CABEÇA DE CASAL
NOMEAÇÃO
ORDEM DE PREFERÊNCIA
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
HABILITAÇÃO NOTARIAL
ESCRITURA
Sumário

I - O artigo 2084.º do Código Civil, na redacção vigente, não permite que os interessados afastem a ordem de preferência legal entre eles para o exercício do cargo de cabeça de casal e escolham, por acordo, um deles para esse exercício havendo outro interessado situado num grau de preferência superior.
II - A escritura de habilitação notarial de herdeiros celebrada por interessado que declara estar a exercer o cargo de cabeça de casal não contém nem faz prova da existência do acordo afirmado pelo declarante de todos os interessados para que o cargo seja exercido por ele
III - Esse acordo não é definitivo nem irreversível, deixando de existir assim que pelo menos um deles se coloca em desacordo.

Texto Integral

RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2023:941.23.7T8GDM.A.P1

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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. Relatório:
AA, contribuinte fiscal n.º ...72, e mulher, BB, contribuinte fiscal n.º ...35, residentes em ..., requereram inventário judicial para partilha dos bens da herança do seu filho CC, contribuinte fiscal n.º ...27, falecido em 2 de Abril de 2022.
No requerimento inicial alegaram que o inventariado faleceu sem testamento, deixando a suceder-lhe, como herdeiros legitimários, os pais, aqui requerentes, e a mulher DD, contribuinte fiscal n.º ...05, de nacionalidade argelina, residente em ..., com a qual era casado em primeiras núpcias de ambos e sob o regime da separação de bens.
Mais alegaram que o requerente deve ser nomeado cabeça de casal, porque assim foi estabelecido por acordo de todos os interessados, ao abrigo do disposto no artigo 2084º do Código Civil.
Com o requerimento inicial juntaram escritura pública de habilitação de herdeiros em que é declarante o ora requerente e da qual consta que este «outorga na qualidade de cabeça de casal, por acordo de todos os herdeiros, na herança aberta por óbito de seu filho, CC».
Conclusos os autos e no tocante à nomeação do cabeça de casal foi proferido o seguinte despacho:
«[…] Os Requerentes indicam o Requerente para o exercício do cargo de cabeça de casal, alegando a sua designação por acordo de todos os interessados, invocando o disposto no art. 2048.º do Cód. Civil o qual regula a nomeação de curador da herança jacente.
Nos termos do art. 2080.º, n.º 1 do Cód. Civil «o cargo de cabeça-de-casal defere-se pela ordem seguinte: a) Ao cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver meação nos bens do casal; b) Ao testamenteiro, salvo declaração do testador em contrário; c) Aos parentes que sejam herdeiros legais; d) Aos herdeiros testamentários», acrescentando O n.º 2 que «De entre os parentes que sejam herdeiros legais, preferem os mais próximos em grau», o n.º 3 que «De entre os herdeiros legais do mesmo grau de parentesco, ou de entre os herdeiros testamentários, preferem os que viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte» e o n.º 4 que «Em igualdade de circunstâncias, prefere o herdeiro mais velho».
Ante o exposto, nomeio para desempenhar o cargo de cabeça de casal no presente inventário, aberto por óbito de CC, a interessada DD, uma vez que se trata do cônjuge sobrevivo. - cfr. art. 1100.º, n.º 1, al. a) do C.P.Civil e art. 2080.º, n.º 1, al. a) do C.Civil.
Cite nos termos dos arts. 1100.º, n.º 2, al. b) e 1102.º, n.º 1 do C.P.Civil […]»
Do assim decidido, os requerentes interpuseram recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. Os Recorrentes não se conformam com a nomeação da interessada DD para o exercício das funções de cabeça de casal;
2. No RI invocaram os Recorrentes que, de acordo com o artigo 2080.º nº 1, al. a) do CC, tais funções competiriam de facto à mencionada interessada;
3. No entanto, alegaram ainda que, na escritura de habilitação de herdeiros na qual aquela, apresar de não ter outorgado, esteve presente, foi por acordo de todos interessados (incluindo a interessada DD), designado o Recorrente AA como cabeça de casal;
4. Mais foi junto com o RI escritura pública, a qual constitui documento autêntico, e na qual se pode ler que o Recorrente AA “Por acordo de todos os interessados pode entregar-se a administração da herança e o exercício das funções de cabeça de casal a qualquer outra pessoa”;
5. A Sra Juiz a quo, salvo o devido respeito, fez tábua rasa do documento autêntico junto com o RI e de toda a alegação factual dos Recorrentes e, sem mais, nomeou a interessada DD como cabeça de casal;
6. Mais uma vez salvo o devido respeito, considerando os factos alegados e prova documental constante dos autos, não podia aquela decisão ter sido proferida sem que a referida interessada DD levantasse o devido incidente e fosse produzida a prova indicada pelas partes,
7. Porquanto, provando-se que, o que consta da escritura pública corresponde à realidade, nomeadamente, que todos os interessados acordaram que aquelas funções seriam exercidas pelo Recorrente AA, não poderá este deixar de ser nomeado como cabeça de casal.
8. Aliás, o despacho recorrido enferma claramente de lapso na parte em que se lê que “Os Requerentes indicam o Requerente para o exercício do cargo de cabeça de casal, alegando a sua designação por acordo de todos os interessados, invocando o disposto no art. 2048º do Cód. Civil o qual regula a nomeação de curador da herança jacente”, pois, em momento algum fazem os Recorrentes referência ao artigo 2048º do CC, mas sim ao disposto no artigo 2084º do CC (artigo 4º do Requerimento de Inventário), o qual confere a possibilidade do cabeça de casal ser dedignado por acordo de todos os interessados.
9. A decisão recorrida violou, desta forma, entre outros, o disposto no artigo 2084º do Código Civil.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser alterada a decisão recorrida revogada, com a consequente nomeação do recorrente AA como cabeça de casal.
A recorrida não respondeu a estas alegações de recurso. Todavia, citada da sua nomeação como cabeça-de-casal veio declarar expressamente que aceita a nomeação e que não deu o seu acordo a que o cargo fosse desempenhado por outrem.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se o tribunal a quo podia ter nomeado cabeça de casal a cônjuge viúva do inventariado, vindo alegado no requerimento inicial a existência de acordo para a nomeação de outra pessoa.

III. Fundamentação de facto:
Os factos que relevam para a decisão a proferir constam do relatório que antecede.

IV. Matéria de Direito:
O artigo 2080.º do Código Civil estabelece as regras legais a que deve obedecer a atribuição do cargo de cabeça de casal dispondo o seguinte:
«1. O cargo de cabeça-de-casal defere-se pela ordem seguinte:
a) Ao cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver meação nos bens do casal;
b) Ao testamenteiro, salvo declaração do testador em contrário;
c) Aos parentes que sejam herdeiros legais;
d) Aos herdeiros testamentários.
2. De entre os parentes que sejam herdeiros legais, preferem os mais próximos em grau.
3. De entre os herdeiros legais do mesmo grau de parentesco, ou de entre os herdeiros testamentários, preferem os que viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte.
4. Em igualdade de circunstâncias, prefere o herdeiro mais velho.»
Esta norma estabelece de modo expresso uma ordem hierárquica entre os critérios de designação, de modo que só se o primeiro não resolver o impasse se passa ao segundo e assim sucessivamente.
No caso, sucedem ao inventariado a viúva e cônjuge sobrevivo, não separada judicialmente de pessoas e bens, e os pais. A primeira situa-se no primeiro grau da ordem fixada na norma, os outros no terceiro grau da mesma ordem, razão pela qual aquela prefere a estes na designação para o exercício do cargo.
Sustentam, no entanto, os recorrentes que aquela ordem pode ser afastada por acordo das partes e que no caso houve acordo para a designação do pai e herdeiro do inventariado. É essa questão que cabe analisar.
Em apoio da tese que defendem sobre quem deve ser normado cabeça de casal, os recorrentes citaram o disposto no artigo 2084.º do Código Civil, fundando o acordo a que esta norma se refere na escritura de habilitação de herdeiros onde é referida a existência desse acordo.
O que coloca as seguintes questões: se o artigo 2084.º permite que os interessados, por acordo, nomeiem cabeça de casal uma das pessoas referidas no artigo 2080.º, mas ao arrepio da ordem de preferência estabelecida na norma; se a escritura pública de habilitação notarial de herdeiros contém ou faz prova desse acordo; entendendo-se que esse acordo é possível, mas não estava demonstrado, como devia o tribunal proceder perante a alegação da existência desse acordo.
Pese embora no requerimento inicial estivesse alegada a existência de um acordo entre os interessados para a nomeação do requerente como cabeça de casal e referida mesmo a norma legal em que os requerentes filiam o valor jurídico desse acordo (o artigo 2084.º do Código Civil), a decisão recorrida não se pronuncia sobre o valor e eficácia do alegado acordo, procedendo à designação do cabeça de casal como se essa questão não tivesse sido suscitada.
Esse facto importa, aliás, a nulidade da decisão por omissão de pronúncia (não arguida no recurso, mas, de todo o modo, sanável por este Tribunal em substituição daquele) mas, queremos crer, deveu-se a manifesto lapso na leitura do número do preceito legal indicado pelos requerentes do inventário (o artigo 2084.º e não o artigo 2048.º, como, por descuido se menciona na decisão) que, todavia, não dispensava a averiguação oficiosa de um possível fundamento legal.
Primeira questão: o que dispõe mesmo o artigo 2084.º do Código Civil?
Para os requerentes esta norma permite aos interessados escolherem livremente o cabeça de casal, mesmo que se trate de um dos herdeiros elencados no artigo 2080.º. Será assim?
Os requerentes terão por certo em mente a anterior redacção do referido preceito ou, pelo menos, ao nível da interpretação da norma não atribuem valor à alteração da sua redacção pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março.
Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, volume I, 4.ª edição, Almedina, 1990, página 290, escreveu que «os arts. 2080.º e segs. do Cód. Civil estabelecem a ordem do deferimento do cargo de cabeça-de-casal mas tais preceitos ou regras não são imperativas, pois, por acordo de todos os interessados e do M.ºP.º se houver lugar a inventário obrigatório, podem entregar-se a administração da herança e o exercício das demais funções de cabeça-de-casal a qualquer outra (art. 2084.º)». Este autor logo assinalava que «não era este o entendimento comum na vigência do Cód. Civil de 1867, nem mesmo a doutrina propugnada no Anteprojecto das Sucessões», informando que a redacção do preceito provinha do artigo 2137.º do Projecto das Sucessões.
Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, volume VI, 1998, página 142, também manifestavam que «a forma genérica como o artigo 2084.º - quer na primitiva, quer na actual redacção – afirma o carácter supletivo das «regras dos artigos precedentes» (sem abrir qualquer excepção, nomeadamente a escala quadripartida de prioridades do artigo 2080.º) revela, em termos inequívocos, que a lei pretende realmente deixar as portas francamente abertas aos interessados na herança para a escolha da pessoa que, em cada caso concreto, melhor possa de fender os seus interesses. Observe-se, no entanto, a esse propósito, que logo na epígrafe do artigo se fala na designação – do cabeça-de-casal ou, pelo menos, do administrador dos bens da herança – por acordo; e que, no texto da disposição se vai ainda mais longe, ao aludir-se ao «acordo de todos os interessados, para que as tarefas de administração da herança e as demais funções de cabeça-de-casal sejam entregues a qualquer outra pessoa».
No mesmo sentido, Capelo de Sousa, in Lições de Direito das Sucessões, II, 2.ª edição, 1986, página 64/65, escreveu que «o que poderá acontecer nos termos do artigo 2084.º, é que por acordo de todos os interessados (..) e do Ministério Público, nos casos de inventário obrigatório (artigo 2053.º do CCiv), se entregue a administração da herança a uma pessoa não abrangida nas categorias previstas nos arts. 2080.º a 2083.º ou que, embora abrangida, não goze das preferências aí referidas.
A doutrina retirava assim do preceito duas conclusões: por um lado, que a ordem de preferência dos artigos 2080.º e seguintes não era imperativa, pelo que os interessados podiam, por acordo, designar para o exercício da administração e/ou do cabeçalato um interessado situado numa ordem de preferência ainda que houvessem outros interessados situados numa ordem de preferência superior («as regras não são imperativas»); por outro lado, que o elenco das pessoas indicadas nos referidos preceitos como podendo exercer o cargo de cabeça de casal não era exclusivo, pelo que os interessados podiam, por acordo, designar para o cargo pessoa não compreendida nesse elenco («qualquer outra pessoa»).
Esta posição encontra-se, a nosso ver, prejudicada pelas alterações que a redacção do artigo 2084.º do Código Civil sofreu entretanto[1].
Na redacção do Decreto-Lei n.º 47.344/66, de 25 de Novembro, o preceito estabelecia:
As regras dos artigos precedentes não são imperativas; por acordo de todos os interessados, e do Ministério Público, se houver lugar a inventário obrigatório, podem entregar-se a administração da herança e o exercício das demais funções de cabeça-de-casal a qualquer outra pessoa.
Na redacção do Decreto-Lei n.º 227/94, de 8 de Setembro, o preceito passou a estabelecer:
As regras dos artigos precedentes não são imperativas; por acordo de todos os interessados, e do Ministério Público, nos casos em que tenha intervenção principal, podem entregar-se a administração da herança e o exercício das demais funções de cabeça-de-casal a qualquer outra pessoa.
Na redacção da Lei n.º 29/2009, de 29 de Junho, a norma converteu-se na seguinte:
As regras dos artigos precedentes não são imperativas, podendo, por acordo de todos os interessados, entregar-se a administração da herança e o exercício das demais funções de cabeça-de-casal a qualquer outra pessoa.
Porém, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2013, de 05 de Março, presentemente em vigor e aplicáveis ao caso, a norma assumiu a seguinte redacção:
Por acordo de todos os interessados pode entregar-se a administração da herança e o exercício das funções de cabeça de casal a qualquer outra pessoa.
Até à Lei n.º 23/2013, a norma manteve a primeira parte na qual dispunha expressamente que as regras dos artigos precedentes, relativas às preferências para a designação do cabeça de casal, não eram imperativas; somente foi mudando a segunda parte da norma, tendo as alterações introduzidas consistido apenas na precisão do papel do Ministério Público nos inventários e na necessidade ou não da sua participação no acordo dos interessados sobre a designação do cabeça de casal.
A redacção que a Lei n.º 23/2013 introduziu no artigo 2084.º, contudo, eliminou a primeira parte da norma, a qual deixou de estabelecer que as regras dos artigos antecedentes não são imperativas, passando a consagrar somente a possibilidade de os interessados por acordo designarem para o exercício do cargo outra pessoa que não uma das indicadas nos artigos anteriores.
Independentemente do mérito da escolha feita pelo legislador, uma vez que nenhuma outra questão se colocava a propósito da norma e/ou havia divisões na sua interpretação, não podemos deixar de considerar esta evolução da redacção da norma como uma evidência de que o legislador decidiu repor a natureza imperativa das normas legais relativas à ordem pela qual os diversos herdeiros preferem na designação para o exercício do cargo.
Face à actual redacção da norma, havendo acordo entre eles, os interessados podem designar para o exercício do cargo qualquer outra pessoa, isto é, mesmo uma pessoa que não integre as categorias elencadas nos artigos 2080.º a 2082.º do Código Civil (v.g. um não herdeiro que possua qualidades profissionais adequadas e que os herdeiros não possuem para administrar um bem relevante da herança e desempenhar o cargo de cabeça de casal, como um estabelecimento comercial), mas, quando a designação recair numa das pessoas elencadas nos artigos 2080.º a 2082.º do Código Civil, não podem alterar a ordem legal de preferência estabelecida para o efeito.
O argumento interpretativo de que «quem pode o mais deve poder o menos» não tem aqui cabimento precisamente por causa da opção legal expressa do legislador de revogar a primeira parte do preceito, que tinha esse objectivo ou utilidade (permitir o afastamento da preferência legal dos interessados herdeiros no exercício do cargo).
Aliás, se bem vimos, o sentido e a razão de ser do artigo 2084.º do Código Civil é algo diferente, mas pouco notado. A norma não refere a entrega da administração da herança ou do exercício das funções de cabeça de casal, refere ambas em conjunto (e); logo o que nela se consente é que os interessados possam acordar a entrega da administração da herança e o exercício das funções de cabeça de casal a qualquer outra pessoa.
Se bem vimos, portanto, o que a norma prevê é que, entendendo os interessados que a administração da herança será feita de modo mais proveitoso e útil por um estranho à herança, possam, nessa situação, por acordo de todos, nomear essa pessoa para administrar a herança e nomeá-la igualmente para o exercício do cargo de cabeça de casal, uma vez que em princípio o seu conhecimento da administração facilitará igualmente a partilha da herança e o desempenho das funções do cabeça de casal.
Do que se trata é, pois, de consagrar um fundamento legal para um estranho à herança (um não interessado) ser chamado pelos interessados (o tribunal pode fazê-lo nos casos do artigo 2083.º do Código Civil) a desempenhar o cargo de cabeça de casal quando em simultâneo seja chamado a administrar a herança, não de consagrar a natureza meramente supletiva das normas que estabelecem entre os herdeiros uma ordem de preferência no exercício do cargo.
Em suma: na actual redacção do artigo 2084.º do Código Civil os interessados, não podem, mesmo por acordo entre todos eles, designar para o exercício do cargo de cabeça de casal um dos herdeiros preterindo nessa designação a ordem legal (dos artigos 2080.º a 2082.º) pela qual estes preferem entre si na designação para o cargo (para que esse afastamento possa ser feito é necessário outro fundamento, v.g. a incapacidade).
Com tal fundamento a decisão de nomeação para o cargo do herdeiro com preferência legal sobre os demais (o cônjuge sobrevivo) mostra-se correcta e deve ser confirmada.
Esta conclusão prejudica o conhecimento das restantes questões suscitadas pelo recurso, mas sobre elas ainda se dirá o seguinte em confirmação do decidido.
A escritura pública de habilitação notarial de herdeiros contém o acordo previsto no artigo 2084.º do Código Civil ou faz prova do mesmo?
Nos termos do n.º 1 do artigo 83.º do Código do Notariado, a habilitação notarial consiste na declaração, feita em escritura pública, por três pessoas, que o notário considere dignas de crédito, de que os habilitandos são herdeiros do falecido e não há quem lhes prefira na sucessão ou quem concorra com eles. Nos termos do n.º 2 da norma essa declaração pode ser feita, em alternativa, por quem desempenhar o cargo de cabeça-de-casal, devendo, nesse caso, ser-lhe feita a advertência prevista no artigo 97.º. Por fim, o n.º 3 prescreve que a declaração deve conter a menção do nome completo, do estado, da naturalidade e da última residência habitual do autor da herança e dos habilitandos e, se algum destes for menor, a indicação dessa circunstância.
Por conseguinte, a escritura de habilitação notarial é somente a redução a escrito por notário de uma declaração feita perante si, cujo objecto é o nome completo, o estado, a naturalidade e a última residência habitual do autor da herança e dos habilitandos e, se algum destes for menor, a indicação dessa circunstância.
Tal declaração pode ser feita por três testemunhas ou, em alternativa, por quem desempenhar o cargo de cabeça de casal. No preâmbulo do Código do Notariado justifica-se esta alternativa com razões de simplificação nos seguintes termos: «por forma a evitar a presença obrigatória de três declarantes na realização de escrituras desta natureza, permite-se, em alternativa, que a declaração inerente ao acto em apreço seja feita pelo cabeça-de-casal da herança, à semelhança do que era disposto em processo civil para o regime do inventário, ora alterado, sendo-lhe, nesse caso, feita a advertência de que incorre em procedimento criminal se prestar, dolosamente e em prejuízo de outrem, declarações falsas».
Não só as declarações são apenas feitas pelo declarante ou declarantes que intervêm na escritura, apenas a estes responsabilizando, como o seu conteúdo é apenas o que acima se assinalou. O notário, por sua vez, limita-se a lavrar documento autêntico que reproduza as declarações que lhe são feitas.
Para o efeito, ele apenas tem de proceder à fiscalização formal dos documentos com os quais deve ser obrigatoriamente instruída a escritura de habilitação, isto é, segundo o artigo 85.º do Código, a certidão narrativa de óbito do autor da herança que faz prova do óbito, as certidões do registo civil justificativas da sucessão legítima ou legitimária, quando nestas se fundamente a qualidade de herdeiro de algum dos habilitandos, ou documento equivalente quando deva ser emitido no estrangeiro, os quais fazem prova da qualidade de sucessor, e a certidão de teor do testamento ou da escritura de doação por morte, mesmo que a sucessão não se funde em algum desses actos.
Esta disposição não exige qualquer documento que, quando o declarante se apresenta a prestar as declarações invocando essa qualidade, prove o exercício das funções de cabeça de casal pelo declarante. Este é que é responsável pela veracidade da afirmação que faz (por isso a advertência legal) não cabendo ao notário a fiscalização prévia e documental da mesma.
Por outro lado, nos documentos autênticos, como é o caso da escritura notarial de habilitação de herdeiros, o documento só faz prova plena dos factos que nele são referidos como tendo sido praticados ou percebidos pelo autoridade ou oficial público respectivo. Uma escritura pública faz prova plena de que na data nela designada compareceram perante o notário as pessoas indicadas e aí emitiram as declarações de vontade reduzidas a escrito na própria escritura (artigo 371.º do Código Civil). O documento não faz prova plena de que tais declarações correspondem à verdade, de que os factos contidos nas declarações são verdadeiros.
Por conseguinte, sendo a escritura de habilitação notarial uma mera recolha de declarações prestadas perante notário por particulares, não é possível considerar abrangida pela força probatória do documento a veracidade ou correcção dos factos declarados.
Acresce que nos termos do artigo 86.º do Código do Notariado, a habilitação notarial tem os mesmos efeitos da habilitação judicial e é título bastante para que se possam fazer em comum, a favor de todos os herdeiros e do cônjuge meeiro, os seguintes actos: a) registos nas conservatórias do registo predial; b) registos nas conservatórias do registo comercial e da propriedade automóvel; c) averbamentos de títulos de crédito; d) averbamentos da transmissão de direitos de propriedade literária, científica, artística ou industrial; e) levantamentos de dinheiro ou de outros valores. O n.º 2 da norma acrescenta que os actos referidos nas alíneas a) a d) do número anterior podem ser requeridos por qualquer dos herdeiros habilitados ou pelo cônjuge meeiro.
Daqui decorre que a escritura de habilitação de herdeiros não produz o efeito nem é título bastante para que uma determinada pessoa exerça as funções de cabeça de casal, apenas mune os habilitados de um título formal que os legitima a praticar um determinado conjunto de actos relativos à herança.
A escritura de habilitação notarial de herdeiros junta está em conformidade com tudo o que acaba de se afirmar. Na escritura apenas intervém como declarante o requerente do inventário e recorrente; como ninguém mais intervém como declarante ninguém mais está vinculado pelo teor das declarações prestadas. Na escritura é o declarante que afirma que «outorga na qualidade de cabeça de casal, por acordo de todos os herdeiros», não há qualquer intervenção do notário que diga que fiscalizou e confirmou esse facto declarado, tal como não foi arquivado qualquer documento que demonstre esse facto.
Refira-se, aliás, que nos actos notariais o que releva e tem valor jurídico não são os actos que o Notário pratica para redigir a escritura, são sim os actos que o Notário assinala na escritura ter praticado para efeitos desta. Por conseguinte, pouco importa se no Cartório Notarial estiveram presentes outras pessoas ou o que estas afirmaram ao Notário ou lhe responderam. O que não está assinalado na escritura, pura e simplesmente não está abrangido pelo valor jurídico desta.
Deste modo, a escritura de habilitação notarial de herdeiros não contém um acordo de todos os interessados para o exercício do cargo de cabeça de casal pelo requerente do inventário e também não faz prova da existência desse acordo, apenas faz prova de que o requerente do inventário declarou que tal acordo existia. Desse modo, a escritura de habilitação junta com o requerimento inicial do inventário não era suficiente para demonstrar o acordo de todos os interessados alegado pelo requerente para justificar a sua nomeação pelo tribunal.
Todavia, confrontado com essa alegação no requerimento inicial, caso entendesse que a designação por acordo de todos os interessados era permitida pelo artigo 2084.º do Código Civil, o tribunal era obrigado a realizar outras diligências para apurar a sua existência antes de decidir quem nomear cabeça de casal.
Essas diligências não foram realizadas, mas dá-se a circunstância de o cônjuge sobrevivo do inventariado, primeiro preferente legal ao exercício do cargo, ter sido nomeado e, uma vez citado, ter vindo aos autos aceitar a nomeação e indicar que não deu nem dá o seu acordo para que o cargo seja exercido por outro interessado, designadamente pelo requerente do inventário. Esta circunstância torna irrelevante a falta de realização das mencionadas diligências prévias e consolida a nomeação feita pelo tribunal.
Aliás o artigo 2084.º do Código Civil fala em acordo para a nomeação, não em contrato de nomeação ou transacção sobre a nomeação, razão pela qual, ainda que em determinada altura tenha dado o seu acordo, o interessado não está impedido de posteriormente deixar de estar de acordo sobre a pessoa que deve exercer o cargo, caso em que faz cessar a situação factual que permitia o exercício do cargo pela pessoa que o vinha desempenhando.
Também por isso, portanto, seria irrelevante averiguar a validade jurídica do «acordo» que o requerente do inventário afirmava existir – o que a cônjuge sobreviva impugna –, bastando para efeitos da nomeação a efectuar apurar que no momento em que a nomeação ia ser feita pelo tribunal tal acordo, ainda que antes tivesse existido, não existia mais.
Podemos agora concluir o seguinte: o artigo 2084.º do Código Civil, na redacção vigente, não permite que os interessados afastem a ordem de preferência legal entre eles para o exercício do cargo de cabeça de casal e escolham, por acordo, um deles para esse exercício, havendo outro interessado situado num grau de preferência superior; esse preceito refere-se somente à possibilidade de nomearem outra pessoa que não seja interessada no inventário; a escritura de habilitação notarial de herdeiros celebrada por interessado que declara estar a exercer o cargo de cabeça de casal não contém nem faz prova da existência do acordo afirmado pelo declarante de todos os interessados para que o cargo seja exercido por ele; como quer que seja, esse acordo não é definitivo nem irreversível pelo que uma vez apurado que ele não existe (ou deixou de existir) deve ser nomeado para o exercício do cargo o herdeiro com preferência legal, no caso o cônjuge sobrevivo.
Por tudo isso, ainda que pela fundamentação ora apresentada, a decisão recorrida deve ser confirmada, improcedendo o recurso.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.

Custas do recurso pelo recorrente, correspondentes apenas à taxa de justiça já paga por não ter sido apresentada resposta às alegações de recurso.
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Porto, 12 de Outubro de 2023.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 773)
Isoleta de Almeida Costa
Carlos Portela


[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]
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[1] Cumpre referir que no Acórdão de 13-07-2022, proferido no processo n.º 539/14.0T8VFR.P1, em que o ora Relator interveio como Adjunto subscrevendo a decisão, é citada a redacção do artigo 2084.º do Código Civil na versão anterior à da Lei n.º 23/2013, conforme resulta da citação da obra de Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, naturalmente anterior a esta Lei, sendo certo que o que ali estava em causa era a designação do cabeça de casal pelo juiz ao abrigo do artigo 2083.º após sucessivos pedidos de escusa dos cabeças de casal anteriormente nomeados, não a sua designação por acordo dos interessados.