com S…….. na Ré”.
Donde, consequentemente, deve ser dado como provado que: “10º- S……... foi trabalhador da ora Ré até Agosto de 2018, exercendo as funções de Diretor Comercial”.
Decidindo:
Efectivamente, resulta do teor da aludida prova, o que é igualmente incontestado, ter sido o referenciado S……... trabalhador da Ré, exercendo funções na área comercial.
Donde, decide-se pelo aditamento de um novo ponto factual provado, que figurará como 14º, com o seguinte teor:
“14º-S……… foi trabalhador da ora Ré até data não concretamente apurada de meados de Agosto de 2018, exercendo funções na área comercial, como director de vendas”.
- Do artigo 11º
Referencia a Ré que “em sede de declarações de parte, Rui……..., apresentou-se como sócio e gerente da A.; da procuração forense junta aos autos pela Ré por requerimento com a REFª: 29392971 de 11/06/2018, consta também que o mesmo é gerente e Sócio único da A., o que também resulta confessado do artigo 52.º da PI, pelo que sempre deveria ser dado como provado que: 11º-Rui……… é o sócio único e gerente da sociedade O………, Lda., A. nos presentes autos”.
Decidindo:
Atenta a prova enunciada, parece efectivamente poder concluir-se no sentido alegado, donde se determina o aditamento de um novo ponto factual provado, que figurará como 15º,com o seguinte teor:
“15º-Rui……… é o sócio único e gerente da sociedade O………, Lda., Autora nos presentes autos”.
- Do artigo 12º
Enuncia a Impugnante que as funções desempenhadas por S……..., “enquanto funcionário da Ré, resultam do quanto declaram as testemunhas Paulo………[Ficheiro: 20220510155559_5838017_2871207, entre minutos 00:03:04 e 00:04:49]e Fr……...[Ficheiro: 20220510163851_5838017_2871207, entre minutos 00:02:46 e 00:03:50], que na audiência de julgamento de 10/05/2022, declararam que trabalharam com S……... na Ré. Também dos emails e documentos que os acompanham, juntos sob doc. 1 e 2 à PI, têm como interlocutor, e emitente das pro-formas, S……..., pelo que, deve ser dado como provado, em remédio do decidido pelo Tribunal a quo, que:12º No exercício das suas funções e no âmbito da relação laboral existente com a ora Ré, competia ao arguido S……... contactar com clientes e fornecedores, negociar condições de compra e de venda dos produtos intermediados pela ora Ré, bem como elaborar e apresentar propostas em concursos públicos internacionais”.
Apreciando:
De acordo com o teor dos depoimentos prestados, e já supra expostos, em articulação com a prova documental enunciada, é efectivamente possível extrair qual a natureza e âmbito das funções profissionais desempenhadas pelo citado S……... na Ré. Desconhece-se, todavia, se nessas funções estava incluída a elaboração e apresentação de propostas em concursos públicos internacionais, não fazendo, ainda, sentido rotulá-lo nos presentes autos cíveis como arguido.
Por outro lado, conforme declarado pela testemunha Paulo ………, o mesmo S……… exercia funções como director de vendas, enquanto que a área das compras estava sob a sua tutela.
Pelo que, em conformidade, determina-se o aditamento de um novo ponto factual, que figurará sob o nº. 16º, com a seguinte redacção:
“16º-No exercício das suas funções e no âmbito da relação laboral existente com a ora Ré, competia a S……… contactar com clientes e fornecedores e negociar condições de venda dos produtos intermediados pela ora Ré”.
Devendo, ainda, passar a figurar na matéria factual não provada, um ponto a identificar como alínea a), com o seguinte teor:
“a)-que para além do descrito em 16º, competisse igualmente ao S……… negociar condições de compra de tais produtos, bem como elaborar e apresentar propostas em concursos públicos internacionais”.
- Dos artigos 13º a 21º
Reivindica a Recorrente a prova da matéria factual alegada nos artigos 13º a 21º da contestação, em virtude de resultar “demonstrada das decisões do processo de arresto preventivo (apenso D do inquérito n.º 968/18.0T9VIS) das quais resultou provado que:
«7.-Em data não concretamente apurada, mas a partir do mês de Maio de 2017, o arguido S……..., por solicitação do também arguido Rui……... e mediante promessa de vantagem patrimonial, nomeadamente comissões nas vendas e, eventualmente, promessa de contrato de trabalho no futuro, fazendo uso dos contactos e conhecimentos que obteve em virtude das funções exercidas enquanto trabalhador da ora Requerente, passou a encaminhar clientes e pedidos de fornecimento dirigidos à ora Requerente, para que fossem atendidos e fornecidos pela denunciada O……... . 8.-O arguido S……... recebia dos clientes da ora Requerente pedidos de cotação para fornecimento de diversos medicamentos e produtos médicos e farmacêuticos e, ao invés de dar seguimento aos pedidos de cotação e fornecimento pela ora Requerente, de acordo com o seu dever funcional, encaminhava os pedidos de cotação para a arguida O………, através de contacto com o arguido Rui……..., designadamente através da rede social Whatsapp e de uma funcionária da O……... . 9.-Sendo conhecedor dos stocks existentes na F…......, ora Requerente, dos medicamentos solicitados e das respectivas condições comerciais praticadas para cada cliente, nomeadamente preço e prazo de pagamento, o arguido S…….. informava a funcionária da O……..., ou o arguido Rui……..., sobre as condições que deveria fazer constar nas propostas a elaborar por esta empresa. 10.-De seguida, os pedidos dos clientes eram fornecidos através da arguida O………, com as mesmas condições comerciais que teria se o fornecimento fosse efectuado através da F……... 11.-Após a aceitação da encomenda pelo cliente, o arguido S……... o instruía a O……... para proceder à compra dos medicamentos na F……… ou directamente aos fornecedores e posterior facturação e envio ao cliente. 12.-Era o arguido S……... que, no âmbito das suas funções de Director Comercial, estabelecia as condições comerciais praticadas pela F……... para a O……… . 13.-Desta forma, o arguido S……… garantia a concessão de condições comerciais mais vantajosas para a O……..., para que esta fizesse sua a margem comercial resultante do diferencial entre as condições negociadas para a O……... e as condições comerciais que deveriam ser praticadas com os clientes.»”.
Acrescenta que a “testemunha Paulo……... que na sessão de 10/05/2022[Ficheiro: 20220510155559_5838017_2871207, entre minutos 00:13:16 e 00:14:40 e entre 00:23:07 e 00:23:55], declarou ter-se apercebido, a partir das necessidades de clientes que eram colocadas no sistema informático da Ré, que existia uma ou mais entidades que pagariam mais por aquele produto do que a O……... estava a pagar e, que a diferença de preços era grande, na grande maioria das situações”.
Entende, assim, que aquelas decisões proferidas no apenso D do inquérito 968/18.0T9VIS, bem como o teor das declarações da testemunha Paulo………, “permitem, ao invés do decidido pelo Tribunal quo, julgar provado que: 13º-Em data não concretamente apurada, mas a partir do mês de Maio de 2017, o S………, por solicitação de Rui……… e mediante promessa de vantagem patrimonial, nomeadamente, comissões nas vendas e, eventualmente, promessa de contrato de trabalho no futuro, fazendo uso dos contactos e conhecimentos que obteve em virtude das funções exercidas enquanto trabalhador da ora Ré e em violação dos seus deveres funcionais e dos especiais deveres de confidencialidade e não concorrência a que se encontrava adstrito, passou a encaminhar clientes e pedidos de fornecimento dirigidos à ora Ré, para que fossem atendidos e fornecidos pela O………, A. nos presentes autos. 14º-S……... recebia pedidos de cotação para fornecimento de diversos medicamentos e produtos médicos e farmacêuticos dos clientes da ora Ré. 15º-S……..., no entanto, ao invés de dar seguimento aos pedidos de cotação e fornecimento pela ora Ré, de acordo com o seu dever funcional, encaminhava-os pedidos de cotação para a A. O……..., através de contacto com o arguido Rui……… . 16º-Sendo conhecedor dos stocks da ora Ré dos medicamentos solicitados e das respetivas condições comerciais praticadas para cada cliente, nomeadamente preço e prazo de pagamento, o arguido S……….. informava a A. O………, ou o arguido Rui……..., sobre as condições que deveria fazer constar nas propostas a elaborar por esta empresa. 17º-De seguida, os pedidos dos clientes eram fornecidos através da A. O………, com as mesmas condições comerciais que teria se o fornecimento fosse efetuado através da R. 18º-Após a aceitação da encomenda pelo cliente, o denunciado S……... instruía a A., para proceder à compra dos medicamentos na R. ou diretamente aos fornecedores e posterior faturação e envio ao cliente. 19º-Era S……... que, no âmbito das suas funções, estabelecia as condições comerciais praticadas pela ora R. para a A. 20º-Desta forma, S……… garantia a concessão de condições comerciais mais vantajosas para a A. de forma a que esta fizesse sua a margem comercial resultante do diferencial entre as condições negociadas para a A. e as condições comerciais que deveriam ser praticadas com os clientes. 21º-Em face dos factos apurados e que constam do mencionado processo de inquérito, foi possível constatar que, desde Maio de 2017, data de constituição da sociedade A., as vendas efetuadas pelo arguido S……... à A. foram sempre efetuadas com margem negativa, isto é, com preço de venda inferior ao preço de custo da ora Ré, ou com margens inferiores às normalmente praticadas com outros clientes do mercado”.
Em sede contra-alegacional, referencia a Recorrida Autora que o conluio manipulatório invocado pela Recorrente Ré trata-se de um absurdo, “uma vez que se assim fosse, então a Recorrente deveria ter recusado a entrega e devolvido os montantes recebidos ao invés de retê-los ao limite do possível – após a ação judicial, recursos até às instâncias superiores, tentando até através de arrestos noutros processos bloquear a transferência dos valores devidos à Recorrida”.
Assim, entende que inexistiu “qualquer conluio manipulatório e de forma clara e inequívoca a testemunha Fr……... afirmou que os preços praticados eram normais, não tendo identificado qualquer desvio relativamente àquilo que é a normalidade dos negócios, acrescentando ainda que a ora Recorrente continua a fornecer produtos à Recorrida e mantendo assim as relações comerciais”.
Acrescenta que “pese embora a prova produzida ser clara quanto à inexistência de qualquer conluio manipulatório, reitera-se que o Acórdão do STJ que colocou termo à questão da condenação à devolução do montante de €337.596,00 pago para aquisição dos produtos e considerou ilegal a alegada ação direta que a Recorrente invocava para reter os montantes, naturalmente que compete agora a esta ser responsabilizada pelas consequências dos seus atos”.
Pelo que, independentemente das “questões suscitadas no processo n.º 968/18.0T9VIS no DIAP – 3ª Secção de Coimbra, a decisão cível sobre a retenção ilegal de montantes não depende da resolução do conflito penal que corre naquele processo – pois não se verificam os pressupostos de ação direta – pois o que seria de um sistema jurídico-legal em que se admitiria que para compensar alegados danos que se encontram sob investigação penal, um sujeito (neste caso a aqui Recorrente) por sua iniciativa pudesse ficcionar uma encomenda para de forma dolosa e abusiva locupletar-se à custa da ora Recorrida, sob justificação de um pretenso dano ou ato criminal que a primeira entenda ter sido praticado”.
Entende, deste modo, que todas as “referências ao processo n.º 968/18.0T9VIS são despiciendas e destituídas de fundamento, sobretudo, porque todos os arrestos requeridos pela Recorrente no âmbito desse processo foram improcedentes – foram todos objeto de revogação pela primeira instância e pelos Tribunais superiores por não se verificarem os fundamentos para nenhuma ação direta sendo sancionável a retenção unilateral e ilegal dos montantes pela Ré aqui Recorrente – conforme página 27 do Acórdão STJ de 08 de Abril de 2021 proferido nos presentes autos (Apenso A), que se transcreve:“mostra-se provado que nos autos de procedimento cautelar de arresto nº 968/18.0T9VIS-D, em que é requerente F…......, SA e é requerida O………, Lda, foi proferida decisão, em 24.6.2019, que julgou procedente a oposição ao arresto deduzida pela O………., revogando-se a providência cautelar de arresto anteriormente decretada” (evidenciados nossos)”.
Na sentença sob sindicância, relativamente ao presente segmento factual, consignou-se o seguinte:
“Quanto à matéria de facto alegada na contestação, nada se provou quanto ao alegado conluio entre o ex-funcionário da ré e a autora. S……… negou que existisse tal conluio e as testemunhas Paulo……… – que foi funcionário da ré desde 2013 a 2019 – e Fr……… – que é funcionário da ré há 19 anos – nada sabiam quanto a tal conluio. Aliás, o primeiro disse que os preços praticados pela ré em relação à autora sempre lhe parecerem normais, nomeadamente aqueles que foram praticados na venda aqui em causa. Não havia uma tabela de vendas dos produtos da ré, sendo que os preços dependiam das condições de pagamento e dos prazos de validade dos produtos. Também Fr……... disse que achou normais os preços praticados em relação à autora. A tudo isto acresce que a ré continua a fornecer produtos à autora.
E quanto aos documentos relativos às transações entre a autora e a ré constantes de fls. 483 e 484, desde logo se verifica que, apesar de os preços praticados em relação à autora serem, em média, mais baixos, verifica-se que nenhum outro cliente comprava tanta quantia de produto como a autora. Veja-se, por exemplo, que em relação ao kelo-cote gel, entre 19.05.2017 e 07.02.2018 (cfr. fls. 483 verso e 484), a autora comprou à ré produto no valor total de 1.364.985€, valor muito superior a todo o produto que a ré havia vendido desde janeiro de 2014 a todos os seus clientes. É óbvio que a quantidade do produto comprado é também relevante para o preço unitário, pois quanto mais se vende, a rentabilidade global aumenta, mesmo quando o preço unitário diminui, pois o custo dos fatores de produção mantém-se. É um princípio básico da ciência económica e que se designa por “economia de escala”.
Há ainda que acrescentar que a forma como o negócio aqui em causa aconteceu – com a exigência efetuada pelos administradores da autora do pagamento antecipado do montante total da encomenda, que era de valor muito elevado – indicia que, conforme referido pela testemunha S………, se tratou de uma espécie de cilada para a ré se apropriar do montante em causa da forma como o fez e resulta bem expresso desta ação. Significa isso que, neste concreto negócio, nunca se poderia concluir que a ré desconhecia as condições de venda dos produtos à autora, sendo que - conforme resulta bem expresso do douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido nos autos e que apreciou a decisão que condenou a ré a pagar o montante de capital peticionado – as questões relativas às relações em geral da ré com a autora e que fundamentam o processo crime em nada interessam a este processo, sendo apenas relevante o concreto negócio que originou este processo”.
Apreciando:
Em primeiro lugar, parece evidente e claro que o teor das declarações prestadas pela citada testemunha Paulo……… não sustentam a factualidade reclamada, nomeadamente no que concerne ao alegado conluio existente entre o S……… e o legal representante da Autora.
Com efeito, de tais declarações apenas se depreende a constatação de que as vendas efectuadas pela Ré á Autora seriam, na maior parte das vezes, inferior ao preço de venda efectuado aos outros clientes, o que, em teoria, permitiria à ora Autora a sua posterior revenda a outros interessados com lucro.
Todavia, também referenciou, ressalvando, que as margens de lucro da Ré eram variáveis, dependendo sobretudo da forma de pagamento, das quantidades vendidas e do cliente em equação, desconhecendo, inclusive, se outros clientes haviam logrado adquirir idênticos produtos por preço inferior ao facturado à Autora.
Assim, sustentar a prova de tal factualidade no teor deste depoimento é totalmente irrazoável e infundado.
Por outro lado, a pretendida sustentação da mesma factualidade no teor das decisões proferidas nos autos de arresto preventivo (apenso D do Inquérito nº. 968/18.0T9VIS) afigura-se totalmente inidónea e insustentável.
Com efeito, não só o teor da matéria factual ali fixada não tem os efeitos ora pretendidos, como não se pode olvidar, ainda, que tais decisões cautelares acabaram todas por ser alvo de juízo revogatório, quer no âmbito da oposição deduzida na 1ª instância, quer no posterior juízo plasmado nas decisões dos tribunais superiores.
Acresce, ainda, inexistir qualquer juízo de autoridade de caso julgado material que se impusesse nos presentes autos, relativamente à matéria factual decidida naqueles autos cautelares (desde logo, atento o juízo indiciário ali considerado bastante), nem é situação de consideração da relevância de decisão penal final no âmbito do processo civil, nos quadros dos artigos 623º e 624º, ambos do Cód. de Processo Civil.
Pelo exposto, decide-se pela manutenção de tal matéria factual como não provada.
- Do artigo 22º
Referencia a Ré que com o requerimento probatório a que deu entrada nos “autos em 03/12/2021 (refª 11678618), sob documento n.º 2, não impugnado pela parte contrária, estão descritas as vendas de produtos realizada pela testemunha S……… à O………, permitindo a leitura de tal documento concluir “que em vendas efectivas de €3.134. 512,28, realizadas por S……… à O………, a Ré perdeu relativamente ao lucro normal a receber a quantia de € 865.906,19”.
Acrescenta que a “testemunha Paulo……… na sessão de 10/05/2022 [Ficheiro: 20220510155559_5838017_2871207, entre minutos 00:19:59 e 00:21:07], referiu ter realizado um documento com idêntica função, embora não tenha conseguido, face ao tempo já decorrido, precisar o que dele constasse, pode, ainda assim, indicar a metodologia seguida”.
Entende, assim, resultar de tal documento e depoimento um prejuízo “infligido por S……… e Rui……… à Ré, em pelo menos € 855.000, correspondente ao lucro da A.; por conseguinte, deveria ser dado como provado que:22º Na análise efetuada ao volume total de vendas no período decorrido desde a data de início da atividade da A., foi possível constatar que os arguidos S………, Rui……... e a A., em conluio entre si e com o intuito de fazerem sua a margem apurada para entre si a repartirem, pelos métodos supra descritos, infligiram à ora requerente prejuízos que se calculam em, pelo menos, € 855.000,00 (oitocentos e cinquenta e cinco mil euros), correspondentes à diferença entre os preços praticados para esta sociedade e os preços a que cada um dos produtos era anteriormente vendido aos clientes ou colocado no mercado”.
Apreciando:
O que é possível constatar como resultante da aludida prova documental é que, de acordo com um alegado levantamento efectuado pela ora Ré, nas vendas efectuadas à Autora, em período que não está concretamente balizado, foi apurada uma pretensa diferença de 865.906,19 € (e não de 855.000,00 €) entre uma afirmada margem normal de lucro da Ré e o valor obtido com as transacções com a Autora.
Não decorre do mesmo o alegado conluio, que tivessem existido concretos prejuízos por vendas inferiores ao custo dos produtos alienados, resultando ainda, dos documentos juntos a fls. 483 e 484, aparentemente acompanhantes daquele, que tais vendas efectuadas abaixo da normal margem de lucro da Ré não foram apenas realizadas à ora Autora, mas igualmente a outros clientes, ainda que em menor dimensão.
Não se desconhece nem se menospreza o teor da perícia contabilística e financeira efectuada, no âmbito do processo crime, aos denunciados S………, Rui……… e ora Autora, junta aos autos em 09/03/2022, cujo relatório consta de fls. 558 a 570, tendo por desiderato a verificação da “relação/conformidade entre os valores auferidos/declarados por alguns dos suspeitos”.
Todavia, apesar deste elemento probatório, e das transferências bancárias nitidamente suspeitas aí identificadas, o que se nos afigura é que a articulação dessa prova com a demais produzida nos presentes autos não permite concluir pela situação de conluio nos termos reivindicados.
Acresce que naqueles documentos de fls. 483 e 484, reportados expressamente à venda dos produtos Avamys e Kelo-Cote, não figuram as vendas a que se reportam os presentes autos, sendo certo que, conforme consta da determinada ampliação da matéria de facto, urgia apurar acerca da inserção destes concretos contratos naquele conluio manipulatório. Inserção que, reconhece-se, sempre se configuraria como dificultada, pois, tal como aludido na fundamentação aduzida na sentença recorrida, a forma como o negócio em causa aconteceu indicia ter-se tratado duma “espécie de cilada para a ré se apropriar do montante em causa”, convicta que estava em ser titular de um alegado crédito perante a ora Autora, pelo que, “neste concreto negócio, nunca se poderia concluir que a ré desconhecia as condições de venda dos produtos à autora”.
Donde, igualmente se decide pelo não aditamento do presente ponto factual á matéria factual provada, mantendo-se como não provado.
- Do artigo 23º
Defendendo a sua consideração como provado, referencia a Ré que o artigo 23º da contestação “é uma decorrência e encerra uma conclusão em relação ao quanto anteriormente se alegara”, aduzindo que a “repartição dos lucros da actividade ilícita entre Rui......... e S......... resulta bem demonstrada da perícia contabilística e financeira realizada no âmbito do inquérito 968/18.0T9VIS[- Cfr. ofício do DIAP Regional de Coimbra, de 16/03/2022 (Refª 12089577), a fls.], onde se concluiu, além do mais que: (...) 4.–Foram identificadas duas transferências nos montantes de 18.000€ (2/10/2017) e 54.000€ (15/12/2017), efetuadas da conta da O……... na CGD nº 012..........30 para a conta de Rui……... com o nº 05........66 domiciliada no Montepio Geral. 5.–Nos dias que se seguiram a cada uma dessas transferências, foram transferidos 50% desses mesmos montantes (9.000€+27.000€) da conta de Rui......... para contas dos filhos de S......... em que, na ficha de abertura de conta, ele consta como autorizado. (…) 9.–Foi ainda identificada uma transferência de Rui …….. no montante de 626,57€ efetuada a 17/03/2017 da conta da CGD nº 0007........000 para a conta do NB de S......... nº 0008......28”.
Argumenta não ser “coincidência que os valores retirados das contas da A. tenham passado para a conta do seu sócio único e gerente, que por sua vez, divide a quantia em partes iguais, transferindo 50% para as contas bancárias dos filhos da testemunha S……..., contas bancárias que o mesmo estava autorizado a movimentar; S……..., confrontado na audiência de julgamento de 10/05/2022[Ficheiro: 0220510150316_5838017_2871207 entre minutos 00:27:37 e 00:30:14]com o resultado de tal relatório, apresentou uma justificação inverosímil a vários níveis, porque ora referiu que era o pagamento de dívidas antigas de Rui……… para consigo, mas não conseguindo explicar porque foram realizadas transferências para conta dos seus filhos, logo referiu que eram doações; questionado sobre quanto lhe devia Rui………, disse não fazer ideia”.
Pelo que deveria ser dado como provado o seguinte:
“23º-Montante do qual se apropriaram, através da sociedade O………, ora A., por aqueles constituída visando os fins ilícitos descritos”.
Apreciando:
Para além da natureza confessadamente conclusiva do ponto em equação, a argumentação conducente à não prova dos antecedentes pontos, conduz, necessariamente, a idêntica não prova do parcial conteúdo factual ora em equação.
Já se aludiu ao teor do relatório pericial citado, elaborado em sede de processo criminal, bem como à total ausência de credibilidade do depoimento da testemunha S……... .
Todavia, concluir, a partir de tal enunciado probatório, que ocorreu a aludida apropriação do indicado montante é salto de raciocínio que é impossível sustentar, não sendo assim possível concluir que tenha existido apropriação do indicado montante, bem como que a sociedade Autora tenha sido constituída com a finalidade da prática dos ilícitos imputados.
Donde, improcede a requerida transposição de tal factualidade para a elencagem provada.
- Dos artigos 24º a 28º
Referencia a Ré que a factualidade vertida nestes artigos resulta demonstrada no enquadramento dos artigos 8º a 22º da contestação, no que concerne á concreta venda dos produtos Avamys e Kelo-Cote, pelo que deve ser considerada provada.
Explicita que com o requerimento probatório junto aos autos em 03/12/2021, “foram juntos sob documentos n.º 3 e n.º 4, não impugnados pela parte contrária, documentos referentes aos valores de venda dos produtos AVAMYS e KELO- COTE GEL, resultando dos mesmos uma venda dos produtos abaixo do valor de mercado pelos quais a Ré normalmente os vendia”.
Acrescenta que o “Tribunal a quo, na motivação, refere-se a estes documentos (juntos a fls. 483 verso e 484) assumindo como justificativo de os preços praticados em relação à A. serem, nas palavras do próprio Tribunal, “em média mais baixos”, com o facto desta comprar em maior quantidade”.
Todavia, aduz, tal “compra em maior quantidade só existe na esteira do alegado nos artigos 16 a 20 da contestação, em virtude da substituição da Ré pela O……… no fornecimento dos produtos, uma vez que S………, mancomunado com Rui………, desviava os pedidos realizados à Ré para a A. garantindo-lhe a concessão, pela Ré, de condições comerciais mais vantajosas para que esta fizesse sua a margem comercial resultante do diferencial entre as condições aplicadas à A. e as condições comerciais que deveriam ser praticadas com os clientes da Ré”.
Assim, relativamente ao produto Avamys, resulta do documento nº. 3 ter ocorrido “uma redução substancial do preço de venda a partir do surgimento da O……… como cliente”, resultando, ainda, do mesmo documento que no ”mês de Março de 2018 foram feitas vendas do mesmo produto ao preço de € 6,10 e € 6,25, neste caso, para um cliente que comprou 20.000 caixas desse produto, o preço foi de € 6,25, ou seja, em momento algum, foi praticado o preço de € 5 indicada na proforma FP 2018/9205, de 20-03-2018”.
Por outro lado, o negócio da venda de tal produto, titulado pela referida factura pró-forma, foi indubitavelmente realizada pelo S………, não sendo crível a versão deste em atribuir à administração da Ré a responsabilidade pelo preço a que foi vendido tal produto, num aludido ambiente de pressão que nunca ocorreu.
Assim, é “difícil de acreditar o “quadro pintado” por S……... sobre a urgência e a pressão em que foi realizado o negócio da venda dos AVAMYS, porque a pro-forma, junta aos autos pela própria A. com a PI sob doc 1., está datada de20de Março de 2018, o e-mail pelo qual ela terá sido enviada pela A. data de 28 de Março, o comprovativo de transferência bancária para pagamento da pro-forma data de28de Março, com agendamento para 03 de Abril, uma pro-forma é emitida quando o negócio já havia sido acordado; 20 de Março de 2018, foi uma terça-feira, igualmente se diga que28 de Março de 2018 foi uma quarta-feira e não quinta-feira santa”.
Relativamente ao produto Kelo-Cote, resulta do documento nº. 4 junto com o mesmo requerimento que “desde que a A. passou a comprar o produto, em substituição da Upfront Pharma Lda, o preço pelo qual o produto passou a ser vendido, e unicamente à O………, baixou significativamente, de € 12 (que ainda assim com desvio à margem normal de venda) para € 10, passando para € 9,82 e posteriormente € 10,25”.
Assim, considera que aquele preço fora fixado “por forma a que a O……… se substituísse à Ré no fornecimento daqueles que anteriormente eram os seus clientes e que na sua grande maioria compravam o produto a € 17, o que foi desenvolvido no âmbito do plano delineado entre S……… e Rui……..., conforme descrito nos artigos 13º a 23º da contestação, e no encadeamento da factualidade descrita nestes artigos, da qual resulta o conluio manipulatório estabelecido entre S……… e Rui……... e os documentos juntos com o requerimento da Ré de 03/12/2021 (refª 11678618), não impugnados pela A., permitem ter uma real dimensão do prejuízo”.
Assim, deve ser dado como provado que:
“24º-Decorre da factualidade descrita nos presentes autos que também quanto aos produtos constantes das faturas FP2018/9205 e FP2018/9192, era intenção da A. e dos arguidos naquele processo, obter uma vantagem patrimonial ilegítima 25º-De facto, os mencionados medicamentos AVAMYS constantes da fatura FP2018/9205 eram normalmente colocados no mercado pela R. ao preço unitário de € 6,60. 26º-E foram vendidos à A., pelo ex-funcionário S........., ao preço unitário de € 5,00. 27º-Os medicamentos KELO-COTE GEL 15G constantes da fatura FP2018/9192 eram normalmente colocados no mercado pela R. ao preço unitário de € 15,00. 28º-E foram vendidos à A., pelo ex-funcionário S........., ao preço unitário de € 12,10”.
Apreciando:
Em primeiro lugar, urge concluir que o referenciado no artº. 24º, ora pretendido considerar como factualidade provada, não corresponde a qualquer factualidade, mas antes um puro juízo conclusivo retirado de uma afirmada intencionalidade da Autora, legal representante desta e do ex-funcionário da Ré S……… .
Pelo que, logicamente, no que a este concerne nada existe com conteúdo factual que mereça figurar na factualidade provada.
Relativamente ao produto Avamys, a prova testemunhal enunciada (e credivelmente ponderável) não foi capaz de esclarecer qual o preço médio em que o mesmo era colocado no mercado pela Ré, apenas referenciando que tal dependia de vários factores, indicando o volume adquirido, modalidade de pagamento e concreta ponderação da importância comercial do cliente em equação.
Ora, recorrendo-nos do indicado documento (figura a fls. 483), constatamos tratar-se do levantamento das vendas de tal produto a vários clientes, entre Janeiro de 2014 e Abril de 2018.
Resulta do mesmo que os preços praticados são os mais díspares. Exemplificativamente, em 2014 são efectuadas vendas por prelo normalmente superior a 6.00 €, mas também existe uma venda, de 1.000 exemplares, á firma Empifarma, no valor unitário de 3,29 € ; e, em Janeiro de 2018, tal produto é vendido á ora Autora por 6,00 €, valor a que é igualmente vendido, no mesmo mês, à empresa Empifarma ; no mês seguinte (Fevereiro de 2018) tal produto é vendido à Autora por 6,00 € e 4,20 €, e é vendido à empresa Greenmed, Lda., ao preço de 5,90 € ; em Março de 2018, tal produto é vendido à Autora ao preço de 6,10 €, preço ao qual foi igualmente vendido, por duas vezes, à empresa Upfront Pharma, Lda., sendo vendido á empresa Greenmed, Lda., ao preço de 6,25 € ; mesmo em Abril de 2018, em que a Autora já não surge como adquirente, ocorreram duas aquisições pela empresa Empifarma ao preço de 6,58 €, e uma pela empresa B-Link Pharma ao preço de 6,00 €.
Desta forma, é impossível concluir que tais produtos eram normalmente colocados no mercado pela Ré ao preço unitário de 6,60 €, sendo que, nos anos de 2017 e 2018, tendo sido vendidos a seis diferenciados clientes (mas maioritariamente á ora Autora), nenhuma dessas vendas atingiu tal valor.
Relativamente ao produto Kelo-Cote, consta do documento de fls. 483 vº e 484 o seguinte: no ano de 2016, consta apenas uma venda, efectuada à empresa B-Link Pharma, ao preço unitário de 14,00 € ; em 2017 constam 26 transações, 5 à empresa Upfront Pharma, Lda, ao preço de 12,00 €, e as demais á ora Autora, uma ao preço de 10,00 € e as demais ao preço de 9,82 € ; as transações anteriores, desde 2014, foram efectuadas maioritariamente ao preço de 17,00 €, ainda que existam várias a diferenciados preços (exemplificativamente, várias a 14,17€ a distintas empresas, duas ao preço de 11,73 € à empresa Mernovis).
Donde, inexiste fundamento probatório para considerar que tal medicamento era normalmente colocado no mercado ao preço unitário de 15,00 €. O que resulta de tal documento é que nunca foi vendido a tal preço, desconhecendo-se se o afirmado valor corresponde ou não a uma média do valor transacionado e, na afirmativa, a que período se reporta, sempre havendo que considerar outros factores que vão ocorrendo ao longo dos anos que podem influenciar o valor comercial (ex: maior ou menor disponibilidade do medicamente do mercado ; custo dos factores de produção ; eventual início da sua produção no mercado de genéricos ; surgimento concorrencial de produtos semelhantes).
Donde, relativamente aos pontos 25º e 28º, decide-se apenas pelo aditamento á factualidade provada, de dois novos pontos factuais, a figurar sob o nºs. 17º e 18º, com a seguinte redacção:
“17º-As vendas documentadas nas facturas pró-forma identificadas em 4º e 5º, foram efectuadas pelo ex-funcionário da Ré S………” ;
“18º-Tendo-o feito, relativamente ao produto Avamys, ao preço unitário de 5,00 €, e relativamente ao produto Kelo-Cote, ao preço unitário de 12,10 €”
Devendo, ainda, passar a figurar na matéria factual não provada, um ponto a identificar como alínea b), com o seguinte teor:
“b)-que aquando das vendas referenciadas em 17º e 18º, o produto Avamys fosse normalmente colocado no mercado pela Ré ao preço unitário de 6,60€, e o produto Kelo-Cote ao preço unitário de 15,00 €”.
- Dos artigos 29º e 30º
Referencia a Impugnante Ré que em conexão com o facto de ter apresentado queixa-crime quando verificou “a existência do conluio existente entre S……… e Rui………, conforme vertido no artigo 8º da contestação, e da materialidade do quanto resulta dessa mesma queixa crime conforme vertido nos artigos 9º a 23º da contestação, materialidade também confirmada nas decisões de arresto do apenso D do inquérito 968/18.0T9VIS, da constatação desse mesmo conluio no negócio em causa nestes autos pelas vendas realizadas por valores abaixo das margens normais de venda e com prejuízo, conforme vertido nos artigos 24º a 28º da contestação, resultam necessariamente provados os factos 29º e 30º da contestação”.
Assim, acrescenta não ter fornecido “os produtos à A. porque se o fizesse agravaria o seu prejuízo”.
Os enunciados factos possuem a seguinte redacção:
29º
“A R. descobriu o plano em que laboravam a A. e os demais arguidos, logo após o recebimento das transferências bancárias efectuadas pela A. para pagamento dos produtos constantes das facturas supra identificadas”.
30º
“Tendo tomado conhecimento dos prejuízos que lhe estavam a ser causados, recusou-se a efetuar o fornecimento e apresentou a competente denúncia por factos susceptíveis de integrar ilícitos criminais”.
Apreciando:
Conforme já expusemos, não indicia a prova produzida que a alegada descoberta de um eventual plano laborado pela Autora, legal representante desta e ex-funcionário da Ré, S………, na convicção da Ré, tenha ocorrido após o recebimento das transferências bancárias efectuadas pela Autora para pagamento dos produtos constantes das facturas pró-forma emitidas, mas antes que esta suposta venda tivesse sido projectada ou delineada, atento os seus específicos contornos, para o reivindicado exercício do confessado direito de acção directa sobre o preço antecipadamente pago.
Donde, o afirmado no artigo 29º não encontra qualquer respaldo probatório no sentido de passar a figurar como provado.
Relativamente ao ponto 30º, a recusa de efectuar o fornecimento acordado já se encontra consignada no facto provado 6º, enquanto que a denúncia apresentada, e sua motivação, já se encontra exarada como facto provado no aditado 12º.
Pelo que, relativamente à presente matéria, ressalvando o que já se encontra consignado como provado, nada urge aditar à elencagem factual provada.
*************
Por todo o exposto, e em guisa conclusória, decorrente da apresentada impugnação da matéria factual, determina-se o seguinte: 1.–a total improcedência da impugnação da matéria factual provada ; 2.–relativamente à impugnação da matéria factual não provada, correspondente à exarada nos artigos 8º a 30º da contestação, determina-se: a)-o aditamento à matéria factual provada dos seguintes pontos:
- 12º- Imputando a prática de factos suscetíveis de integrar ilícitos penais, por conluio entre a Autora, o seu Gerente Rui……… e o ex-funcionário da Ré S………, foi deduzida em 04.04.2018 participação criminal que deu origem aos autos principais de inquérito com o n.º 968/18.0T9VIS, que corre termos no DIAP de Coimbra ;
- 13º- No âmbito de tal Inquérito Criminal, encontram-se constituídos arguidos, entre outros, a Autora, o seu Gerente Rui ……… e o ex-funcionário da Ré, S……… ;
- 14º- S……… foi trabalhador da ora Ré até data não concretamente apurada de meados de Agosto de 2018, exercendo funções na área comercial, como director de vendas ;
- 15º- Rui……… é o sócio único e gerente da sociedade O………, Lda., Autora nos presentes autos ;
- 16º- No exercício das suas funções e no âmbito da relação laboral existente com a ora Ré, competia a S……… contactar com clientes e fornecedores e negociar condições de venda dos produtos intermediados pela ora Ré ;
- 17º- As vendas documentadas nas facturas pró-forma identificadas em 4º e 5º, foram efectuadas pelo ex-funcionário da Ré S……… ;
- 18º- Tendo-o feito, relativamente ao produto Avamys, ao preço unitário de 5,00 €, e relativamente ao produto Kelo-Cote, ao preço unitário de 12,10 € ;
b)- a alteração da matéria factual não provada, através da concretização dos seguintes pontos:
-a) que para além do descrito em 16º, competisse igualmente ao S……… negociar condições de compra de tais produtos, bem como elaborar e apresentar propostas em concursos públicos internacionais ;
-b)que aquando das vendas referenciadas em 17º e 18º, o produto Avamys fosse normalmente colocado no mercado pela Ré ao preço unitário de 6,60€, e o produto Kelo-Cote ao preço unitário de 15,00 € ;
c)-mantendo-se, no demais, como não provada, a matéria factual constante dos artigos 8º a 30º da contestação.
II)–DO ENQUADRAMENTO JURÍDICO da CAUSA
Na sentença apelada, raciocinou-se nos seguintes termos:
- enunciou-se como objecto do litígio a indemnização pelos danos causados à Autora pela Ré, em virtude da recusa desta em fornecer os produtos que lhe haviam sido encomendados e pagos por aquela ;
- elencaram-se como questões apreciandas aferir se a conduta da Ré causou danos à Autora e se estes são ressarcíveis, bem como se existiu um conluio manipulatório dos preços praticados pelo ex-funcionário da Ré, em benefício da Autora ;
- a Autora pretende ser indemnizada do prejuízo causado pelo incumprimento contratual imputado à Ré :
- encomendou-lhe produtos que a Ré aceitou vender, mediante um preço (artº. 874º, do Cód. Civil), tendo-os pago antecipadamente ;
- todavia, a Ré não forneceu, nem pretende fornecer, à Autora os produtos encomendados e pagos ;
- existindo, assim, impossibilidade da prestação por causa imputável ao devedor (o artº. 801º, do Cód. Civil) ;
- é legalmente admissível, conforme decorre do nº. 2, de tal normativo, a admissibilidade de cumulação da resolução do contrato com a indemnização ;
- efectivamente, estando-se no âmbito da responsabilidade contratual, a indemnização tem por objectivo reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o incumprimento (artº. 562º, do Cód. Civil), abrangendo: 1.–O dano emergente ; 2.–O lucrum cessans(o artº. 564º, nº. 1, do C.C.) ;
- pretende a Autora que a base de indemnização seja “o lucro que iria obter por via do cumprimento do contrato”, ou seja, pretende exercitar o direito à indemnização pelo denominado interesse contratual positivo ;
- é legalmente admissível a indemnização por tal interesse, ocorrendo, todavia, inadmissibilidade da cumulação indemnizatória pelo interesse contratual positivo e pelo interesse contratual negativo ;
- ou seja, cumulação de indemnização pelos prejuízos causados por causa da celebração do contrato e, simultaneamente, indemnização pelos prejuízos decorrentes do lucrum cessans ;
- inexiste qualquer violação do princípio da boa fé, pois a Autora quer exclusivamente o que iria obter por via do cumprimento ;
- ademais, existe uma violação contratual integralmente dolosa por parte da Ré, pois não cumpriu simplesmente porque não quis cumprir, retendo, ainda, dolosamente, as quantias que foram pagas pela Autora ;
- sendo tal actuação da Ré intensamente contrária aos ditames da boa fé ;
- o valor indemnizatório peticionado é integralmente consumido pela margem de lucro provada, desde logo por pertinência à margem mínima de lucro (15%) ;
- por outro lado, inexiste qualquer prova quanto ao conluio manipulatório dos preços praticado pelo ex-funcionário da Ré em benefício da Autora, assim não se afectando o direito indemnizatório desta ;
- foi efectuada prova de que a margem de lucro da Autora, na revenda dos produtos adquiridos à Ré, seria entre 15% a 20% ;
- pelo que, sendo o montante do negócio acordado de 337.596,00 €, 15% sobre este ascende a 50.639,40 €, o que consome integralmente a quantia peticionada a título indemnizatório ;
- donde, foi proferida decisão condenatória da Ré a pagar á Autora a quantia de 50.000,00 €.
Questionando tal entendimento, argumenta a recorrente Ré nos seguintes termos:
Ocorreu justificado incumprimento do contrato de compra e venda, dado estarmos perante um negócio fraudulento, decorrente dum conluio arquitectado entre a Autora e um ex-funcionário da Ré, com o objectivo de obter uma vantagem patrimonial ilícita para o próprio e para a Autora, em prejuízo da Ré ;
Perante tal quadro factual, segundo as exigências do princípio da boa fé, não é de admitir a indemnização da Autora pela alegada violação do interesse contratual positivo ;
Por outro lado, ocorre, ainda, impossibilidade de condenação da Ré, num quadro indemnizatório global, a restituir um valor acrescido de taxa de juro em vigor para operações comerciais e lucros cessantes ;
Bem como indemnizar a Autora por vantagens patrimoniais que alegadamente deixou de auferir ;
Ocorrendo, assim, indevida condenação da Ré no pagamento de um valor sem o mínimo de sustentáculo factual, a título de incremento económico presumido.
Na resposta contra-alegacional apresentada, reafirma a Apelada Autora inexistir qualquer fundamento para a acção directa exercida pela Ré, conducente à injustificada retenção dos montantes em causa.
Acrescenta que o Tribunal a quo bem andou “ao condenar a Recorrente ao pagamento de € 50.000,00(cinquenta mil euros)à Recorrida, a título de indemnização pelos danos causados em razão do incumprimento contratual, sendo simultaneamente devidos os juros comerciais legalmente estabelecidos, pois além da frustração do negócio que geraria o lucro identificado, a Recorrida ficou também prejudicada pela imobilização dos montantes durante todo este período, sendo igualmente devidos os juros comerciais a esse respeito”.
Assim, e “apesar de a decisão recorrida apenas incidir sobre a condenação da Recorrente ao pagamento de a €50.000,00, a imobilização do montante de € 337.596,00, gerou dificuldades de tesouraria, na gestão de cash-flow e impediu a concretização dos negócios já acordados com terceiros, atenta a falta de entrega dos produtos adquiridos e pagos e assim, frustrou-se o lucro e forçou-se o recurso a crédito bancário e danos à credibilidade da Recorrida junto dos seus clientes internacionais devido à não concretização dos negócios já acertados, isto é cuja previsibilidade e certeza se comprovou pelas faturas pró-forma, pelas declarações de parte da A. e pelo depoimento da testemunha Ana………”.
Pelo que, a “indemnização pelos lucros cessantes não se basta apenas com o vencimento dos juros legais sobre o montante, pois além da frustração do negócio que já se havia acertado com clientes da Autora aqui Recorrida, facto é que aquele valor apenas corresponde aos lucros que haveria, sendo que os juros, enquanto custo de indisponibilidade do dinheiro, visam a compensação pela imobilização daqueles montantes – não havendo qualquer duplicação de compensações pois trata-se de compensar dois danos distintos”.
Na antecedente decisão colegial proferida nos presentes autos (datada de 09/09/2021), referenciou-se, para além do mais, o seguinte:
“(….) como não podia deixar de ser, na presente sede está apenas em equação conhecer acerca deste segmento condenatório, reportado à alínea d) do pedido accional, cujo objecto se reporta ao pedido de indemnização formulado.
Ora, no articulado inicial a Autora enuncia as várias vertentes dos danos alegadamente suportados, decorrentes do comportamento da Ré, entre os quais elenca o “prejuízo financeiro (….) ínsito na não concretização do negócio” – cf., a alínea d), do artº. 48º -, descrevendo-o posteriormente como as “mais-valias de vendas não concretizadas” – cf., o artº. 54º.
E, é efectivamente este dano que surge especificado no enquadramento jurídico efectuado, e consequente petitório accional deduzido, referenciando que “atento o valor das encomendas não entregues pela R., calculando um hipotético mark up de 30% (trinta por cento) nas vendas, e reduzindo esse valor para metade, pede-se a condenação da R. numa indemnização à A. no valor de € 50.000,00(cinquenta mil euros)” – cf., artº. 65º”.
Entendeu-se, ainda, que parte da matéria factual expressa pela Ré na contestação, nomeadamente no que concerne aos factos ilícitos imputados à Autora, “(…) não pode (não deve) considerar-se irrelevante para a aferição e conhecimento do pedido de indemnização contra si deduzido pela Autora, ou seja, não existe inocuidade da sua prova ou não prova, nem é pertinente afirmar que tal matéria factual se reporte à primeira parte da acção já decidida, onde se conheceu acerca do pedido de restituição do valor entregue para pagamento do preço dos contratos de compra e venda em equação.
O que surge com maior acuidade e premência quando estamos perante desígnio indemnizatório relativamente ao lucro que se iria obter pelo cumprimento dos contratos em equação, ou seja, em sede de interesse contratual positivo, pois não pode ser irrelevante para a sua eventual existência (e, configurando-se esta, para a sua amplitude) o facto daqueles contratos resultarem ou não da prática de factos ilícitos, inclusivamente dolosos, bem como que os valores ali apostos não traduzam os verdadeiros valores de venda da Ré, por surgirem maquinados ou fraudulentamente adoptados, o que desde logo, e pelo menos, sempre teria clara relevância na aferição do quantum do reclamado ressarcimento indemnizatório pelo interesse contratual positivo”.
Adrede, acrescentou-se que “estando em causa a aferição da pertinência da condenação da Ré no pedido de indemnização pelo lucro que iria obter por via do cumprimento do contrato – interesse contratual positivo [5] -, julgamos não poder rotular de inócuo ou irrelevante o núcleo factual aduzido em sede de contestação – cf., artigos 8º a 30º -, no qual se descreve a conduta ilícita da Autora, através do seu legal representante, em conluio com o então funcionário da ora Ré. Conduta que, nos termos ali expostos e alegados, também abrangeu os negócios de compra e venda descritos na petição inicial, que assim teriam funcionado como um meio ou mecanismo da prática de factos ilícitos (inclusive com putativa ilicitude penal).
Ora, tal prática ilícita, a provar-se, não poderá deixar de se assumir com relevância para a própria existência do reivindicado direito de indemnização, ao reconhecer-se tais negócios como maculados, eventualmente por que contrários à lei ou à ordem pública, que sempre os inquinaria com o vício da nulidade – cf., artº. 280º, do Cód. Civil [6].
Ou, por outro lado, atento o aduzido, com suficiente pertinência para considerar como viciada a vontade da Ré nos mesmos, atenta a sua declaração de nunca ter querido efectuar o negócio nos termos escritos.
Mas sempre, e certamente, traduzindo aquela conduta, caso se venha a provar, como claramente violadora do princípio geral de boa fé que subjaz à liberdade contratual, mas que funciona como motriz ou força vinculante para as partes contratantes – cf., artigos 762º, nº. 2 e 405º, nº. 1, ambos do Cód. Civil -, o que necessariamente afectará a subsistência do contratado – cf., artº. 294º, do Cód. Civil -, ou justificará, por outro lado, eventual recurso à válvula de escape do abuso de direito, equacionada no artº. 334º, do mesmo diploma.
Ademais, ainda que assim não se venha a concluir, e se reconheça a validade do contrato ou contratos em equação, estando em equação indemnização pelo interesse contratual positivo, nunca se poderia considerar como irrelevante ou destituída de interesse a matéria factual atinente ao valor a considerar naqueles, pois este está directamente relacionado com o reclamado lucro da Autora.
Efectivamente, uma coisa seria a margem de lucro potencial tendo por base os valores apostos nas facturas proforma – 5,00 € para os medicamentos AVAMYS, constantes da factura FP2018/9205 ; 12,10 € para os medicamentos KELO-COTE GEL 15G, constantes da factura FP2018/9192 – e outra, bem diferenciada, seria o mesmo lucro tendo por base os valores alegados pela Ré na mesma contestação – 6,60 € e 15,00 €, respectivamente, cf., artigos 25º a 28º -, pois, adquiridos os produtos por um valor mais alto, certamente que tal limitaria a potencial margem de lucro em equação (ou mesmo a viabilidade do potencial negócio de revenda já alegadamente contratado).
Pelo que, também nesta vertente se impunha a avaliação e consideração de tal factualidade, com nítida relevância e interesse, desde logo, para a definição do quantumindemnizatório, caso se viesse a concluir pelo efectivo reconhecimento deste”.
Apreciemos.
Surge inquestionável nos autos, e tal resulta inclusive subjacente ao doutamente exposto no Acórdão do STJ que decidiu acerca do conhecimento parcial do mérito da acção, ter ocorrido resolução dos contratos de compra e venda outorgados entre Autora e Ré, discutindo-se assim, e desde logo, acerca da admissibilidade de cumulação da efectivação da resolução com a indemnização pelo interesse contratual positivo.
Com efeito, a Recorrente Ré não questiona, qua tale, a pressuposta resolução contratual, antes considerando ter existido, da sua parte, justificado incumprimento do contrato de compra e venda, em virtude de estarmos perante a outorga de um negócio fraudulento, decorrente de arquitectado conluio entre a Autora e um ex-funcionário da Ré, com o objectivo destes obterem uma vantagem patrimonial ilícita, em seu prejuízo.
Entende, consequentemente, que perante o quadro factual que considera dever ser dado como provado, por apelo às exigências da boa fé, não é de admitir atribuir-se á Autora qualquer indemnização por alegada violação do interesse contratual positivo.
Prevendo acerca da responsabilidade do devedor em caso de incumprimento ou mora, estatui o artº. 798º, do Cód. Civil, que “o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”.
Aduz o artº. 801º, do mesmo diploma, acerca da impossibilidade do cumprimento culposa, que: “1.-Tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor, é este responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação. 2.-Tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro”.
In casu,surge irrefutável da matéria factual provada que, apesar da outorga, entre a Autora como adquirente e a Ré como vendedora, dos identificados contratos comerciais de compra e venda relativos a dois produtos farmacêuticos, e do pagamento do preço feito constar nas facturas pró-forma emitidas, a Ré não forneceu, nem pretende fornecer, tais produtos, tendo a Autora exigido que a Ré devolvesse tais quantias entregues, o que a Ré não fez – factos 4º a 8º.
Referencia António Menezes Cordeiro – Tratado de Direito Civil, Vol. IX, Direito das Obrigações, 3ª Edição Revista e Aumentada, Almedina, pág. 267 – que “a impossibilidade da prestação principal leva á sua substituição pelo dever de indemnizar”, acrescentando Antunes Varela – Das Obrigações em Geral, Vol. II, 4ª Edição, Almedina, pág. 89 – que a “principal sanção estabelecida para o não cumprimento consiste, portanto, na obrigação imposta ex lege ao devedor de indemnizar o prejuízo causado ao credor”.
Acrescenta que tal prejuízo, nos termos do artº. 564º, do Cód. Civil, “compreende tanto o dano emergente como o lucro cessante (…) - todo o interesse contratual positivo, na hipótese de a obrigação provir de contrato – e é determinado em função dos danos concretamente sofridos pelo credor”.
Assim, aduz-se, o não cumprimento da obrigação tem como principal consequência, “abstraindo da realização coactiva da prestação, nos casos em que ela é viável (art. 817º), o nascimento de um dever secundário de prestar que tem por objecto, já não a prestação debitória inicial, mas a reparação dos danos causados ao credor”, aditando Menezes Cordeiro – Ob. cit., pág. 269 e 270 – que “a parte fiel tem sempre direito às indemnizações devidas pela parte em falta. Beneficia, também, de todas as outras faculdades desencadeadas com o incumprimento na modalidade que concretamente se verifique: assim a inversão do risco, a ausência de juros, a possibilidade de consignar em depósito, etc…”.
No âmbito da impossibilidade do cumprimento imputável ao devedor (culposa), o transcrito nº. 2, do artº. 801º, do Cód. Civil, “acrescenta uma regra da maior importância: num contrato com prestações recíprocas, o credor, para além da indemnização, pode resolver o contrato. Com isso desvincula-se, ele próprio, da contraprestação e podendo, se já a tiver efectuado, exigir a sua restituição por inteiro” – Idem, pág. 376.
Desta forma, existindo obrigações de prestações recíprocas, “o incumprimento de uma delas faculta ao interveniente fiel a faculdade de resolver o contrato”, implicando esta resolução contratual “a supressão das prestações principais”, mantendo-se, todavia, “uma relação entre as partes, decalcada do contrato existente”, a qual é composta “por um dever de indemnizar que compense o credor fiel pelas vantagens que lhe atribuiria o pontual cumprimento do contrato e, ainda, que suprima todos os demais danos” (sublinhado nosso).
Donde, considera ser totalmente de afastar o entendimento de que, “resolvido um contrato, apenas quedaria, à parte fiel, pedir uma indemnização pelo denominado interesse negativo, isto é: uma indemnização que viesse colocar a parte fiel na situação em que estaria se não houvesse contrato. Tal saída equivale a um autêntico prémio à inadimplência, assente num lapso conceitual: o de que a resolução apaga todo o contrato, incluindo os deveres acessórios e o próprio direito ao cumprimento. Além disso, e contra legem: a lei prevê, sem distinguir, a indemnização de (todo o) prejuízo causado ao credor (798.°). De facto, a resolução permite liberar a parte fiel da contraprestação. Isto feito, devem ser indemnizados:
- os danos emergentes do incumprimento;
- os lucros cessantes;
- as maiores despesas;
- as próprias despesas inutilizadas, por via do sucedido”.
Solução que, ademais, é corroborada pela lógica do artº. 562º, do Cód. Civil – Ibidem, pág. 270 e 271.
Porém, questiona-se: tendo-se procedido à resolução de um contrato, por incumprimento da contraparte, ou por esta ter impossibilitado culposamente a prestação que lhe incumbia, como determinar ou enformar a indemnização ?
Referencia Menezes Cordeiro – ob. cit., pág. 940 e 945 a 949 – que doutrinariamente, têm sido avançadas basicamente duas soluções/construções: numa delas, “a resolução não pode prejudicar o credor fiel; assim, a indemnização que a acompanhe deve colocá-lo na situação em que estaria se o contrato tivesse sido cumprido; diz-se teoria do interesse contratual positivo” (sublinhado nosso).
Na demais, “a resolução destrói retroativamente o contrato; assim, a parte cumpridora apenas poderia aspirar a uma indemnização que a colocasse na situação em que estaria se o contrato malogrado nunca tivesse sido celebrado; é a teoria do interesse contratual negativo”.
Efectuando a resenha histórica do surgimento de tal dicotomia, com fundamento na culpa in contrahendo,acrescenta que, apesar do Código Civil de 1966 não ter estabelecido restrições, “surgiu alguma doutrina favorável a que, havendo resolução, a eventual indemnização cumulativa se quedasse pelo interesse negativo”, indicando especificadamente os Autores que a professam.
Outra parte da doutrina manifestou dúvidas ou assumiu posição que, por “muito matizada, permite acolher soluções mais amplas do que a do mero interesse negativo”, indicando as nuances interpretativas adoptadas, que permitem flexibilizar e promover soluções que permitam a justa e equitativa resolução concreta do litígio.
Por fim, outros Autores (Vaz Serra, Baptista Machado, Ana Prata, Ribeiro de Faria, Moura Ramos, Pedro Romano Martinez e o próprio Menezes Cordeiro, em identificadas obras) “entendem, direta e claramente, a resolução de um contrato por incumprimento como devendo ser acompanhada pela indemnização integral de todos os danos sofridos, incluindo, sendo o caso, o denominado interesse positivo” (sublinhado nosso).
Aduz que tal posição de admissibilidade de cumulação da resolução com a indemnização pelo interesse positivo “é a solução adotada a nível internacional: quer pela Convenção de Viena sobre a Compra e Venda Internacional de Mercadorias, de 1981, quer pelos princípios Unidroit relativos aos Contratos Comerciais Internacionais”, sendo que “a limitação das indemnizações ao interesse contratual negativo uma (infeliz) singularidade nacional. Fruto de uma doutrina alemã há muito abandonada na terra de origem, ela conserva-se pelo hábito de manter referências clássicas fora do contexto”.
Desta forma, enuncia não ser exacto “que a doutrina maioritária se incline para a indemnização pelo (mero) interesse negativo, quando haja resolução pelo incumprimento”, sendo que a “maioria da doutrina, sobretudo a mais recente, opta pela hipótese de computar, também, o interesse positivo”, bem como não possuir fundamento a ideia “de que o Direito positivo português imponha limitações à indemnização, quando ocorra uma resolução ; o artigo 908º, limitado ao erro-dolo e à anulação da compra e venda, não pode, de modo algum, ser extrapolado para a resolução em geral”.
Entendendo que ocorreu revisão da teoria clássica da resolução, não será possível afirmar, no âmbito do moderno Direito das obrigações, que “a resolução destrói retroativamente o contrato, suprimindo todas as obrigações dele derivadas. O vínculo obrigacional é uma realidade complexa. A resolução apena visa suprimir o dever de prestar principal do contratante fiel, perante o incumprimento definitivo do dever de prestar principal a cargo do contratante faltoso. Seria, na verdade, sumamente injusto que, perante o incumprimento da outra parte, o contratante fiel ainda desse efetuar a sua prestação”.
Ou seja, “a resolução apenas põe termo aos deveres de prestar principais. Todos os demais deveres envolvidos, secundários e acessórios, se mantêm”.
Desta forma, acrescenta, a ideia de que, “havendo resolução, não faria sentido optar pelo interessepositivo ou do cumprimento ... por se ter desistido do contrato, é puramente formal e conceitual. Não há uma desistência voluntária mas, antes, uma destruição do contrato (e dos valores que ele representa), através de um inadimplemento.
Com efeito, o incumprimento acarreta danos. Perante eles, há que prever uma indemnização integral. A pessoa que resolva o contrato apenas tenciona libertar-se da prestação principal que lhe incumba: não pretende, minimamente, desistir da indemnização a que tenha direito.
A regra é, pois, sempre a mesma, simples e justa; o incumprimento, que se presume culposo, obriga a indemnizar por todos os danos causados. Ficarão envolvidos danos negativos ou de confiança e danos positivos ou do cumprimento, cabendo, caso a caso, verificar até onde vão uns e outros, sem duplicações e descontando a contraprestação de que a parte fiel fique liberta”.
Conclui, no sentido de que o “princípio a aplicar é simples: perante os danos ilícitos e culposamente causados por um incumprimento, a indemnização deve ser integral” (sublinhado nosso).
Jurisprudencialmente, sobre a (in)admissibilidade da cumulação da resolução contratual com a indemnização pelo interesse contratual positivo (danos positivos), analisemos os seguintes arestos (todos in www.dgsi.pt), que traduzem alguma evolução no entendimento jurisprudencial:
- do STJ de 12/02/2009 – Relator: João Bernardo, Processo nº. 08B4052 -, onde se referencia que “tendo optado pela resolução que encerra a destruição da relação contratual, o banco não teria, em princípio dogmático, direito a indemnização relativa ao interesse contratual positivo. Não quis a subsistência do contrato, logo não o poderia querer para obter, da contraparte, as prestações em falta. A tutela do seu direito indemnizatório resumir-se-ia ao interesse contratual negativo. Este entendimento corresponde à posição clássica, é comum a vários autores (cfr-se, entre outros, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6.ª ed. 918, A. Varela, Das Obrigações em Geral, II, 109, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, II, 259 e Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, 412, nota de pé de página) e tem sido acolhido por constante jurisprudência deste Tribunal (em www.dgsi.pt, podem-se consultar os Ac.s de 26.3.1998, 19.4.1999, 3.9.2004, 2.12.2004, 12.7.2005, 21.3.2006, 23.1.2007, 17.5.2007, 22.1.2008, 22.4.2008 e 23.10.2008)”.
Todavia, acrescenta-se, não poder ignorar-se “a corrente que recusa esta construção, admitindo, no caso de resolução contratual, o preenchimento indemnizatório com, ou também com, os danos positivos.
Já sustentada por Vaz Serra (BMJ 47,40), foi detalhadamente defendida, entre outros, por Batista Machado (Pressupostos da Resolução por Incumprimento, 175), Romano Martinez (Da Cessação do Contrato, 208) e Ana Prata (Cláusulas de Exclusão e Limitação da Responsabilidade Contratual, 479). Brandão Proença admite uma flexibilização da jurisprudência com admissão da indemnização pelos danos positivos “quando assim for exigido pelos interesses em presença” (A Resolução do Contrato no Direito Civil, 196) e Galvão Teles afirma que se concebe todavia “que o julgador, além dos danos negativos, atenda também aos positivos se, no caso concreto, essa solução se afigurar mais equitativa segundo as circunstâncias.” (Direito das Obrigações, 7.ª ed., 463, nota de pé de página)”.
Assim, o entendimento a adoptar depende da conceptualização “da figura da resolução contratual. Se vista apenas como destruidora da relação contratual, a tese clássica é irrecusável. Se vista também como reintegradora dos interesses em jogo, a abertura ao ressarcimento pelos danos positivos impõe-se, em certos casos (Cfr-se Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações II, 434). À partida, a nossa lei encara-a apenas no primeiro sentido, distinguindo, nos artigos 432.º e seguintes do Código Civil, a figura, dos seus efeitos. Logo nestes, todavia está uma destruição contratual mitigada. Remete-se para o regime da nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico que encerra algumas excepções à senda destrutiva prevista, à cabeça, na lei (cfr-se os artigos 289.º e seguintes). Depois, no próprio regime dos efeitos, a lei refere que a retroactividade não opera, além do mais, se contrariar a “vontade das partes” ou “finalidade da resolução”, estabelecendo mesmo um regime próprio quanto aos contratos de execução continuada ou periódica. Retiramos, então, daqui a falência da primeira das premissas da tese clássica, qual seja a da destruição da relação contratual. Em muitos casos, esta relação, ainda que atingida, continua a ter-se como subsistente, produzindo efeitos próprios da subsistência.
Sendo assim, está aberto o caminho à abertura da indemnização pelos danos positivos. Se, por exemplo, a lei refere que, por regra, nos contratos de execução continuada ou periódica, a resolução não abrange as prestações já efectuadas, desenha uma situação em que, claramente, se justifica que, em certos casos, a indemnização possa consistir na efectivação das prestações em falta. Principalmente, quando falta uma pequena parte das prestações, o interesse contratual negativo surge-nos obnubilado face à tutela do dano positivo. Este corresponderá à composição justa do litígio contratual, quer a contraparte tenha optado, quer não pela resolução contratual.
Mas, não podemos perder de vista que estes são casos de excepção, sob pena de vir a perder relevância uma figura como a resolução que a lei tem como proeminente em toda a relação contratual. Se se considerasse que o que resolve o contrato tem sempre direito a indemnização correspondente ao interesse que tinha com o cumprimento deste, estaríamos a, em termos práticos, ignorar tal figura no que a uma das partes respeita, gerando um desequilíbrio entre as partes inadmissível, ou usando a expressão de Menezes Leitão (ob. e loc. citados) transformando “o contrato de sinalagmático em unilateral, uma vez que determinaria uma sua liquidação num só sentido.”
Há, pois, que ponderar os interesses em jogo no caso concreto e, perante eles, conceder ou denegar o caminho, particularmente estreito, da indemnização pelo interesse contratual positivo” ;
- do STJ de 24/01/2017 – Relator: Pinto de Almeida, Processo nº. 1725/13.6TVLSB.C1.S1, citado na sentença recorrida e que tem um voto de vencido -, o qual, após analisar a evolução que vem ocorrendo doutrinariamente, referencia que, em termos jurisprudenciais, a “jurisprudência, depois de, de forma praticamente uniforme, ter seguido a doutrina tradicional, tem vindo a admitir, de forma cautelosa, a possibilidade de cumular a resolução com a indemnização pelo interesse contratual positivo”.
Citando o antecedente aresto e o Acórdão do STJ de 21/10/2010, acrescenta “no quadro desta tendência para, em caso de resolução, se admitir a indemnização pelo interesse contratual positivo, propende-se para esta última solução, por se entender que a resolução deve ser concebida tendo em conta os interesses do lesado, visando uma verdadeira reintegração, perante a frustração do programa negocial provocada pelo inadimplemento; não como mero meio de destruição da relação contratual. A resolução e a indemnização constituem, como deve ser reconhecido, remédios distintos, permitindo aquela a restituição do que foi prestado e esta o ressarcimento dos prejuízos. Como remédio sinalagmático para o incumprimento do devedor, a resolução não deve pôr em causa outras consequências deste incumprimento não consumidas por aquele.
Como tal, a resolução permite ao credor "libertar-se do vínculo contratual, ficando livre para celebrar outros negócios e não exposto ao risco da espera do cumprimento (manutenção do contrato)". Mas esse credor não tem de ficar sujeito à "injusta alternativa de dever renunciar ao incremento patrimonial adquirido com o contrato (que a contraparte não cumpriu) para não ser exposto a esse risco da manutenção do contrato ou ter de aceitar esse risco para não renunciar ao lucro do contrato"].
O credor pode, pois, cumular a resolução com a indemnização, devendo esta, como acima se referiu, ser integral, abrangendo todos os danos causados pelo incumprimento contratual.
No caso, os recorrentes insurgem-se contra a possibilidade de cumulação da resolução com a indemnização pelo interesse contratual positivo, acrescentando que a aplicação que o acórdão recorrido faz dessa tese obnubila a ponderação dos interesses em jogo e causando um desequilíbrio ente as partes que a justiça contratual não consente” (sublinhado nosso).
Assim, no caso concreto “ficou provado que foi a ré que incumpriu culposamente o contrato celebrado com a autora. Por via desse incumprimento, a autora sofreu um prejuízo evidente, que consistiu na perda de ganhos que a execução do contrato lhe poderia proporcionar, o que constitui um lucro cessante que deve integrar a indemnização (arts. 562º e 564º do CC).
Os recorrentes invocam uma situação de desequilíbrio, mas não a vemos concretizada, não podendo esquecer-se, na ponderação dessa situação, que foi a ré quem causou unilateralmente o incumprimento”.
Por outro lado, “qualquer vantagem que advenha para o credor, em resultado do não cumprimento, deve ser descontada na indemnização, como decorre do disposto nos arts. 562º e 566º, nº 2, do CC. Essas vantagens não podem constituir uma fonte de enriquecimento do credor, devendo ser abatidas no montante da indemnização (compensatio lucri cum damno.
No caso, porém, não se provou que, após a resolução, a autora tenha celebrado com terceiros novo contrato de utilização da loja; que, sem justificação razoável, tenha deixado de o fazer (e que, por essa razão, tenha deixado de cobrar a terceiros a retribuição e comparticipação nos encargos que cobrava à ré) ou que, por outro modo, tenha contribuído para o agravamento ou para a não minimização dos danos.
Nada se provou, em suma, para além da perda de rendimentos que a autora obteria com a execução do contrato” ;
- por fim, mais recentemente, o douto Acórdão do STJ de 15/02/2022 – Relator: Pedro de Lima Gonçalves, Processo nº. 3009/15.6TPRT.P1.S1 -, no qual se procurou igualmente dilucidar acerca da compatibilidade da modalidade indemnizatória do interesse contratual positivo na situação em que o contrato tenha sido objecto de resolução.
O presente aresto começa por citar o douto Acórdão do mesmo Tribunal de 10/01/2020 - Processo nº. 1590/16.7T8LSB.L1.S1 -, referenciando que “20. O problema suscitado pelos arts. 801.º, n.º 2, e 802.º, n.º 1, relaciona-se com o conteúdo da indemnização cumulável com a resolução do contrato: O devedor há-de colocar o credor na situação em que estaria se não tivesse concluído o contrato ou deve colocá-lo na situação em que estaria se o contrato tivesse sido cumprido?; deve indemnizar o devedor pelo interesse contratual negativo ou deve indemnizá-lo pelo interesse contratual positivo?; deve indemnizar pelo dano da confiança ou deve indemnizá-lo pelo dano do (não) cumprimento? 21. O primeiro termo da alternativa — indemnização pelo interesse contratual negativo — destinar-se-ia a colocar o credor na situação em que estaria se o contrato não tivesse sido concluído. O segundo termo da alternativa — indemnização pelo interesse contratual positivo — destinar-se-á a colocar o credor na situação em que estaria se o contrato tivesse sido cumprido. O problema está em que colocar o credor na situação em que estaria se o contrato tivesse sido cumprido pode conseguir-se através de uma indemnização calculada de acordo com a teoria da sub-rogação ou da troca ou através de uma indemnização calculada de acordo com a teoria da diferença — a teoria da sub-rogação (Surrogationstheorie) ou teoria da troca (Austauschstheorie) diz-nos que o credor da obrigação não cumprida tem o encargo ou o ónus de realizar a sua contraprestação em espécie para conseguir uma indemnização em dinheiro correspondente ao valor da prestação não realizada; a teoria da diferença (Differenztheorie), diz-nos que a o credor da obrigação não cumprida não tem o ónus de realizar a sua contraprestação em espécie para conseguir uma indemnização em dinheiro corresponde à diferença entre o valor da contraprestação e o valor da indemnização dos danos causados pela não realização da prestação pelo devedor”.
Após enunciar o antecedente entendimento clássico e generalizado que advogava que, em caso de resolução contratual, a tutela cingia-se ou limitava-se ao interesse contratual negativo, onde estava em causa a indemnização do credor apenas pelas perdas conexionadas com a mera celebração do contrato, reconheceu que “a jurisprudência mais recente abriu a porta, em casos excecionais, ao ressarcimento pelos danos positivos em casos de resolução do contrato”, citando, desde logo, o já supra referenciado aresto do mesmo Tribunal de 12/02/2009.
Neste sentido, enuncia que a ”mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem-se pronunciado no sentido de que a questão vertente deverá ser sempre analisada de forma casuística (cf. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.02.2018, processo n.º 7461/11.0TBCSC.L1.S1, que afirma que “II. No quadro dos desenvolvimentos mais recentes da doutrina e da jurisprudência, é de considerar, em tese, admissível a cumulação da resolução do contrato com a indemnização dos danos por violação do interesse contratual positivo, não alcançados pelo valor económico das prestações retroativamente aniquiladas por via resolutiva, sem prejuízo da ponderação casuística a fazer, à luz do princípio da boa fé, no concreto contexto dos interesses em jogo, mormente em função do tipo de contrato em causa, de modo a evitar situações de grave desequilíbrio na relação de liquidação ou de benefício injustificado por parte do credor lesado. III.-No atual panorama da jurisprudência sobre tal problemática, afigura-se mais curial prosseguir por via dessa ponderação de caso a caso, sem a condicionar, de forma apriorística, ao critério abstrato de regra-exceção. IV.- Para tanto, é de considerar, em síntese, que: a)–Do preceituado no artigo 801.º, n.º 2, do CC, no respeitante à ressalva do direito a indemnização, em caso de resolução de contratos bilaterais, nenhum argumento interpretativo substancialmente decisivo se pode extrair no sentido de excluir o direito de indemnização pelos danos positivos resultantes do incumprimento definitivo desde que não se encontrem cobertos pelo aniquilamento resolutivo das prestações que eram devidas; b)–Por isso mesmo, impõe-se equacionar a solução na perspetiva da finalidade e função da resolução, enquadrada no plano mais latitudinário do programa negocial, multidimensional, envolvente e da relação de liquidação em que, por virtude dessa resolução, se transfigura a relação contratual originária (…)”, sendo de rejeitar a existência de um critério abstrato de regra-exceção.
Entendeu-se, neste conspecto, que “V - A resolução do contrato é compatível com a indemnização pelo interesse contratual positivo, que só não será admitida quando revele desequilíbrio grave na relação de liquidação ou se traduza em benefício injustificado para o credor, ponderado à luz do princípio da boa-fé, hipótese em que se indemnizará antes pelo interesse contratual negativo.”(Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/05/2018 (processo n.º 567/11.8TVLSB.L1.S2).
- cf., ainda, Acórdão do STJ, de 28/09/2021 (processo n.º344/18.5T8AVR.P1.S1), segundo o qual “(…) IV – Sendo de considerar admissível a cumulação da resolução com a indemnização pelo interesse contratual positivo, impõe-se sempre uma ponderação casuística a fazer, à luz do princípio da boa-fé, no concreto contexto dos interesses em jogo, em função do tipo de contrato em causa, de modo a evitar situações de grave desequilíbrio na relação de liquidação ou de benefício injustificado por parte do credor lesado.” –
Os argumentos avançados para considerar superado o entendimento de que a resolução do contrato era tão-só cumulável com a indemnização pelo interesse contratual negativo foram condensados pelo já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/12/2020 (processo n.º 15940/16.7T8LSB.L1.S1): “24. O art. 562.º do Código Civil consagra o princípio de que “quem estiver obrigado a reparar um dano há-de reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”; ora, o evento que obriga à reparação consiste no não cumprimento de uma obrigação; logo, quem estiver obrigado a reparar o dano há-de reconstituir a situação que existiria se a obrigação tivesse sido cumprida [3] [4]. 25. Em favor do cúmulo, depõem dois desenvolvimentos recentes: 26. Em 23 de Julho de 2020, foi aprovada para adesão a Convenção das Nações Unidas sobre a venda internacional de mercadorias de 11 de Abril de 1980 — e, de acordo com os arts. 75.º e 76.º da Convenção, a indemnização cumulável com a resolução do contrato é uma indemnização pelo interesse contratual positivo [5]. 27. Em 20 de Maio de 2019, foi publicada a Directiva 2019/771/UE, sobre a venda de bens de consumo — e, de acordo com o considerando 61 da Directiva, a indemnização “deverá repor a situação em que o consumidor se encontraria se o bem estivesse em conformidade” [6]. Os termos em que está redigido o considerando 61 aplicam-se a toda a indemnização, incluindo à indemnização cumulável com a resolução do contrato de compra e venda.”
Nesta mesma linha, no Acórdão do STJ, proferido no processo n.º3609/17.0T8AVR.P1.S1, foi entendido que “(…) VI - No quadro dos desenvolvimentos mais recentes da doutrina e da jurisprudência, é de considerar, em tese, admissível a cumulação da resolução do contrato com a indemnização dos danos por violação do interesse contratual positivo, não alcançados pelo valor económico das prestações retroativamente aniquiladas por via resolutiva, sem prejuízo da ponderação casuística a fazer, à luz do princípio da boa fé, no concreto contexto dos interesses em jogo, mormente em função do tipo de contrato em causa, de modo a evitar situações de grave desequilíbrio na relação de liquidação ou de benefício injustificado por parte do credor lesado (…) VII - A indemnização prevista no art. 801.º, n.º 2, do CC poderá visar, não apenas o interesse contratual negativo, mas igualmente o interesse contratual positivo, sendo calculada de acordo com a teoria da diferença.”” (sublinhado nosso).
Seguidamente, o mesmo douto Acórdão efectua uma resenha doutrinária acerca do entendimento que vem sendo professado, referenciando que “também a doutrina tem admitido, de forma prevalente, a tutela do interesse contratual positivo em caso de resolução por incumprimento”, começando por sublinhar, desde logo, a posição de Paulo Mota Pinto, o qual “realça que a posição que veda a possibilidade ao credor resolvente do contrato de exigir uma indemnização por não cumprimento se encontra quase isolada no plano do direito comparado, não sendo imposta, no plano jurídico-positivo, pelo Código Civil (em especial pelo artigo 801.º, n.º2) - Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, volume II, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pp. 1638 e 1644”.
Desta forma, conclui que “numa análise integrada do sistema, teleologicamente orientada à salvaguarda da função reintegradora dos interesses do lesado que se encontra inerente à responsabilidade civil contratual, perfilhamos o entendimento de que, em caso de resolução do contrato bilateral por incumprimento da contraparte, o conteúdo da obrigação de indemnização poderá, em tese, abranger, para além do interesse contratual negativo, o interesse contratual positivo”, urgindo, todavia, sempre utilizar “o crivo das particularidades do caso concreto para dilucidar se a indemnização poderá ser computada pelo interesse contratual positivo na ajuizada situação” (sublinhado nosso).
Aqui chegados, e apesar da longa transcrição que pensamos justificar-se, sustentados no prevalecente entendimento doutrinário e jurisprudencial, podemos assentar no seguinte:
- num contrato bilateral com prestações recíprocas, tornando-se impossível o cumprimento da prestação, por causa imputável ao devedor (impossibilidade culposa), ocorre situação de incumprimento definitivo, responsabilizando-o pela totalidade dos prejuízos ou perdas que cause á contraparte credora ;
- em tal situação o credor, para além do direito à indemnização, pode resolver o contrato bilateral por incumprimento da contraparte, assim se desvinculando da contraprestação e, caso a já tenha cumprido, exigir integralmente a sua restituição ;
- ou seja, operada a resolução contratual por incumprimento da contraparte, ocorre supressão das prestações principais, que não dos deveres secundários e acessórios, assim se mantendo o dever de indemnizar o contraente fiel relativamente á totalidade dos danos suportados, nestes se incluindo os danos negativos ou de confiança e, prima facie e por princípio, as vantagens que lhe adviriam pelo pontual cumprimento do contrato, ou seja, os danos positivos ou do cumprimento ;
- efectivamente, não devendo a resolução prejudicar o credor fiel, a indemnização a atribuir-lhe deve, por princípio, colocá-lo na situação em que estaria caso o contrato tivesse sido devidamente cumprido, assim se tutelando o seu interesse contratual positivo ;
- assim, mesmo nas situações em que ocorre resolução do contrato bilateral por incumprimento da contraparte, é de admitir a indemnização pelo interesse contratual positivo, pois aquela (a resolução) deve ser entendida na consideração dos interesses do lesado, credor fiel, confrontado com a frustração negocial decorrente do inadimplemento da contraparte, e não como mero meio de destruição da relação contratual ;
- traduzindo-se, quer a resolução, quer a indemnização, em diferenciadas ou distintas tutelas, pois aquela permite a restituição do prestado ou a desvinculação na contraprestação, e esta o total ressarcimento dos prejuízos suportados pelo incumprimento contratual ;
- todavia, tal admissibilidade da cumulação da resolução contratual com a indemnização dos danos decorrentes da violação do interesse contratual positivo, não prescinde duma necessária ponderação casuística, a operar à luz do princípio da boa fé, e de acordo com os concretos interesses em equação (exemplificativamente, o tipo contratual em causa), de forma a que sejam evitadas situações de grave desequilíbrio na relação de liquidação, ou a atribuição de um injustificado benefício ao credor lesado ;
- isto é, na aferição da admissibilidade cumulativa, urge sempre considerar as particularidades do caso concreto, de forma a decidir-se se a tutela indemnizatória deverá abranger os danos decorrentes do interesse contratual positivo.
Na concatenação de tais princípios com o caso concreto, temos então que:
- o incumprimento da prestação da Ré vendedora, traduzido no não fornecimento à Autora compradora dos produtos quer havia acordado vender-lhe, tendo recebido o respectivo preço, determinou que os clientes desta, a quem seriam fornecidos tais produtos, cancelassem as encomendas já efectuadas ;
- por outro lado, tendo a Ré vendedora retido os montantes que lhe haviam sido entregues a título de preço de tais produtos – 159.000,00 € e 178.596,00 €, num total de 337.596,00 € -, não os devolvendo logo após ter decidido pelo não fornecimento de tais produtos, determinou que a Autora, contraente fiel, não pudesse usá-los em outros negócios da sua actividade comercial ;
- a margem de lucro da Autora, na revenda de tais produtos, situa-se entre 15% e 20%, ou seja, permitir-lhe-ia um lucro variável entre os 50.639,40 € e os 67.519,20 € (lucro médio de 59.079,30 €) ;
- a devedora inadimplente Ré não logrou provar o alegado conluio manipulatório existente entre a contraparte credora Autora, através do seu legal representante, e o indicado então funcionário da Ré, tradutor de uma prática ilícita e violadora do princípio geral de boa fé, susceptível de macular os negócios celebrados como nulos, por que contrários à lei ou à ordem pública e, por outro lado, justificar o declarado incumprimento ;
- nem logrou provar, por outro lado, a existência de nítida desconformidade entre os valores de venda apostos nos concretos contratos de compra e venda outorgados e aqueles que correspondiam ao normal trato comercial da Ré vendedora ;
- o que sempre afectaria o reivindicado direito indemnizatório ;
- analisada a concreta relação contratual estabelecida entre as partes outorgantes, não deixa de ser impressivo o teor da denúncia criminal efectuada, os valores envolvidos como correspondendo às quantias ilicitamente subtraídas e o desenvolvimento processual penal existente – factos 12º e 13º ;
- todavia, a prova pouco consistente efectuada na presente sede civil, para além de não lograr concluir pela imputado conluio manipulatório, muito menos permitiu sustentar que os concretos contratos em equação ainda tivessem sido determinados por aquele putativo conluio, antes se indiciando que os mesmos terão tido na sua génese uma tentativa de retenção de valores, capazes de compensar a Ré por prejuízos que a mesma entende ter sofrido, decorrentes da conduta que imputa como ilícita e penalmente censurável da Autora, legal representante desta e seu ex-funcionário ;
- assim, na aferição daquela concreta relação contratual, não se nos afigura legítimo concluir que a atribuição à Autora Recorrida de um crédito indemnizatório em sede de interesse contratual positivo, correspondente aos seus lucros cessantes, seja susceptível de introduzir um qualquer desequilíbrio grave nos deveres de prestação secundária, que continuam a onerar a Ré incumpridora, inerentes á relação de liquidação em que se transmutou a originária relação da prestação acordada, de forma a rotulá-la como atentatória dos ditames da boa-fé ;
- nem que tal solução, procurando a tutela integral da posição indemnizatória da parte lesada e fiel, seja susceptível de proporcionar uma qualquer vantagem injustificada à Autora, que tinha a clara expectativa, alicerçada nas encomendas de que já dispunha dos seus clientes para a aquisição daqueles produtos, de obtenção de obtenção do lucro comercial projectado ;
- com efeito, não se desconhece que os lucros cessantes, traduzindo a frustração de uma utilidade que o prejudicado iria obter caso não fosse a lesão, apenas se verificam “se o lesado, no momento da lesão, for titular de uma expectativa jurídica que lhe permitisse a aquisição de um benefício, tendo deixado essa aquisição de se verificar em consequência da lesão. Não basta, porém, uma mera hipótese de aquisição desse ganho, tendo que existir uma probabilidade quase em termos de certeza de que essa aquisição ocorreria” – Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 14ª Edição, Almedina, 2017, pág. 327 e 328 ;
- todavia, in casu, tal previsibilidade traduz-se praticamente numa quase certeza, sustentada que está nas encomendas já existentes, que permitam o escoamento dos produtos em equação ;
- por fim, na apreciação do argumentário da Recorrente Ré, sempre se dirá que a fixação da indemnização a título de lucros cessantes, no âmbito do dano positivo ou de cumprimento, não colide com a restituição do montante entregue, determinada em antecedente decisão proferido nos presentes autos quanto à demais vertente acional (confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça), ainda que à restituição daquela quantia (correspondente ao preço entregue) tenha sido determinado o acrescento de juros moratórios “à taxa legal em vigor para as operações comerciais” ;
- com efeito, não nos competindo decidir à cerca da bondade do determinado, nomeadamente quanto à determinada taxa legal, é todavia evidente que estamos perante danos distintos, ou seja, perante a tutela de diferenciados prejuízos sofridos, sendo um deles o correspondente ao alegado custo da indisponibilidade do dinheiro, visando a compensação pela injustificada imobilização daqueles montantese, o demais, com tutela reportada aos lucros cessantes frustrados, que seriam alcançáveis caso o contrato tivesse sido devidamente cumprido pela contraente infiel Ré.
Por todo o exposto, devem necessariamente improceder as conclusões recursórias, num juízo de total improcedência da presente apelação, conducente á confirmação da sentença apelada/recorrida.
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Nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, as custas são suportadas pela Recorrente Ré, atento o decaimento no presente recurso.
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IV.–DECISÃO
Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, no presente recurso de apelação interposto pela Ré/Apelante F………, S.A., em que surge como Autora/Apelada O………, LDA., o seguinte: 1)-decidir pela inadmissibilidade de junção dos documentos apresentados pela Ré Recorrente (em 11/08/2023) e Autora Recorrida (em 25/08/2023) e, consequentemente, determina-se o seu desentranhamento (físico), com consequente devolução às apresentantes, bem como a sua eliminação do processo electrónico ; 2)-custas dos presentes incidentes anómalos a cargo da Ré Apelante e Autora Apelada, fixando-se a taxa de justiça em 1,5 UC – cf., artº. 7º, nºs. 4 e 8 e Tabela II, do Regulamento das Custas Processuais ; 3)-por falta de preenchimento do pressuposto recursório interesse processual, não admitir os recursos interpostos pela Ré sobre os despachos intercalares datados de 10/05/2022 e 21/06/2022, supra identificados em 1., alíneas a) e b) e 2., alínea a) - indefere a requerida prestação de depoimento de parte por intermédio de pessoa designada pela administração da Ré, e credenciada para o efeito ; considera imprescindível a presença dos legais representantes da Ré, Joaquim......... e Luís.........; indefere a requerida prestação de depoimento de parte por intermédio de António........., na qualidade de procurador da Ré, e decide existir recusa em prestar declarações ; 4)-julgar totalmente improcedente a presente apelação, no que respeita ao recurso interposto da sentença, com consequente juízo de confirmação da sentença apelada/recorrida ; 5)-atento o seu decaimento no recurso, as custas ficam a cargo da Recorrente Ré - cf., artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil.
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Lisboa, 12 de Outubro de 2023
Arlindo Crua - Relator Vaz Gomes - 1º Adjunto Orlando Nascimento- 2º Adjunto (assinado electronicamente pelo Relator e 1º Adjunto)
[1]A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original. [2]Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª Edição, Almedina, pág. 285. [3]Idem, pág. 285 a 287. [4]Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 157. [5]Contrariamente ao aduzido nas contra-alegações – cf., artºs. 27º e 32º do corpo alegacional -, a sentença condenatória ora em sindicância não incidiu “sobre a indemnização dos danos resultantes da apropriação ilegítima de quantias destinadas à aquisição de produtos”, nem está em causa qualquer juízo de reapreciação “sobre a legalidade da apropriação dos recursos financeiros” por parte da Ré – cf., o artº. 29º do mesmo corpo alegacional. [6]Com efeito, entre os requisitos do objecto negocial elencados neste normativo (ressalvando-se que o conceito de objecto inclui ou integra a causa do negócio) consta a não contrariedade à lei (licitude), considerando-se contrário à lei, ou seja ilícito, “o objecto de um negócio, quando viola uma disposição da lei, isto é, quando a lei não permite uma combinação negocial com aqueles efeitos (objecto imediato) ou sobre aquele objecto mediato” – cf., Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª Edição Actualizada, Coimbra Editora, pág. 550.
Explicita Jorge Morais Carvalho – Código Civil Anotado, Vol. I, Coordenação de Ana Prata, Almedina, 2017, pág. 344 -, que na expressão legal “contrariedade à lei” o termo lei “é utilizado em sentido amplo, abrangendo qualquer norma jurídica, independentemente da sua natureza. Apesar de a letra se referir apenas a diplomas legais ditados por órgão com poder legislativo, parece dever entender-se que se inclui qualquer comando imposto pelo Direito, independentemente da sua fonte, resultante de norma jurídica dotada de imperatividade”.
Acrescentam Pires de Lima e Antunes Varela – Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, 4ª Edição Revista e Actualizada, pág. 258 – que o negócio contrário à lei apenas é nulo, manifestamente, quando “contrarie normas imperativas, pois as supletivas podem ser sempre derrogadas ou modificadas pela vontade dos particulares”.
Por sua vez, a ordem pública é constituída “por normas de carácter jurídico e o seu relevo próprio consiste em que a ilicitude subsiste mesmo onde exista contrariedade, não a uma norma específica, mas a um princípio geral que se deduza de um sistema de normas imperativas” – Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, Vol. II, Lisboa, 1988, pág. 34.
Acrescenta Jorge Morais Carvalho – ob. cit., pág. 341 a 344 – configurar-se a ordem pública como uma “cláusula geral, que deve ser concretizada em cada caso pelo intérprete, tendo em conta as circunstâncias específicas da situação, não sendo possível nem desejável torná-la rígida”, tendo como principal objectivo da sua consagração legal como fundamento autónomo da nulidade do negócio a “existência de uma válvula de salvação do sistema, como garantia de que os princípios basilares do ordenamento jurídico são respeitados. Mesmo que a lei não regule uma determinada situação, impondo limites à autonomia privada, a ordem pública pode ser chamada no sentido de salvaguardar a integridade do sistema jurídico”.
Desta forma, o juízo acerca da contrariedade à ordem pública constitui “o último recurso do direito para avaliar da conformidade do negócio jurídico com os princípios fundamentais do ordenamento jurídico, princípios estes que, pela sua relevância, se sobrepõem por si só à autonomia privada”, pelo que o funcionamento da cláusula geral de ordem pública, que opera sempre num plano estritamente jurídico, “depende sempre de uma análise da compatibilização de um contrato ou cláusula contratual com um princípio fundamental do ordenamento jurídico”.
Acerca da diferenciação entre os conceitos de ilicitude por ilegalidade e impossibilidade legal propriamente dita, bem como as restrições atinente ao objecto do negócio, derivadas de uma imposição de licitude, cf., Manuel A. Domingues de Andrade, Teoria geral da Relação Jurídica, Vol. II, Coimbra, 1987, Almedina, pág. 328 a 335.