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PROPRIEDADE HORIZONTAL
ALOJAMENTO LOCAL
DIREITOS DOS CONDÓMINOS
PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
INVERSÃO DO CONTENCIOSO
Sumário
I - As providências cautelares são uma antecâmara do processo principal, possibilitando a emissão de uma decisão interina ou provisória destinada a atenuar os efeitos erosivos decorrentes da demora na resolução definitiva ou a tornar frutuosa a decisão que, porventura, seja favorável ao requerente. II - Para que seja decretada uma providência cautelar não especificada são condições essenciais a existência provável de um direito e o perigo deste não ser satisfeito, resultante de justo receio de lesão grave ou de difícil reparação. III - No regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo, de que certa fracção se destina a habitação, deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de alojamento local. IV - O direito dos condóminos do condomínio requerente ao repouso e protecção da saúde, no fundo à sua qualidade de vida, ou seja, a efectiva tutela do direito de personalidade dos condóminos vizinhos, devia prevalecer relativamente ao direito ao exercício da actividade económica ou o direito à fruição do direito de propriedade. V - A sanção pecuniária compulsória não tem como fim indemnizar o credor pelos danos sofridos com a mora, tendo antes como objectivo forçar o devedor a cumprir, vencendo a resistência da sua oposição ou do seu desleixo, indiferença ou negligência. VI - A possibilidade de inversão do contencioso leva a que o procedimento cautelar deixe de ser necessariamente instrumental e provisório, porquanto permite que se forme convicção sobre a existência do direito apta a resolver de modo definitivo o litígio, verificados os pressupostos legalmente previstos.
Texto Integral
Apelação nº 4507/23.3T8PRT.P1
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível do Porto
Relator: Carlos Portela
Adjuntos: Ana Luísa Gomes Loureiro
Maria Manuela Esteves Machado
Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório:
O Condomínio do Edifício ..., sito na Rua ... Porto, representado pela empresa A..., Gestão e Administração de Condomínios, Lda., instaurou contra B..., Lda. o presente procedimento cautelar comum formulando os seguintes pedidos:
“a) (Deve) Ser ordenado à Requerida que cesse imediatamente a utilização da fracção autónoma designada pela letra BP para estabelecimento de alojamento local e reintegre tal fracção no seu destino específico.
b) (Deve) Ser a Requerida condenada no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, no valor de 700,00€ por cada dia de incumprimento, até à cessação dos efeitos da providência cautelar decretada.
c) (Deve) Ser decretada a inversão do contencioso, com a consequente dispensa do Requerente do ónus da propositura da acção principal de que esta providência estaria dependente.
Fundamenta a sua pretensão alegando, em síntese útil, que a fracção autónoma designada pela letra BP, da propriedade da requerida, destina-se a habitação, tal como resulta do título constitutivo da propriedade horizontal; porém, na mesma funciona um estabelecimento de alojamento local (registado sob o n.º ...32...), sendo aí prestados serviços de alojamento temporário, mediante remuneração, disponibilizando-se aos clientes a fracção mobilada e equipada, sendo facultado aos clientes acesso a lugares de garagem, ao elevador e ao terraço da fracção, decorrendo da prestação de tais serviços uma grande perturbação do descanso daqueles que fazem das fracções contíguas e vizinhas a sua habitação, nela organizando a sua vida corrente e dela fazendo o centro da sua vida doméstica, para além da insegurança provocada pela constante entrada e saída do prédio de pessoas desconhecidas – incluindo, na zona das garagens – e o desgaste e sujidade acrescidos das partes comuns, que desvalorizam o prédio e obrigam a despesas adicionais por parte dos demais condóminos.
Foi ordenada a citação da requerida, a qual deduziu oposição.
Na mesma invocou, em suma, a falta de fundamento e a falta de verificação dos requisitos legais para o decretamento da providência requerida.
Concluiu pugnando pela improcedência da pretensão da requerente.
Foi designada data para a inquirição das testemunhas.
Procedeu-se à audiência final prevista no art.º 367.º do Código de Processo Civil, onde se inquiriram as testemunhas indicadas por ambas as partes, com observância dos legais formalismos.
Foi então proferida decisão na qual se julgou o presente procedimento cautelar comum procedente e, em consequência:
- Se condenou a requerida a fazer cessar a utilização da sua fracção autónoma “BP” para alojamento local e a abster-se de a utilizar para tal fim; e
- Se condenou a requerida na sanção pecuniária compulsória no montante de 250€ (duzentos e cinquenta euros) por cada dia de atraso no cumprimento da presente decisão, a contar desde o 31º dia após o trânsito em julgado da presente decisão.
Mais se advertiu a requerida que incorrerá no crime de desobediência, nos termos do artigo 375º do CPC, caso infrinja a providência decretada.
Por fim, dispensou-se a requerente do ónus da propositura da acção principal e declarou-se invertido o contencioso, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 371º do CPC.
A Requerida veio interpor recurso desta decisão, apresentando desde logo e nos termos legalmente prescritos as suas alegações.
A Requerente contra alegou.
Foi proferido despacho no qual se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata e nos próprios autos.
Quanto ao efeito do recurso foi proferido despacho onde se considerou injustificado o incidente de prestação de caução deduzido pela requerida/apelante e nestes termos fixado ao mesmo efeito meramente devolutivo.
Recebido o processo nesta Relação emitiu-se despacho que teve o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais e nada obstando a tanto, cumpre apreciar e decidir o recurso interposto.
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II. Enquadramento de facto e de direito:
Ao presente recurso são aplicáveis as regras processuais da Lei nº41/2013 de 26 de Junho.
É consabido que o objecto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pela requerida/apelante nas suas alegações (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC). E é o seguinte o teor dessas mesmas conclusões:
A. Vem o presente recurso interposto da douta Sentença, quanto à matéria de facto e, consequentemente, também quanto à matéria de direito;
B. Pese embora a Recorrente reconheça ser douta, a Sentença ao ter decidido como decidiu, não fez a correcta aplicação da factualidade e prova realizada nos autos;
C. Salvo o devido respeito, da sua correcta análise, resultaria, necessariamente, uma decisão diversa daquela que foi proferida, conforme segue;
D. Os factos dados como suficientemente indiciados, objecto do presente recurso, não se encontram sumariamente demonstrados, mas simplesmente poderão ser, somente, aparentes;
E. O que não é suficiente para a determinação da procedência da providência em causa;
F. Da prova realizada no âmbito do mesmo, com relevo para a prova gravada, resulta que foi feita prova, em súmula, que os prejuízos e incómodo, alegadamente provocados pela actividade de alojamento local, são vivenciados e experienciados pela vizinha da habitação contínua (habitação nº ...5), também testemunha nos autos, de uma forma muito subjectiva;
G. Sendo certo que o Recorrido apresentou outras testemunhas nos autos, ainda, assim, os seus depoimentos mostram-se insuficientes para comprovar ou indiciar a universalidade dos prejuízos e incómodos que seriam exigidos para dar como procedente/decretada a providência cautelar;
H. Tanto ao nível do ruído, limpeza ou falta de segurança, alegados pelo Recorrido;
I. A douta sentença fundamentou a sua decisão de procedência da providência cautelar na prova documental e, essencialmente, nos depoimentos das testemunhas do Recorrido;
J. Em detrimento dos depoimentos das testemunhas apresentadas pela Recorrente, que não mereceram ao douto Tribunal qualquer relevância, conforme fundamenta no ponto III, acerca da convicção “(…) não resultaram de molde a contrariar o atestado pelas supra identificadas testemunhas, contribuindo antes para corroborar a materialidade levados aos factos n.ºs 20 a 22, a qual, de resto, já resultava da prova documental coligida nos au- tos. “;
K. Ignorando, assim, que as testemunhas da Recorrente, com especial incidência na testemunha AA, também morador do prédio, que de forma espontânea, credível, objectiva e convincente, foram capazes de comprovar nos autos que a proprietária da habitação ...5ª, fracção contínua à habitação ...4º, é quem se sente incomodada;
L. E que se trata de um sentimento subjectivo, que nada se deve à actividade de alojamento local, ali desenvolvida;
M. Sendo, assim, os seus depoimentos fundamentais para contradizer os depoimentos das testemunhas do Recorrido;
N. E conduzir à tese da insuficiência da indiciação dos factos necessários ao preenchimento dos requisitos da procedência da providência cautelar requerida;
O. Andou mal o Tribunal a quo ao ter dado como suficientemente indiciado que os serviços prestados na fracção da Recorrente tem perturbado o descanso dos habitantes das fracções do edifício, particularmente, daquelas que se situam na mesma entrada (facto nº 10);
P. Bem como tem vindo a provocar uma grande perturbação do descanso daqueles que fazem das fracções contíguas e vizinhas a sua habitação, nela organizando a sua vida corrente e dela fazendo o centro da sua vida doméstica (facto nº 14);
Q. Quando não existem registos de queixas nesse sentido;
R. Quando a deliberação de encerramento da actividade de alojamento local não consegue precisar, com detalhe, e imputar à actuação da Recorrente qualquer facto susceptível de fundamentar tal deliberação;
S. Não se bastando, assim, a indiciação em causa, com o depoimento das testemunhas do Recorrido que, salvo o devido respeito, estão imbuídas no espírito de proibição da actividade de alojamento local, na senda na mais recente orientação jurisprudencial do supremo tribunal de justiça, sem que se verifique na prática;
T. O tribunal a quo, antes de mais, desconsiderou, por completo, a realidade do imóvel subjudice, imóvel já antigo, com problemas acústicos e ao nível da sua insonorização;
U. Sem que tal signifique que haja uma movimentação rui dosa por parte dos vários clientes da arrendatária da Recorrente, que não resulta da matéria dada como suficientemente indiciada;
V. Para além disso, e tendo presente a problemática de falta de isolamento acústico no prédio, as testemunhas da Recorrente, foram todas assertivas, o que demonstra credibilidade, ao explicarem que a empresa exploradora do alojamento local tomou iniciativa de instalação de um sensor de som no apartamento, de modo a monitorizar o ruido eventual no interior;
W. Andou mal o doutro Tribunal a quo ao ter dado como suficientemente indiciados os factos 11 a 13;
X. Portanto, não poderia o tribunal a quo considerar suficientemente indiciado tal facto (facto nº 15), quando existe nos autos, através da citada prova testemunhal, a prova, ou a suficiente indiciação, do inverso;
Y. Deu o tribunal a quo, ainda como suficientemente indiciado o facto 16º, referente ao desgaste e sujidade acrescidos das partes comuns;
Z. Imponha-se uma tomada de posição distinta, atendendo que não foi feita qualquer prova dessa indiciação ou da relação de nexo causal entre a actividade de alojamento local e o alegado desgaste e sujidade;
AA. As testemunhas da Recorrente até conseguiram demonstrar que o desgaste e sujidade não se devem ao alojamento local, mas sim a actuação de terceiros, nomeadamente, moradores;
BB. Relativamente aos factos dado considerados como não suficientemente indiciados pelo doutro tribunal, constantes das alíneas a) e b) constam dos autos prova testemunhal cabal capaz de inverter os factos, no sentido de os considerar como suficientemente indiciados;
CC. Remete-se para o supra exposto nos artigos 45º, 48º, 49º, 52º e 54º, vistos que comprovam a situação específica da moradora da habitação ...5..., que devido à sua proximidade com a habitação nº ...4 (o seu quarto no interior da sala da habitação ...4º), até o simples ligar da televisão a incomoda;
DD. Acresce, ainda, que fica corroborado este sentimento mais subjectivo vivenciado pela proprietária da habitação nº ...5, pelo acerto documental, nomeadamente queixas policiais, realizadas única e exclusivamente pela própria, sem referência a qualquer outro morador;
EE. Não há nenhuma queixa que se reporte a uma data próxima, ou sequer mesmo que se refira ao corrente ano de 2023;
FF. Algumas das participações foram realizadas ainda dentro do período legal em que é permitido o chamado “ruído de vizinhança”, nos termos do artigo 23º, nº 1 do Regulamento Geral do Ruído (Decreto-Lei n.º 9/2007);
GG. Andou mal o douto tribunal ao ter decidido como decidiu, impondo-se a alteração da prova dada como suficientemente indiciada, nos termos supra expostos;
HH. Salvo o devido respeito, andou mal o douto Tribunal a quo ao ter considerado procedente a providência cautelar, por verificação de todo os requisitos, previstos no artigo 362º do CPC;
II. Não poderia o tribunal ao quo ter enveredado por esta interpretação restritiva, de não inclusão do alojamento local, sem que encontrasse no caso concreto quaisquer elementos que pudessem enquadrar que pudessem afastar o conceito de habitação;
JJ. Assim, andou mal o tribunal ao quo ter considerado preenchido o requisito da existência do direito violado, somente pela verificação do destino da fracção em causa para habitação;
KK. Não ficou demonstrado que o dessossego, perturbação, desgaste excessivo das zonas comuns seja, efectiva- mente, consumada e de prejudicar a universalidade dos condóminos;
LL. Tendo, sim, ficado demonstrado, que existe um espírito, entre somente poucos condóminos que se sentem incomodados e pretendem cessar a actividade de alojamento local, no seguimento da decisão jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça;
MM. Sem que exista, verdadeiramente, um perigo ou consumação da universalidade dos direitos de personalidade, direito ao repouso, ao sossego e à tranquilidade da vida familiar, e de forma gravosa e desproporcional, relativamente à universalidade dos condóminos;
NN. A douta sentença recorrida considerou, assim, que a providência decretada não se revela excessiva, no confronto entre os direitos constitucionais em confronto;
OO. Contudo, face à factualidade impugnada, fê-lo, com todo o respeito, erroneamente;
PP. Uma vez que não ficou demonstrado a afectação dos prejuízos de forma universal, isto é, relativamente à universalidade dos condóminos,
QQ. Nem que tal afectação é causada de forma desproporcional e excessiva;
RR. Assim, e salvo o devido respeito por diverso entendi mento, o direito ao exercício da actividade económica ou o direito à fruição do direito de propriedade deverá prevalecer;
SS. Assim, por todo o exposto, andou mal o douto tribunal ao ter decidido como decidiu e ao ter decretado a providência cautelar em causa;
TT. Com todo o respeito, não poderia o douto Tribunal a quo ter dispensado o Recorrido do ónus da propositura da acção principal, na medida da correcta interpretação da factualidade dos autos, não resulta uma convicção segura sobre o direito acautelado nem da realização da composição definitiva do litígio;
UU. Caberia ao Recorrido comprovar, em sede de acção principal, com rigor, com precisão e com que intensidade e frequência, as perturbações, os incómodos, e os prejuízos, relativamente à universalidade dos condóminos;
VV. Bem como a verificação de desproporcionalidade e excesso;
WW. Pelo que a procedimento cautelar decretado, salvo o devido respeito, não é capaz de realizar a composição definitiva do litígio, estando, por isso, dependente de uma causa principal.
NESTES TERMOS e nos melhores de Direito, que por certo V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser considerado procedente por provado e, por via dele ser revogada a douta decisão e ser substituída por uma outra que julgue improcedente o procedimento cautelar, absolva a Recorrente de cessar a utilização da fracção autónoma BP para alojamento local e abster-se de a utilizar para tal fim, absolva a Recorrente da sanção pecuniária de € 250,00; e, por último, caso assim não se entenda, que revogue a declaração de inversão do contencioso
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E o seguinte o conteúdo das conclusões das contra alegações da requerente/apelada:
I. Ao contrário do alegado pela Recorrente, nada na lei prevê que a caução corresponda aos “prejuízos” do Recorrido e, por outro, que corresponda ao “valor da acção”.
II. Pelo que nenhum sentido faz (como pretende a Recorrente) que o processo seja devolvido ao tribunal recorrido para apuramento do prejuízo do Recorrido, a que acresce o facto de não ter sido interposto recurso da decisão que fixou o valor da acção e o consequente esgotamento do poder jurisdicional.
III. A prestação de caução para obtenção do efeito suspensivo da decisão de decretamento da providência cautelar afigura-se, in casu, contrário aos fins da tutela cautelar, pelo que não deve, em todo o caso, ser admitida.
IV. Com efeito, o periculum in mora incide, neste caso, sobre direitos de personalidade, de natureza pessoal, sem expressão pecuniária, que foram julgados, pelo tribunal a quo, prevalecentes sobre o direito alegado pela Recorrente, de prosseguir uma certa actividade económica.
V. Admitir-se a possibilidade de a Recorrente prestar caução nesta fase e neste caso, com o intuito de obter o efeito suspensivo da decisão, seria contrário à natureza urgente do procedimento cautelar, uma vez que a caução, neste caso, não permitira afastar ou sequer mitigar o perigo de lesão que a actividade prosseguida na fracção da Recorrente representa.
VI. Outrossim, tal caução, a admitir-se, constituiria um “livre passe” para a perpetuação do dano, que se agravaria, frustrando-se assim os próprios objectivos da tutela cautelar.
VII. Não assiste razão à Recorrente na impugnação da matéria de facto, porquanto tribunal a quo valorou correctamente, de acordo com o critério da livre apreciação da prova, dentro dos limites impostos pelas regras da experiência comum, e de modo conjugado, toda a prova produzida.
VIII. Incluindo, os testemunhos de que se socorre a Recorrente para justificar o presente recurso, que foram prestados por quem se encontra vinculado, seja por vínculo laboral, seja societário, à empresa que explora o alojamento local na fracção propriedade da Recorrente.
IX. Acresce que a Recorrente não desconhece a falta de fundamento da impugnação da matéria de facto, no entanto, a interposição de um recurso que impugna matéria de facto permite arrastar o litígio por mais dez dias e se for apresentado no último dia do prazo com multa (como foi o caso) torna-se evidente a natureza dilatória dos actos processuais da Recorrente.
X. Também quanto à questão de direito andou bem o Tribunal a quo, julgando verificados os requisitos para o decretamento da providência cautelar, nada havendo a apontar à douta sentença proferida.
XI. Considerando a jurisprudência uniformizada do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2022, publicado no Diário da República, n.º 90, 1.ª Série, de 10-05-2022, pp. 8 a 32, o douto Tribunal recorrido julgou verificado o requisito da aparência do direito ameaçado invocado pelo aqui Recorrido no seu requerimento inicial, como não poderia deixar de ser, uma vez que o direito de propriedade não é absoluto.
XII. No caso da propriedade horizontal, tal direito encontra-se limitado, desde logo, pelo fixado no seu título constitutivo.
XIII. Também quanto ao fundado receio de que outrem, antes de proferida a decisão de mérito, cause lesão grave e dificilmente reparável do direito (o periculum in mora) – ponto sobre o qual versa a matéria de facto impugnada – julgou e bem que tal requisito se verificava, consistindo o mesmo, aliás, em “evitar a continuação do dano” que se dera já por verificado de modo seguro.
XIV. Além disso, verifica-se a proporcionalidade e adequação da providência decretada à tutela dos direitos em causa, no confronto e ponderação com os prejuízos a que o decretamento da providência poderia conduzir.
XV. Estão também verificados os pressupostos de decretamento da inversão do contencioso, uma vez que o tribunal formou convicção segura acerca da existência do direito acautelado (caucionada, aliás, pelo entendimento expresso no já referido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência), e a providência decretada é de cariz antecipatório, coadunando-se assim a sua natureza com a composição definitiva do litígio.
XVI. O presente recurso trata-se de mais uma manobra dilatória da Recorrente, a ser valorada pelo douto Tribunal ad quem, com todas as consequências legais.
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Perante o antes exposto, resulta claro que são as seguintes as questões suscitadas no presente recurso:
1ª) A impugnação da decisão de facto;
2ª) O preenchimento (ou não) dos pressupostos para a procedência da providência cautelar.
Estando em causa, como está, a decisão proferida quanto à matéria de facto, impõe-se recordar aqui qual é o conteúdo da mesma.
Assim:
“II. Fundamentação de facto: Factos indiciados:
Ao abrigo do disposto nos art.ºs 294.º e 295.º ex vi do art.º 365.º, n.º 3, do Código de Processo Civil e com interesse para a decisão dos presentes autos julgam-se suficientemente indiciados os seguintes factos alegados nos articulados apresentados pelas partes:
1. O Requerente Condomínio do Edifício ..., sito na Rua ... Porto, mostra-se representado pela empresa A..., Gestão e Administração de Condomínios, Lda.
2. A Requerida é uma sociedade comercial por quotas, com o capital social de 5.100,00 Euros, que tem por objecto a “Consultadoria na área de melhoria de processos, formação e prestação de serviços de tradução. Prestação de serviços de engenharia industrial. Implementação de sistemas de melhoria contínua. Consultoria administrativa e de gestão na área do património imobiliário. Arrendamento de imóveis. Compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, aquisição de lotes de terrenos para urbanização, loteamento e sua revenda no todo ou em parte. Gestão de participações sociais não financeiras, prestação de serviços de consultoria e gestão, prestação de serviços de formação”, conforme documento n.º 2 que se junta.
3. O Edifício ... é um prédio urbano, sito na Rua ..., ... e ..., registado na Conservatória do Registo Predial do Porto, Freguesia ..., sob o n.º ...19.
4. Da descrição predial do Edifício ... consta o seguinte texto: “CORPO A-B-C – Habitações; CORPO D – escritórios, zona comercial e garagens”.
5. O prédio em causa foi constituído em propriedade industrial, mediante escritura pública outorgada em 24.11.1982, compreendendo 306 fracções autónomas, designadas pelas letras A a KT.
6. Nos termos dessa escritura, e do documento complementar a ela anexo, as fracções autónomas designadas compreendidas entre as letras “A” e “BR” estão destinadas a habitação;
7. ... Pelo que a fracção “BP” destina-se a habitação, tal como resulta do título constitutivo da propriedade horizontal.
8. As fracções autónomas designadas pelas letras “BP” (habitação ...4 do prédio sito no Edifício ..., ...) e “KB” (aparcamento com arrumo com o n.º...), são propriedade da Requerida.
9. Na fracção “BP” funciona um estabelecimento de alojamento local (registado sob o n.º ...32...), sendo aí prestados serviços de alojamento temporário, mediante remuneração, disponibilizando-se aos clientes a fracção mobilada e equipada, sendo facultado aos clientes acesso a lugares de garagem, ao elevador e ao terraço da fracção.
10. A prestação de tais serviços nas fracções da Requerida tem perturbado o descanso dos habitantes das fracções do edifício, particularmente, daquelas que se situam na mesma entrada.
11. O isolamento acústico do edifício não é suficiente para abafar o ruído provocado pelos vários clientes da Requerida que, por estarem num momento de lazer, entram e saem do prédio de modo ruidoso e, frequentemente, durante a madrugada.
12. É constante a realização de convívios até de madrugada, interrompendo o descanso dos demais moradores com música, conversas em voz alta e audíveis gargalhadas.
13. Também é habitual que os clientes da Requerida cheguem embriagados de madrugada, com grande ruído.
14. O uso das fracções da Requerida para a prestação de serviços de alojamento temporário, caracterizados pela alternância e a variação de clientes, que são pessoas que se encontram em estadias de curta duração, com o intuito de lazer e, por isso, mais propensas a cometer excessos, que se verificam com frequência, tem vindo a provocar uma grande perturbação do descanso daqueles que fazem das fracções contíguas e vizinhas a sua habitação, nela organizando a sua vida corrente e dela fazendo o centro da sua vida doméstica.
15. A isto acresce a insegurança provocada pela constante entrada e saída do prédio de pessoas desconhecidas, incluindo, da zona das garagens;
16. E o desgaste e sujidade acrescidos das partes comuns.
17. Na Assembleia Geral Ordinária de 21 de Junho de 2022, reforçado na assembleia de 16/11/2022, os condóminos do Edifício ... decidiram, por maioria, proibir a actividade de alojamento local no edifício, nos seguintes termos:
“Ponto 10
No âmbito do presente ponto intervieram Condóminos no sentido de manifestar que o uso das fracções para fins de alojamento local não é permitido pelos estatutos do Edifício ... no seu artigo 10 nomeadamente nos pontos 1 e 3; Mais se disse, que têm sido vários os problemas existentes em relação à segurança, ruído e outros incómodos, inclusive tendo sido já necessária por diversas vezes a intervenção policial;
Mais se disse, que o Supremo Tribunal de Justiça, no seu recente Acórdão de 22.03.2022 (Proc. n.º24471/16.4T8PRT.P1.S2-A-RUJ) uniformizou jurisprudência estabelecendo que não é permitida a exploração de uma fracção autónoma como alojamento local, caso a mesma seja destinada a habitação no respectivo título constitutivo de propriedade horizontal. Neste sentido, propunham que fosse votada a proibição do alojamento local neste edifício. (...)
Posta à votação, a permissão ou proibição de actividade de alojamento local no edifício, foi manifestado pelas fracções (...) representativas de 1,93 por cento do valor total a permissão do alojamento local; as fracções (...) representativas de 28,10 por cento do valor total manifestaram-se pela proibição do alojamento local no edifício.
Desta feita, a proibição do alojamento local no edifício obteve ganho por maioria e ficando assim determinada a proibição do alojamento local.”.
18. A 30 de Agosto de 2022, o representante do Requerente remeteu à Requerida uma missiva, que esta recebeu, pela qual solicitou a cessação da actividade até ao dia 02-09-2022, nos seguintes termos: “Vimos, por este meio, no seguimento da aprovado em sede de Assembleia Geral de Condóminos de 21 de Junho de 2022 e lavrado na acta n.º 65, ponto 10 da ordem de trabalhos, informar que foi decidida a proibição de alojamento local no edifício.
Solicitamos, assim, que a v/ fracção cuja utilidade está em regime de AL, possa cumprir com esta deliberação, até ao próximo dia 02.09.2022.”
19. A esta carta a Requerida respondeu, por missiva datada de 12-10- 2022, nos seguintes termos:
“Conforme resulta da Acta da Assembleia de Condóminos, a maior preocupação dos condóminos e que ditou a proibição em causa, pretende-se com a eventual insegurança, ruídos e outros incómodos que possam advir do exercício da actividade de alojamento local.
Contudo, e na qualidade de proprietária, cumpre-me salientar que a actividade de alojamento local desenvolvida na fracção cumpre com todas as regras impostas pelo regulamento do condomínio, especialmente, no que diz respeito à segurança e ausência de ruído. Bem como é uma actividade que é exercida mediante autorização, devidamente concedida ao caso concreto, e cumprimento de regras obrigatórias e impostas pelas demais entidades competentes. E de outra forma não poderia ver, caso contrário não teria a B..., Lda., autorizado tal actividade.
No que diz respeito ao outro fundamento alegado pela maioria dos condomínios, referente à mais recente uniformização de jurisprudência, é de salientar que o Acórdão do Supremo Tribunal de justiça em causa, embora tenha como intenção uniformizar a jurisprudência, não impede que tribunais inferiores continuem a decidir em sentido diverso, até porque estamos perante uma matéria que não é pacífica e que colide com os direitos de uso, fruição e de livre exercício da propriedade dos proprietários, que continuam a deter o direito de poder afectar a sua propriedade privada da maneira que bem entendem, devendo, no entanto, garantir que não são afectados direitos de terceiros, tais como os interesses de sossego e segurança dos residentes habituais de um imóvel de habitação colectiva.
Assim, saliento, uma vez mais a V. Exas. que esta tomada de posição não é pacífica e suscita muitas dúvidas, pelo que só o recurso à via judicial ditará o encerramento da actividade.
Pelo que, para evitar o recurso à via judicial, desde já se informa que a actividade de alojamento local continuará a ser exercida no cumprimento rigoroso de todas as regras impostas, nomeadamente, zelando-se pela segurança e sossego de todos os habitantes do prédio.”.
Mais se apurou que:
20. A Requerida, na qualidade de proprietária, através da outorga de contrato de arrendamento para fim habitacional com prazo certo, outorgado em 19 de Outubro de 2017, deu de arrendamento as fracções autónomas designadas pelas letras “BP” e “KB”, para habitação e para o exercício da actividade comercial de alojamento local, a entidade terceira, de nome “C...”, com NIPC ...75 e sede na Rua ... ..., ... Porto.
21. O contrato iniciou-se em 01 de Novembro de 2017 e vigora, ainda, na presente data.
22. A empresa C..., Lda., é detentora de licença de alojamento local número ....32/AL, emitida em 2017-10-26.
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Factos não indiciados:
Não ficaram suficientemente indiciados os seguintes factos:
a) Que, no que diz respeito à fracção da propriedade da Requerida, apenas uma condómina/proprietária - a que vive na fracção autónoma contígua (habitação nº ...4) - alega estar incomodada;
b) Que esse é um sentimento particular e subjectivo, vivenciado somente pela própria, que sempre ocorreria caso na fracção da Requerida estivesse uma situação de um arrendamento prolongado (também legitimado pelo contrato de arrendamento) e que nada se deve à situação específica de nela se encontrar a ser exercida a actividade de alojamento local.
c) Que também se ouvem gargalhadas e música provindas das outras fracções.
Inexistem quaisquer outros factos para além dos mencionados com relevo para a apreciação do mérito da causa, sejam essenciais ou instrumentais.”
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Segundo o disposto no nº1 do art.º 712º do CPC, a decisão do Tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal da Relação, para além do mais, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo havido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art.º 640º do CPC.
Como e sabido de todos tem havido alterações no que diz respeito aos concretos poderes de reapreciação de prova pela 2ª instância.
Assim num primeiro momento vigorou uma tese mais restritiva que defendia que a 2ª instância não podia procurar uma nova convicção.
Segundo tal tese a reapreciação da matéria de facto devia limitar-se a apurar se a convicção do julgador da 1ª instância tinha suporte razoável no que a gravação transmitia em conjugação com os demais elementos constantes do processo. Ao Tribunal de recurso apenas incumbiria aferir da razoabilidade da convicção do julgador da 1ª instância, restringindo os poderes de alteração da matéria fáctica aos casos de flagrante desconformidade com os elementos de prova disponíveis (cf. entre outros os Acórdãos desta Relação do Porto de 10/07/2006).
Todos aceitam que a gravação dos depoimentos áudio não consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal de 1ª instância, designadamente, o modo como as declarações são prestadas, as hesitações e as reacções dos depoentes e tal terá que ser tido em consideração na apreciação da prova na 2ª instância.
Apesar destas limitações, veio a formar-se uma nova orientação que vai no sentido de que na reapreciação da prova os Tribunais da Relação têm a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância, devendo proceder à audição dos depoimentos e de fazer incidir sobre os mesmos as regras da experiência, como efectiva garantia de um segundo grau de jurisdição.
Assim se a Relação, ao proceder à reapreciação da prova “conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão, fazendo jus ao reforço dos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição” (neste sentido cf. Abrantes Geraldes, Reforma dos Recursos em Processo Civil, Revista Julgar, nº 4, Janeiro-Abril/2008, págs. 69 a 76).
Aceitando que é esta a tese que deve hoje ser subscrita cabe referir que a requerida/apelante cumpriu devidamente os ónus previstos no já antes citado art.º 640º do CPC.
Como já vimos, neste seu recurso a requerida/apelante sugere respostas diversas aos seguintes pontos de facto:
De provados para não provados os factos inscritos nos pontos 10, 11, 12, 13, 14, 15 e 16;
De não provados para provados os factos contidos nas alíneas a) e b).
Antes de entrarmos na análise concreta dos argumentos recursivos que sustentam este recurso, assentes essencialmente na prova testemunhal produzida, impõem-se salientar o seguinte:
Sabemos todos que a força probatória dos depoimentos das testemunhas é livremente apreciada pelo tribunal (art.º 396º do Código Civil). No entanto, livre apreciação não se deve confundir com livre arbítrio.
Assim o julgador deverá efectuar uma análise crítica de todos os elementos probatórios, independentemente da parte que os produziu e que tem o ónus de provar determinado facto, com o fim de motivar e justificar a sua decisão.
Nessa apreciação crítica irá valorar tanto individualmente como globalmente a prova produzida, operação na qual irá socorrer-se das regras da normalidade, da verosimilhança, do bom senso e experiência da vida.
Os diversos elementos de prova devem assim ser apreciados em correlação uns com os outros, de forma a discernir aqueles que se confirmam e aqueles que se contradizem, possibilitando ou a remoção das dúvidas ou a constatação de que o peso destas é tal que não permite uma convicção segura acerca do modo como os factos se passaram e de quem foram os seus agentes.
Mais, o julgador no seu trabalho de valoração da prova e de reconstituição dos factos tendo em vista atingir uma verdade que seja verosímil, não está obrigado a aceitar ou recusar cada uma das declarações ou depoimentos na globalidade.
Pode pois extrair de cada um deles, o que lhe merece ou não crédito, tendo presente que a circunstância de uma versão dos factos não ser totalmente coincidente com outra ou outras apresentadas não significa necessariamente que a primeira não seja verdadeira, podendo resultar de diferente percepção da realidade em relação a um ponto ou momento concreto da dinâmica da ocorrência ou menos precisão por falha de memória devido ao decorrer do tempo.
Nestes termos, não viola qualquer regra de direito probatório a não valorização da totalidade do depoimento de uma testemunha se, em face dos demais elementos de prova e de acordo com as regras da experiência e da lógica, se evidencie por exemplo que, relativamente a certos factos, a testemunha assumiu um posicionamento interessado.
Ou seja, a decisão da matéria de facto deverá tentar demonstrar o processo de raciocínio do julgador, tarefa que é difícil, até porque há factores determinantes para a formação da convicção que não são de todos documentáveis.
Assim para que o Tribunal possa dar como provado um determinado facto não tem que se convencer da certeza absoluta da sua verificação, mas tem que convencer-se com alguma segurança, tem que ocorrer pelo menos um alto grau de probabilidade suficiente de que determinados factos ocorreram ou não ocorreram.
Pode pois dizer-se que a justiça apenas exige um grau de probabilidade bastante ou suficiente, face às circunstâncias do caso, às regras da experiência da vida e aos ensinamentos da ciência.
Em suma, não é por uma testemunha referir determinados factos como ocorridos que o tribunal tem que os dar como provados, ainda que nenhuma outra testemunha se tenha pronunciado sobre esses factos.
Tudo porque a convicção do tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, como já se referiu pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em conjugação com a demais prova produzida (pericial e documental), em função das razões de ciência, das certezas e, ainda das lacunas, contradições, coerência de raciocínio, todos um comportamento que a mera audição da prova gravada não consegue de todo visualizar.
Da alegação da requerida/apelante resulta com clareza que a sua impugnação da decisão de facto proferida tem por base o seguinte raciocínio:
O de que não foi valorada devidamente a prova por si produzida, nomeadamente a testemunhal.
Dito de outra forma, na tese da requerida/apelante deveria ter sido dada outra importância às testemunhas que trouxe a juízo, em detrimento das que foram trazidas a julgamento pela requerente/apelada (cf. conclusões I), j), K), L) e M)).
Apesar do exposto e como nos era imposto, procedemos à audição das gravações onde ficaram registados os depoimentos prestados em juízo.
E da referida audição, não extraímos de todo razões fundadas para questionar a convicção probatória do Tribunal “a quo”, a qual foi espelhada na sentença recorrida da forma que agora se passa a reproduzir para melhor esclarecimento: “A convicção do tribunal alicerçou-se nos documentos juntos com a petição inicial – acta (n.º 65) da Assembleia de Condóminos realizada no dia 21 de Junho de 2022 e carta da condómina BB, habitação ...5, anexa; documentação preparatória da aludida assembleia geral de 21 de Junho de 2022; acta (n.º 66) da Assembleia de Condóminos realizada no dia 16 de Novembro de 2022; título constitutivo da propriedade horizontal do edifício e certidão do registo predial; troca de correspondência havida entre as partes, da qual fazem parte as missivas a que se aludem nos pontos n.ºs 18 e 19 da matéria de facto dada como indiciariamente provada; participações policiais decorrentes da chamada das autoridades policiais ao local por ruídos provenientes dos hóspedes alojados na fracção “BP”; publicidade ao exercício da actividade de alojamento local nesta fracção em vários sítios da internet; certidão permanente da requerida, esclarecedora do seu objecto social; escrito epigrafado de “contrato de arrendamento para fim habitacional com prazo certo” celebrado entre a requerida e a sociedade comercial denominada “C..., Lda”; certidão do RNAL ....32/AL referente à licença concedida a esta última para o exercício da actividade (de Alojamento Local) para a fracção n.º ...8 – e nos depoimentos das testemunhas inquiridas. Da prova documental resultou indiciado a configuração do prédio, a sua divisão em fracções autónomas, a constituição da propriedade horizontal, o fim a que se destinam as fracções que compõe o prédio, a propriedade das fracções da propriedade da requerida, designadas pelas letras “BP” e “KB”, bem como a legalização e licenciamento pelas autoridades competentes à sociedade à qual a requerida arrendou as mesmas. Conjugado com prova documental elencada, em especial, com a publicidade ao exercício da actividade de alojamento local nesta fracção em vários sítios da internet e com as participações policiais acima mencionadas, interessou o depoimento prestado pelas várias testemunhas inquiridas na audiência final, a saber: - BB, condómina da habitação n.º ...5, fracção contígua à fracção designada pela letra “BP” (com o n.º ...4); referiu de forma circunstanciada, serena e objectiva, e, pelo tanto, crível, o tipo de barulhos e desde quando os mesmos remontam, a frequência dos mesmos e a perturbação contínua, sobretudo no período nocturno, que provocam, atestando-o de forma reiterada e firme ao longo das várias instâncias a que foi sendo submetida, incluindo para atestar da respectiva credibilidade, nos moldes que se deixaram vertidos nos “factos provados”; circunstanciou a frequência quase diária proveniente dos “chek in” a qualquer hora, incluindo à 1h da madrugada, e os ruídos provenientes dos hóspedes a entrarem às 4h da madrugada, constituídos normalmente por grupos de jovens, com cerca de 8 membros ou até mais, em ambiente de festa e divertimento (a falarem e a darem gargalhadas em voz muito alta, por vezes, até a cantarem e a ouvirem música), e, não raras vezes, a prolongarem esse ambiente festivo no interior da fracção designada pelas letras “BP” (com música em tom alto e cantorias); referiu que este ambiente festivo, com os ruídos perturbadores do descanso nocturno inerentes, manteve-se inclusivamente durante as proibições dos ajuntamentos no lapso temporal que perdurou a situação de pandemia (COVID 19), e que ditou que, de forma algo recorrente, tivesse chamado as autoridades policiais (PSP) ao local que, chegados, corroboraram (de acordo com o mencionado nas várias participações policiais instruídas nos autos) o ruído anormal que determinou a sua chamada; aludiu ainda aos danos decorrentes de uma maior utilização dos elevadores de acesso à dita fracção, localizada no 8.º andar, às avarias que mais frequentemente passaram a se verificar a partir do momento da afectação da fracção “BP” à actividade de Alojamento Local (AL) e ao sentimento de insegurança que passou a existir, proveniente da porta de entrada do edifício ser frequentemente deixada aberta pelos hóspedes; atestou ainda que esta situação é actual e contínua, aludindo ao grupo que se hospedou mais recentemente, há apenas uns dias, naquela fracção, de nacionalidade estrangeira; com referência - também a testemunha CC prestou o seu depoimento de modo a atestar o mesmo cenário de facto, o que fez de igual modo circunstanciado, sereno e objectivo, e, pelo tanto, crível; atestou, igualmente, a perturbação no descanso que sofre da recorrente chegada dos hóspedes quando regressam do exterior, provavelmente da zona dos bares, por volta das 3h/4h da manhã, persistindo com o barulho no interior da fracção, por vezes a tocar viola e a cantar, o que determinou que chegasse também a chamar a polícia a fim de diligenciar pela cessação do ruído; referiu-se ainda aos lixos – de bebidas (garrafas vazias), sobretudo – que muitas vezes são depositadas à porta do alojamento local; - também as testemunhas DD e EE, principalmente este último, morador em fracção mais próxima à da fracção da requerida designada pela letra “BP”, atestaram esta mesma realidade de facto e as perturbações para o descanso, saúde (física e mental) e para o sentimento de insegurança daí decorrentes. Por sua vez, os depoimentos prestados pelas testemunhas FF (o qual trabalha na gestão do alojamento local desta fracção “BP”, através da sociedade arrendatária da fracção, “C...”, procedendo à gestão e manutenção das entradas e saídas de hóspedes), GG (também trabalhador na mesma firma no cargo de apoio ao cliente) e AA (empresário, morador no edifício e sócio gerente da firma arrendatária que destinou, com autorização da senhoria, a fracção “BP” ao exercício da actividade de alojamento local na mesma) não resultaram de molde a contrariar o atestado pelas supra identificadas testemunhas, contribuindo antes para corroborar a materialidade levados aos factos n.ºs 20 a 22, a qual, de resto, já resultava da prova documental coligida nos autos. Assim, de toda a prova, critica e conjugadamente valorada, com apelo às regras da normalidade da vida, resultaram afirmados por cabalmente sustentados, os factos indiciados dados como provados, no modo e sequência como narrados nos factos indiciados n.ºs 1 a 22. Por seu lado, quanto aos factos não indiciados levados às alíneas a) a c), a sua não demonstração resultou quer do depoimento das testemunhas BB, CC, DD e EE, quer da circunstância de sobre tais factos não ter sido produzido qualquer meio de prova que os indiciasse.”
Em conclusão:
A requerida/apelante recorre da decisão proferida chamando à colação os depoimentos prestados pelas testemunhas FF, GG e AA.
No entanto, o que se verifica é que tais testemunhas têm evidente interesse no desfecho da acção atenta a sua ligação com a empresa que arrenda a fracção propriedade da requerida/apelante e que na mesma exerce a actividade de alojamento local.
Por outro lado, a verdade é que tais depoimentos não conseguiram descredibilizar o que resultou da restante prova produzida, designadamente dos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela requerente ora apelada (neste sentido cf. os depoimentos das testemunhas CC, DD e EE.).
Importa também considerar a restante prova produzida, designadamente a documental (cf. por exemplo o documento nº10 junto aos autos com o requerimento inicial – a acta de assembleia de condóminos nº66, de 16/11/2022).
Ou seja, atenta a prova produzida e antes melhor enumerada bem decidiu o Tribunal “a quo” quando considerou como provados os factos contidos nos pontos 10 a 16.
E o mesmo se verifica no que toca à matéria inscrita nas alíneas a) e b) a qual, por ausência de prova suficiente e cabal, foi tida e bem como não provada.
É pois com esta decisão de facto que agora se confirma que devem ser apreciadas as restantes questões suscitadas.
Ora como antes já vimos, na tese da requerida/apelante no caso não estão verificados os pressupostos de facto e de direito para conceder provimento à providência cautelar requerida nem para em conformidade condenar a requerida numa sanção pecuniária compulsória e por fim decretar a inversão de contencioso.
Não tem no entanto razão nesta sua pretensão, como já de seguida veremos.
Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado (cf. art.º 381º, nº1 do C.P.C.).
Desta forma, os procedimentos cautelares podem ser caracterizados como uma antecipação ou garantia de eficácia relativamente ao processo principal (vd. Teixeira de Sousa, Estudos, págs. 228 e 229), e assentam numa análise sumária (summaria cognitio) da situação de facto que permite afirmar a existência provável do direito ameaçado (fumus boni iuris), para além do receio justificado de que o mesmo direito seja seriamente afectado ou mesmo inutilizado, no caso de não ser decretada uma determinada medida cautelar visando salvaguardá-lo (periculum in mora) – Teixeira de Sousa, obra citada, págs. 230, 232 e 233.
Como escreveu Abrantes Geraldes, Temas da Reforma, III, 3ª ed., pg. 35, “são uma antecâmara do processo principal, possibilitando a emissão de uma decisão interina ou provisória destinada a atenuar os efeitos erosivos decorrentes da demora na resolução definitiva ou a tornar frutuosa a decisão que, porventura, seja favorável ao requerente”.
Com a providência não se visa a obtenção dos efeitos práticos e próprios da acção principal, mas acautelar a efectividade do direito a declarar ou da situação jurídica a constituir, medidas que, em termos práticos, podem efectivamente coincidir com a solução final definitiva da acção – se coincidirem, obviamente que a antecipação do resultado final, logrado no procedimento cautelar se mantém; se não coincidirem, ou mesmo se a providência for julgada injustificada ou caducar, haverá lugar ao levantamento da providência, através dos meios para tal adequados, ou mesmo a responsabilidade civil pelo dano (cf. artºs 389º nº4 e 390º nº1 C.P.C.).
Os procedimentos cautelares destinam-se apenas à prevenção de danos futuros, por isso se tornou doutrina corrente que “as providências cautelares não podem ser decretadas se a lesão do direito, que se destinou a acautelar, já se consumou, mas podem sê-lo se a lesão, embora já produzida, indicie ou faça recear a produção de novas e futuras lesões” – a distinção entre lesão instantânea e lesão continuada do direito, para, no primeiro caso, dizer que a lesão se consumou, e no segundo que não se consumou ou indicia lesões futuras, torna-se assim inútil.
São pois pacíficos os requisitos de que a lei faz depender a concessão da providência cautelar comum, a saber:
- A probabilidade séria da existência do direito invocado;
- O fundado receio de que outrem, antes de a acção definitiva ser proposta, ou na sua pendência, cause lesão grave e dificilmente reparável a esse direito;
- A adequação da providência à situação de lesão iminente;
- A inexistência de providência cautelar específica para o direito invocado;
- E que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar – art.º 387º nº2 C.P.C.
Como antes já vimos, segundo a requerente ora apelada o direito ameaçado é a violação do título constitutivo da propriedade horizontal, mais concretamente o segmento do mesmo onde se define o fim a que se destina a fracção em apreço.
Para tanto alegou que a requerida é proprietária das duas fracções autónomas designadas pelas letras “BP” e “KB”, situadas no seu edifício, sendo que, segundo consta do respectivo título constitutivo da propriedade horizontal, tal fracção destina- se a “habitação”.
Mais alegou que não obstante tal menção a requerida vem utilizando tal fracção como alojamento local.
Sustenta assim a ilegalidade da utilização, como alojamento local, que a requerida possibilita que se faça da fracção “BP” - por via do arrendamento que celebrou com a empresa exploradora da actividade de AL.
Quanto à verificação do 1º dos requisitos para o decretamento da providência antes melhor identificado, o que cabe dizer é o seguinte:
Perante a alegação da requerente, é fundamental ter em conta o que resulta do disposto no art.º 1418º, nº2, alínea a) do Código Civil, segundo o qual o título constitutivo da propriedade horizontal pode conter a menção do fim a que se destina cada fracção autónoma ou parte comum.
Nestes termos e segundo o previsto no art.º 1422º, nº2, alínea c) do mesmo código, tal regra impede os condóminos de dar à sua fracção “uso diverso do fim a que é destinada”.
Assim sendo e constando no título constitutivo da propriedade horizontal do edifício onde se inserem as fracções da requerida que estas se destinam a “habitação”, importa apurar se a utilização da fracção para alojamento local configura utilização para fim diverso de “habitação”, nos termos supra citados.
Segundo o art.º 2º, nº1, do DL 128/2014, de 29/8, alterado pela Lei 62/2018, de 22/8, consideram-se “estabelecimentos de alojamento local” aqueles que prestam serviços de alojamento temporário, nomeadamente a turistas, mediante remuneração.
No seguimento das divergências que até então dividiam a jurisprudência, foi proferido em 22.03.2022, o AUJ nº4/2022, publicado no Diário da República, nº90, 1ª Série, de 10-5-2022, págs. 8 a 32, no qual se consignou o seguinte entendimento: “No regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo, de que certa fracção se destina a habitação, deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de alojamento local.”.
Valendo toda a argumentação inscrita na decisão recorrida a qual subscrevemos sem quaisquer dúvidas, impõe-se pois sufragar o que decorre do mesmo Acórdão Uniformizador de jurisprudência, acolhendo o entendimento de que não é permitida a realização de alojamento local em fracção que autónoma que, segundo o título constitutivo, se destina a habitação.
Nestes termos e voltando ao caso concreto e considerando que a fracção “BP”, se destina, segundo o título constitutivo, a habitação, há que concluir que não pode na mesma ser levada a cabo a exploração de alojamento local.
Face ao exposto e atento o que resultou provado nos pontos 1 a 9, concluímos também nós que se encontra verificado o requisito da aparência do direito ameaçado invocado nos autos pela requerente e ora apelada.
Quanto ao fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável desse direito, o que cumpre fazer notar é o seguinte:
Como desde há muito se aceita não é todo e qualquer consequência que ocorra previsivelmente antes de uma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera jurídica daquele contra quem se requer a providência. Assim, “Só lesões graves e dificilmente reparáveis têm essa virtualidade de permitir ao tribunal, mediante a solicitação do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão.” - António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. III, 2.ª edição, Almedina, pág. 83.
Mais, “A situação de perigo contra a qual se pretende defender o lesado deve ser actual, exigência que leva a excluir da protecção comum as lesões de direitos já inteiramente consumadas, mas que não exclui a tutela cautelar face a situações de lesões ainda não inteiramente consumadas, continuadas ou repetidas” (cf. Abrantes Geraldes, obra citada, págs.104 a107).”
Como se salienta na decisão recorrida, citando jurisprudência atinente, para que seja decretada uma providência cautelar não especificada são condições essenciais a existência provável de um direito e o perigo deste não ser satisfeito, resultante de justo receio de lesão grave ou de difícil reparação. Ora, se quanto ao primeiro pressuposto basta um juízo de verosimilhança ou probabilidade, no que concerne ao segundo é necessário um juízo de certeza, de verdade.
Na situação dos autos e para este efeito, cabe considerar o que ficou provado nos pontos 10 a 16.
Assim, resulta claro que o receio do desassossego, perturbação, desgaste excessivo das zonas comuns verifica-se já na data em que foi proposta a acção, mas foi-se mantendo e continuando até aos dias de hoje.
Como bem se afirma na decisão recorrida, “a perturbação causada pelo ruído provocado pela afluência dos hóspedes mantém-se e contende com direitos fundamentais dos condóminos vizinhos – designadamente, a perturbação do descanso daqueles que fazem das fracções contíguas e vizinhas a sua habitação, nela organizando a sua vida corrente e dela fazendo o centro da sua vida doméstica, para além da insegurança provocada pela constante entrada e saída do prédio de pessoas desconhecidas – incluindo, na zona das garagens – e o desgaste e sujidade acrescidos das partes comuns, que desvalorizam o prédio e obrigam a despesas adicionais por parte dos demais condóminos.”
Em suma, dúvidas não se suscitam de que se encontra preenchido o segundo dos requisitos previstos no nº1 do art.º 362º do CPC.
Quanto ao terceiro requisito há que referir o seguinte:
No caso concreto, resulta evidente a colisão entre o direito ao exercício da actividade do alojamento local e determinados direitos de personalidade como são o direito ao repouso, ao sossego e à tranquilidade da vida familiar.
Perante tal colisão de direitos tem razão o Tribunal “a quo”, quando alerta para a necessidade de se proceder “a uma ponderação casuística em função do princípio da proporcionalidade e com referência à intensidade e relevância da lesão.”
Pensou igualmente de forma acertada ao considerar que, atento o disposto no nº2 do art.º 335º do Código Civil, o direito dos condóminos do condomínio requerente ao repouso e protecção da saúde, no fundo à sua qualidade de vida, ou seja, a efectiva tutela do direito de personalidade dos condóminos vizinhos, devia prevalecer relativamente ao direito ao exercício da actividade económica ou o direito à fruição do direito de propriedade.
Nestes termos só resta concluir pela verificação no caso, de todos os pressupostos previstos no art.º 362º, nº2 do CPC, impondo-se assim a confirmação sem mais do que foi decidido pela 1ª instância.
Quanto à sanção pecuniária compulsória também não existem razões para altera o que ficou decidido.
Concretizando:
Já vimos que a requerente pediu a condenação da requerida no pagamento a tal título, de uma quantia diária não inferior a 700 €, contada desde o trânsito em julgado da decisão a proferir e até à efectiva cessação da utilização da fracção para alojamento local.
Perante tal pedido, cabe chamar à colação o que ficou consignado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.11.2018, processo 1772/14.0TBVCT-S.G1.S2, relatado pelo Conselheiro Oliveira Abreu e publicado em www.dgsi.pt.
Assim: “A consagração da sanção pecuniária compulsória nos termos do artº. 829º-A do Código Civil constituiu, à data, autêntica inovação, como se colhe do relatório que precede o atinente Decreto-Lei nº. 262/83, de 16 de Junho, que passamos a consignar na parte em que anota “A sanção pecuniária compulsória visa, em suma, uma dupla finalidade de moralidade e de eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto por outro lado se favorece a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de abstenção infungíveis. Quando se trate de obrigações ou de simples pagamentos a efectuar em dinheiro corrente, a sanção compulsória – no pressuposto de que possa versar sobre quantia certa e determinada e, também, a partir de uma data exacta (a do trânsito em julgado) – poderá funcionar automaticamente. Adopta-se, pois, um modelo diverso para esses casos, muito similar à presunção adoptada já pelo legislador em matéria de juros, inclusive moratórios, das obrigações pecuniárias, com vantagens de segurança e certeza para o comércio jurídico.” Daqui se evidencia, por forma clara, que a sanção pecuniária compulsória tem por objectivo não propriamente indemnizar o credor pelos danos sofridos com a mora, antes o de impelir o devedor a cumprir, vencendo a resistência da sua oposição, da sua displicência ou mesmo negligência. Estatui o mencionado art.º 829º-A, do Código Civil, “nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso” (nº 1); estabelecendo o respectivo no nº. 4, que “quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização a que houver lugar”. Anotamos, como bem sustenta a doutrina, entre outros, Pinto Monteiro, apud, Cláusula Penal e Indemnização, página 126 e seguintes e Calvão da Silva, apud, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, paginas 452 e seguintes, decorrer do texto legal a preocupação do legislador em estabelecer duas espécies diferentes de sanção pecuniária compulsória, sendo uma, de natureza judicial, prevenida no nº. 1, e, outra, legal, prevenida no nº. 4, do art.º 829º-A, do Código Civil. A sanção pecuniária estabelecida no nº. 1, tem que ser aplicada pelo Tribunal, sustentada em critérios de razoabilidade, na própria sentença condenatória, a sanção pecuniária compulsória a que alude o nº. 4, do enunciado preceito, é de aplicação automática, nos casos em que tenha sido estipulado judicialmente determinado pagamento em dinheiro corrente.”
Assim sendo pode pois concluir-se que a sanção pecuniária compulsória não tem como fim indemnizar o credor pelos danos sofridos com a mora, tendo antes como objectivo forçar o devedor a cumprir, vencendo a resistência da sua oposição ou do seu desleixo, indiferença ou negligência.
Voltando ao caso concreto, importa considerar que a cessação da actividade de alojamento local na fracção depende, exclusivamente, da vontade da requerida, aqui considerando inclusivamente o teor da sua resposta à interpelação para cessar a actividade nas suas fracções (cf. carta a que se alude no ponto 19 dos factos provados).
Ou seja, face às concretas características da obrigação que impende sobre a requerida, é de excluir o cumprimento da mesma por um terceiro imposto pelo requerente ou pelo Tribunal.
Assim sendo, com vista a assegurar a efectividade da providência a decretar, bem decidiu o Tribunal “a quo” quando nos termos do art.º 365º, nº 2, do CPC, deferiu o pedido de condenação da requerida numa sanção pecuniária compulsória definida e fixada nos termos melhor descritos na sentença recorrida.
Nestes termos, também aqui improcede o recurso da requerida/apelante.
Agora quanto à inversão do contencioso:
Mediante requerimento, o juiz, na decisão que decrete a providência, pode dispensar o requerente do ónus de propositura da acção principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio (cf. o art.º 369º, n.º 1, sob a epígrafe “inversão do contencioso”).
O regime de inversão do contencioso é aplicável, com as devidas adaptações, à restituição provisória da posse, à suspensão de deliberações sociais, aos alimentos provisórios, ao embargo de obra nova, bem como às demais providências previstas em legislação avulsa cuja natureza permita realizar a composição definitiva do litígio (art.º 376º, n.º 4, sob a epígrafe “Aplicação subsidiária aos procedimentos nominados”).
A possibilidade de inversão do contencioso leva a que o procedimento cautelar deixe de ser necessariamente instrumental e provisório, porquanto permite que se forme convicção sobre a existência do direito apta a resolver de modo definitivo o litígio, verificados os pressupostos legalmente previstos.
Entende-se, pois, que nos casos em que no procedimento cautelar é produzida prova suficiente para que se forme convicção segura sobre a existência do direito acautelado - (prova stricto sensu do direito que se pretende tutelar) - e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio, não haverá razões para que não se resolva a causa de modo definitivo (evitando-se a “duplicação da prova”), ficando o requerente dispensado do ónus de propor a acção principal; aquela prova stricto sensu do fundamento dessa providência determina, necessariamente, uma inversão do contencioso.
É, pois, de concluir que a inversão se revela possível e ajustada quando a providência cautelar requerida, de carácter nominado ou inominado, não tiver um sentido manifestamente conservatório (cf. sobre este ponto, entre outros, Carlos Lopes do Rego, Os princípios orientadores da Reforma do Processo Civil, Revista Julgar, nº16, págs. 109 e seguintes).
A inversão do contencioso, prevista no artigo 369.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, só é admissível se a tutela cautelar puder substituir a definitiva.
Ou seja, para que o requerente seja dispensado do ónus de propor a acção principal, terão de estar verificados dois pressupostos cumulativos:
a) -que a matéria adquirida no procedimento permita ao juiz formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado; e
b) -que a natureza da providência decretada seja adequada a realizar a composição definitiva do litígio.
Aplicando tais regras ao caso concreto, cabe concluir que a matéria obtida no presente procedimento permite formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado. Mais ainda que a natureza da presente providência é adequada a realizar a composição definitiva do litígio. Por isso cumpre dispensar o requerente, tal como por esta requerido, do ónus da propositura da acção principal e assim declarar invertido o contencioso, nos termos e para os efeitos previstos nos já antes citados artigos 369º e 371º do CPC.
Assim sendo, impõe-se afirmar que também nesta parte deve improceder o recurso aqui interposto.
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Sumário (cf. art.º 663º, nº7 do CPC):
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III. Decisão: Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso aqui interposto e, em consequência, confirma-se a decisão proferida.
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Custas a cargo da requerida/apelante (cf. art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.
Porto, 12 de Outubro de 2023
Carlos Portela
Ana Luísa Loureiro
Maria Manuela Machado