OMISSÃO DA AUDIÊNCIA PRÉVIA
NULIDADE DA SENTENÇA
CONHECIMENTO OFICIOSO
DECISÃO SURPRESA
Sumário

I–O Tribunal a quo conheceu oficiosamente de excepção dilatória, com omissão de audiência prévia, e sem ter sido dada a oportunidade às partes de se pronunciarem sobre tal excepção.

II–A decisão proferida constitui, pois, uma verdadeira decisão surpresa, proibida pelo direito processual civil vigente.

III–A violação do princípio do contraditório, princípio basilar do nosso direito processual civil, mediante a prolação de uma decisão-surpresa, constitui nulidade da decisão, por excesso de pronúncia, enquadrável no disposto no art.º 615.º n.º1 d) in fine e não uma nulidade processual nos termos do art.º 195.º do CPC.

Texto Integral

Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–RELATÓRIO

AP, propôs acção judicial de impugnação de deliberação de Assembleia de Condóminos”, contra:
Condomínio do PRÉDIO URBANO SITO na Rua …, Freguesia de Santo António dos Cavaleiros, concelho de Loures.

Condóminos presentes na Assembleia Ordinária realizada a 24.06.2022.
Formula pedido de anulação de todas as deliberações tomadas contrárias à lei e ao Regulamento do Condomínio e requer a suspensão de todas as deliberações tomadas na Assembleia de Condóminos realizada em 24.06.2022.
Como fundamento deste pedido, alega que não foi convocada para qualquer Assembleia de Condomínio, mas que tomou conhecimento de que foi realizada uma assembleia, em 24 de junho de 2022, às 21 horas.
Alega ainda que não foi, até ao presente, notificada da acta e que “ouvir dizer que a Assembleia terá sido realizada e que terão sido tomadas deliberações”, “desconhecendo-se se a referida assembleia ocorreu ou não”.
Conclui, alegando que “a assembleia, a ter ocorrido, as deliberações aí tomadas deverão ser declaradas anuláveis por falta de convocatória da autora”.

O Réu Condomínio, representado em juízo pelos seus administradores, conforme consta da procuração junta aos autos, apresentou contestação na qual invoca a ilegitimidade da Autora já que a mesma não é proprietária da fracção autónoma identificada pela letra “DQ”, correspondente ao 8.º andar, letra P do prédio urbano sito na Rua …, sendo propriedade do seu marido FP, com quem a Autora é casada, sob o regime de comunhão de adquiridos desde 06-03-1982. Porém, a fracção foi adquirida por compra pelo referido FP, em 25-07-1980, no estado de solteiro, pelo que a fracção é um bem próprio do marido da Autora. Não sendo proprietária, não é condómina, logo é parte ilegítima para propor acção de anulação das deliberações tomadas na assembleia de condóminos.
Na contestação defende-se ainda o Réu por impugnação.
Termina pedindo que a excepção deduzida seja julgada procedente e consequentemente, seja o Réu absolvido da instância. Caso assim não se entenda, deve a acção ser julgada não provada e improcedente, sendo o Réu absolvido do pedido.
Por requerimento de 08-11-2022, a Autora, ao abrigo do disposto no art.º 3.º n.º 3 do CPC, veio exercer o contraditório, pronunciando-se sobre a invocada excepção da ilegitimidade da Autora, concluindo pela sua improcedência.
Caso assim não se entenda, vem dizer que “poderá o cônjuge marido ser chamado à demanda.
Por requerimento de 09-11-2022, a Autora vem corrigir a referência ao artigo 1724.º do Código Civil, feita no requerimento anterior, dizendo que pretendia mencionar o art.º 1726.º do Código Civil.
Mais refere que “ao abrigo do disposto no art.º 1726.º do Código Civil o bem imóvel em apreço ao arrepio do entendimento do Réu condomínio não se trata de um bem próprio do cônjuge marido, mas sim de um bem adquirido em prestações por dinheiro comum de ambos os cônjuges, tratando-se em bom rigor de um bem comum do casal, sendo a Autora parte legítima.”
           
Findos os articulados, o Tribunal a quo proferiu decisão no qual verificou não resultar que da situação de facto relatada pela autora tenha esta qualquer interesse em agir mediante recurso à tutela jurisdicional concedida pelos Tribunais.
Por consequência, julgou oficiosamente verificada a excepção dilatória de falta de interesse em agir, de natureza insuprível e, ao abrigo do disposto nos artigos 576.º n.º 2, 577.º e 578.º do CPC, absolveu os réus da instância.

Inconformada com esta decisão, a Autora interpôs recurso de apelação formulando as seguintes conclusões:
1.Por sentença datada de 12-01-2023 o tribunal “a quo” julgou oficiosamente verificada a excepção dilatória de falta de interesse em agir, de natureza insuprível e, ao abrigo do disposto nos artigos 576.º n.º 2, 577.º e 578.º do CPC, absolveu os réus da instância.
2.–Sucede que o tribunal “a quo” não apreciou os requerimentos apresentados pela ora Recorrente a 08-11-2022 e a 09-11-2022.
3.–Pelo que se conclui que estamos perante uma omissão de pronúncia, o que constitui uma causa de nulidade da sentença recorrida e a mesma deverá ser revogada por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d) do Código de Processo Civil.
4.–Por outro lado andou mal o tribunal “a quo”ao proferir sentença pois não existem nos presentes autos elementos para decidir a causa e impunha-se a realização de audiência prévia.
5.–O tribunal “a quo” não poderia ter proferido decisão sem realizar audiência prévia.
6.–No NCPC (Lei 41/2013), passou a dispor-se como regra a obrigatoriedade da realização de audiência prévia, agora previsto no artigo 591.º do C.P.C., nomeadamente quando “tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.” (n.º1 b).
7.–Quando o Juiz tencionar conhecer, de imediato, do mérito da causa, a audiência prévia não pode ser dispensada (arts. 593/1, a contrario, e 591/1-b, ambos do CPC), sob pena de nulidade (art. 195/1 do CPC), veja-se neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 2164/12.1TVLSB.L1-2, datado de 09-10-2014, disponível em www.dgsi.pt.
8.–Devendo a sentença recorrida ser declarada nula.
9.–Sem prescindir a sentença recorrida viola o disposto nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º e 578.º todos do Código de Processo Civil.
10.–Andou mal o tribunal “a quo” ao considerar que a Autora ora Recorrente não tem qualquer interesse em agir, sendo certo que a Assembleia de Condomínios cuja acta se impugnou não se tratou de uma mera reunião informal atento a que foram tomadas deliberações na Assembleia realizada a 24.06.2022.
11.–Sendo certo que o interesse em agir como pressuposto autónomo exprime-se pela necessidade da tutela jurisdicional, o que se verifica in casu.
12.–Ao que acresce que o tribunal “a quo” olvidou-se que o interesse em agir deve ser analisado à luz dos princípios constitucionais do acesso ao direito e à justiça, o que também não sucedeu in casu.
13.–A Autora, ora Recorrente, é parte legítima nos presentes autos e como tal tem interesse em agir, tratando-se a presente acção de uma ação judicial de impugnação de deliberação de Assembleia de condóminos.
14.–Termos em que e face ao supra exposto deverá a sentença recorrida ser revogada e os autos deverão prosseguir os seus ulteriores termos.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

II–OS FACTOS

Os elementos com relevo para a decisão são os que constam do relatório supra sendo certo que a questão a apreciar é exclusivamente de direito.
Contudo, para melhor esclarecimento transcreve-se, no essencial, o teor da decisão recorrida.

“(…)

A autora fundamenta a presente acção no regime previsto no artigo 1433.º do CPC, que possibilita aos condóminos obter a anulação das deliberações da assembleia contrárias à lei ou a regulamentos anteriormente aprovados.
Ora, nos termos do artigo 5.º n.º 1 do CPC, “às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas”.
Sucede que, neste caso concreto, a autora pede a anulação “de todas as deliberações contrárias à lei e ao Regulamento do Condomínio (cfr. artigo 1433.º do CPC)” alegando, em contradição, que apenas ouviu dizer que se realizou uma assembleia de condomínio e que terão sido tomadas deliberações. Não só alega desconhecer, de facto, a realização de assembleia geral de condomínio, como alega desconhecer a tomada de deliberações por parte dos outros condóminos e o seu teor, sendo expressamente admitido que nenhuma acta ou deliberação lhe foi comunicada. Ademais, não é alegado que tenha sido posta em prática ou executada qualquer deliberação que pudesse ter sido tomada na data em causa.
Saliente-se que a qualquer grupo de condóminos assiste o direito de reunião (informal), desde que não sejam tomadas deliberações (vinculativas) que expressem a vontade do condomínio, e que, em momento algum da sua petição inicial a autora alega que tenha consultado ou solicitado a consulta do livro de actas com vista a confirmar a existência de deliberações tomadas em 24.06.2022 sob a aparência de uma Assembleia Geral.
Assim, entendemos que, neste caso concreto, não decorre da matéria de facto alegada pela autora qualquer interesse em agir da sua parte.
O interesse em agir tem sido conceptualizado como condição da ação ou como elemento integrativo da legitimidade.

Manuel de Andrade considerava que, num Estado de Direito, tal interesse se mostra indispensável,obstando a que um qualquer titular de um direito subjectivo material possa sem mais, nem mais, solicitar para ele uma qualquer das formas de tutela judiciária legalmente autorizadas, impondo assim à contraparte a perturbação e gravame inerente à posição de demandado - perturbação e gravame que se traduz principalmente em ter ela de deduzir a respectiva defesa sob pena de a ver precludida (Noções Elementares do Processo Civil, Coimbra Editora: Coimbra, 1979, p. 79).

Para este Autor, o «interesse processual» traduz-se no interesse em utilizar a arma judiciária, em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão-pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo de intermédio:de um estado de coisas reputado bastante gravepara o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordemjurídica lhe reconhece (ibidem).

Anselmo de Castro configurou o interesse em agir como pressuposto processual autónomo e inominado, construído em oposição ao interesse substantivo nos seguintes moldes:
Do interesse em agir se distingue o interesse substancial: o interesse em agir é um interesse processual, secundário e instrumental em relação ao interesse substancial primário, e
tem por objecto a providência solicitada ao tribunal,através da qual se procura ver satisfeito aquele interesse primário,lesado pelo comportamento da outra parte, ou mais genericamente, pela situação de facto objectivamente existente.O interesse em agir, surge, pois, da necessidade em obter do processo a protecção do interesse substancial, pelo que pressupõe a lesão de tal interesse e a idoneidade da providência requerida para a sua reintegração, ou tanto quanto possível integral satisfação – in Direito Processual Civil Declaratório, Volume II, Coimbra: Almedina, 1982, p. 253.

Ainda que não esteja expressamente contemplado no Código de Processo Civil, o interesse em agir tem vindo a ser admitido pela doutrina e pela jurisprudência como exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso conducente à absolvição da instância, nos termos dos artigos 576.º, n.º 2, e 578.º do CPC – cf., entre outros, Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil.
Decisão
Da situação de facto relatada pela autora não resulta que a mesma tenha qualquer interesse em agir mediante recurso à tutela jurisdicional concedida pelos Tribunais.
Assim sendo, julgo oficiosamente verificada a excepção dilatória de falta de interesse em agir, de natureza insuprível e, ao abrigo do disposto nos artigos 576.º n.º 2, 577.º e 578.º do CPC, absolvo os réus da instância”.

III–O DIREITO

Tendo em conta as conclusões de recurso que delimitam o respectivo âmbito de cognição deste Tribunal, as questões que importa apreciar são as seguintes:
1-Nulidade decorrente da não realização da audiência prévia
2-Nulidade da decisão recorrida, por omissão de pronúncia
3-Verificação da excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir

           
1-Conclui a Apelante que o Tribunal não podia ter proferido decisão sem realizar a audiência prévia.
Efectivamente, no caso em apreço, não foi realizada audiência prévia. Importa, por conseguinte, verificar se estamos perante um caso de obrigatoriedade da realização da mesma e qual a consequência jurídica dessa omissão.

Como flui do art.º 591.º do C. P. Civil[1], concluídas as diligências mencionadas no n.º 2 do artigo anterior ou findos os articulados, é convocada audiência prévia destinada a algum ou alguns dos fins seguintes:
a)-realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594.º;
b)-facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa;
c)-discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate;
d)-proferir despacho saneador, nos termos do n.º1 do art.º 595.º;
e)-determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º;
f)-proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes;
g)-programar, após audição dos mandatários, os atos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e designar as respetivas datas.

Por sua a vez, no seu art.º 592.º prevê-se os casos em que a audiência prévia não tem lugar, a saber:
(i)-Nas ações não contestadas que tenham prosseguido em obediência ao disposto nas alíneas b) a d) do artigo 568.º;
(ii)-Quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados.
E acrescenta-se no art.º 593.º os casos em que o juiz pode dispensar a audiência prévia, apenas o admitindo para as ações que devam prosseguir e desde que a diligência tenha por finalidades as indicadas nas alíneas d), e) e f) do n.º1 do art.º 591.º.
Assim, da conjugação destas disposições legais decorre, sem margem para qualquer dúvida, que o regime regra é o de que a audiência prévia tem sempre lugar, como se prevê no art.º 591.º, salvo nas situações previstas no art.º 592.º, em que não se realiza, ou nas hipóteses expressamente contempladas no art.º 593.º/1, em que se atribui ao juiz a faculdade de a dispensar.
Nos termos do disposto no art.º 592.º n.º 1 b), a audiência prévia não se realiza “quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados.”

Ora, no caso que nos ocupa, tendo sido invocada a excepção dilatória da ilegitimidade da Autora, por parte do Réu, a Autora exerceu o seu direito ao contraditório e pronunciou-se sobre tal excepção. Porém, o Tribunal não decidiu com base na invocada excepção da ilegitimidade, considerando antes a existência da excepção inominada de falta de interesse em agir, conduzindo esta igualmente à absolvição do Réu da instância.
Será que poderemos considerar que esta excepção dilatória foi debatida nos articulados de forma a podermos integrar o caso em apreço na previsão do supra- citado artigo 592.º n.º 1 alínea b)?
Vejamos:
Na verdade, a excepção da ilegitimidade distingue-se da excepção da falta de interesse em agir.
O interesse processual é designado por Antunes Varela[2]como um pressuposto processual referente às partes, embora a lei não lhe faça referência expressa.
O interesse processual consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção.”[3]
Os Autores italianos designam tal pressuposto como interesse em agir e a doutrina germânica denomina-o de necessidade de tutela judiciária.
A imbatível clarividência do Autor ajuda-nos a compreender a natureza deste pressuposto processual com os seguintes exemplos:
Se ninguém contestou o direito do dono do terreno, nem violou por qualquer forma as suas faculdades de uso e fruição da coisa, é evidente a falta de interesse na acção que ele proponha para fazer reconhecer o seu direito de propriedade pelos proprietários vizinhos. Se a empresa mineira, obrigada a fornecer durante dois anos, duzentas toneladas de minério por mês, cumprir pontualmente, durante o primeiro ano, a obrigação assumida, nenhum interesse processual tem a sociedade credora em accionar a devedora para obter a condenação dela no fornecimento das prestações ao longo do segundo ano de vigência do contrato.”[4]

Importa delimitar este interesse em agir, ou interesse processual, dos restantes pressupostos processuais:
“O demandante pode ter personalidade judiciária, gozar de capacidade judiciária ou estar devidamente representado ou assistido e, todavia, não ter interesse processual, por não estar necessitado de recorrer à acção. Os primeiros pressupostos referem-se à qualidade ou atributos inerentes à pessoa dos litigantes, enquanto o interesse processual se reporta à situação objectiva de carência em que ele se encontra”.
E também se distingue da legitimidade. No caso que nos ocupa tem especial interesse analisar essa diferença face à excepção dilatória da ilegitimidade que foi invocada pela Ré.

Como continua a esclarecer Antunes Varela[5]:
“O autor pode ser o titular da relação material litigada e ser consequentemente a pessoa que, em princípio tem interesse na apreciação jurisdicional dessa relação e não ter, todavia, em face das circunstâncias concretas que rodeiam a sua situação, necessidade de recorrer à acção. Inversamente, pode suceder que exista necessidade de obter a providência judiciária requerida (porque haja violação do direito e se torne necessária a intervenção do tribunal para a remover, p.ex.) e, todavia, a pessoa que a requer não seja o verdadeiro (ou o único) titular da relação litigada. Uma coisa é, de facto, a titularidade da relação material litigada, base da legitimidade das partes; outra, outra, substancialmente distinta, a necessidade de lançar mão da demanda, em que consiste o interesse em agir.

Logo, estando perante excepções totalmente distintas, forçoso é concluir que o exercício do direito do contraditório, relativamente à invocada excepção da ilegitimidade não aproveita relativamente à excepção da falta de interesse em agir, que foi objecto de conhecimento oficioso, por parte do Tribunal, em relação à qual não foi dada a oportunidade às partes de se pronunciarem.
É, assim, evidente que a situação em apreço não se pode considerar abrangida pelo disposto no art.º 592.º n.º 1 b).
Excluída a aplicabilidade ao caso concreto desta previsão legal, que seria a única hipótese de o integrar nalguma das situações legalmente previstas de dispensa da realização de audiência prévia, resta concluir que o caso sub judice fica abrangido pela regra geral da obrigatoriedade da audiência prévia.
Sobre esta regra da obrigatoriedade de realização da audiência prévia, obviamente fora dos casos em que a lei prevê a sua dispensa, tem sido produzida numerosa jurisprudência[6].

Também na doutrina, a obrigatoriedade de realização desta audiência prévia, é defendida de forma igualmente unânime, referindo Ferreira de Almeida[7], o seguinte: «Uma vez executado o despacho pré-saneador (ou seja, uma vez concluídas as diligências resultantes do preceituado no nº 3 do art.º 590º - correcção das irregularidades formais dos articulados), ou, não tendo a ele havido lugar, logo que o processo lhe seja feito concluso, após a fase dos articulados, o juiz, observado o preceituado pelo art.º 151º, nºs 1 e ss., designa dia para a audiência prévia indicando o seu objecto e finalidade de entre os constantes do nº 1 do artº 591º, a realizar num dos 30 dias subsequentes, salvo se ocorrer alguma das hipóteses previstas no art.º 592º (em que a mesma não pode ex-lege realizar-se) ou no artº 593º (em que o juiz a entenda dispensável).»

Também no mesmo sentido, defendem João Correia, Paulo Pimenta e Sérgio Castanheira[8]que «por princípio, no processo comum de declaração, é obrigatória a realização de audiência prévia (…) sempre que o juiz projecte conhecer no despacho saneador de uma excepção peremptória ou de algum pedido (independentemente do possível sentido da decisão), deverá convocar audiência prévia para os efeitos do artº 591º.1.b)», aditando que «está em jogo assegurar o exercício do contraditório, na acepção de direito a produzir alegações antes de uma decisão final (artº 3º.3)»[9]

Relativamente à necessidade de ser convocada a audiência prévia, refere Paulo Pimenta[10], no que vem a propósito do caso que nos ocupa: “Antes de mais, impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão que, provavelmente, não esperariam fosse já proferida, isto é, evita-se uma decisão-surpresa (art.º 3º n.º 3). Depois, são acautelados os casos em que a anunciada intenção de conhecimento imediato do mérito da causa derive de alguma precipitação do juiz, tanto mais que não é frequente a possibilidade de, sem a produção de prova, ser proferida já uma decisão final.”

Aqui chegados, a questão que se coloca é a de saber qual a consequência da indevida dispensa da audiência prévia.
Decorre do exposto que a convocação da audiência prévia tem, além do mais, a finalidade de assegurar o respeito pelo princípio do contraditório, e, assim, evitar decisões-surpresa (art. 3º, nº 3), pelo que o juiz só a poderá dispensar, ao abrigo do disposto nos arts. 6º e 547º, se o conhecimento da matéria decidenda assentar em questão suficientemente debatida nos articulados.[11]

No caso ora em análise, não foi realizada a audiência prévia, sendo certo que foi posto fim ao processo, através da absolvição da instância do Réu, com fundamento numa excepção dilatória, conhecida oficiosamente, sem que às partes tenha sido dada a oportunidade de sobre a mesma se pronunciar. A decisão proferida constitui, pois, uma verdadeira decisão surpresa que o nosso código de processo civil proíbe.

A violação do princípio do contraditório, princípio basilar do nosso direito processual civil, mediante a prolação de uma decisão-surpresa, não pode deixar de constituir uma nulidade processual, prevista no nº1, do artº. 195º, onde se consagra que “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
Face à relevância e primordial importância do contraditório, é indiscutível que a inobservância desse princípio, com prolação de decisão-surpresa, é susceptível de influir no exame ou decisão da causa, pelo que esta decisão sempre padeceria de tal nulidade.[12]
Porém, a questão está em saber se tal violação das regras do processo se reconduz a uma comum nulidade processual, enquadrável na previsão genérica do artigo 195º, nº 1, do Código de Processo Civil, e invocável no prazo de dez dias sob pena de sanação, ou se constituirá uma nulidade da própria sentença que por força da referida violação do princípio do contraditório, foi inquinada pelo vício formal do excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte do Código de Processo Civil.

Vejamos:

Como é sabido, quando está em causa o cometimento de uma nulidade processual coberta pela decisão judicial que a acolhe, neste caso o saneador sentença recorrido, o meio adequado para invocar tal infracção às regras processuais é o recurso contra essa decisão, a apresentar junto da instância superior (se for admissível), e não a sua reclamação directamente perante o juiz a quo.

Neste sentido, ensina Manuel de Andrade[13]: “Basta um simples requerimento a que se dá o nome de reclamação (para invocar a nulidade), (...) Mas se a nulidade está coberta por uma decisão judicial (despacho) que ordenou, autorizou ou sancionou o respectivo acto ou omissão (ainda que só de modo implícito – nota 1) em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. É a doutrina tradicional, condensada na máxima: dos despachos recorre-se; contra as nulidades reclama-se”.

No mesmo sentido, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[14]: “(...) quando um despacho judicial aprecia a nulidade dum acto processual ou, fora do âmbito da adequação formal do processo, admite a prática dum acto da parte que não podia ter lugar, ordena a prática dum acto inadmissível ou se pronuncia no sentido de não dever ser praticado certo acto prescrito na lei, a questão deixa de ter o tratamento das nulidades par seguir o regime do erro de julgamento, por a infracção praticada passar a ser coberta pela decisão, expressa ou implícita, proferida, ficando, quanto a ela, esgotado, o poder jurisdicional”.

Também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa[15]salientam: “A reclamação e o recurso não são meios de impugnação concorrentes, cabendo à parte reclamar previamente para suscitar a prolação de despacho sobre a arguida nulidade. Mas se houver um despacho a ordenar ou autorizar a prática de um acto ou se determinada decisão (maxime sentença) for precedida de nulidade do conhecimento oficioso ou tiver faltado alguma formalidade de cumprimento obrigatório, ajustar-se-á a imediata interposição de recurso”.

Ora, a conduta processual do juiz a quo, consubstanciada na omissão da realização da audiência prévia que era legalmente obrigatória, como se viu, passando a proferir decisão antes do momento em que tal lhe era processualmente permitido, constitui, sem dúvida alguma, uma falta processual traduzida, simultaneamente, na omissão de um acto que a lei prescreve e no cometimento de outro que a lei lhe proíbe, na medida em que produziu um acto de julgamento, num momento em que a lei ainda não o permitia fazê-lo.

Não há dúvida de que estamos perante o caso descrito nos excertos doutrinários supra- mencionados, em que a nulidade decorrente de uma omissão de acto que a lei prescreve é totalmente coberto por decisão judicial que se pronunciou sobre questão sobre a qual naquele momento não podia pronunciar-se.

Assim, nestas especiais circunstâncias, a nulidade cometida comunica-se ao despacho saneador-sentença, inquinando-o, ficando a decisão judicial (que não deveria ter sido proferida), contaminada por um vício que atinge o próprio acto jurisdicional de julgamento. A decisão enferma, pois, de um excesso de pronúncia enquadrável no disposto no art.º 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte, do Código de Processo Civil, não se limitando a uma simples omissão de uma diligência que deveria ter tido lugar e que, por falta imputável ao juiz da causa, não sucedeu.

Com efeito, o que verdadeiramente releva no caso é a pronúncia sobre uma questão que pôs fim ao processo, sem respeito pelo princípio do contraditório (artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil) tendo o Tribunal a quo decidido em momento no qual a lei não lhe permitia proferir sentença, culminando numa verdadeira e proibida decisão surpresa, que consumiu a omissão da audiência prévia, por si só, também passível da invocação de nulidade nos termos gerais.

Diversos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciaram sobre esta matéria e neste mesmo sentido que ficou exposto[16].

Assim, pode ler-se no referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Abril de 2021 que “ A violação do princípio do contraditório do artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, dá origem não a uma nulidade processual nos termos do artigo 195º do Código de Processo Civil, mas antes a uma nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), 666º, nº 1, 625º, do mesmo diploma”.

Sem necessidade de maiores desenvolvimentos, procede, pois, o recurso, declarando-se a nulidade da decisão recorrida, nos termos do disposto no art.º 615.º n.º 1 d) in fine, do CPC.
           
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Face à decisão de declarar a nulidade da decisão recorrida, fica prejudicado o conhecimento das demais questões enunciadas, ou seja, a nulidade da decisão por omissão de pronúncia e, obviamente, a reapreciação da excepção de falta de interesse em agir cujo conhecimento sem precedência de audiência prévia enferma de nulidade.

IV–DECISÃO

Em face do exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso, anulando a decisão recorrida.

Custas pelo Apelado.



Lisboa, 9 de novembro de 2023


Maria de Deus Correia
Gabriela Marques
Vera Antunes.


[1]Serão do Código de Processo Civil os artigos doravante citados sem indicação de proveniência.
[2]Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, p.179.
[3]Sublinhado nosso.
[4]Idem, ob.cit.,p.180.
[5]Ob. cit. p. 181.
[6]Vide, a título exemplificativo, Acórdão do TRL de 05-05-2015, Processo n.º1386/13.2TBALQ.L1-7, Acórdão da Relação de Évora de 30-06-2016, Processo 309/15.9T8PTG-A . F1, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12-11-2015, Processo 4507/13.1TBMTS-A.P1. Também neste mesmo TRL, e desta 6.ª secção, acórdão de 11-10-2018, Processo 166/17.0T8AND.L1-6, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[7]Direito Processual Civil, vol. II, 2015, pág. 190.
[8]Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, Coimbra, 2013, p. 73.
[9]Idem, p. 77.
[10]“Processo Civil Declarativo”, 2014, Almedina, págs.. 231-232.
[11]Tal como é decidido no já citado acórdão deste Tribunal e secção, de 11-10-2018, relatado pela ora 1.ª Adjunta.
[12]Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02-12-2019, Processo 14227/19, disponível em www.dgsi.pt
[13]Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, p. 183.
[14]“Código de Processo Civil Anotado”, Janeiro de 2021, 4ª edição, pp. 404 – 405.
[15]Código de Processo Civil Anotado Vol. I, Parte geral e Processo de Declaração, p.249
[16]Vide acórdãos do STJ de 16-12-2020, proferido no processo nº 656/14.7T8LRS.L1.S1;de 23 de Junho de  2016, proferido no processo nº1937/15.8T8BCL.S1, de 22 de Fevereiro de 2017, proferido no processo nº 5384/15.3T8GMR.G1.S1, de 13 de Abril de 2021 proferido no processo nº 2019/18.6T8FNC.L1.S1, de 13 de Outubro de 2020, proferido no processo nº 392/14.4T8CHV-A.G1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt .