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PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
EXPLORAÇÃO DEFICITÁRIA
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DE DIREITO
ADMINISTRADOR DE FACTO
Sumário
I - É reconhecida a essencialidade do julgamento da matéria de facto no resultado da ação que, para o efeito, impõe seja completa no sentido de expressar um juízo sobre todos os factos controvertidos e necessários à decisão da causa, declarando-os provados ou não provados. II - O princípio do inquisitório especialmente previsto pelo art.º 11º do CIRE atribui ao juiz o poder dever de averiguação e consideração oficiosa de factos que, ainda que não alegados, resultem dos autos ou da sua instrução e, no âmbito do incidente de qualificação da insolvência, integrem os factos constitutivos de qualquer um dos seus pressupostos legais. III – A seleção e descrição dos factos que resultam da prova produzida deve ser feita em termos que reproduzam com a maior fidedignidade possível a realidade histórica ou o pedaço da vida que define e delimita o objeto da ação – no caso, a qualificação da insolvência -, tarefa que se apresenta com especial acuidade em sede de apuramento da imputada qualidade de administrador de facto na medida em que, se é administrador de facto quem pratica atos/factos próprios de administração, só pelo conhecimento da concreta atividade e dos termos em que é concretamente exercida pode extrair-se aquela qualificação. IV - No âmbito do princípio da livre apreciação da prova, julgar um facto como provado pressupõe uma convicção formada e objetivamente justificada por elementos probatórios que, na valoração que dos mesmos é feita, per si e/ou em conjugação com as regras da lógica e, se aplicáveis, as regras reconhecidas como de experiência comum, permitam concluir que aquele facto corresponde à hipótese de facto prevalecente ou de maior probabilidade. V – A situação de exploração deficitária que integra o facto fundamento da qualificação da insolvência previsto pela al. g) do nº 2 do art.º 186º do CIRE pressupõe antes de mais o exercício de uma atividade económica e tem subjacente a relação entre os custos e os proveitos por esta gerados - pressupõe que o custo dos meios afetos ao exercício da atividade sejam superiores aos valores pelos quais os produtos/bens/serviços dessa mesma atividade são colocados no mercado e, assim, superiores aos proveitos que no regular funcionamento do mercado dela são ou poderiam vir a ser obtidos. VI - Na equação que a situação de exploração deficitária pressupõe não se enquadram os custos assumidos na fase de investimento inicial da empresa, sendo investimento a aquisição ou criação de recursos a serem usados na produção, distribuição e comercialização de bens e serviços (construções, máquinas, equipamentos), ou seja, a serem usados na exploração/exercício de uma atividade económica. VII – O facto fundamento da qualificação da insolvência previsto pela al. e) do nº 2 do art.º 186º remete para a figura da desconsideração ou levantamento da personalidade jurídica de pessoas coletiva que tem subjacente princípio estrutural do direito societário, da autonomia e separação jurídica e patrimonial da sociedade relativamente aos sócios e, como consequência, ou a imputação aos sócios de negócios ou atos que celebraram sob a ‘capa’ da personalidade jurídica da sociedade para contornar uma qualquer limitação ou proibição legal ou contratual do próprio sócio, ou a perda do benefício da limitação da responsabilidade destes perante os credores daquela quando utilizam a sociedade para satisfazer interesses alheios à própria sociedade e desrespeitar os interesses dos credores desta. VIII - As benfeitorias que resultam das obras realizadas por sociedade em imóvel de terceiro para o adaptar e/ou recuperar funcionalidades que permitam a sua utilização e afetação ao exercício da sua atividade económica corresponde a usos/práticas comummente aceites no mundo/vida empresarial e enquadram-se nos encargos económica e legalmente reconhecidos como passíveis de serem imputados a uma empresa desde que, como é óbvio, a fruição e gozo do imóvel por elas beneficiado lhe sejam para o efeito cedidos, seja a título gratuito (vg. comodato) ou oneroso (vg. arrendamento), IX – Nesse contexto, no caso a verificação da al. e) do nº 2 do art.º 186º impunha a demonstração do propósito dos sócios em usar a sociedade insolvente como mero instrumento para a imputação dos custos das obras à sociedade desacompanhada da vontade de através desta e da obra realizada por conta da mesma prosseguir uma atividade lucrativa geradora de proveitos que, além do mais, permitisse obter o retorno do investimento realizado no âmbito da sua esfera jurídica. X – Ao nível do financiamento da sociedade, só a falta de manifesta correspondência entre o valor do capital social e o valor do custo do investimento inicial é suscetível de indiciar aquela intenção fraudulenta dos sócios, efeito indício que é anulado se, para além das entradas para realização daquele capital, a manifesta insuficiência for colmatada pelos sócios, dotando a sociedade de liquidez através de empréstimo ou de outras formas de financiamento. XI – O facto de o projeto de remodelação do espaço que a sócia cedeu à insolvente para instalação de um restaurante importar num investimento inicial inferior a €180.000,00 e a realizar durante um período de cerca de três/quatro meses, de os sócios terem fixado o capital social em €200.000,00 do qual foi disponibilizado €160.000,00 por dois dos três sócios, uma das quais proprietária do imóvel, e de, simultaneamente com período de execução das obras e do conhecimento do agravamento dos seus custos para cerca de €270.000,00, esses mesmos sócios terem diligenciado pelo financiamento da sociedade no valor acrescido de cerca de €400.000,00 a título de suprimentos, permitem concluir que os sócios tinham um propósito, sério, de exploração da atividade de restauração através da sociedade insolvente no espaço do imóvel que em nome e por conta desta foi objeto de obras. XII – A utilização, no âmbito de contrato de arrendamento celebrado pela sócia proprietária do imóvel posteriormente à declaração da insolvência, dos bens que foram objeto de descrição e arrolamento pelo administrador da insolvência com nomeação daquela para fiel depositária dos mesmos, para além de conduta localizada fora do período temporal relevante para efeitos de qualificação de insolvência (cfr. art.ºs 186º, nº 1 e 4º do CIRE), só pode ser juridicamente valorada no contexto das atividades de apreensão e liquidação da massa insolvente a cumprir pelo administrador da insolvência e do cargo de fiel depositário dos bens, e não por referência à qualidade de administrador e aos poderes de facto e de direito sobre os bens da insolvente que esta qualidade disponibiliza, sendo que é a estas que reporta a qualificação da insolvência. XIII – O afastamento dos fundamentos considerados pelo tribunal recorrido não obsta à confirmação da decisão recorrida pela Relação com fundamento nas demais qualificativas invocadas nas alegações e/ou pareceres de qualificação da insolvência que não foram julgados improcedentes pelo tribunal recorrido, substituindo a decisão recorrida por outra que, nas circunstâncias, o tribunal devia ter proferido. XIV – Integra-se na conduta prevista pela al. f) do nº 2 do art.º 186º a parcial afetação das disponibilidades de dinheiro entregues à sociedade pelos sócios e do crédito de que por via da qualidade destes a insolvente beneficiava junto dos seus fornecedores para junto destes adquirir bens e serviços para remodelação de espaço destinado a atividade não abrangida pelo projeto societário da insolvente e ab initio destinado a entidade distinta desta, por corresponder a afetação dos recursos monetários e do crédito da insolvente a interesses estranhos ao seu objeto social e, por isso, contrários ao seu interesse na medida em que não se destinavam a criar condições para o exercício da sua atividade e, assim, a gerar rendimentos em seu benefício e para satisfação da totalidade do passivo assim gerado. XV - A administração de facto exige, por natureza, o efetivo exercício de poderes de gestão no âmbito do objeto social de forma sistemática, continuada, e de modo independente, com total autonomia na tomada de decisões e na atuação, influindo e conformando de forma decisiva os destinos da sociedade, com compressão da autonomia do administrador de direito na tomada dessas decisões sobre o qual, por princípio, exerce influência decisiva, decidindo, ordenando e determinando-o à execução de atos de gestão e de direção da insolvente, impondo-lhe a cada ato as suas decisões. XVI – Nesse quadro, o administrador de direito responde pela sua própria atuação se coexistiu com a atuação do administrador de facto ou, não tendo atuado, responde por omissão ilícita na medida em que um administrador de direito que não exerce de facto está a incumprir o dever funcional social que sobre ele recai e que é incompatível com o não exercício do cargo.
Texto Integral
Acordam as juízas da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa,
I – Relatório
1. Por apenso ao processo de insolvência de ‘SW, Ldª’ (doravante SW) foi requerida a qualificação da insolvência como culposa por requerimento de 21.10.2021 do credor ML.
Alegou em fundamento que a insolvente celebrou contrato de empreitada para adequar à sua atividade o rés do chão do imóvel que para o efeito arrendou à respetiva proprietária, a sócia Ph, mas, na sua execução, foram realizados e faturados a cargo da insolvente trabalhos que incidiram sobre o 1º piso daquele imóvel, não explorado pela insolvente, no qual também foram instalados equipamentos adquiridos em nome desta. Atos que integrou na al. e) do nº 2 do art.º 186º do CIRE e qualificou como aproveitamento da personalidade coletiva da devedora para concentrar nesta as dívidas geradas com a remodelação e instalação dos equipamentos do 1º piso do imóvel em benefício da sociedade que explora aquela área e, principalmente, da proprietária do imóvel, e em prejuízo da insolvente.
Indicou como pessoas a afetar pela qualificação Ph, An, Ab.
Juntou documentos, arrolou testemunhas e requereu declarações de parte.
Por requerimento de 22.10.2021, o credor DM, SA (doravante, DM) declarou dar por reproduzido o teor do requerimento que apresentou em 29.09.2021 e aderir às alegações do credor ML. Mais alegou que o contrato de empreitada que celebrou com a insolvente previa obras no rés do chão e no 1º andar e aí foram executadas muito antes do contrato de arrendamento celebrado entre a insolvente e a respetiva sócia; que, sabendo que a insolvente já se encontrava em graves dificuldades económicas e financeiras e não dispunha de meios para pagar, por ordens dos sócios e em acordo com o gerente da sociedade este continuou a contratar e a adquirir bens, serviços e equipamentos com o propósito de poderem resolver aquele ‘pseudo’ arrendamento e beneficiarem das obras feitas e de todo o mobiliário integrado no imóvel sem pagar as dívidas aos credores, sabendo que vendidos em seguida como usados ficariam por uma ‘pechincha’.
Indicou como pessoas a afetar pela qualificação a sócia Ph e o marido desta Ng, na qualidade de administradores de facto, An na qualidade de sócio da insolvente com efetivo conhecimento de quem dava ordens e decidia sobre a insolvente, e Ab na qualidade de gerente.
Requereu a requisição das faturas não pagas no todo ou em parte e dos extratos bancários das contas da insolvente, depoimento de parte dos indicados a afetar pela qualificação, e a inquirição do credor ML.
Mais declarou juntar e juntou DUC (documento único de cobrança) referente a 1º Dia de Multa e comprovativo do respetivo pagamento, no montante de €51,00.
2. Sobre aqueles requerimentos incidiu despacho de convite ao aperfeiçoamento das alegações atinentes com “- Descrição de factos concretos relativos ao exercício da administração de facto pelas pessoas que não se encontravam investidas no cargo de gerente;// - Descrição dos trabalhos realizadas no 1º piso a coberto da personalidade coletiva da insolvente e que não se destinavam ao seu proveito, bem como, de equipamentos;// - Descrição e quantificação dos prejuízos causados pelo comportamento das pessoas indicadas.”
Em resposta o credor ML alegou que a sócia Ph tomou decisões que competiam à gerência da sociedade, a saber, escolheu as loiças para o restaurante e, na mesma ocasião e através da sociedade insolvente, adquiriu loiças para seu uso pessoal; escolheu a empresa para prestação de serviços de branding e comunicação; impôs a renovação da fachada do prédio onde se situa o estabelecimento da insolvente, parte do menu do restaurante, a contratação de um trabalhador da insolvente e outros a contratar de nacionalidade vietnamita e, com a oposição do gerente Ab, a manutenção de alguns dos antigos trabalhadores do estabelecimento que operava anteriormente naqueles espaço, que trabalharam diretamente e em benefício do sócio An, mas cujos contratos foram celebrados e resolvidos como se de trabalhadores da insolvente se tratassem; foram os sócios Ph e An que propuseram pagar-lhe a si 50% do seu crédito sobre a insolvente e, posteriormente, a redução permanente do seu salário. Identificou as obras e os equipamentos hoteleiros faturados à insolvente mas realizadas e instalados no 1º piso do imóvel da sócia Ph, onde se encontra a laborar uma outra sociedade comercial com utilização daqueles equipamentos e consequente depreciação do seu valor, correspondendo os créditos reclamados pelas sociedades DM e P., Ldª a estas obras e equipamentos. Juntou documentos.
Em resposta, para além de vicissitudes atinentes com o objeto do contrato de empreitada e a sua execução, o credor DM alegou que os senhores de nacionalidade vietnamita apareciam no imóvel durante a execução das obras, com ou sem Ab, que era este quem falava com o requerente na sequência daquelas visitas à obra, que os sócios e gerentes utilizaram a sociedade insolvente para executarem obras de transformação e adaptação do prédio de mais de €230.000,00 mais IVA e comprar equipamentos de cerca de €100.000,00 mais IVA, alegação que justifica com o facto de à data da celebração do contrato de arrendamento com a sócia Ph estar executada a maior parte dos trabalhos da empreitada e a insolvente já se encontrar em situação de insolvência, mais alegando que aquele contrato foi celebrado para aumentar o passivo da insolvente, por um lado, e eliminar o direito de crédito da insolvente a título de benfeitorias por ela executadas no imóvel daquela sócio, por outro. Juntou documentos e arrolou testemunhas.
3. Declarada e publicitada a abertura do incidente de qualificação da insolvência, notificado para o efeito o Sr. administrador da insolvência (AI) requereu a notificação do contabilista certificado da insolvente para disponibilização de documentos desta e, cumprida, apresentou parecer que concluiu pela qualificação da insolvência como culposa, com afetação dos indicados pelos credores.
Alegou, em síntese, que à data em que procedeu à apreensão de bens nas instalações da insolvente, em 17.09.2021, estes encontravam-se em estado de novo/sem uso e nomeou fiel depositária a sócia Ph; na mesma altura esta transmitiu-lhe que os bens existentes no 1º andar nada tinham a ver com a insolvente mas, através das faturas que posteriormente lhe foram facultadas e da visita que em 22.05.2022 fez ao restaurante ali em funcionamento, constatou que aquela se apoderou de bens da insolvente ali instalados e que, aquando da declaração de insolvência, eram novos e sem uso, mas que passaram a ser utilizados por aquele restaurante. Mais invocou o facto de os beneficiários das obras executadas e incorporadas no imóvel serem a sócia da insolvente, Ph, e o seu marido Ng, atual gerente da insolvente.
4. O Ministério Publico concluiu igualmente pela qualificação da insolvência como culposa com fundamento no art.º 186º, nº 1 e 2, als. a), b), d), e), f) e h) por referência aos factos alegados pelos credores, que qualificou como aproveitamento da personalidade coletiva da insolvente para nela concentrar dívidas emergentes de obras e de instalação de equipamentos que beneficiaram a sócia Ph, e aos factos alegados pelo AI, de que a insolvente não colaborou com este na entrega de documentação e de bens, permitindo que a este fosse dado destino diverso.
4. Citados, cada um dos requeridos deduziu oposição ao incidente por impugnação dos factos e das conclusões de direito dos requerentes do incidente.
4a). Ab. alegou que era mais trabalhador dependente do que sócio e gerente da insolvente, não exercia a gerência de facto e renunciou à gerência (de direito) da insolvente em 18.05.2021 (por lhe serem devidos rendimentos do trabalho dependente desde agosto 2020 até maio 2021 no montante de €44.250,00 e porque os sócios não cumpriram com várias obrigações); que de nenhum dos factos descritos nas alegações e pareceres lhe é imputado deriva qualquer responsabilidade e não contribuiu para os factos invocados pelo Ministério Publico: nada ganhou com as obras no imóvel, com a concentração de dívidas na insolvente, e com a aquisição e/ou dissipação dos bens da insolvente; à data em que o AI se deslocou às instalações da insolvente já não era gerente desta nem foi nomeado fiel depositário dos bens da insolvente, desconhecia a existência de qualquer restaurante a funcionar no 1º andar do imóvel; o contrato de arrendamento entre a insolvente e a R. Ldª só foi celebrado em 15.11.2021, as faturas da P. Ldª foram emitidas após a sua renúncia ao cargo de gerente da insolvente pelo que não contratou o que quer que seja em nome desta, todos os factos imputados para a qualificação reportam-se a partir de maio de 2021, quando já não era gerente da insolvente, e os e-mails que enviou em junho de 2020 referentes à obra são anteriores ao período de descrição dos factos alegadamente danosos para a insolvente; não tinha domínio de facto na condução da obra e só acompanhou inicialmente a construção do restaurante porque ali ia exercer tão só a sua atividade profissional de chefe do restaurante; que o restaurante não abriu porque os demais sócios não cumpriram com as suas obrigações e impediram que pudesse trabalhar; não dava ordens nem tinha poder de direção ou disciplinar sobre ML, quem contratava e mandava era a sócia Ph, e não existem factos dos quais resulte que criou ou agravou a situação de insolvência. Indicou uma testemunha.
4b) Ph, An, Ng e a insolvente reiteraram o teor da petição inicial de apresentação da sociedade à insolvência e a alegação de que: a primeira adquiriu um imóvel conhecido na zona de Estoril onde haviam funcionado estabelecimentos de restauração, mas que se encontrava degradado e, com An, ambos decidiram constituir a insolvente e capitalizá-la através de suprimentos com vista ao exercício da atividade de restauração naquele imóvel, e integrar Ab. nesse projeto como chefe de cozinha com conhecimentos no sector da restauração, mas sem capital para investir, tendo-lhe sido conferida a gerência ab initio para promover a realização das obras de reabilitação, adquirir os equipamentos necessários à atividade de restauração, e a gestão de toda a atividade do restaurante; foi por indicação expressa deste que as obras se estenderam ao piso 1 com o propósito de o estabelecimento de restauração da insolvente vir a ocupar os dois pisos do imóvel, vindo o orçamento inicial de €179.828,01 a converter-se no valor de €439.710,61, o que ocorreu sob indicação daquele, com a contribuição de ML - que atuou direta e indiretamente na produção do resultado que agora imputa aos sócios e gerentes da insolvente -, mas sem a participação dos opoentes, que acompanharam o andamento das obras através de visitas ao espaço mas nada decidiram quanto às mesmas mas acabaram por pagar quase o dobro do que previram inicialmente, vindo a sócia Ph celebrar o contrato de arrendamento com a insolvente tendo por objeto apenas o piso térreo do imóvel para garantir que a atividade desta se circunscreveria apenas à parte arrendada, e que o mesmo aconteceu relativamente aos equipamentos adquiridos pela insolvente, acrescentando que “nada obsta a que os sócios, enquanto proprietários do património e capital social, detenham uma palavra a dizer sobre a gestão daquela que é a sua sociedade,//E o dever de cumprimento das deliberações dos sócios é para os gerentes um dever legal, cuja violação os poderá fazer incorrer em responsabilidade civil ou na sua destituição com justa causa.”; a sócia Ph desconhecia que no Piso 1 se encontravam bens da insolvente porque, com exceção das loiças, nunca acompanhou a aquisição e entrega dos mesmos, nem os mesmos foram aditados ao auto de apreensão apesar de para o efeito ter manifestado a sua disponibilidade depois da deslocação do AI e da credora ao imóvel, em maio de 2022; os sócios de capital nada beneficiaram com a insolvente porque através de suprimentos, prestações acessórias ou suplementares, custearam do seu bolso o pagamento das obras que o gerente Ab. entendeu estender ao Piso 1 e foram incorporadas no imóvel, mas que não constituem qualquer benefício para os sócios de capital porque não tiveram retorno dos seus avultados investimentos, nem a insolvente laborou devido à pandemia que determinou o encerramento dos restaurantes, de onde resultou a sua incapacidade para fazer face aos seus compromissos financeiros; nenhum facto posterior ao início do processo de insolvência e muito menos posterior ao seu decretamento preenche o requisito temporal dos três anos previsto pelo art.º 186º, nº 1, pelo que os factos que o AI imputou à sócia Ph decorrente da utilização dos bens da insolvente poderiam, no máximo, constituir incumprimento dos deveres de fiel depositário mas não constituir fundamento para a qualificação da insolvência como culposa; os bens e equipamentos da insolvente que não foram apreendidos nunca deixaram de lhe pertencer, não desapareceram nem foram cedidos a terceiro a qualquer título, e estão armazenados – e não instalados - no piso 1, de onde não foram removidos por inércia do AI e permanecem suscetíveis de apreensão, remoção e venda e, se após o início do processo de insolvência algum se extraviou, este facto não preenche o requisito temporal da ocorrência do facto nos três anos anteriores ao início do processo; é falso que a insolvente não tenha colaborado com o AI na entrega de documentação e bens; nenhum dos opoentes dispôs dos bens da insolvente em proveito pessoal ou de terceiros. Concluíram pela sua absolvição do pedido de qualificação da insolvência como culposa. Requereram declarações do AI, declarações de parte dos sócios Ph e An, depoimento de parte da credora DM e do credor ML, arrolaram testemunhas, nelas incluindo o requerido e opoente Ab., e remeteram para a documentação junta aos autos e aos autos principais.
5. A credora DM respondeu às oposições requerendo sejam dadas como não provadas.
6. Em 27.07.2022 o requerido Ab. apresentou requerimento alegando que só o requerimento de 21.10.2021 do credor ML foi apresentado no prazo de 15 dias após a assembleia de credores, realizada em 06.10.2021, invocou a caducidade do direito ao pedido de qualificação da insolvência dos demais credores e do Ministério Público, e requereu o desentranhamento dos respetivos requerimentos, por extemporâneos, e mais se pronunciou sobre o alegado nas oposições deduzidas pelos demais requeridos.
7. Posteriormente ao prazo para resposta às oposições, o credor ML apresentou novo requerimento e juntou documentos correspondentes a fotografias de estabelecimento de restauração em funcionamento alegadamente correspondente ao espaço onde foram realizadas as obras e instalado equipamento adquirido em nome da insolvente, e ao qual o AI veio a aderir, reiterando o ali alegado, de que a sócia da insolvente, nomeada fiel depositária dos bens da insolvente, agiu e age como se estes lhe pertencessem.
8. Por despacho de 21.12.2022 foi relegado para final o conhecimento das exceções/nulidades invocadas, indicado o objeto do litígio, fixados os temas da prova, admitidos os meios de prova requeridos, e calendarizada a audiência de julgamento e as inquirições a realizar.
9. Após vicissitudes processuais atinentes com a produção de meios de prova, incluindo a necessidade de nomeação de intérprete aos requeridos de nacionalidade vietnamita, realizada audiência de julgamento foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: Em face do exposto, decide-se: a) Qualificar como culposa a insolvência de “SW” com o NIPC 515… e sede em Avenida Marginal, …, 2765-603 Estoril, freguesia de Cascais e Estoril, concelho de Cascais; b) Declarar a gerente de facto Ph e o gerente de direito e de facto Ab. afetados pela qualificação da insolvência como culposa, na medida em que foram os seus responsáveis; c) Declarar Ph e Ab inibidos da administração do património de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para ocuparem qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, por um período de 3 (três) anos; d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a massa insolvente, que Ph e Ab detenham sobre a sociedade insolvente; e) Condenar Ph e Ab a indemnizarem os credores da devedora insolvente reconhecidos em sede de apenso de reclamação de créditos no montante de €70.669,30 (setenta mil seiscentos e sessenta e nove euros e trinta cêntimos), considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo a responsabilidade solidária entre os afetados; f) Absolver os requeridos Ng e An dos pedidos formulados; g) Condenar os requeridos no pagamento das custas do presente incidente, fixando-se a taxa de justiça em 2UC´s – art.º 527º, do CPC.
10. Da sentença foram apresentados recursos pelos requeridos declarados afetados.
10a) Ab arguiu a nulidade da sentença e mais requereu a sua revogação parcial e substituição por outra que o absolva dos pedidos contra si formulados.
Formulou as seguintes conclusões:
A. O Recorrente, em 27 de Julho de 2022, mediante peça com a referência Citius 21531170, invocou a caducidade do direito ao pedido de qualificação de insolvência.
B. O Tribunal a quo não conheceu da excepção deduzida.
C. A caducidade foi arguida e é de conhecimento oficioso e pode ser alegada em qualquer fase do processo, o que o Recorrente fez.
D. Motivo pelo qual, deve a mesma ser revogada e, substituída por outra, que reconheça a caducidade dos pedidos realizados pelo Ministério Público e pela credora DM e, em consequência, tendo sido o julgamento sido realizado com prova e factos indevidamente incluídos no processo, deve ordenar-se a repetição do julgamento ou, em alternativa, absolver o Recorrente.
E. Na sentença recorrida decidiu o Tribunal a quo qualificar a insolvência como culposa, declarando Ph como gerente de facto e como gerente de direito e de facto o Recorrente.
F. Fundamentou o Tribunal a quo que “o que se verificou foi o prosseguimento pelos identificados gerentes de uma exploração claramente deficitária, a partir do momento em que os valores orçamentados subiram e os mesmos, perante a ausência de receitas, decidiram continuar a permitir um aumento (ou não redução) de custos (ex. continuação de alterações e pedidos de trabalhos a mais, manutenção de um cozinheiro, recebimento integral da remuneração pelo próprio Ab, sem quaisquer receitas recebidas), devendo saber, sobretudo no contexto pandémico que vigorava, que tal desencadearia a situação de insolvência.”
G. Prosseguiu o Tribunal a quo dizendo que “no mesmo sentido, a actuação dos gerentes revela igualmente que atendendo ao tipo de trabalhos e equipamentos fornecidos assistia-se a uma valorização do património de Ph, também proprietária do imóvel, que prosseguiu na recolha dos benefícios decorrentes da utilização de bens que integravam a massa insolvente. Tudo com prejuízo para a insolvente, que no caso de um exercício de gerência adequado, teria de suportar custos bem inferiores, e podido cumprir cabalmente o objecto social (restauração).”
H. Para a motivação da matéria de facto dada como provada, o Tribunal a quo valorou as cópias de: (…) acta da assembleia geral da insolvente de 15.06.2021 (anexo ao R/01.07.2022); (…) declaração de renúncia emitida por Ab. (anexo ao R/01.07.2022.”
I. Dos documentos acima referidos, o Tribunal a quo não fez nenhuma reserva, motivo pelo qual, o teor dos referidos documentos contrariam a fundamentação do Tribunal que o Recorrente fez-se pagar de todos os vencimentos, concorrendo para a situação de insolvência.
J. Refere-se na referida carta de renúncia à gerência que “como é do vosso conhecimento, fui contratado como gerente, auferindo o vencimento de €4.425,00 (quatro mil, quatrocentos e vinte e cinco euros) por mês. Contudo, desde Agosto de 2020 até à presente data não me foi pago qualquer vencimento e, por conseguinte, sou credor de V. Exa., no valor de €44.250,00 (quarenta e quatro mil, duzentos e cinquenta euros).”
K. A minutos 30:17m da faixa 20230308122103_4520667_2871299 o Recorrente foi questionado se recebia o seu salário, tendo o mesmo afirmado que “…os últimos 10 meses não recebi.…”
L. Ou seja, entre Agosto de 2020 até Maio de 2021, o Recorrente não recebeu qualquer salário, o que significa que, andou mal o Tribunal a quo quando refere que “o que se verificou foi o prosseguimento pelos identificados gerentes de uma exploração claramente deficitária (…) recebimento integral da remuneração pelo próprio Ab.”
M. Assim, o facto provado 12 desacompanhado do facto provado que se pretende aditar, contraria a prova documental junta autos.
N. Face ao exposto, deve ser aditado um facto provado com a seguinte redacção, ou similar: “Ab deixou de auferir o seu vencimento desde Agosto de 2020 até 21 de Maio de 2021, data em que renunciou à gerência, no valor global de €44.250,00 (quarenta e quatro mil, duzentos e cinquenta euros).”
O. Mas mais, consta da questão a decidir “b) prosseguimento da actividade, tendo em conta a situação económica e financeira da Insolvente à data da celebração do contrato de arrendamento em 5 de Abril de 2020.”
P. Fundamentou o Tribunal a quo dizendo que “no mesmo sentido, a actuação dos gerentes revela igualmente que atendendo ao tipo de trabalhos e equipamentos fornecidos assistia-se a uma valorização do património de Ph, também proprietária do imóvel, que prosseguiu na recolha dos benefícios decorrentes da utilização de bens que integravam a massa insolvente. Tudo com prejuízo para a insolvente, que no caso de um exercício de gerência adequado, teria de suportar custos bem inferiores, e podido cumprir cabalmente o objecto social (restauração).”
Q. A minutos 31:08m da faixa 20230308114255_4520667_2871299 quando questionado sobre o que faltava para abrir o restaurante, o Recorrente respondeu que “era só iniciar, talvez com €40.000,00, podíamos iniciar o espaço e depois a facturação a compensar e ajudar a pagar (…) precisávamos só do cash flow para poder trazer mercadoria e termos os pagamentos seguros para o primeiro mês.” R. Ora, quando o Recorrente renunciou à gerência o restaurante estava pronto a funcionar, para poder realizar receita.
S. Face ao exposto, deve ser dado como provado que “Quando o Ab renunciou à gerência o restaurante estava pronto a abrir e a estar habilitado a realizar receitas.”
T. Consta do facto provado 6 que “o acordo entre a “SW.” e a “DM” para realização dos trabalhos de remodelação do espaço denominado “Restaurante …– Estoril”, foi celebrado com base na proposta apresentada em 06 de junho de 2019 em relação ao projeto que aquela submeteu a concurso e cuja adjudicação foi comunicada em 09 de setembro de 2019 por e-mail de Ab, com conhecimento a “Ph@.....vn, a...@....pt e a...@gmail.com, (gab. arquitectura), e previa a realização dos trabalhos descritos no doc. n.º 2 junto com o R/de 25.11 (Refª citius 19957507), cujo teor se dá por reproduzido.”
U. Consta do facto provado 11 que “as instruções das alterações durante a execução das obras foram sempre dadas pelo Ab , com o conhecimento e o acordo necessário de Ph, quer na sequência das visitas à obra feitas por ele, por vezes acompanhado por Ph, An e Ng, quer na sequência da visita destes conforme indicações daquele”
V. Do facto provado 24 consta que “para além do referido em 11. supra, Ph esteve presente na reunião que definiu o projeto de arquitetura para a conceção/instalação do restaurante, procedeu à escolha de trabalhadores para o restaurante e das loiças para o restaurante que iria ser explorado pela sociedade Insolvente, tendo sido realizada uma deslocação à Fábrica da Vista Alegre em Ílhavo, em 12 de outubro de 2020.”
W. Do facto provado 26 consta que “na sequência de reuniões previamente agendadas com e empresas do ramo, foi Ph quem procedeu à escolheu da empresa para efetuar as tarefas de branding e comunicação relativamente ao restaurante da insolvente.”
X. Do facto provado 31 consta que “por instruções de Ab e Ph sociedade “SW.” continuou a contratar e a adquirir bens, serviços e equipamentos e a beneficiar da execução de trabalhos ao longo do ano de 2020 [crê-se existe lapso na redacção mas trata-se de 2020], bem sabendo que a Insolvente não tinha meios económicos e financeiros para vir pagar as dívidas relativas ao custo de aquisição e execução.”
Y. Dos factos provados 6, 11, 24, 26, 31, resulta, em primeira análise (ainda que descuidada) que a responsabilidade pela insolvência recaia sobre o Recorrente e Ph.
Z. Entendeu o Tribunal a quo que NC e FG denotaram conhecimento concreto da realidade, o que significa que todos perceberam e sabiam que o Recorrente não tomava decisões, isto é,
AA. O Recorrente não era mais do que um intermediário, um capataz… O Recorrente não possuía dinheiro para investir, era um simples cozinheiro a quem ficaram a dever mais de quarenta mil euros. Sabendo disto, andou na parte seguinte o Tribunal a quo na sua fundamentação, tendo errado completamente na sua decisão.
BB. O Tribunal bem percebeu que a Sra. Ph fez de tudo para responsabilizar o Recorrente por todas as decisões e pela situação de insolvência.
CC. As testemunhas, na sua maioria, afirmaram que o Recorrente não tomava as decisões, porque tinha que consultar quem de facto tomava as decisões, que era a Sra. Ph (que tinha o dinheiro e nem sequer pagava o salário ao Recorrente).
DD. Tanto assim é que o Tribunal a quo refere que “no que concerne às declarações prestadas pelos sócios e gerentes da insolvente, merecem ponderação cuidada, na medida em que foi notória a existência de 2 blocos de interesses acerca da sensível questão da assunção da gerência de facto da sociedade. Assim, por um lado, os sócios Ph e An procuraram acentuar a exclusividade da responsabilidade nas decisões relativas à gestão da sociedade sobre o gerente Ab. Por outro lado, este procurou colocar os demais sócios no mesmo barco, atribuindo-lhes as tomadas de decisão, conjuntas ou isoladas, desempenhando ele mais o papel de assalariado/mandatário.”
EE. Mais refere o Tribunal a quo que “neste domínio, avulta a dificuldade em crer que toda a gestão de uma sociedade com o capital inicial de € 200.000,00 tenha sido transferida para o Ab com base num simples voto de confiança, quando o mesmo entrou no círculo pessoal dos restantes sócios poucos meses antes, ainda por cima apresentado por terceiros em ambiente empresarial. Acresce que diversos elementos documentais e relatos testemunhais apontam no sentido de a sócia Ph ter um papel igualmente importante quanto a decisões de gestão, como é o caso do depoimento de AC quando à intervenção daquela em reuniões, as referências das demais testemunhas à necessidade de Ab obter concordâncias quando estivessem em causa alterações de custos. “ FF. Nesta parte andou bem o Tribunal a quo porque percebeu, de facto, através da prova produzida, que era a Sra. Ph que tomava as decisões relativas aos interesses da sociedade, sendo o Recorrente, um mero intermediário, capataz, mandatário ou qualquer outra figura que age por conta e em representação de outrem.
GG. Ora, os 3.º e 4.º penúltimos parágrafos da fundamentação de facto do Tribunal a quo, determinam o contrário, na medida em que o Recorrente apenas transmitia aos clientes e fornecedores, as decisões tomadas pela Sra. Ph.
HH. Razão pela qual, o papel tido pelo Recorrente nos factos 4, 5, 10, 11, 12, 13 e 31 sempre foram em representação da Sra. Ph, aliás o que resulta da própria fundamentação de facto do Tribunal a quo.
II. Esta fundamentação é ambígua e, por conseguinte, deve, com base nestes fundamentos e factos, ser a sentença recorrida revogada e substituída por outra que absolva o Recorrente dos pedidos formulados.
JJ. Por fim, no que concerne á verificação dos pressupostos para a qualificação da insolvência culposa, tendo por base o já supra alegado, cumpre oferecer as seguintes alegações.
KK. Não existe nenhum facto provado que o Recorrente tenha tirado qualquer proveito pessoal.
LL. Resultou provado que o Recorrente ficou prejudicado em cerca de €44.250,00.
MM. Logo, se alguém foi prejudicado, foi também o Recorrente, logo nesta parte não se verifica o disposto na alínea e) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
NN. Apenas Ph agiu em seu proveito pessoal, aproveitando-se de um intermediário, o aqui Recorrente para poder continuar a enriquecer em prejuízo de terceiros, onde se inclui o Recorrente que foi lesado em diversos salários pela Insolvente.
OO. Aliás, conforme resulta provado Ph é a única que beneficiou dos actos praticados, conquanto que é a única que continua a receber proveitos do investimento realizado e da insolvência que própria causou (por não ter permitido a abertura do restaurante), enquanto o Recorrente ficou prejudicado em cerca de €44.250,00.
PP. Logo, subjectivamente, não se mostra provado o elencado na alínea e) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, motivo pelo qual, deve a sentença recorrida ser parcialmente revogada, absolvendo o Recorrente dos pedidos.
QQ. Mas mais, no que concerne à alínea g) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE cumpre referir, na senda do exposto sobre a alínea e), o Recorrente não prosseguiu nenhuma exploração deficitária em seu proveito ou em proveito de terceiros.
RR. Repare-se que os créditos reclamados ascendem quase a um milhão de euros e o restaurante nunca abriu porque os sócios investidores e a gerente Ph não dotaram a sociedade de capital para comprar produtos para confeccionar as refeições.
SS. O Recorrente que também foi lesado é prejudicado, sem não ter tido qualquer benefício, enquanto a única pessoa que continua a ganhar dinheiro é Ph que, aparentemente, preparou o caminho para isto acontecer.
TT. Logo, a conduta do Recorrente foi completamente contrária ao precipitar a insolvente para uma situação de insolvência, na medida em que o mesmo quis explorar o restaurante e realizar receita para pagar o investimento. Motivo pelo qual, não se verifica quanto ao Recorrente os pressupostos da alínea g) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
UU. Face a todo o exposto, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva o Recorrente dos pedidos.
10b) Ph requereu a revogação da sentença e a sua substituição por outra que não classifique a recorrente como gerente de facto da insolvente ou, caso assim não se entenda, que conclua pela não verificação das als. e) e g) do nº 2 do artigo 186º do CIRE e, em qualquer caso, absolva a recorrente dos pedidos contra si formulados.
Formulou as seguintes conclusões:
A. O Tribunal a quo laborou em erro de julgamento relativamente aos factos que entendeu como provados, ignorando que em relação aos mesmos não foi produzida prova bastante ou suficiente para que tal fosse a conclusão inevitável do julgador.
B. Os referidos factos, por se mostrarem instrumentais e fundamentais para o preenchimento dos pressupostos em que se baseou a decisão de classificar a atuação da Recorrente como sendo a de uma Gerente de facto, impuseram uma decisão final diametralmente oposta àquela que deveria ter sido proferida à luz da prova produzida.
C. Adicionalmente, mal andou o Tribunal a quo ao entender que estariam verificados os pressupostos legais de que depende a qualificação da insolvência.
D. A sentença de que se recorre indica que resultaram provados um conjunto de factos, identificados sob os números 11., 24., 25., 26., 27., 28. e 31., com relevância para a boa decisão da causa, e nos quais baseou o seu entendimento de que a Recorrente exercia funções de gerência de facto.
E. Das declarações de parte do sócio e Gerente Ab, do requerente e credor ML, e do depoimento da testemunha GP, contabilista da Insolvente, resultam afirmações que contrariam ou modificam substancialmente os factos em questão.
F. Tanto o sócio e gerente Ab como o credor ML travaram conhecimento com a Recorrente antes da constituição da Insolvente, acompanhando reuniões iniciais ou exploratórias relativas ao imóvel e ao negócio a instalar no mesmo.
G. Já relativamente às obras, ambos são unânimes nos relatos que fazem dos inúmeros problemas no imóvel, que só se tornaram aparentes após o início das obras, e que as alterações ao projeto foram decorrência desses problemas.
H. O acompanhamento das obras não era constante por parte dos sócios de capital, como bem resulta do relato de visitas dos mesmos com periodicidade meramente mensal, sendo, porém, efetuado numa base diária por parte de ambos os Declarantes.
I. Sobrevém, aqui, também a realidade inusitada de um dos sócios – ainda que com participação minoritária – e gerente da sociedade Insolvente (o referido Ab) não ter efetuado a sua entrada de capital nem ter disponibilidade de capital para financiar a sociedade.
J. A gerência de uma sociedade, que já em si e em situações de normalidade se encontra vinculada pelos deveres legais e pelas instruções expressas dos sócios (detentores de capital), estava neste caso em particular muitíssimo dependente da disponibilidade financeira de dois dos sócios, que nada sabiam do negócio de restauração, deixando para o sócio conhecedor do métier as decisões e escolhas relativas à implementação do estabelecimento, o qual não deixava de submeter à aprovação dos detentores do capital as suas propostas.
K. O próprio sócio e gerente Ab refere que para cada decisão apresentava várias alternativas aos sócios de capital, pois nas suas palavras, e subentendendo-se que, referindo-se à sua situação patrimonial face aos outros sócios, não haveria outra forma de fazer funcionar a sociedade.
L. O contabilista da sociedade referiu, com interesse para este particular, que a única forma que a sociedade Insolvente teve de fazer face a pagamentos foi a de ser habilitada com meios financeiros para tal por parte dos seus sócios vietnamitas, dado que a mesma nunca laborou e nada faturou.
M. Decorre, pois, do senso comum que a existência de meios financeiros dependia da prestação de informação atualizada e constante aos sócios com capacidade para fazerem os necessários suprimentos na conta bancária da sociedade Insolvente, pois de outra forma os mesmos nunca saberiam das necessidades financeiras reais desta.
N. As visitas dos sócios “de capital” e do marido da Recorrente à obra eram esporádicas e o acordo necessário da Recorrente baseava-se apenas na aprovação dos crescentes orçamentos, numa lógica de capitalização da sociedade Insolvente.
O. Ou seja, e do ponto de vista puramente vinculativo da sociedade Insolvente, as instruções dadas pelo gerente não estavam formalmente dependentes de autorização especial – as comunicações eram, isso sim, necessárias para que a sociedade Insolvente fosse dotada de meios financeiros para fazer face às despesas crescentes.
P. E ainda que as alterações durante a execução das obras fossem decisões quase “inevitáveis”, face aos problemas descritos no imóvel por parte do gerente Ab e do credor ML, certo é que a decisão de prossecução das obras partiu sempre do gerente, como não podia deixar de ser.
Q. Assim, o facto provado sob o ponto 11. deveria ser reformulado para “As instruções das alterações durante a execução das obras foram sempre dadas pelo Ab, com o conhecimento de Ph.”.
R. Ainda no que diz respeito às questões financeiras da sociedade Insolvente, resulta destes depoimentos, bem como de todos os elementos probatórios no processo, que a mesma nunca possuiu quaisquer meios económicos e financeiros próprios – estando sempre dependente dos suprimentos efetuados pelos sócios de capital.
S. É a todos os títulos irrelevante que a sociedade Insolvente tivesse “continuado” a contratar e a adquirir bens, serviços e equipamentos e a beneficiar da execução de trabalhos, pois a mesma nunca teve meios próprios para pagar tais custos.
T. O cuidado do sócio e gerente Ab em manter informada a Recorrente denota a sua preocupação com a capacidade financeira da sociedade Insolvente, pois no momento em que a disponibilidade financeira dos sócios de capital deixasse de existir, todo o projeto cairia por falta de fundos.
U. Termos em que teria o Tribunal a quo que dar o facto sob o ponto 31. como não provado.
V. A primeira reunião que definiu o projeto de arquitetura para a conceção/instalação do restaurante ocorreu numa fase muito embrionária do projeto (como, aliás, ocorreu com os empreiteiros), sendo até duvidoso que tenha ocorrido após a constituição da sociedade Insolvente – porém, certo é que o gerente Ab e o credor ML relataram que a reunião subsequente, já com a obra em curso, contou apenas com ambos, bem como com um terceiro que iria explorar o 1.º andar do imóvel.
W. Logo nessa fase inicial da obra se percebeu que o projeto idealizado não poderia ser aplicado no espaço físico existente, pelo que de imediato surgiu a necessidade de fazer alterações ao projeto.
X. Foram descritos pelo gerente Ab e pelo credor ML algumas intervenções por parte da Recorrente no que diz respeito à cozinha vietnamita, como a apresentação de pratos típicos, e sugestões que, como será de esperar de qualquer investidor, não representariam qualquer ingerência na condução dos destinos da sociedade, pois a atuação do gerente não deixaria de ser livre na decisão de contratar recursos humanos, ou de adquirir bens ou equipamentos.
Y. Já no que diz respeito à aquisição de loiças a título pessoal (facto provado sob o ponto 25.), a própria sentença refere, na parte em que reproduz o depoimento da Recorrente, que a mesma foi paga com o cartão da empresa para beneficiar de um desconto, mas estava sujeita a reembolso, pelo que não se concebe como se transpôs o facto provado com a redação que consta da decisão quanto à matéria de facto.
Z. Ponderados os elementos probatórios ora descritos, o facto provado sob o ponto 24. deveria ser reformulado para “Ph esteve presente na reunião que definiu o projeto de arquitetura para a conceção/instalação do restaurante, e sugeriu trabalhadores e loiças para o restaurante que iria ser explorado pela sociedade Insolvente, tendo sido realizada uma deslocação à Fábrica da Vista Alegre em Ílhavo, em 12 de outubro de 2020.”.
AA. Já o facto provado sob o ponto 25. deveria ser reformulado para “Na deslocação referida supra, Ph comprou loiças para a sua residência pessoal, utilizando como meio de pagamento o cartão bancário da sociedade insolvente que estava na posse de Ab para beneficiar de um desconto e reembolsando posteriormente a sociedade insolvente”.
BB. Resulta cristalino do depoimento do credor ML que a Recorrente deixou ao critério do gerente Ab, bem como do próprio ML, a escolha da empresa de marketing e comunicação, ou seja, exatamente o oposto daquilo que resulta como facto provado.
CC. Nada mais havendo a dizer nesse particular pela simplicidade da situação, teria o Tribunal a quo que dar o facto sob o ponto 26. como não provado.
DD. Finalmente, quanto ao ponto 27., tal facto realmente ocorreu, não sendo, porém, possível retirar dele qualquer consequência quanto ao exercício de gerência de facto por parte da Recorrente.
EE. Pelo que a decisão quanto à matéria de facto teria que ter sido a seguinte:
11. As instruções das alterações durante a execução das obras foram sempre dadas pelo Ab, com o conhecimento de Ph.
24. Ph esteve presente na reunião que definiu o projeto de arquitetura para a conceção/instalação do restaurante, e sugeriu trabalhadores e loiças para o restaurante que iria ser explorado pela sociedade Insolvente, tendo sido realizada uma deslocação à Fábrica da Vista Alegre em Ílhavo, em 12 de outubro de 2020.
25. Na deslocação referida supra, Ph comprou loiças para a sua residência pessoal, utilizando como meio de pagamento o cartão bancário da sociedade insolvente que estava na posse de Ab para beneficiar de um desconto e reembolsando posteriormente a sociedade insolvente.
26. (não provado)
27. O Credor ML foi a casa da Senhora Ph para que lhe fossem apresentados alguns pratos que queriam ter no menu do restaurante.
28. Por acordo escrito datado de 05 de abril de 2020 e contendo as assinaturas de Ph e NG , na qualidade de senhorios, e de Ab., na qualidade de gerente da arrendatária, a sociedade insolvente declarou tomar de arrendamento a Ph o Prédio urbano denominado “C… 2” ou “CF…”, situado em Tarimbeque, Avenida Marginal, n.º …., São João do Estoril, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o número /2010…, da freguesia do Estoril e inscrito da matriz predial urbana sob o artigo …., constituído por dois pisos, tendo no R/C um salão amplo, cozinha e instalações sanitárias e despensa, mas destinando-se apenas ao arrendamento do restaurante (rés do chão, Piso 0), sendo excluída a área referente ao terraço (1º andar, piso 1).
31. (não provado)
FF. Podendo definir-se como gerente/administrador de facto toda a pessoa que, não estando formalmente investida no cargo de titular do órgão de gestão/administração de uma sociedade comercial, desempenha em termos materiais e concretos tarefas correspondentes aos poderes de gestão que estão atribuídos por lei ao órgão de governo da sociedade, mas não resultando da factualidade devidamente provada que a Recorrente alguma vez tenha desempenhado de forma material e concreta tais tarefas, e, por conseguinte, não se podendo considerar que a Recorrente Ph de tivesse a qualidade de gerente de facto da sociedade comercial Insolvente, não poderia a mesma ser afetada pela qualificação da insolvência como culposa, nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 1, do CIRE.
GG. Pelo que deve a sentença recorrida ser revogada, sendo substituída por outra que absolva a Recorrente dos pedidos.
HH. Entendeu ainda o Tribunal a quo que se mostram preenchidos os fundamentos constantes das alíneas e) e g) do n.º 2, do artigo 186.º do CIRE (presunções juris et de jure) para qualificação da insolvência como culposa.
II. Para efeito de qualificação da insolvência como culposa, o artigo 186.º, n.º 2 do CIRE procede ao elenco (taxativo) de situações que a lei considera como factos-índice ou presunções juris et de jure, quer da existência de culpa grave por parte do administrador ou gerente da insolvente (pessoa coletiva), quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência.
JJ. E sendo assim, demonstrado algum dos factos-índice impõe-se a qualificação como culposa da insolvência, para todos os efeitos legais e, em particular, para efeitos de afetação do respetivo administrador ou gerente.
KK. Em concreto, os factos que o Tribunal a quo entende terem sido praticados são os seguintes, integrando as respetivas alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE: exercício, por parte da gerência e a coberto da personalidade coletiva da empresa, de atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa – alínea e) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE; e prossecução, por parte da gerência, no seu interesse pessoal ou de terceiro, de uma exploração deficitária, não obstante saber ou dever saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência – alínea g) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
LL. Entende o Tribunal a quo que o que se verificou foi o prosseguimento pelos identificados gerentes (referindo-se a Ab e à Recorrente) de uma exploração claramente deficitária, a partir do momento em que os valores orçamentados subiram e os mesmos, perante a ausência de receitas, decidiram continuar a permitir um aumento (ou não redução) de custos (ex. continuação de alterações e de pedidos de trabalhos a mais, manutenção de um cozinheiro, recebimento integral da remuneração pelo próprio Ab, sem quaisquer receitas recebidas), devendo saber, sobretudo no contexto pandémico que vigorava, que tal desencadearia a situação de insolvência.
MM. Porém, todos os intervenientes processuais foram unânimes (e a documentação junta aos autos corrobora-o) ao afirmar que a sociedade não possuía meios financeiros próprios, estando dependente de entradas de capital por parte dos seus sócios - e não todos.
NN. Tratar-se-á de algo, afinal, normal, uma vez que a sociedade se destinava ao exercício da atividade de restauração e o projeto ainda estava no seu início, representando um forte investimento inicial em obras de adaptação do espaço destinado à instalação do estabelecimento.
OO. Os intervenientes mais diretos nas obras, o gerente Ab e o credor ML, foram perentórios ao afirmar que as obras se foram tornando mais complexas à medida que as situações existentes no imóvel eram descortinadas com o avançar dos trabalhos, o que resultou num empolamento dos custos das obras que reputaram para uma ordem de grandeza do dobro.
PP. E embora os sócios de capital tenham sempre manifestado a sua disponibilidade para continuar a dotar a sociedade Insolvente dos meios necessários para fazer face ao forte investimento inicial, os custos cresceram de tal sorte que deixaram de ter capacidade financeira para continuar a fazê-lo, e como bem confirmou o contabilista da sociedade, a mesma nunca gerou quaisquer receitas, não sendo aqui despicienda – ao contrário do que manifesta o Tribunal a quo – a proibição de abertura ao público durante o período pandémico.
QQ. Do ponto de vista da decisão da gestão e do investimento, a prossecução das obras para dotar a sociedade Insolvente dos necessários meios para laborar e gerar receita parece-nos absolutamente acertada e aquela que qualquer homem médio e bom pai de família tomaria, uma vez que não o fazer representaria desperdiçar todo o tempo e investimento financeiro que foram realizados até ao momento, e do ponto de vista estritamente literal da exploração como sendo deficitária, a verdade é que a atividade da sociedade, nesta fase inicial de implementação do estabelecimento de restauração e sem a geração de receitas, seria sempre e por definição deficitária, pelo que falha o Tribunal a quo em demonstrar em que medida encontra a aplicabilidade da norma ínsita na alínea g) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE ao caso vertente.
RR. Não basta, pois, dizer que a exploração era deficitária e que a gerência da sociedade Insolvente – que, como se postula, pertencia sempre e só ao gerente Ab – prosseguiu cegamente no incremento de custos, sendo outrossim necessário demonstrar que tal situação conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência, o que o Tribunal a quo pura e simplesmente não fez.
SS. Ainda que a exploração fosse consabidamente deficitária, o que não é nem estranho nem incomum na fase de instalação e investimento inicial de um projeto de restauração, a gerência não tinha como saber que a disponibilidade financeira dos sócios de capital tinha um limite (chegando o gerente mesmo a afirmar que «o dinheiro não era um problema») nem que a situação pandémica se prolongaria de tal forma que impossibilitasse a conclusão das obras e a abertura do restaurante, para que se começasse a recuperar financeiramente a sociedade.
TT. Pelo que não se verifica, em qualquer caso, que tenha sido prosseguida uma exploração deficitária da sociedade Insolvente por parte da gerência, no seu interesse pessoal ou de terceiro, e nesses termos não está verificada a presunção constante da alínea g) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, pelo que deve nesse particular ser a sentença recorrida revogada.
UU. Finalmente, e relativamente à presunção constante da alínea e) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, entendeu o Tribunal a quo que a atuação dos gerentes (recordando que entendeu como tais não só o gerente Ab, mas também a aqui Recorrente, com o que esta não se conforma) revela igualmente que atendendo ao tipo de trabalhos e equipamentos fornecidos assistia-se a uma valorização do património da Recorrente, também proprietária do imóvel, que prosseguiu na recolha dos benefícios decorrentes da utilização de bens que integravam a massa insolvente, com prejuízo para a Insolvente, que no caso de um exercício de gerência adequado, teria de suportar custos bem inferiores, e podido cumprir cabalmente o objeto social (restauração).
VV. Aqui, e em primeiro lugar, apenas relevam para efeitos da qualificação de insolvência os factos ocorridos nos três anos anteriores ao início do respetivo processo, pelo que não se percebe o alcance da menção a uma qualquer “recolha de benefícios” se não para tentar sustentar a jusante aquilo que não foi possível de sustentar nos termos legais.
WW. Ademais, não se pode afirmar que foi exercida, a coberto da personalidade jurídica da sociedade Insolvente, qualquer atividade em proveito pessoal ou de terceiro – sendo que o terceiro mais imediato seria a aqui Recorrente –, uma vez que a mesma era de facto a proprietária do imóvel em que seria instalado o estabelecimento de restauração, mas também era a sócia que capitalizava a sociedade Insolvente com recurso a meios financeiros próprios, como também se provou.
XX. Ainda que se desconsiderasse a personalidade jurídica da pessoa coletiva Insolvente, sempre teria a Recorrente investido avultadas quantias sem delas obter qualquer retorno, sendo pouco crível que a putativa valorização do imóvel pudesse contemplar integrar um tal benefício, dado que se trata de um imóvel destinado ao exercício de comércio e cujo valor ou valorização, por conseguinte, não está dependente da mera procura, mas também da disponibilidade de investimento para a instalação de um negócio/estabelecimento (ao contrário dos imóveis para habitação, que, por se destinarem a responder a uma necessidade básica humana, valorizam ou desvalorizam unicamente com base na lei da oferta e da procura).
YY. Nem se diga, sequer, que a questão da realização das obras no 1.º andar do imóvel releva para efeitos de concretizar uma qualquer valorização patrimonial que tenha beneficiado a Recorrente, pois os responsáveis pelo acompanhamento da obra (por parte da sociedade Insolvente – gerente Ab e trabalhador, e aqui credor, ML) indicaram dois factos absolutamente relevantes para assim o entender.
ZZ. Em primeiro lugar, tanto um como outro referiram que a faturação relativa à realização das obras no 1.º andar não era separada das demais obras no piso térreo, não obstante as suas insistências para que tal acontecesse, o que torna desde logo impossível quantificar efetivamente qual é que foi o benefício para o imóvel fora daquele que era necessário para a instalação do restaurante no piso térreo.
AAA. Por fim, as razões pelas quais os custos com a obra subiram foram explanadas pelos mesmos gerente Ab e credor ML, e relacionavam-se com elementos estruturais do imóvel (particularmente, condutas de extração e renovação do ar, sistema elétrico e esgotos), pelo que a sua realização era absolutamente necessária para que o estabelecimento a instalar no imóvel pudesse funcionar em condições de segurança.
BBB. E sendo natural que tal representasse um benefício para o edifício no seu todo – 1.º andar incluído –, também não logrou o Tribunal a quo determinar a medida desse benefício, ou seja, quantificar em que medida é que as obras/reparações/substituições nos elementos estruturais do imóvel beneficiaram o 1.º andar e atribuir a esse benefício uma correspondência financeira ou económica.
CCC. Não estando provada a existência de um benefício a favor próprio (no caso do gerente Ab) ou de terceiro (no caso da Recorrente), não se verifica, pois, a presunção constante da alínea e) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, pelo que deve nesse particular ser a sentença recorrida revogada.
11.O Ministério Público respondeu aos recursos, pugnando pela improcedência dos mesmos. Apresentou alegações que sintetizou nas seguintes conclusões:
1. Os recorrentes alegam que deve ser revogada a douta sentença e substituída por outra que os não reconheça como gerentes, uma vez que consideram provado que a gerência pertencia ao outro.
2. Porém, da prova produzida supra referida, documental e testemunhal, assim como depoimentos de parte, resulta com abundância que Ab (que já era gerente de direito) e Ph, tomavam as principais decisões no domínio da gestão societária.
3. Os benefícios obtidos com a realização das obras e instalação dos equipamentos e prejuízos causados à empresa e aos credores; o prosseguimento da atividade, tendo em conta a situação económica e financeira da insolvente à data da celebração do contrato de arrendamento e a utilização dos bens apreendidos por parte de Ph, não deixam qualquer dúvida sobre a verificação dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa, nos termos dos art.ºs 186º, n.ºs 1 e 2, als. e) e g), do CIRE.
4. Por fim, o requerimento que deu origem à abertura do incidente entrou em tempo, nos termos do art.º 188º do CIRE e quanto à prova, vigora o princípio do inquisitório ínsito no art.º 11º do CIRE. 5. Por todo o exposto e sem necessidade de mais considerações entende-se que os recursos não merecem provimento, devendo ser mantida a douta sentença recorrida.
12. Em resposta aos recursos o credor DM apresentou contra-alegações pelas quais requereu “a decisão recorrida deverá ser oficiosamente revista quanto à inclusão de afectados dos sócios e gerentes excluídos, face à matéria de facto que qualificou a insolvência como culposa, sendo certo que e consequentemente sempre o “quantum” indemnizatório, deverá ascender ao montante de 100% do valor dos créditos verificados e reconhecidos não satisfeitos (761.804,95€), devendo os afectados, serem solidariamente condenados a pagar aos credores reconhecidos tal montante, até às forças dos respectivos patrimónios.”
Formulou a seguintes conclusões:
A) Os recursos interpostos pelos requeridos Ph e Ab, não merecem qualquer provimento, seja do ponto de vista da matéria de facto, seja quanto ao direito aplicado;
B) Ao invés, tais recursos servem e devem ser aproveitados pelo Tribunal ad quem para oficiosamente proceder à revisão da sentença do Tribunal a quo, no sentido de condenar os sócios e gerente de facto e de direito Ng e o An como afectados, face à prova documental e à prova testemunhal, como resulta claro dos depoimentos das testemunhas NC, RN, FG, MB e ML;
C) Pois que resultou provado que o restaurante no rés-do-chão e o bar no 1.º piso estavam prontos para abrir desde o mês de Agosto de 2020, bem como à data da apresentação da sociedade à insolvência e por isso que foram abertos, após a Assembleia de Credores da Insolvente, e de todos os bens ser confiados à requerida e afectada Ph;
D) Pelo que a decisão de não abrir o restaurante e o bar construídos pela insolvente e de levar esta para a situação de insolvência foi uma decisão de todos os sócios e gerentes de facto e de direito Ph e marido Ng e An e Ab com o único objectivo de não pagarem aos credores;
E) E de ficarem com o prédio valorizado pelas obras nele efectuadas no valor de mais 400.000,00€ (quatrocentos mil euros) e os estabelecimentos de restauração e bar e equipamentos com bens no valor de mais de 150.000,00€ (cento e cinquenta mil euros);
F) Pelo que todos devem ser condenados como afectados e inibidos por período superior a mais de 7 (SETE) anos atento o elevado montante do prejuízo causado aos credores e os proveitos em benefício pessoal e próprio de cada um;
G) Donde deverem ser condenados solidariamente a repararem os credores na totalidade dos créditos apurados na insolvência, na medida em que, o não pagamento, se traduz num enriquecimento sem justa causa em benefício próprio e pessoal à custa do empobrecimento do património dos credores;
H) O que tudo foi feito através do uso da pessoa colectiva da insolvente, por forma a proteger o património pessoal de todos os requeridos, já condenados e a condenar, face aos factos que resultam objectivamente provados nos autos e nestes nomeadamente quanto à abertura dos dois estabelecimentos;
I) De resto, conforme sustenta a Jurisprudência dos Tribunais Superiores e do próprio Supremo Tribunal de Justiça, apesar de os tribunais estarem sujeitos aos princípios da proporcionalidade e proibição do excesso, e o próprio dever de indemnizar ter os seus “limites”, o “quantum” indemnizatório tem de alguma forma que se relacionar com o grau de culpa das pessoas afectadas e/ou com a gravidade da ilicitude;
J) É com base no comportamento das pessoas afectadas que contribuíram para a criação ou agravamento da insolvência que as mesmas têm de ser responsabilizadas com o devido rigor (Aresto do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. 439/15.7T8OLH-J.E1.S1, datado de 22/06/2021, disponível em www.dgsi.pt);
K) São pois as circunstâncias do caso em concreto (tudo o que está provado no processo: o que levou à qualificação e o que os afectados alegaram e provaram em sua defesa) que os tribunais devem tomar em consideração para fixar as indemnizações, nomeadamente o grau de culpa e a gravidade da ilicitude da pessoa afectada (da contribuição do comportamento da pessoa afectada para a criação ou agravamento da insolvência);
L) No caso subjudice, todos os actos que conduziram à situação de insolvência da sociedade são reveladores da “má-fé” dos Requeridos, os quais são susceptíveis de integrarem os crimes de insolvência dolosa, frustração de créditos e favorecimento de credores à data da apresentação à insolvência, com mudança da gerência de direito;
M) A gravidade de tais factos demonstram e comprovam que em todos os actos praticados pelos gerentes de direito e de facto nunca tiveram como propósito a satisfação e a execução do fim social da devedora/insolvente, tal como nenhum deles teve como objectivo o interesse da pessoa colectiva, mas antes uma actuação conjunta e deliberada por parte de Ph e marido Ng e, ainda, de An e Ab para tirarem proveitos em detrimento dos credores;
N) O grau de culpa é de tal ordem “intenso” e “violento” que o Tribunal a quo deveria ter condenado os Requeridos a indemnizarem os credores a 100% dos créditos reconhecidos não satisfeitos, ou seja, solidariamente no valor de 761.804,95 €, decorrente do uso da pessoa colectiva em proveito próprio por parte dos sócios e administradores de direito e de facto, o que não pode deixar de ser responsabilizado com RIGOR e DUREZA;
O) Na fixação da indemnização, o Tribunal a quo não podia ter perdido de vista a responsabilidade consagrada no art.º 189.º, n.º 2 al. e) do CIRE, que prevê uma função mista, ou seja, sem prejuízo do seu cariz ressarcitório, a dimensão punitiva ou sancionatória das pessoas afectadas;
P) Na condenação dos Requeridos/Apelados o Tribunal a quo não teve em consideração a jurisprudência do STJ, porquanto não apreciou devidamente as circunstâncias, nem os elementos factuais reveladores da contribuição do comportamento por cada um dos requeridos, para a criação ou agravamento desta insolvência;
Q) A sentença recorrida ao fixar o montante de apenas 10% sobre o valor dos créditos reconhecidos (€ 70.669,30) a título de indemnização aos Credores reconhecidos, viola a “razão de ser”, o sentido e a interpretação do art.º 189.º n.º 2 al. e) do CIRE e da sua conjugação com o n.º 4 da mesma disposição legal e fica muito aquém do valor dos prejuízos que os mesmos causaram com a sua actuação.
13. O Ministério Público apresentou requerimento pelo qual respondeu às contra-alegações da credora, pugnando, novamente, pela manutenção da sentença recorrida.
14. Os recursos interpostos por Ab e Ph foram corretamente admitidos e remetidos a esta Relação, e relegada para esta instância a apreciação das contra-alegações apresentadas pela credora DM e resposta que as mesmas mereceram do Ministério Público.
II – Objeto do Recurso
1. Nos termos dos art.ºs 635º, nº2 e 5 e 639º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, o objeto do recurso corresponde às decisões por ele impugnadas, é definido pelo objeto destas, delimitado pelo teor das conclusões de recurso e, sem prejuízo das questões que oficiosamente cumpra conhecer, destina-se a reponderar e, se for o caso, a anular, revogar ou modificar as decisões objeto de censura e não a apreciar e a criar soluções sobre questões de facto e/ou de direito que não foram sujeitas à apreciação do tribunal a quo e que, por isso, se apresentam como novas, ficando vedado, em sede de recurso, a apreciação de novos pedidos, bem como de novas causas de pedir em sustentação do pedido ou da defesa. Acresce que o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos nas alegações mas apenas das questões de facto ou de direito que, não estando cobertas pela força do caso julgado, se apresentem relevantes para conhecimento do respetivo objeto, sendo o tribunal livre na aplicação e interpretação do direito (cfr. art.º 5º, nº 3 do CPC).
2. Considerando que o recurso tem como objeto a reponderação da sentença recorrida - e não a apreciação do objeto do processo - cumpre nesta sede excluir do objeto do recurso os pedidos que em contra-alegações a credora DM dirigiu a esta instância - no sentido de serem declarados afetados pela insolvência culposa os requeridos que por aquela foram absolvidos, Ng e An, e de alterar o montante da indemnização por aquela fixada para o correspondente ao valor dos créditos verificados e não satisfeitos - por tratarem-se decisões que não foram objeto de recurso oportunamente requerido e interposto.
Com efeito, prevê o art.º 633º nº 1 do CPC que, Se ambas as partes ficarem vencida, cada uma delas pode recorrer na parte que lhe seja desfavorável, podendo o recurso, nesse caso, ser independente ou subordinado. Assim, confrontada com a decisão, e pretendendo a alteração dos segmentos desfavoráveis aos seus interesses, recaía sobre a credora/recorrida o ónus de a impugnar através da apresentação de requerimento de interposição de recurso que, como é consabido, constitui o meio de impugnação processualmente próprio para requerer a alteração da sentença através da reapreciação das questões de facto e de direito para tanto relevantes, faculdade cujo exercício não pode pretender suprir por via da apresentação de contra-alegações, processualmente destinadas a responder aos fundamentos do recurso e em defesa da manutenção da decisão recorrida e que, como tal, se pressupõe e impõe circunscrita aos segmentos da decisão objeto do recurso oportunamente apresentado.
Numa outra perspetiva e por força dos efeitos da ausência de recurso, à reapreciação daqueles segmentos da decisão recorrida pela Relação obsta o trânsito em julgado dos mesmos e o princípio da proibição da reformatio in petius previsto pelo art.º 635º, nº 5 do CPC.
3. Assente a referida exclusão, de acordo com as questões discutidas e objeto do incidente, o teor da sentença recorrida, e as conclusões enunciadas pelos recorrentes, sem prejuízo de outras que oficiosamente cumpra conhecer ou das que resultem prejudicadas pelo resultado da apreciação de questão precedente, vêm submetidas a apreciação as seguintes:
Do recurso de Ab.:
A) Nulidade da sentença com fundamento no art.º 615º nº 2, al. d) do CPC, atinente com a questão da caducidade do direito da credora DM e do Ministério Público pedirem a qualificação da insolvência como culposa.
B) Ampliação da decisão de facto com o aditamento de dois factos ao elenco dos provados.
Do recurso de Ph:
C) Erro no julgamento de facto (pontos 11, 24, 25, 26, e 31 dos factos provados).
Comum a ambos os recursos:
D) Erro no julgamento de direito na aferição dos pressupostos:
- da qualificação da insolvência como culposa, e
- na afetação de cada um dos recorrentes pela mesma.
III – Fundamentos dos Recursos
A) Nulidade da sentença
Sob a epígrafe Causas de nulidade da sentença dispõe o art.º 615º, nº 1, al. d) do CPC que É nula a sentença quando: a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
É consensual na doutrina e na jurisprudência que as nulidades taxativamente previstas pelo art.º 615º do CPC reportam à violação de regras de estrutura, conteúdo e limites do poder-dever de pronúncia do julgador, consubstanciando defeitos de atividade ou de construção da própria sentença, ou seja, vícios formais da sentença ou vícios relativos à extensão ou limites (negativo e positivo) do poder jurisdicional por referência ao caso submetido a apreciação e decisão. Vícios que não contendem com o mérito da decisão e, por isso, não consubstanciam nem se confundem com um qualquer erro de julgamento, quer na apreciação da matéria de facto quer na atividade silogística de aplicação do direito.[1] Os primeiros – vícios formais ou de limites - dão lugar à anulação da sentença/acórdão. Os segundos – vícios materiais -, passíveis apenas de censura por via de recurso, determinam a revogação da decisão.
Querendo reagir contra a nulidade cometida a parte interessada deve argui-la em sede de recurso, se este for admissível, e submetê-la por essa via à apreciação do tribunal recorrido, nos termos dos art.ºs 617º, nº 1 e 641º, nº 1 do CPC. Se o juiz ‘a quo’ desatendeu a arguição, o apelante procurará convencer o tribunal superior de que o seu requerimento foi indeferido indevidamente. A Relação, se entender que o apelante tem razão, corrigirá então a nulidade existente na sentença.[2] O tribunal recorrido omitiu a apreciação da nulidade arguida; porém, não se ordenou a baixa do processo para o efeito por dispensável dada a simplicidade da questão no confronto com os elementos disponíveis nos autos, que permitem concluir pela verificação do vício de omissão de pronúncia imputado e pelo seu suprimento.
Com efeito, por requerimento de 27.07.2022 o recorrente arguiu a caducidade do direito de a credora DM e o Ministério Público pedirem a qualificação da insolvência pelo facto de o terem apresentado depois de decorridos mais de 15 dias sobre a realização da assembleia de credores. Em sede de saneamento dos autos (despacho de 21.12.2022) o tribunal a quo relegou para final o conhecimento das exceções/nulidades, conhecimento que omitiu aquando da prolação da decisão final que ora é objeto de recurso.
Suprindo a apreciação omitida, cumpre concluir pela improcedência da exceção arguida pelo recorrente Ab posto que, independentemente da sua qualificação jurídica[3] - questão à qual não nos atemos por irrelevante à economia e resultado da presente apreciação –, conforme acima relatado o que os autos revelam é que, realizada em 06.10.2021 a assembleia de credores para apreciação do relatório do AI, em 22.10.2021, ou seja, no 16º dia subsequente à assembleia, a credora DM, dando por reproduzido o seu requerimento de 29.09.2021 e aderindo às alegações apresentadas em 21.10.2021 pelo credor ML, apresentou alegações a que alude o art.º 188º, nº 1 do CIRE com simultânea junção de DUC e comprovativo de pagamento da multa pela prática do ato no 1º dia útil subsequente ao termo do prazo de 15 dias ali previsto, nos termos e conforme prorrogativa prevista e reconhecida pelo art.º 139º, nº 5, al. a) do CPC, norma geral aplicável ex vi art.º 17º do CIRE por não se vislumbrarem especificidades na tramitação do incidente que a tanto se oponham.
Acresce que, ainda que a credora não tivesse cumprido o art.º 139º, nº 5 do CPC, tanto não teria como consequência a requerida repetição do julgamento por ter sido “realizado com prova e factos indevidamente incluídos no processo” – factos que, de resto, o recorrente não concretiza - na medida em que, como o recorrente reconhece, a abertura do incidente de qualificação da insolvência foi tempestivamente requerida pelo credor ML e, neste contexto, por um lado, a extemporaneidade das alegações do credor DM não punha em causa a abertura do incidente e, por outro lado, “o incidente de qualificação da insolvência é dominado por um princípio do inquisitório alargado que, contrariamente ao que sucede com o âmbito do inquisitório clássico previsto pelo art.º 411º do CPC, estende-se aos factos que integram as previsões normativas convocadas para apreciação da verificação da natureza culposa da insolvência, atribuindo ao juiz o poder-dever de incluir nos themas probandum e decidendum do incidente factos não alegados pelas partes mas que resultem ou sejam por qualquer forma trazidos ao processo e se mostrem relevantes ao objeto daqueles procedimentos, com a consequente possibilidade de o tribunal proferir decisão com fundamento em factos essenciais não alegados pelas partes. (…). Estabelecendo-se no regime da qualificação um inquisitório de tal maneira intenso que corporiza objetivos com dignidade constitucional, o poder do juiz ínsito naqueles normativos (de abrir oficiosamente o incidente, conformar subjetiva e objetivamente a instância, e investigar livremente os factos) é claramente um poder-dever clássico a que o juiz está adstrito e do qual não se pode demitir pelo que, sempre que os indícios existentes apontem numa determinada direção, devem ser investigados, em última análise, por iniciativa do juiz.”[4]
Finalmente, carece de fundamento legal a invocada ‘caducidade’ do parecer apresentado pelo Ministério Publico dado que este foi apresentado após a abertura do incidente e no cumprimento de dever de pronúncia imposto pela incontornável natureza obrigatória e insubstituível daquele ato no iter legal do incidente de qualificação da insolvência, nos termos previstos pelo art.º 188º nº 7.
Termos em que se conclui pela improcedência da invocada extemporaneidade das alegações e parecer de qualificação da insolvência respetivamente apresentados pela credora DM e Ministério Público.
B) e C) Da ampliação e do erro no julgamento da decisão de facto
1. Admissibilidade da impugnação
A impugnação à decisão de facto tem como objeto a violação de regra de direito probatório material e/ou a convicção ou juízo fáctico que o tribunal recorrido formou sobre os factos que descreveu na decisão de facto através da valoração dos meios de prova produzidos; em síntese, tem como objeto o resultado do julgamento operado pelo tribunal, descrito sob os factos provados e não provados. Não abrange o juízo de direito com que o tribunal operou o enquadramento legal dos factos provados e fundamentou o sentido da decisão recorrida, que enquadra no erro de julgamento de direito, nem visa a motivação da convicção do julgador, cuja censura é instrumental à impugnação da decisão de facto e resultado por ela visado.
Sobre os requisitos dispõe o art.º 640º, nº 1 do CPC que, pretendendo o recorrente a reapreciação da matéria de facto em sede de recurso, sob pena de rejeição, sobre ele recai o ónus de delimitar o objeto e o sentido da sua pretensão recursiva especificando: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) (…)
Do teor das alegações de recurso resulta que os recorrentes delimitaram o objeto da impugnação e o resultado por ela pretendido através da indicação dos factos que o recorrente Ab reputa relevantes e não foram conduzidos aos factos provados, e dos factos provados e não provados aos quais recorrente Ph erro de julgamento, e indicaram os meios probatórios que, na apreciação crítica que deles fazem, entendem imporem aditamento e alteração da referida decisão. Mais deram cumprimento ao ónus, dito secundário, previsto pelo al. a) do nº 2 do art.º 640º do CPC, através da transcrição e/ou da localização das passagens da gravação onde constam registados os depoimentos que invocam.
Mostram-se assim cumpridos todos os requisitos processuais da impugnação à matéria de facto, nada obstando ao seu conhecimento, ao que se procede pautado pelas regras e critérios que infra se expõem.
2. Critérios de apreciação
Prevê o art.º 341º do CC que As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos. Nos termos do art.º 342º do CC, recai sobre quem invoca um direito o ónus de demonstrar a realidade dos factos constitutivos do direito alegado, isto é, a realidade dos factos essenciais que constituem a causa de pedir e integram a previsão da norma ou das normas materiais que suportam a pretensão que deduz. Não basta invocar, alegar e peticionar; impõe-se a prova dos factos que fundamentam o pedido e cuja subsunção jurídica permitam o seu reconhecimento, sendo esses os factos que constituem o thema probandum e que, uma vez provados, integram o thema decidendum.
Dispõe o art.º 607º, 4 do CPC que Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência. Acrescenta o nº 5 que O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
O princípio da livre apreciação da prova – por contraposição com o sistema da prova legal, caraterizado por regras, medidas ou critérios legais de avaliação - tem como corolário o dever de motivação da decisão da matéria de facto, posto que aquele não significa julgamento arbitrário e insindicável do juiz, antes o resultado da apreciação crítica e analítica dos meios de prova concretamente produzidos, designadamente, das narrativas testemunhais, conjugando-as de per si, entre si, e/ou com outros meios de prova de distinta natureza, e por recurso à lógica e às regras da experiência comum, deles extraindo juízos valorativos e/ou conclusivos de facto - face à impossibilidade de reconstituição natural da realidade -, com indicação dos fundamentos condutores e determinantes dos raciocínios lógico-indutivos e dedutivos subjacentes a cada julgamento de facto. O que vale por dizer que o sistema da prova livre não corresponde a convicção pessoal, emotiva ou subjetiva, mas a convicção motivada e formada na prova produzida e nas regras da lógica e da experiência comum, correspondendo estas a realidades que, pela sua habitualidade, definem um “standard” de prova de natureza objetiva passível de sindicância, mas sem prejuízo da abertura do julgador para a exceção que, para além dos quadros mentais que a regra tende a definir/padronizar, resulte concretamente demonstrada[5]. Em suma, a decisão de facto corresponde ao resultado da atividade interpretativa do julgador e, por isso, e pela natureza da atividade judiciária, a verdade processual não corresponde à realidade empírica dos factos, mas a uma reprodução da mesma, por decalque do que a prova produzida permite alcançar; o juízo que sobre esta se forma e produz corresponde precisamente ao ato de avaliar/interpretar e tirar conclusões de dados facultados pelos meios de prova que, obviamente inclui os factos de natureza instrumental que, não sendo essenciais para o mérito da causa, permitem inferir/induzir outros que o são.
Sobre a problemática do resultado probatório, em anotação ao art.º 414º do CPC Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa[6] referem que Um ‘standard’ de prova consiste numa regra de decisão que indica o nível mínimo de corroboração de uma hipótese de facto para que tal hipótese possa considerar-se provada, ou seja, para que possa ser aceite como verdadeira. Em regra, no processo civil, esse ‘standard’ é o da probabilidade prevalecente (more-likely-than-not). Se, após a valoração da prova, não for atingido tal patamar ou se as provas produzidas pelas partes forem equivalentes, no sentido de que inexistem parâmetros concretos que justifiquem a prevalência da credibilidade de umas sobre as da contraparte, entra em campo a solução prescrita nesta norma. Assim, se depois de apreciada a prova o julgador permanecer em situação de dúvida ou incerteza sobre a realidade de um facto, conforme critério de decisão da matéria de facto fornecido pela 1ª parte do art.º 414º do CPC, a situação de dúvida é ultrapassada ou resolvida contra a parte a quem o facto interessa ou aproveita, que o mesmo é dizer, contra a parte onerada com a prova daqueles factos, respondendo ao mesmo como facto não provado. Nas palavras de Antunes Varela, O ónus da prova passa antes a significar a situação da parte contra quem o tribunal dará como inexistente um facto, sempre que, em face dos elementos carreados para os autos (seja pela parte interessada na verificação do facto, seja pela parte contrária, seja pelo próprio tribunal), o juiz se não convença da realidade dele.[7] No art.º 346º do CC a lei prevê o ónus probatório da contraprova a cargo da parte contra a qual é invocado o direito, dispondo que (…), à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos; se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova. Nas palavras de Anselmo de Castro, Quandoexigida prova principal ela se malogre ou seja anulada pela contraprova, o facto tem-se por inexistente com a consequência de não poder ser aplicada a norma de cuja hipótese constituía pressuposto da sua aplicação. A causa terá, pois, de ser decidida contra a parte a quem a sua invocação aproveitava.[8]
3. Com pertinência ao caso, nas palavras legadas por Alberto dos Reis, na elaboração da sentença pede-se ao juiz a) Que fixe, em primeiro lugar, os factos da causa (premissa menor); b) Que interprete e aplique depois a lei aos factos (premissa maior); c) Que enuncie, por fim, a decisão (conclusão).[9] É reconhecida a essencialidade do julgamento da matéria de facto no resultado da ação. [C]onstitui o principal objectivo do processo civil declaratório, tendo em conta que é da matéria provada e não provada que depende o resultado da acção.[10]Mas para que a decisão de facto cumpra plenamente a sua função na realização da justiça do caso concreto, mister é que se apresente: completa, no sentido de expressar um juízo sobre todos os factos controvertidos e necessários à decisão da causa, declarando-os provados ou não provados; percetível ou inteligível, no sentido de permitir a compreensão, quer do sentido ou alcance de cada um dos pontos de facto descritos, quer do conjunto destes; e coerente ou isenta de contradições entre cada um dos factos descritos como provados e entre estes e os descritos como não provados.
No reverso destes requisitos a decisão de facto pode apresentar vícios ou patologias que não correspondem a erros de apreciação ou de julgamento de facto.[11] Assim será quando se apresente total ou parcialmente: deficiente, porque não reporta ou não inclui todos os factos relevantes para a decisão, ou porque se limita a expressar juízos conclusivos que só cabe extrair na prolação da sentença por recurso a factos reais que, para o efeito, devem constar concretizados na decisão de facto; obscura, porque de sentido ambíguo, confuso ou de difícil determinação; contraditória, porque contém descrição de factos incompatíveis entre si, quer no confronto entre os factos declarados provados, quer destes com os factos declarados não provados.[12] Em qualquer um destes casos a decisão não cumpre a definição de uma base factual segura e necessária, por imprescindível, à correta integração dos pressupostos normativos dos tipos legais convocados para apreciação e decisão da causa pautadas por princípios de justiça material.
Em síntese, em sede de elaboração de sentença, o juiz deve selecionar e proferir decisão concreta e precisa sobre os factos essenciais que integram cada uma das questões de facto que integram o objeto do processo. Tarefa que, no âmbito do incidente de qualificação da insolvência, se impõe seja concatenada com o poder-dever de o juiz incluir questões de facto e de atender a factos constitutivos de qualquer um dos pressupostos legais de qualificação da insolvência que resultem dos autos (processo principal de insolvência e apensos) ou da instrução do incidente, ainda que não alegados nos pareceres de qualificação ou nas peças processuais oportunamente apresentadas nos autos pelos interessados (insolvente, requeridos, e credores). Poder-dever ditado pelo já referido princípio do inquisitório especialmente previsto pelo art.º 11º[13] do CIRE e, este, pela natureza sancionatória e de interesse publico do incidente de qualificação da insolvência que, divergindo dos princípios do dispositivo e do inquisitório previstos pelos art.ºs 5º, nº 1 e 411º do CPC, permite a averiguação e consideração oficiosa de factos não alegados pelas partes. No âmbito dos procedimentos ali especificados o princípio do dispositivo surge fortemente mitigado posto que é dominado por um princípio do inquisitório alargado que, contrariamente ao que sucede com o âmbito do inquisitório previsto pelo art.º 411º do CPC, estende-se aos factos que integram as previsões normativas convocadas para apreciação da verificação da situação de insolvência e da natureza culposa da insolvência, atribuindo ao juiz o poder-dever de incluir nos themas probandum e decidendum do incidente factos não alegados pelas partes, bastando tão só que resultem ou sejam por qualquer forma trazidos ao processo e se mostrem relevantes ao objeto daqueles procedimentos, com a consequente possibilidade de o tribunal proferir decisão com fundamento em factos essenciais não alegados pelos interessados ou partes no incidente, numa evidente supremacia das finalidades visadas pelos ditos procedimentos face ao interesse público do seu objeto[14].
4. Na definição das consequências a extrair dos vícios da decisão de facto, sob a epigrafe Modificabilidade da decisão de facto, prevê o art.º 662º do CPC que: 1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
No dizer de Abrantes Geraldes[15], Através dos nºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostre acessíveis., no pressuposto, certeiro, de que só assim fica assegurado o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise. A omissão de factos relevantes por indispensáveis à boa decisão da causa impõem a ampliação da matéria de facto para que nela sejam incluídos e, resultando provados, considerados em sede de enquadramento jurídico, o que impõe a anulação da sentença e a repetição do necessário pelo tribunal recorrido[16] apenas no caso de os factos omitidos não terem sido submetidos ao contraditório e/ou a instrução. Assim o prevê a al. c) do nº 2 do art.º 662º do CPC, nos termos do qual A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: (…) Anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta; (…).” Nesse sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.10.2019, assentando que o art.º 662º, nº 2, al. c) do CPC apenas determina a anulação da decisão proferida quando do processo não constem todos os elementos probatórios necessários ao seu suprimento pelo Tribunal da Relação; “Ao invés, se estes estiverem acessíveis, a Relação deve proceder, enquanto tribunal de substituição, à sua apreciação e introduzir na decisão da matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas.//A intervenção do Tribunal da Relação nesse âmbito ocorre a título oficioso, independentemente, portanto, da iniciativa da parte interessada na alteração da decisão de facto, pelo que não são aplicáveis os ónus previstos no art.º 640 do CPC.”[17]
5. Feita a contextualização dos poderes-deveres do juiz em sede de decisão de facto e dos poderes da Relação nesta sede, cumpre verificar se têm fundamento as alterações requeridas à decisão de facto ou se esta carece de ser ampliada, o que se faz por recurso à valoração dos elementos factuais e probatórios indicados pelas partes e dos enunciados pelo tribunal recorrido na exposição da formação de convicção sobre cada um dos pontos de facto objeto de impugnação, tendo-se procedido à audição integral dos depoimentos prestados em audiência e à verificação de toda a prova documental produzida.
6. Da ampliação da decisão de facto para aditamento dos seguintes factos provados:
i) “Ab deixou de auferir o seu vencimento desde Agosto de 2020 até 21 de Maio de 2021, data em que renunciou à gerência, no valor global de €44.250,00 (quarenta e quatro mil, duzentos e cinquenta euros).”
Alega o recorrente Ab que, desacompanhado deste facto, o facto provado sob o ponto 12 contraria a prova documental produzida pelas ata da assembleia geral da insolvente de 15.06.2021 e declaração de renúncia do recorrente ao cargo de gerente da insolvente - que o tribunal valorou na motivação da decisão de facto -, da qual, conforme o recorrente declarou em audiência e consta registado na passagem que indica, resulta que entre agosto de 2020 e maio de 2021 o recorrente não recebeu qualquer salário, pelo que “andou mal o Tribunal quando refere que «o que se verificou foi o prosseguimento pelos identificados gerentes de uma exploração claramente deficitária (…) recebimento integral da remuneração pelo próprio Ab.»”
Apreciando, cumpre antes de mais precisar que o recorrente não impugnou o ponto 12 dos factos provados e que este não colide com o facto pretendido aditar aos factos provados nem é contrariado pelos meios de prova que o recorrente indicou para o sustentar, resultando das alegações que a pretensão do recorrente é afastar um facto que o tribunal pressupôs e valorou em sede de enquadramento jurídico (de que o recorrente recebeu na íntegra a remuneração atribuída pelos sócios enquanto gerente da insolvente).
Independentemente da posição que se adote quanto ao valor probatório das declarações de parte – autossuficientes ou apenas como complemento ou princípio de prova a esclarecer ou a confirmar pelo que resulta de outros meios de prova[18] -, a prova produzida é idónea à formação daquele “standard” probatório relativamente às remunerações referentes ao ano de 2021, pela valoração conjugada das declarações prestadas pelo recorrente com o teor da carta que lavrou e remeteu à insolvente para comunicar e justificar a sua renúncia ao cargo de gerente e o teor da ata da assembleia geral da insolvente de 15.06.2021, esta subscrita pelos três sócios da insolvente, incluindo o recorrente, da qual consta que, por referência à referida carta de renúncia, os sócios deliberaram por unanimidade aceitá-la sem nada contrapor ou esclarecer quanto à ali alegada falta de pagamento do vencimento do recorrente, reforçada naquela parte pela exposição de motivos atinente com o ponto três da ordem de trabalhos da assembleia - deliberação sobre a apresentação da sociedade à insolvência -, que ali surge justificada, além do mais, pela ausência de receitas da insolvente e pela cessação dos suprimentos dos sócios no início de 2021 (e esta determinada pela substancial redução dos seus rendimentos provocada pela pandemia), conjugado com o facto - sobejamente alegado, declarado e aceite nos autos e confirmado pelo contabilista certificado, GP - de a insolvente nunca ter gerado receitas e de as entradas de dinheiro (nas contas bancárias) da insolvente terem sido sempre realizadas pelos (ou através dos) sócios de nacionalidade vietnamita, sendo que, conforme aquele também esclareceu, o ativo em curso no ano de 2020 ascendia a mais de €300K, valor que representa mais do dobro das entradas cumpridas para realização do capital social correspondente ao valor nominal da participação social daqueles sócios, no montante total de €160.000,00. Mais acresce o saldo da conta 2311 inscrito pelo valor negativo de €17.627,73 no balancete da insolvente referente ao período de 01.01 a 01.06.2021 (junto pelo AI com o req. de 24.02.22), a evidenciar remunerações em dívida aos órgãos sociais naquele valor, e o declarado em audiência pela recorrente Ph, de que só no tempo da pandemia é que Ab lhe transmitiu que ele e o credor ML não estavam a receber (mais tendo acrescentado que só nesta altura teve conhecimento que ML também estava a ser remunerado pela insolvente). Acresce que pelo declarante ML foi dito que (só) em dezembro de 2020 deixou de receber o vencimento que recebia da SW (por transferência ordenada por Ab) e demitiu-se por esse motivo.
O conjunto dos sobreditos elementos permitem julgar parcialmente procedente a requerida ampliação e aditar aos factos provados o seguinte:
“Ab deixou de receber o seu vencimento desde pelo menos janeiro de 2021 até 21 de Maio de 2021, data em que renunciou à gerência.
ii) “Quando o Ab renunciou à gerência o restaurante estava pronto a abrir e a estar habilitado a realizar receitas.”
O recorrente suporta a demonstração deste facto nas declarações que prestou em audiência (e que localiza nas passagens da gravação) e alega que, face ao tema de prova descrito sob a al. b), ao que consta da fundamentação da sentença – “no mesmo sentido, a actuação dos gerentes revela igualmente que atendendo ao tipo de trabalhos e equipamentos fornecidos assistia-se a uma valorização do património de Ph, também proprietária do imóvel, que prosseguiu na recolha dos benefícios decorrentes da utilização de bens que integravam a massa insolvente. Tudo com prejuízo para a insolvente, que no caso de um exercício de gerência adequado, teria de suportar custos bem inferiores, e podido cumprir cabalmente o objecto social (restauração)” -, e ao facto provado de que logo a seguir à renúncia do recorrente aquela arrendou o restaurante e este começou logo a laborar, aquele facto deve ser dado como provado por absolutamente relevante para demonstrar que os atos praticados pelo recorrente a coberto das decisões dos demais sócios não o foram em proveito seu ou de outros nem representaram exploração deficitária da insolvente, mas apenas investimento destinado à exploração de um restaurante que estava pronto a iniciar a sua atividade.
Não se questiona a relevância do facto em questão na demonstração da intenção que aos recorrentes vem imputada nas alegações e pareceres de qualificação da insolvência – de aproveitamento da personalidade coletiva da insolvente para concentrar nesta as dívidas geradas com a remodelação do imóvel e a instalação dos equipamentos em benefício da proprietária do imóvel, a recorrente Ph, e em prejuízo daquela. Porém, a prova produzida não sustenta juízo de facto nesse sentido.
Assim:
Tendo-lhe sido perguntado como é que foram resolvendo as necessidades de mais dinheiro, depois de ter declarado que “o dinheiro não era um problema” e que o dinheiro “foi caindo sempre”, o recorrente afirmou ter ficado surpreendido quando numa reunião os demais sócios lhe disseram que não havia (mais) forma de ‘capitalizar’ e que o sócio An lhe perguntou se ele tinha possibilidade de o fazer, ao que respondeu negativamente por não ter dinheiro. Neste seguimento acrescentou que o restaurante estava pronto a arrancar, que não faltava nada mas, logo em seguida, a instâncias do sr. juiz, à pergunta “o que faltava para abrir”, respondeu “talvez com €40.000,00 era possível iniciar a atividade, trazer as mercadorias e ter os pagamentos seguros pelo primeiro mês”, o que mais à frente reforçou a instâncias de sr. advogado, respondendo que o restaurante estava ‘quase’ pronto a abrir, depoimento que bem demonstra a amplitude semântica das palavras, no caso a expressão ‘pronto a arrancar’, suscetível de ser compreendida e correspondida com diversas realidades da mesma situação, dependente da perspetiva em que seja encarada, e cujo conteúdo carece por isso de ser explicitado para cabal reprodução da realidade a que reporta, como no caso foi a instâncias do sr. juiz a quo com resultado que não corrobora o facto pretendido aditar pelo recorrente.
A esta questão e em consonância com as citadas declarações de Ab, Ph respondeu igualmente que o restaurante não abriu porque Ab dizia que não estava pronto, que este pedia mais dinheiro, e que lhe transmitiram que já não havia mais; An respondeu que o restaurante não abriu porque as obras não terminaram, que Ab dizia que eram precisos mais materiais, que não tinha licença, e que não puderam abrir; ML afirmou que “não havia dinheiro para arrancar”, que Ab “pediu mais dinheiro aos outros sócios para arrancar”, referindo as dificuldades no acesso (relativamente a dinheiro que estaria ‘bloqueado’) ou na obtenção de dinheiro (através da venda de um imóvel no Estoril) que lhe foram relatadas pelo requerido An.
Das citadas declarações, sem contradições e em coerência lógica entre si[19] e, desde logo, das declarações do recorrente Ab, extrai-se que para iniciar a exploração do restaurante a sociedade carecia de financiamento para dispor de tesouraria – que não tinha - para assegurar a aquisição e/ou pagamento de bens, matérias primas e quaisquer outros recursos que entendia necessários ao início da atividade de restauração por todos (ab initio) visada.
Os documentos juntos aos autos por requerimento de 23.09.2022 de ML, correspondentes a fotografias do interior do restaurante no imóvel sede da insolvente e de talão de controlo (de pedido/consumo de cliente) emitido pela sociedade que o explora, ‘R…, Ldª, não relevam para comprovar o facto pretendido aditar na medida em que este talão data de 11.08.2022, ou seja, mais de um ano após a renúncia ao cargo de gerente pelo recorrente Ab.
Termos em que se conclui pela improcedência da requerida ampliação.
7. Do erro de julgamento
7.1. A impugnação deduzida pela recorrente Ph tem por objeto os seguintes pontos de facto:
a) Ponto 11 – As instruções das alterações durante a execução das obras foram sempre dadas pelo Ab., com o conhecimento e o acordo necessário de Ph, quer na sequência das visitas à obra feitas por ele, por vezes acompanhado por Ph, An e Ng, quer na sequência da visita destes conforme indicações daquele.
Requer a eliminação do teor final daquele ponto de facto para passar a constar apenas que “As instruções das alterações durante a execução das obras foram sempre dadas pelo Ab., com o conhecimento de Ph.”.
Fundamenta a alteração nos depoimentos do recorrente Ab, do credor ML, e da testemunha GP, contabilista da insolvente, cujas passagens indicou, dos quais alega resultar que Ab e ML acompanharam as reuniões relativas ao imóvel e ao negócio realizadas antes da constituição da insolvente e que o acompanhamento das obras era diário por estes e mensal pelos sócios de capital, e mais alega que o facto de o primeiro não ter efetuado a sua entrada de capital nem ter disponibilidade para financiar a sociedade colocou-o numa posição de desvantagem em relação aos demais sócios no que toca à capacidade de tomada de decisões com impacto financeiro, situação que, para além da normal vinculação da gerência às instruções expressas dos sócios, justifica que aquele estivesse “muitíssimo dependente da disponibilidade financeira de dois dos sócios, que nada sabiam do negócio de restauração, deixando para o sócio conhecedor do métier as decisões e escolhas relativas à implementação do estabelecimento, o qual – diremos, até, que naturalmente – não deixava de submeter à aprovação dos detentores do capital as suas propostas.”, que “resultou dos referidos depoimentos que as visitas dos sócios “de capital” e do marido da Recorrente à obra eram esporádicas e o acordo necessário da Recorrente baseava-se apenas na aprovação dos crescentes orçamentos.” e que “a decisão de prossecução das obras partiu sempre do gerente, como não podia deixar de ser.”
b) Ponto 24 – Para além do referido em 11. supra, Ph esteve presente na reunião que definiu o projeto de arquitetura para a conceção/instalação do restaurante, procedeu à escolha de trabalhadores para o restaurante e das loiças para o restaurante que iria ser explorado pela sociedade Insolvente, tendo sido realizada uma deslocação à Fábrica da Vista Alegre em Ílhavo, em 12 de outubro de 2020.
Requer seja alterado para dele passar a constar que “Ph esteve presente na reunião que definiu o projeto de arquitetura para a conceção/instalação do restaurante, e sugeriu trabalhadores e loiças para o restaurante que iria ser explorado pela sociedade Insolvente, tendo sido realizada uma deslocação à Fábrica da Vista Alegre em Ílhavo, em 12 de outubro de 2020.”
Alega que a sua presença na reunião e a sua participação na escolha de loiças não consubstanciam atos de gerência e que tais intervenções, descritas pelo recorrente Ab e pelo credor ML, não interferiram com a liberdade da atuação do gerente na decisão de contratar recursos humanos e de adquirir bens ou equipamentos, e que não custa admitir que quisesse deixar algum cunho pessoal seu num projeto que estava a ser pago por si.
c) Ponto 25 - Na deslocação referida supra, para além de adquirir as louças para o restaurante, a Senhora Ph comprou loiças para a sua residência pessoal, utilizando meio de pagamento o cartão bancário da sociedade insolvente que estava na posse de Ab.
Requer seja alterado para dele passar a constar que “Na deslocação referida supra, Ph comprou loiças para a sua residência pessoal, utilizando como meio de pagamento o cartão bancário da sociedade insolvente que estava na posse de Ab para beneficiar de um desconto e reembolsando posteriormente a sociedade insolvente”.
Alega que da sentença, na parte em que reproduz o depoimento da recorrente, consta que aquela despesa foi paga com o cartão da empresa para beneficiar de um desconto, mas estava sujeita a reembolso.
d) Ponto 26 - Na sequência de reuniões previamente agendadas com empresas do ramo, foi Ph quem procedeu à escolheu a empresa para efetuar as tarefas de branding e comunicação relativamente ao restaurante da insolvente.
Requer seja julgado não provado.
Alega ser falso e resultar do depoimento do credor ML que “a Recorrente deixou ao critério do gerente Ab, bem como do próprio ML, a escolha da empresa de marketing e comunicação”.
e) Ponto 31 - Por instruções de Ab e Ph sociedade “SW.” continuou a contratar e a adquirir bens, serviços e equipamentos e a beneficiar da execução de trabalhos ao longo do ano de 2020, bem sabendo que a Insolvente não tinha meios económicos e financeiros para vir pagar as dívidas relativas ao custo de aquisição e execução.
Requer seja julgado não provado.
Alega que este facto não pode ser dado como provado por ser irrelevante que a sociedade tenha continuado a contratar, a adquirir e a beneficiar na medida em que dos depoimentos (invocados para fundamentar a alteração ao ponto 11) resulta que a sociedade nunca possuiu meios económicos e financeiros próprios para pagar tais custos, estava sempre dependente dos suprimentos efetuados pelos sócios de capital e, no momento em que estes deixassem de o fazer, todo o projeto cairia por falta de fundos.
7.2. Por referência à relevância jurídica que postula para as requeridas alterações – exclusão da sua qualificação como administradora de facto da sociedade insolvente -, em síntese, o que a recorrente alega é que da prova produzida resulta que as decisões eram tomadas pelo gerente de direito Ab e que este lhe comunicava ou dava a conhecer orçamentos de trabalhos ou bens que pretendida adquirir com o propósito de obter as entregas de dinheiro para o efeito necessárias pelo facto de, na qualidade de investidores, a recorrente e o sócio An terem assumido (apenas) o papel de financiamento da sociedade no âmbito do projeto societário entre todos previamente acordado.
Sem prejuízo da (necessária) identificação das questões normativas objeto do processo – posto que determinam a seleção dos factos relevantes à decisão - relembra-se que o apuramento e descrição desses factos deve ser feita em termos que reproduzam com a maior fidedignidade possível a realidade histórica ou o pedaço da vida que define e delimita o objeto da ação – no caso, a qualificação da insolvência -, já que, conforme se referiu, é essencialmente da decisão de facto que depende o resultado da ação. Tarefa que se apresenta com especial acuidade em sede de apuramento da imputada qualidade de administrador de facto na medida em que a definição deste conceito - comummente aceite pela generalidade da doutrina e jurisprudência como “Quem, sem título bastante, exerce, direta ou indiretamente e de modo autónomo (não subordinadamente), funções próprias de administrador de direito da sociedade” , quem participa na “gestão estratégica e global da sociedade”[20] - permite antever a exigência de um leque de requisitos e respetivos pressupostos de facto para a sua concretização posto que, se é administrador de facto quem pratica atos/factos próprios de administração, só pelo conhecimento da concreta atividade e dos termos em que é concretamente exercida pode extrair-se aquela qualificação, o que impõe especial cuidado na seleção e descrição da matéria de facto que resulte da prova produzida.
Com este desiderato cumpre a esta instância, procedendo à reapreciação de toda a prova testemunhal e documental produzida nesta matéria, “reponderar a questão de facto em discussão e expressar de modo autónomo o seu resultado”, o que inclui sanar deficiente ou lacunosa descrição da matéria de facto “a partir dos elementos que constem do processo ou da gravação.”
Nesse sentido, destacamos as seguintes declarações, conforme ou para além do exposto na motivação da decisão de facto impugnada:
No âmbito das declarações/depoimentos de parte, as declarações de Ab, Ph, Ng e An são no essencial concordantes na descrição e cronologia do circunstancialismo em que estes conhecerem o primeiro e do contexto em que foi solicitado e aprovado o projeto de arquitetura para remodelação do espaço do restaurante da sociedade que depois decidiram constituir para adjudicação e execução daquele projeto no âmbito do objeto societário, previamente definido entre todos, de exploração do restaurante; igualmente concordantes na identificação de Ph e An como os sócios ‘investidores’ que iriam ‘meter’ dinheiro na sociedade, e na atribuição a Ab do cargo de gerente por ser o único com conhecimento no ramo da restauração e da sua exploração, factor que também justificou a sua integração naquele projeto como sócio. Salientando-se desde já que à data da aprovação do projeto de arquitetura – de acordo com o declarado por AC, em finais de maio de 2019 - não estava ainda constituída a sociedade – cujo contrato foi celebrado em junho de 2019 -, a partir desta os declarantes divergem no grau de participação de cada um nas decisões atinentes com o âmbito e execução das obras e aquisição de equipamento que foram contratadas e realizadas em nome da sociedade insolvente. Ab declarou que ‘pelo bem da sociedade’ nunca tomou nenhuma decisão sozinho, que apresentava sempre alternativas/propostas aos sócios e as escolhas eram feita por todos, tendo especificado que comunicava os orçamentos para escolherem/aprovarem o que queriam adjudicar e, relativamente ao da cozinha do restaurante, declarou que ‘optaram pelo mais barato’. Declarou que remetia os emails com conhecimento aos outros dois sócios, aos quais An nunca respondia e que quem decidia sempre era Ph.
Foi ele quem escolheu o contabilista, mas frisou que para tanto teve o ‘aval’ de Ph, e que por indicação de An o contabilista que inicialmente escolheu foi depois substituído por quem fazia a contabilidade da empresa daquele, tendo sido este quem indicou a pessoa para fazer alguns trabalhos na fachada do prédio, o credor EA, e que não foi ele quem negociou essa contratação.
No início decidiram que as obras eram só no rés do chão, mais tarde decidiram que outra pessoa se encarregaria das obras do piso superior e que era importante que fossem realizadas ao mesmo tempo para não haverem obras em curso mais tarde, reforçando que ‘a decisão da sociedade’ foi de que o 1º piso ficava para outra entidade e que os demais sócios acordaram em pôr a obra em cima a andar. Tendo-lhe sido perguntado se o objetivo dos outros sócios era obter uma remodelação do prédio sem pagar as obras e como foram resolvendo as necessidades de mais dinheiro, respondeu que se apercebeu que ‘o dinheiro não era um problema’ e que ‘o dinheiro foi caindo sempre’. Mais à frente e sob distintas instâncias, referindo-se aos demais sócios afirmou que ‘eles não queriam chegar à fase da justiça por falta de pagamentos, era um problema para eles’; que ‘sentiu que o dinheiro não estava a chegar’, que ‘disse à DM que [o dinheiro] ia chegar mais tarde’, e que ‘no fim fiz pressão sobre a DM para terminar o trabalho porque pensou sempre que o dinheiro ia chegar’, que ele ‘não tinha dinheiro para entrar com o capital’, e que ‘acordaram que ia pagar a sua quota com trabalho’, ‘fariam acertos depois em função dos lucros’.
Sobre a execução da obra pela credora DM, declarou que se assumiu e comprometeu como ‘fiscal de obra’, que a DM teve sempre que ir adaptando a obra às dificuldades que iam encontrando, e que acabaram por ser obras de reconstrução do próprio edifício e que o beneficiaram, que participou/partilhou com os sócios todas as alterações e orçamentos e só depois da sua aprovação é que dava andamento. Sem especificar em que momento – se antes, se durante ou se após a execução das obras -, declarou que ‘ulteriormente’ pediu à DM a separação da faturação das obras realizadas no piso superior, mas que lhe diziam não ser possível porque o contrato (de empreitada) tinha sido feito com a SW e que para eles (DM) era difícil, e mais referiu que ‘quando Ph me pediu os orçamentos separados seria para imputar ao sr. Quico’, que identificou como sendo o sr. SP que iria explorar o 1º andar. Mais declarou que a obra prosseguiu no tempo do Covid, mas com dificuldades, havia falha e era difícil de encontrar material.
Mais declarou que o compromisso era criar um menu em que metade fosse vietnamita e que quem decidiu essa percentagem foi Ph; que esta queria trazer antigos trabalhadores do restaurante antigo e ele foi sempre contra porque ele é que tinha que decidir quem integrava a sua equipa; que no meio do processo das obras recebeu uma carta da Segurança Social a pedir um valor de três trabalhadores da SW, aos quais depois percebeu que estavam registados como se fossem trabalhadores da SW e aos quais o sr. An tinha pago mais de um ano; que foi ele quem contratou e diligenciou pela formalização do contrato com ML para ser chefe de cozinha, mas que antes comunicou aos outros sócios; que não concordava com o valor de €10k da renda e que seria para pagar só com o início do restaurante. Ph declarou, em síntese, que participou no pedido e apresentação do projeto para o restaurante e respetivo preço, estimado em cerca de €180k, e na adjudicação das obras no gabinete da arquiteta, e que a vontade que sempre comunicou a Ab era fazer as obras no rés do chão porque estava combinado que o 1º andar seria um bar e que as obras deste seriam feitas pelo eventual inquilino, mas a partir daí limitou-se a ‘investir’ porque contactaram e confiaram em Ab para tratar de tudo por lhes ter sido indicado como especialista e eles não terem experiência no ramo da restauração, e que por isso aceitaram pagar-lhe um salário, tendo sido ele quem deu ordens para execução das obras no 1º andar. Ab era a única pessoa que sabia das obras, ele avisou-os que ia haver alterações no projeto e que o projeto passava de €170k para €270k, entregavam-lhe o dinheiro que ia pedindo – com recurso a empréstimos da irmã do sr. An -, mas não o controlavam, era Ab que tinha acesso à movimentação da conta bancária da sociedade, quem recebia faturas e fazia pagamentos e tratava com o contabilista, e ela desconhecia que a execução da obra tinha sido suspensa em abril de 2020 e que não tinha sido tudo pago - confiava em Ab e a única preocupação que lhe manifestava era quando é que o restaurante estava em condições de abrir – acrescentando que não visitavam muito a obra por causa do covid. Questionada sobre a razão da nomeação do seu marido para gerente (em março de 2021), declarou que foi quando perceberam que havia muitas despesas, mas nessa altura já não dava para fazer mais nada porque a empresa já estava em insolvência. Ng declarou que tudo o que soube das obras foi através das conversas com a sua mulher, Ph, e que decidiram a sua nomeação como gerente quando perceberam que houve muito ‘deslizamento’ de despesas, para poder fiscalizar. Declarou que o projeto abrangia o rés do chão e o 1º andar e, questionado a respeito das obras no 1º piso, declarou que só concluíram que alguma coisa estava a correr mal quando o dinheiro já tinha acabado. An declarou ser amigo do casal Ph e Ng há mais de 10 anos e que nessa qualidade contactou-os com o seu agente imobiliário, através do qual aqueles ‘investiram’ na compra daquele imóvel e lhes foi apresentado Ab como alguém que tinha muita capacidade para explorar o restaurante, negócio ao qual o declarante acabou por aderir porque aquele agente imobiliário (Diogo) lhe disse que não seria preciso um investimento superior a €200,00, o que foi confirmado pela arquiteta que elaborou o projeto, tendo com aqueles decidido constituir a sociedade um mês depois, e que esteve presente na reunião em que foi feita a adjudicação das obras mas da qual não percebeu nada porque falaram em inglês. Que confiaram no Ab porque ele tinha a experiência no ramo, e eles não, e que passou 1 ou 2 vezes para ver as obras, tendo-se limitado ao espaço onde era para funcionar o restaurante, e que Ab lhe disse que as obras não terminaram por causa da pandemia e falta de materiais. Confrontado com o facto de ser preciso mais do que €180k para por o restaurante a funcionar uma vez que o equipamento não integrava o orçamento das obras, declarou que “Se fosse preciso emprestava dinheiro à empresa”, que disse ter realizado através de empréstimos, seus e da sua irmã, esta por três vezes. Que durante o Covid e durante a quarentena Ab telefonava a pedir mais dinheiro para a sociedade, que achou normal porque a empresa continua a ter despesas. Sobre as obras no 1º piso declarou que sabia que o projeto abrangia os dois espaços e que a perspetiva era que as obras fossem realizadas para as duas entidades (para aproveitar a sua realização em simultâneo), mas as do 1º piso era para ser faturado a outra entidade, para serem pagas pelo sr. Quico. ML, credor e requerente do incidente de qualificação da insolvência, declarou que conheceu os srs. de nacionalidade vietnamita pela ‘mão’ de Ab quando foram ao restaurante antigo para fazer o levantamento do inventário (máquinas, mesas, cadeiras, etc), antes de agosto de 2019, momento em que aqueles terão decidido ficar com o espaço; foi contratado por Ab e que a esse respeito e sobre o seu salário só falou com este e recebia por transferência da conta da SW por aquele ordenada; acompanhou e foi o braço direito de Ab e estavam ambos na obra de 2ª a 6ª; marcou reunião para conhecer as empresas de branding e marketing e a srª Ph escolher a melhor opção; sobre a contratação de empresa de comunicação citou como resposta de “se vocês acham que essa é a melhor empresa, então avançamos”; esteve presente numa reunião no atelier da arquiteta com o sr. Quico, que “a srª trouxe para ficar a explorar o 1º piso”, com objetivo de alinhar o projeto da decoração do imóvel em relação a todo o imóvel; as obras na fachada do prédio ficaram por conta de An; An terá ido uma vez por mês ver a obra, e Ph e o marido também foram ver a obra e mostrar aos amigos; a obra foi suspensa por uma vez por falta de pagamento, mais para o final da obra; foi ele e Ab que escolheram o equipamento e móveis de cozinha, incluindo para o 1º piso, declarando que o fizeram de acordo com a indicação de Ph e de An, e que foi tudo faturado à SW; que Ab não concordava com a exploração do 1º piso por outro porque obrigava a fechar o espaço, que nesse processo, e no que designou por segunda fase, o Quico acabou por não fazer parte do plano mas, numa terceira fase, tornou a regressar e, nessa altura, foi feito pedido para instalação de contadores separados no rés do chão e no 1º piso. Tendo-lhe sido perguntado se Ab tinha autonomia para decidir, respondeu que quando era para decidir sobre determinado equipamento Ab recebia os orçamentos e enviava no mesmo email para An e Ph, os sócios escolhiam o orçamento e Ab tratava; referiu que Ab redigia e enviava os e-mails em inglês. Descreveu o sucedido com três trabalhadores do antigo restaurante nos termos descritos por Ab, incluindo a oposição deste à contratação daqueles, tendo acrescentado que a contabilidade da insolvente lhes enviou os recibos daqueles trabalhadores; declarou que o menu nunca chegou a ser definitivamente definido, mas que contava com os contributos de todos; quando a cozinha já estava praticamente pronta foi contratado um cozinheiro vietnamita por indicação de Ph; Ab contratou um chefe de sala, FT, desconhecendo se foi ou não por indicação daquela; a obra parou pela primeira vez em março de 2020 por falta de pagamento porque não ia ser feita transferência (de dinheiro para a insolvente); pediram à DM uma data para entrega da obra, que foi definida mas acabou por ser ultrapassada por falta de pagamento; as faturas da DM eram mensais e havia faturas em dívida; ‘às tantas’ pediram à DM para separar a faturação dos trabalhos do restaurante e do bar, mas FG disse-lhes que era impossível; o Sr. Quico nunca se manifestou para fazer o pagamento das obras do 1º piso; quem recebia as faturas era Ab; Ph disse que precisava do contrato de arrendamento assinado para fazer face a empréstimo bancário e que Ab não concordava com a renda de €10k.
Com reflexo no julgamento da matéria em questão, designadamente, nos segmentos “instruções” de Ph e “acordo necessário de Ph” que integram o facto 11 e 31, refira-se antes de mais a relevância dos depoimentos das testemunhas DA, NC, RN, e FG, o primeiro administrador e os demais funcionários da credora DM, cuja razão de ciência ou idoneidade/fidelidade dos seus depoimentos não foi posta em causa nem invocado um qualquer condicionamento (consciente ou inconsciente) na sua prestação, e que, conforme evidenciado pelo tribunal a quo, “denotaram conhecimento concreto da realidade atinente à negociação e execução dos trabalhos, relatando os factos de forma objetiva, totalmente coincidente com os elementos documentais apurados, merecendo credibilidade”. Globalmente considerados foram unânimes na descrição essencial da cronologia e vicissitudes da execução da obra, desde a sua assinatura em setembro de 2019, o início dos trabalhos em outubro de 2019, logo seguida de paragem para reorçamentação do projeto definitivo na sequência de obras estruturais inicialmente não previstas mas indispensáveis à sua execução e funcionalidade dos espaços (ao nível do equipamento de ar condicionado instalado, da instalação elétrica, e do saneamento) a partir das quais acordaram no processamento mensal do pagamento por autos de obra e, depois daquelas obras iniciais (que a testemunha DA referiu corresponder-lhes faturação de apenas cerca de €20k), o inicio dos trabalhos de fundo em fevereiro, com paragem em abril a pedido do cliente por falta de dinheiro para pagamento, a sua retoma e conclusão em agosto com promessa de pagamento pelo cliente das faturas vencidas e em dívida, seguida de trabalhos para satisfação de listas de anomalias/correções/melhoramentos sucessivamente apresentadas pelo cliente (retoques, coisas pequenas) que atrasaram sucessivamente a receção provisória da obra e o pagamento que, por esse motivo, a credora entendeu que não ia acontecer e em dezembro 2020 decidiu pela suspensão da obra, tendo permanecido em estaleiro na qualidade de responsável pela obra até março de 2021, pela qual faturou mensalmente ‘custos de estaleiro’, até que a dona da obra procedeu a mudança de fechaduras, vedando-lhe o acesso ao imóvel. Todos eles negaram conhecer ou ter recebido qualquer pedido de separação de faturação das obras, e não foi junta aos autos qualquer pedido/comunicação escrita nesse sentido.
Assim, DA, administrador executivo da DM, declarou:
- assumiu que a injeção de capital da SW tinha fonte externa, atendendo a que tinha sócios vietnamitas, que tiveram sempre dificuldade em receber – esclarecendo a este respeito que só em abril de 2020 receberam o primeiro pagamento, correspondente ao que estava acordado ser feito com a assinatura do contrato;
- ao longo da empreitada produziram orçamentos no valor total de cerca de €470k para trabalhos adicionais, dos quais foram aprovados cerca de €200k, e o ultimo auto da obra ascendia ao valor total de cerca de €370k. NC, funcionário da DM responsável pela coordenação da direção da obra, declarou:
- na reunião realizada no gabinete da arquiteta para apresentação do orçamento e adjudicação da obra estavam as três pessoas de origem vietnamita, Ph, Ng e An, o sr. Ab, que na apresentação do orçamento foi detalhado o restaurante no piso térreo e a cobertura no 1º andar, este com pérgola em madeira e decoração de bar;
- o sr. SP (italiano) foi-lhe apresentado como a pessoa que iria explorar o bar, que este opinava nos trabalhos menores, mas era com o Ab e não com aquele que tratavam;
- durante os trabalhos em obra quem estava presente nas reuniões com eles era o Ab e, mais tarde, também ML, que passou a secretariar as reuniões, que as alterações eram pedidas pelo Ab em reuniões de obra, que em relação a pequenas coisas/alterações sem reflexo no valor aquele tomava decisões sozinho mas, relativamente a alterações significativas que implicavam alterações de valor, não tomava decisões de imediato porque dizia que precisava do acordo dos sócios, e nunca recebeu comunicações diretas dos sócios vietnamitas;
- em fevereiro de 2020 Ab estava com dificuldades no pagamento porque dizia que os sócios não metiam dinheiro e, quando já havia faturas mensais acumuladas, a dada altura, aquele enviou mail a pedir a suspensão da obra por não ter liquidez, tendo sido retomada 3 a 4 semanas depois. RN, responsável comercial da DM, por quem passava a aprovação dos orçamentos, declarou:
- em setembro de 2019 participou numa reunião com a presença da arquiteta AC, de Ab, e de três pessoas de origem vietnamita, dos quais um deles não falava inglês, que lhe foram apresentado como os donos da obra; que após alterações ao projeto em outubro de 2019, em fevereiro de 2020 deram início ao grosso dos trabalhos solicitados, que em agosto deram por terminados;
- houve sempre atrasos no pagamento e vários emails a solicitá-lo, em abril suspenderam a obra a pedido do cliente que este justificou por falta de meios para pagamento, tendo-lhe sido dito que os sócios estariam com problemas em trazer dinheiro do Vietname; em agosto de 2020 havia faturas mensais acumuladas por pagar; na justificação dos atrasos no pagamento, Ab e ML, que acompanhava aquele, referiam-se aos sócios, às hesitações e ao dinheiro destes;
- era com Ab que lidava na execução da obra e que discutia as faltas de pagamento; os demais sócios apareciam às vezes na obra, sem marcação, sem reunião formal, sem que o interpelassem para o que fosse e com eles nunca discutiu as faltas de pagamento, nunca lhes remeteu nem por eles lhe foram remetidos e-mails. FG, engenheiro civil e diretor de obra, da execução dos trabalhos, declarou que estava diariamente em obra e não participou nas reuniões anteriores e que,
- Ab estava diariamente na obra, no que era acompanhado por ML, que eram eles que discutiam as ideias que tinham para a obra, que a DM apresentava um orçamento e aqueles diziam que precisava de ser validado pelos outros sócios;
- os outros sócios só esporadicamente iam à obra, muitas vezes fora do horário, ele a sair e eles a chegar;
- a DM só emitia fatura depois de validado o auto de obra pelo cliente, auto que enviava para Ab e, posteriormente, passou a enviar com conhecimento (‘cc’) a ML, não tendo ideia de alguma vez o ter enviado para o sr. An ou para a sr.ª Ph;
- Ab mencionava os sócios nos emails que lhe remetia, mas não se recorda se eram enviados com conhecimento aos mesmos. AC, autora do projeto de arquitetura para remodelação do restaurante, declarou que a abordagem para a contratação dos seus serviços foi feita por Ab e mais tarde reuniu também com os srs. de nacionalidade vietnamita, aos quais no final de maio de 2019 apresentou proposta redigida em inglês e que se pronunciou; no início foi pedido um restaurante vietnamita e percebeu que o bar e o restaurante iam ser explorados por pessoas diferentes; depois percebeu que o restaurante evoluiu para um projeto mais fluído, sem a parte étnica, que Ab designava de ‘comida de conforto’; reuniu duas vezes no seu escritório com aquelas quatro pessoas; a intenção inicial era fazer tão só uma intervenção cosmética no espaço ‘para abrir rapidamente’ mas no local vieram a constatar que não era possível ficar só por aquele tipo de intervenção e o seu projeto sofreu com isso porque veio a ser muito alterado, pensa que por necessidade de poupar dinheiro e minimizar o impacto o acréscimo dos custos com as obras de especialidade que não estavam previstas; o Quico ia explorar o bar e também foi ao seu atelier dizer como gostaria de ter o bar; dos detalhes da obra só falava com Ab e mais tarde com o ML; deixou de ir à obra e nunca a viu finalizada. SP, identificou-se como empresário e, na resposta aos costumes, relativamente a DM manifestou não ter ideia, conheceu a pessoa que lhe ‘alugou’ o bar no seu próprio bar, em 2017, conheceu a arquiteta AC no espaço e o ML depois de ter ido ver o espaço. Referindo-se ao espaço do bar, declarou que foi a Ph quem o chamou para explorar o bar, que ele o queria alugar e fazer lá umas obras - queria ‘aquilo’ feito de uma certa maneira e chegou a um acordo verbal com a srª ; quando conheceu Ab, antes do covid, este “é que se meteu no meio (..) no assunto”, tendo acrescentado que aquele “queria ficar também com a parte de cima”; perguntado se acompanhou as obras em 2019 e 2020 respondeu que em 2019 foi uma grande confusão, depois meteu-se o Covid e depois percebeu que foram feitas obras no espaço sem o seu acompanhamento, que não correspondiam ao que ele queria e pressupôs que o espaço ia ser ‘alugado’ a outra pessoa; quando veio a ficar com o bar contratou uma empresa para o remodificar a seu gosto (alterou o deck bar, todo o design, os sofás, mesas e toda a decoração), fez um mês e meio de teste entre setembro e outubro de 2021, depois teve que fechar por causa do covid, e abriu e passou a explorá-lo desde março 2022, procedendo ao pagamento de rendas desde então, atualmente no valor de €2,5k. GP, contabilista certificado da insolvente, afirmou que terá sido indicado à SW pelo sr. An porque este já era cliente deles, que não teve contactos com Ph e desconhecia se esta era gerente.
Ao nível da prova documental, a credora e recorrida DM juntou os seguintes[21]:
- proposta de orçamento epigrafada de “Restaurante Solana Estoril”, cujo teor inclui descrição de trabalhos nos pisos 0 e 1;
- emails remetidos pelo recorrente Ab à empreiteira DM, em 09.09.2019 para adjudicação da obra respeitante àquela proposta, emails de 12.12.19, 20.12.2019, 11.02.2020, 14.01.2020 e 21.01.2020 por aquele endereçados e/ou com conhecimento (‘cc’) a ML, FG, NC, SBy (que ML identificou como filha de Ab) e FT (que ML identificou como chefe de sala contratado por Ab), contendo cada um deles o resumo de reunião realizada no próprio dia – o que foi acordado e em relação ao quê e o que falta definir - e solicitando aos destinatários que acrescentem o que ele próprio se tenha esquecido de relatar. No mesmo âmbito, emails de ML dirigidos a Ab e aos demais destinatários acima indicados, em 17.04.2020, referindo, “para que não fiquem esquecidos os temas falados”, email que é convocado por Ab no mail de 15.10.2020 através do qual solicitou à DM a retificação de uma instalação conforme o acordado; email de Ab de 03.06.20 dirigido a ML e FG a solicitar a extensão da pérgola e a substituição de uma porta; email de 16.06.2020 endereçado por Ab a FG a respeito de trabalhos no piso superior; email de 01.04.2020 remetido por ML para o conjunto daqueles destinatários com resumo da reunião de 31.01.2020 e a pedir o acrescento dos pontos que possam ter ficado esquecidos, mais referindo que não foi falado os orçamentos em falta, e solicita um resumo de todos os orçamentos em falta; emails remetidos por ML aos mesmos destinatários, cada um com resumo das reuniões de 20.02, 25.02, 26.02, – o que ficou decidido e o que ficou a faltar, e que respeita a ou inclui trabalhos no piso 1.
O requerente ML juntou os seguintes documentos[22]:
- orçamento de P. Ldª de 16.07.2020, no valor de €83.230,27;
- documento epigrafado “Bar Piso 1”, no qual é referido “proposta validada em julho” e “fecho de contas”, indicação do valor pago e do valor em falta pagar, este cerca de €8.000,00;
- orçamento da credora DM de 17.01.2020 com descrição de menos valias (€8.841,14) e trabalhos novos referente a projeto de iluminação (€23.911,97), e acréscimo de custo no montante de €15.070,43;
- orçamento da credora DM de 06.07.2020 referente a fornecimento e montagem candeeiro bar (€1.897,50 + IVA)
- orçamento da credora DM de 08.04.2020 referente a iluminação alternativa (+€17.337,93) e trabalhos a menos (€8.841,51), com acréscimo de €8.496,30.
O recorrente Ab juntou a seguinte prova documental, correspondente a teor de emails redigidos em inglês com tradução para português[23]:
- remetidos por Ph a Ab: em 12.06.19 com o seguinte teor “Como você sabe, prometemos manter todos os funcionários que aceitaram ficar e manter o mesmo nível de salário. Então nós concordamos com esse salário, mas gostaríamos de mudar o horário de trabalho da Dona A. e do senhor G..”; em 21.10.2019 a manifestar, “Nos concordamos com este, por favor, processe para começar breve”, ao qual o recorrente Ab respondeu que vai comunicar ao empreiteiro; em 27.11.2019, manifestando agradecimento “por nos informar” e que “o sr. An propôs solicitar uma cotação de mais um fornecedor, esta cotaçção bastante elevada; em 02.10.2020, referindo “nas primeiras negociações que discutimos internamente na Avenida de Portugal, 25 Estoril, acordámos que o valor do arrendamento será de 10.000 euros/mês para o primeiro período (2 anos)”; em 07.10.2020 referindo precisar do contrato de arrendamento do restaurante com a SW e que o Dr. AE entra em contacto para o enviar;
- remetido por Ab a Ph e An em 16.04.2020 com o seguinte teor “Quando decidiu tirar o tecto para poder fazer toda a rede de ar condicionado temos que do zero fazer toda a rede elétrica …. … tento encontrar a melhor cotação e reduzir para obter uma iluminação básica…. Deixe-me saber o que você sente para comunicar nossa decisão sobre a iluminação.”
Pelos seus destinatários e pelo que por eles era solicitado, os emails juntos por ML são indicativos de quem esteve presente nas reuniões nas quais eram pedidas, discutidas e definidas alterações na obra ou, com maior segurança e ao que releva, quem não esteve, cumprindo aquelas comunicações a função de ata de cada reunião, conforme foi designado por FG na resposta que deu ao mail de 20.12.19 - “em relação a esta ata acrescento…”.
Por outro lado, surpreende o teor e reduzido número de emails juntos pelo recorrente Ab com o fito de demonstrar que as suas decisões dependiam da prévia aprovação das alterações e dos orçamentos pela recorrente Ph, que contrastam com a quantidade de orçamentos juntos pelo credor ML e com os vários prestadores de serviços e de fornecimento de bens identificados na faturas emitidas a cargo da insolvente durante o ano de 2020 - juntas aos autos pelo contabilista certificado em 16.03.2022 - e que, sem incluir as faturas emitidas pela credora DM, ascendem ao valor total de cerca de €216.000,00. Contrastam igualmente com as várias alterações que foram sendo solicitadas em obra, que as testemunhas relacionadas com a credora Detailsmid declararam ter dado origem a mais de 80 ‘TMM’s’ (sigla para trabalhos a mais e a menos). Com efeito, daqueles emails mais resulta que: as indicações feitas pela recorrente Ph aos funcionários do antigo restaurante são anteriores (12.06.2019) à celebração do contrato de sociedade (15.06.2019) e, de acordo com o que aquela ali exarou e foi declarado em audiência pelo requerido An, reporta a acordo assumido com o anterior proprietário do restaurante aquando da aquisição do imóvel; Ab comunicou dois orçamentos aos demais sócios, um deles referente à instalação da iluminação - relativamente ao qual o recorrente não juntou qualquer resposta (e de aprovação) pela sócia Ph -, e na resposta ao outro, que não identifica o objeto a que respeita, Ph limita-se a referir que An propôs solicitar orçamento a outro fornecedor por considerar elevado o que lhe terá sido comunicado por Ab. No confronto com os orçamentos juntos pelo credor ML, as parcas comunicações juntas pelo recorrente Ab impõe que se constate a ausência de comprovativo de comunicação daqueles aos demais sócios.
Assim, no confronto destes documentos com a prova pessoal produzida e acima descrita é possível concluir, em síntese, que os recorrentes e o requerido An participaram ativamente na definição do projeto societário – exploração de restaurante – e, antes da constituição da sociedade, definiram o local onde o mesmo iria ser instalado – correspondente ao imóvel dos sócios Ph e Ng -, diligenciaram pela elaboração de projeto para a remodelação do rés do chão onde o restaurante iria funcionar, bem como do 1º piso que ab initio a recorrente Ph quis reservar à exploração de um bar por entidade distinta da sociedade que iria explorar o restaurante, conforme comunicou aos demais sócios, à arquiteta que elaborou o projeto, e ao interessado ao qual ainda em 2019 propôs ficar com a exploração desse mesmo bar. Mais resulta de toda a prova pessoal produzida, mormente das declarações das partes, que todos os sócios tomaram conhecimento que o projeto inicial não era praticável no local e que para assegurar a sua execução e a funcionalidade do restaurante era necessário realizar obras de especialidade (na instalação elétrica, no saneamento e na instalação do ar condicionado) e que estas implicaram necessário acréscimo de custos e a necessidade de posterior reorçamentação da execução do projeto pela credora DM – de cerca de €180.00,00 para cerca de €270.000 -, projeto ao qual a empreiteira deu início em obra em fevereiro e considerou concluída em agosto de 2020 (ainda que tenha diligenciado pela satisfação de listas de correções/anomalias/melhoramentos até dezembro de 2020), sendo que em março surge a pandemia e é decretado o primeiro dos sucessivos confinamentos com encerramento de espaços comerciais e restrições de circulação e contactos pessoais. Resulta ainda evidente que a sociedade não tinha receitas e que dependia das entregas de dinheiro pelos sócios de origem vietnamita pelo que, esgotadas as entradas de capital por estes realizadas, no valor total de €160.000, para cada obrigação que assumisse ou fosse pensada assumir sempre se imporia a sua comunicação aos sócios financiadores, no mínimo, para justificar os pedidos de dinheiro que para o efeito lhes foram sendo feitos pelo recorrente Ab.
Fora deste contexto, para além daqueles factos, e com exceção do primeiro orçamento da DM, do que elaborou em substituição e do referente à iluminação a instalar e a que reporta o orçamento de abril de 2020, os elementos probatórios disponíveis não permitem assentar com o grau de probabilidade e standard de segurança exigidos que a recorrente Ph ou o sócio An aprovaram ou sequer tomaram conhecimento de outros trabalhos/alterações e de outros orçamentos solicitados pelo recorrente Ab, incluindo o referente aos equipamentos que foram instalados em cada um dos pisos, designadamente e a título de exemplo, o descrito na fatura emitida em 15.07.2020 por P., Ldª a cargo da insolvente no valor de €6.414,35, da qual consta a referência “SL… - Bar Panorâmico, piso 1”. Neste circunspecto, ainda que nas visitas dos demais sócios ao imóvel a partir de fevereiro de 2020 – que os declarantes e as testemunhas referiram ser ocasionais, sem marcação, sem qualquer interpelação, e até fora do horário de serviço da obra - pudessem constatar que ambos os pisos estavam a ser objeto de intervenção e decoração, daí não resulta que tinham conhecimento, ou que aquelas impunham pressupor conhecer, que o custo das obras e equipamento do 1º piso estivesse a ser imputado e suportado pela SW já que, em coerência lógica com o depoimento prestado pela recorrente Ph, a arquiteta AC referiu que SP lhe transmitiu como pretendia o espaço, e este declarou que fez um acordo verbal com Ph para explorar o bar e que queria ‘aquilo’ feito de uma certa maneira, mas quando conheceu Ab, ainda antes do covid, este “é que se meteu no meio (..) no assunto”, “queria ficar também com a parte de cima” e quando voltou a ver o espaço já tinham feito obras sem o seu acompanhamento, cenário que é reforçado pelo depoimento do credor ML, quer pela referência à inclusão inicial de SP (Quico) no processo, à sua posterior exclusão e, numa ‘terceira fase’, ao seu retorno, quer pela referência à discordância manifestada por Ab quanto à exploração do bar por outra entidade. Acresce que era este que detinha o domínio da conta bancária da insolvente e que o contabilista certificado declarou que nunca contactou com a sócia Ph, pelo que não existem elementos que permitam concluir que esta conhecia a gestão e concreta afetação das quantias de dinheiro que ela e o outro sócio e a irmã deste transferiram para a insolvente (a título de realização de entradas e a título de empréstimos, conforme consta do balancete da insolvente de 2021 e foi declarado por aquele profissional), nem que conhecia as disponibilidades que a insolvente mantinha em cada momento, mormente ao longo do primeiro semestre do ano de 2020 em que se situa o grosso das faturas dos fornecedores.
Neste contexto probatório, e por referência aos segmentos relevantes e controvertidos em questão nos pontos 11 e 31, tal qual como na motivação da decisão de facto da sentença recorrida se concluiu relativamente ao sócio An e ao cônjuge da recorrente Ph, também quanto a esta se impunha concluir pela “insuficiência dos meios de prova apresentados e que permitissem concluir de forma diversa, designadamente no que concerne à implicação (...) na tomada de decisões de gestão. Nesta parte não se confirma o juízo de facto formulado pelo tribunal recorrente que, na motivação da decisão e depois da sintetização dos depoimentos prestados, surge assim justificado: Neste domínio, avulta a dificuldade em crer que toda a gestão de uma sociedade com o capital inicial de €200.000,00 tenha sido transferida para o Ab com base num simples voto de confiança, quando o mesmo entrou no circulo pessoal dos restantes sócios poucos meses antes, ainda por cima apresentado por terceiros em ambiente empresarial. Acresce que diversos elementos documentais e relatos testemunhais apontam no sentido de a sócia Ph ter um papel igualmente importante quanto a decisões de gestão, como é o caso do depoimento de AC quando à intervenção daquela em reuniões, as referências das demais testemunhas à necessidade de Ab obter concordâncias quando estivessem em causa alterações de custos.
Em primeiro lugar, o julgamento do tribunal a quo assentou num pressuposto que não pode ter-se como emergente das regras da experiência conhecidas, mais não seja porque o pedaço da vida controvertido e aqui submetido a apreciação ocorre entre pessoas de berços culturais assaz distintos - um de origem ocidental e os demais de origem oriental – que, naturalmente, determinam mentalidades e predisposições distintas daquelas que por princípio e sem necessidade de outra justificação o julgador nacional conhece e está judiciariamente legitimado a invocar para, em sede de julgamento, fundamentar juízos conclusivos de facto ou presunções naturais/judiciais. Em segundo lugar, a específica referência ao depoimento da testemunha AC não é válida para a pretendida amostragem e generalização probatória na medida em que por aquela foi dito que reuniu com aquelas pessoas (Ab e as pessoas de nacionalidade vietnamita) apenas duas vezes no seu atelier – que terão sido por ocasião da aprovação do projeto de remodelação dos espaços, prévia à constituição da sociedade, e da sua posterior adjudicação à credora DM – e que dos detalhes da obra só falava com Ab e mais tarde com o ML. Em terceiro lugar, ainda que tenha elencado os documentos que considerou, da motivação não resulta a apreciação crítica que o tribunal a quo deles fez no confronto com os depoimentos prestados e para sindicância da maior ou menor fiabilidade de cada um na reprodução da realidade dos factos por cada um relatada; designadamente entre o depoimento prestado por Ab e a prova documental produzida - à cabeça, os documentos por este juntos para demonstração da alegada dependência de aprovação da recorrente Ph que, como se referiu, surpreendem pela ausência ou escassez de conteúdo e de quantidade, que contrastam com as ‘concordâncias’ a que aquele declarou sujeitar cada decisão e com as várias contratações de serviços e de fornecimento de bens que as faturas juntas pelo contabilista certificado da insolvente permitem conhecer, sendo ainda certo que o meio de comunicação usado – ainda para mais em tempo de pandemia/confinamento – e que o recorrente revelou nos autos, era o correio eletrónico, que lhe permitiria produzir a prova documental que daí resultasse.
De acordo com o standard de prova acima aludido, na questão fáctica sob apreciação – se o recorrente Ab atuava no âmbito da insolvente de acordo e/ou na dependência da prévia aprovação/decisão/instrução da recorrente Ph - a probabilidade lógica prevalecente é a de ‘mais provável que não’. Recorrendo de novo às palavras de Luís Pires de Sousa, [e]ste standard consubstancia-se em duas regras fundamentais: (i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais; (ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa.//Em primeiro lugar, este critério da probabilidade lógica prevalecente – insiste-se – não se reporta à probabilidade como frequência estatística mas sim como grau de confirmação lógica que um enunciado obtém a partir das provas disponíveis.//Em segundo lugar, o que o standard preconiza é que, quando sobre um facto existam provas contraditórias, o julgador deve sopesar as probabilidades das diferentes versões para eleger o enunciado que pareça ser relativamente “mais provável”, tendo em conta os meios de prova disponíveis. Dito de outra forma, deve escolher-se a hipótese que receba apoio relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis.//(…) para que um enunciado sobre os factos possa ser escolhido como a versão relativamente melhor é necessário que, além de ser mais provável que as demais versões, tal enunciado em si mesmo seja mais provável que a sua negação. Ou seja, é necessário que a versão positiva de um facto seja em si mesma mais provável que a versão negativa simétrica.[24]
Com estes elementos e fundamentos, e mais considerando o teor da certidão comercial da insolvente junta com a petição da insolvência e os CAE’s (principal e secundário) especificados na descrição e indicação do respetivo objeto social – nenhum dos quais corresponde a estabelecimento de bar (que se integra na categoria 5630[25]) -, que o alegado reembolso do preço pago pelas loiças adquiridas para a recorrente Ph só pela própria foi declarado e, pela natureza do facto, não surge sustentado por qualquer outro meio de prova pessoal ou documental, que sobre a contratação de empresa de comunicação o declarante ML declarou que a resposta de Ph foi “se vocês acham que essa é a melhor empresa, então avançamos”, e o pressuposto e postura revelados pelas declarações do recorrente Ab na assunção de disponibilidades de tesouraria da insolvente e de dinheiro que não era seu[26], julgando parcialmente procedente a impugnação deduzida pela recorrente Ph, decide-se pela alteração dos pontos de facto dela objeto nos seguintes termos:
Ponto 11 – As instruções para execução e alterações durante a execução das obras foram sempre dadas por Ab no âmbito do acompanhamento e fiscalização diária da obra.
Ponto 24 - Ph esteve presente na reunião que definiu o projeto de arquitetura para a conceção/instalação do restaurante no rés do chão e de bar no 1º andar do imóvel, realizada em maio de 2019; aquando da aquisição do imóvel - para o qual foi feita a transferência da sede da insolvente inscrita no registo em 02.09.2019 – pelo menos Ph e An acordaram em manter três dos funcionários no restaurante que ali era explorado no ‘novo’ restaurante que ali viesse a ser explorado; em 12 de outubro de 2019 Ph acompanhou Ab e ML numa deslocação à Fábrica da Vista Alegre em Ílhavo realizada para adquirir louça para o restaurante, em cuja escolha aquela participou.
Ponto 25 - Na deslocação supra referida Ph comprou loiças para a sua residência pessoal, que foram pagas com o cartão bancário da sociedade insolvente que estava na posse de Ab.
Ponto 26 – Não provado.
Ponto 31 – Posteriormente à celebração do contrato aludido em 6. e da reorçamentação aludida em 17., em abril de 2020 a execução da obra foi suspensa a pedido do recorrente Ab com fundamento em falta de dinheiro para proceder ao seu pagamento, tendo sido retomada cerca de quatro semanas depois com a promessa de pagamento pelo mesmo; ao longo do ano de 2020, Ab continuou a contratar e a adquirir bens, serviços e equipamentos, e a solicitar a execução de trabalhos em nome e em representação da sociedade “SW”, sabendo que a Insolvente não dispunha de tesouraria suficiente, nem gerava receitas ou outros rendimentos para cumprir os custos de aquisição e de execução, e que só dispunha de liquidez para o efeito se e quando os demais sócios da insolvente providenciassem pela entrega/transferência de dinheiro para a respetiva conta bancária.
6. Ampliação ex officio da matéria de facto
No exercício do poder-dever previsto pelo art.º 662º, nº 1 e 2, al. c) do CPC e de acordo com os atos processuais e prova produzida nos autos, introduzem-se os aditamentos que se nos afiguram adequados para melhor compreensão ou enquadramento da globalidade dos factos:
a) No ponto 2, acrescentar a data da celebração do contrato de sociedade da insolvente (em 15.06.2019), a descrição do objeto da sociedade e os CAE’s para o efeito especificados.
b) No ponto 6, fazer constar os futuros sócios da SW e suprimir a referência a esta como as pessoas que (de acordo com as declarações por aqueles e pela arquiteta AC prestadas) submeteram o projeto de remodelação a concurso, posto que só posteriormente foi por aqueles celebrado o contrato de sociedade da insolvente.
c) No ponto 9, para cabal esclarecimento e contextualização/enquadramento dos factos descritos no ponto 6, acrescentar que à data da constituição da insolvente era conhecido e assumido pelos seus fundadores a afetação que a recorrente, proprietária do imóvel objeto do projeto de arquitetura, pretendida dar ao rés do chão e ao 1º piso do mesmo.
d) No ponto 13, acrescentar a referência ao contrato de trabalho celebrado entre a insolvente e ML (em 04.09.2019).
e) No ponto 15, acrescentar a referência de que os trabalhos a mais foram executados na sequência de vários pedidos de alteração, para que não se confundam com os trabalhos de especialidade que não estavam previstos mas que se mostraram necessários realizar ainda antes do início da execução da obra.
f) No ponto 17, complementar o seu teor com o valor da empreitada que resultou da reorçamentação inicial.
g) Aditar o ponto 17a) para referir a alteração do modo de pagamento inicialmente acordado, nos termos que consensualmente resultam dos depoimentos das testemunhas relacionadas com a credora DM, dos declarantes Ab e ML, e é confirmado pelas faturas inscritas na contabilidade da insolvente, juntas aos autos pelo contabilista certificado da insolvente.
h) No ponto 18, alterar o seu teor através da referência à conta fornecedor da credora DM para melhor compreensão dos valores por esta faturados e inscritos na contabilidade da insolvente e do valor total pago. i)Aditar o ponto 18a) para referir o valor da faturação a cargo da insolvente no ano de 2020 documentado nos autos.
j) No ponto 19, referir a natureza dos trabalhos surgidos na sequência da constatação da inadequação do projeto ao imóvel dele objeto.
k) No ponto 29, excluir a referência à previsão de carência de pagamento de renda pela insolvente à senhoria Ph por não encontrar correspondência no teor do contrato de arrendamento entre ambas celebrado (em outubro de 2020 e não em abril de 2020, conforme resulta dos emails juntos pelo recorrente Ab e que é confortado pela identificação da recorrente Ph, naquele contrato, como titular de passaporte emitido em 29.06.2020).
l) Aditar o ponto 36a) para melhor enquadramento dos factos descritos em 36 e 37 e do hiato temporal entre os mesmos, aditando neste último a referência à realização da venda dos bens pelo AI nomeado na sequência da destituição do inicialmente nomeado.
m) No ponto 38, referir a data a partir da qual SP passou a explorar o bar sito no 1º andar do imóvel. n) Aditar o ponto 39a) para descrição de créditos reconhecidos para além dos reclamados por fornecedores.
o) Aditar o ponto 39b) para descrever elementos que constam das contas 26 (sócios) e 4 (investimentos) do balancete da insolvente de junho de 2021[27]
IV - Fundamentação de Facto
Transcreve-se a decisão de facto proferida pelo tribunal recorrido com as alterações acima introduzidas e substituindo as remissões para documentos que daquela consta pela transcrição dos elementos que dos mesmos relevam (quando relevam), redigindo em itálico os pontos/segmentos aditados para melhor perceção do que nesta instância foi introduzido. Consigna-se que se alterou a ordem sequencial dos factos descrita na sentença recorrida para melhor apreensão da sequência lógica e/ou cronológica dos mesmos, sacrificando-se, porém, a numeração sequencial através da manutenção da numeração original para com maior facilidade permitir identificar e estabelecer a correspondência de cada um dos factos com os descritos na sentença.
1. Por sentença proferida em 03.08.2021, transitada em julgado, foi declarada a insolvência da sociedade comercial “SW, LDA.”, NIPC 515…, com sede em Avenida Marginal, …. Estoril, freguesia de Cascais e Estoril, concelho de Cascais, na sequência de apresentação mediante requerimento entrado em juízo a 14.07.2021.
2. A Insolvente é uma sociedade por quotas constituída por contrato de sociedade celebrado em 15.06.2019 e inscrito no registo em 4 de julho de 2019, tendo por objeto “actividades hoteleiras, de restauração, exploração de estabelecimento de bebidas, com e ou sem espectáculo, com e ou sem espaço de dança, e similares, incluindo restauração em meios móveis. Confecção de refeições prontas a levar para casa, take-away e outras actividades de serviço de refeições, catering. Confecção e fornecimento de refeições para eventos. Importação, exportação, comércio por grosso e a retalho, agente do comércio de produtos alimentares e bebidas alcoólicas e não alcoólicas, incluindo comércio a retalho por correspondência ou via internet. Organização e promoção de eventos. CAE Principal: 56101-R3//CAE Secundário (1): 56107-R3//CAE Secundário (2): 56106-R3//CAE Secundário (3): 47250-R3//CAE Secundário (4): 47293-R3//CAE Secundário (5): 47910-R3//CAE Secundário (6): 46341-R3//CAE Secundário (7): 46342-R3//CAE Secundário (8): 82300-R3”
3. O capital social da Insolvente, de €200.000,00, dividido em 3 quotas dos seguintes valor e titularidades: - Ab., titular de uma quota no valor total de €40.000,00 (quarenta mil euros); - An, titular de uma quota no valor total de €80.000,00 (oitenta mil euros); - Ph, titular de uma quota no valor total de €80.000,00 (oitenta mil euros).
3.1. O sócio Ab. não efetivou a sua entrada no capital social da insolvente em dinheiro;
4. Ab. foi designado gerente da sociedade desde a sua constituição, tendo Ng sido designado gerente em 18 de março de 2021, passando a sociedade a obrigar-se com a intervenção de dois gerentes.
5. Ab renunciou à gerência no dia 18 de maio de 2021, que foi aceite por deliberação da AG realizada em 15.06.2021, que deliberou ainda a alteração do art.º 5º do pacto social, passando a sociedade a obrigar-se a partir daí com a intervenção de um gerente.
6. Entre a “SW.” e a “DM” foi celebrado acordo para realização dos trabalhos de remodelação do espaço denominado “Restaurante SL – Estoril” com base na proposta de orçamento apresentada (por DM) em 06 de junho de 2019 referente a projeto de arquitetura para instalação de estabelecimento de restaurante no rés do chão e de estabelecimento de bar no 1º andar de um imóvel, elaborado e submetido a concurso a pedido de Ab, Ph e An, cuja adjudicação à credora DM foi comunicada em 09 de setembro de 2019 por e-mail de Ab , com conhecimento a “.Ph@vietmyco.vn, a.....@...pt e a...@gmail.com, (gab. arquitectura), e previa a realização dos trabalhos para remodelação do imóvel ali designado por Restaurante Solana-Estoril.
9. A propriedade do imóvel onde iriam ser realizados os trabalhos pertencia a Ph, que era casada com Ng e, à data da celebração do contrato de sociedade da insolvente e da adjudicação das obras à credora DM, estava já assumido por todos os sócios fundadores que o rés do chão daquele imóvel seria dado de arrendamento à SW para instalação e exploração do restaurante e que o estabelecimento de bar a instalar no 1º andar seria explorado por outra entidade.
7. O acordo denominado de “Contrato de empreitada”, com um prazo inicial de 3 meses para execução dos trabalhos contemplados na proposta referida supra, (acrescidos de 30 dias para preparação de obra), pelo valor global de €179.828,01, foi assinado em 23 de setembro de 2019. 8. O pagamento inicialmente acordado deveria ser efetuado da seguinte forma: a) 30% do valor global da empreitada, a título de adjudicação, no ato de assinatura do acordo, cujo valor seria objeto de compensação com o crédito do empreiteiro resultante das duas últimas faturas emitidas; b) 30% na 4ª semana de trabalhos; c) 30% na 8ª semana de trabalhos; d) 10% com a receção da obra.
19. A execução da obra teve início logo após assinatura do contrato (setembro de 2019), mas foi de imediato suspensa por o projeto de arquitetura da insolvente não ter enquadramento no prédio e exigir trabalhos de especialidade não previstos no projeto inicial mas que, aquando do início da sua execução, se revelaram necessários realizar no imóvel (saneamento, instalação elétrica e sistema de ar condicionado)., tendo sido necessário negociar trabalhos a mais e trabalhos a menos para adaptação do projeto e acabamento.
17. Os trabalhos inicialmente contratados, referidos em 6. e 7. supra, ascendiam ao montante orçamentado de €179.828,01; na sequência da adaptação aludida em 19., foram reorçamentados pelo valor de cerca de €270.000,00. 17a). Na sequência da referida reorçamentação do projeto, o modo de pagamento inicialmente acordado foi substituído por faturação e pagamento mensal mediante prévia aprovação de auto de obra.
10. Quem falava com a credora “DM”, na pessoa do director de obra, Eng. FG, era o gerente Ab, que auferia a quantia mensal de mais de €2.500,00 líquidos a título de retribuição.
11. As instruções para execução e alterações durante a execução das obras foram sempre dadas por Ab no âmbito do acompanhamento e fiscalização diária da obra a que o mesmo procedia.
12. Ab movimentava a conta da sociedade, recebia faturas e fazia pagamentos, incluindo os relativos à sua remuneração e demais pessoal por ele contratado, sendo portador do cartão bancário da insolvente e respetivos códigos de acesso.
13. Por ordem de Ab, ML - com quem aquele, na qualidade de gerente da insolvente, em 04.09.2019 celebrou contrato de trabalho com o cargo de cozinheiro - assistia e elaborava atas, estando a par de tudo a partir da data em que foi escolhido por aquele para desempenhar as funções de chefe de cozinha no restaurante.
14. Todas as referências feitas no acordo a “obras no piso 1, Bar e Deck Exterior” são obras no 1º andar do prédio, onde no contrato só estavam previstas: “Demolições; Revestimentos em paredes e tetos; Revestimentos de pavimentos e rodapés; Serralharias e Caixilharias de alumínio ou aço; vidros e espelhos;”.
15. Porém acabaram por ser executados muitos outros trabalhos na sequência de vários pedidos de alteração que, para além da reorçamentação aludida em 17 e 19, a empreiteira fez descrever em documentos designados TMM, descrevendo os trabalhos a mais e os trabalhos a menos resultantes dos pedidos de alteração.
16. Foram executados no piso 1 (1º andar), não só os trabalhos inicialmente contratados, referidos em 6 e 7. supra, mas ainda todas as obras de “carpintaria; instalação elétrica e iluminação; alteração da pérgola, trabalhos de reparação/alisamento de paredes; extensão da pérgola; fornecimento e colocação de porta lateral no Bar; porta de correr; portão para fecho do bar; demolição de grades; rede de águas e rede de esgotos da zona do bar exterior.” 18. Da conta corrente 2711101 da contabilidade da SW, referente à fornecedora DM, até 31.12.2020 constam inscritas a crédito faturas no montante total de €267.319,03 e a débito o montante total de €224.523,24, incluindo nota de crédito no valor de €13.163,58; no período do ano de 2021 constam inscritas a crédito cinco faturas no montante total de €40.689,00 emitidas de janeiro a abril de 2021, quatro das quais no valor mensal unitário de €2.502,02 referentes a ‘custos de estaleiro’. 18a). Para além das facturas emitidas pela credora DM, durante o ano de 2020 foram emitidas a cargo da insolvente e inscritas na respetiva contabilidade faturas referentes a prestações de serviços e a fornecimento de bens emitidas no montante total de cerca de €216.000,00.
20. À data de 05 de abril de 2020 já se encontravam executados diversos trabalhos, seja no rés do chão seja no 1º andar, sem que até então tivesse sido outorgado pelos senhorios e sócios, qualquer contrato de arrendamento.
21. O projeto de arquitetura foi realizado para o edifício inteiro, incluindo o piso 1, e faturado à Insolvente, embora esta apenas tivesse o aproveitamento do R/C.
22. Foram instalados no piso 1 do imóvel, propriedade da Senhora Ph, os seguintes equipamentos: Para a zona de bar exterior a) Bancada Inox; b) Cocktail Station; c) Bancada de Lava-mãos; d) Bancada Inox; e) Máquina de Cubos de Gelo; f) Bancada Inox; g) Bancada Inox com cuba; h) Bancada Inox de apoio a frigobares; i) Frigobar Triplo; j) Bancada Inox para Arrumos; Para a zona de copa interiror: a) Bancada Inox de apoio a triagem; b) Estrutura de passe; c) Balde para detritos; d) Máquina de lavar a loiça; e) Bancada Inox para pré-lavagem da loiça;
23. O piso 1, onde foram instalados estes equipamentos em nome da Insolvente, destinava-se à laboração de uma outra sociedade comercial.
24 - Ph esteve presente na reunião que definiu o projeto de arquitetura para a conceção/instalação do restaurante no rés do chão e de bar no 1º andar do imóvel, realizada em maio de 2019; aquando da aquisição do imóvel - para o qual foi feita a transferência da sede da insolvente inscrita no registo em 02.09.2019 – pelo menos Ph e An acordaram em manter três dos funcionários no restaurante que ali era explorado no ‘novo’ restaurante que ali viesse a ser explorado; em 12 de outubro de 2019 Ph acompanhou Ab e ML numa deslocação à Fábrica da Vista Alegre em Ílhavo realizada para adquirir louça para o restaurante, em cuja escolha aquela participou.
25 - Na deslocação supra referida Ph comprou loiças para a sua residência pessoal, que foram pagas com o cartão bancário da sociedade insolvente que estava na posse de Ab.
26. (não provado).
27. O Credor ML foi a casa da Senhora Ph para que lhe fossem apresentados alguns pratos que queriam ter no menu do restaurante.
28. Por acordo escrito datado de 05 de abril de 2020 e contendo as assinaturas de Ph e Ng, na qualidade de senhorios, e de Ab., na qualidade de gerente da arrendatária, a sociedade insolvente declarou tomar de arrendamento a Ph o Prédio urbano denominado “C…” ou “CF…”, situado em…., Avenida Marginal, n.º …., São João do Estoril, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o número …/2010…, da freguesia do Estoril e inscrito da matriz predial urbana sob o artigo …, constituído por dois pisos, tendo no R/C um salão amplo, cozinha e instalações sanitárias e despensa, mas destinando-se apenas ao arrendamento do restaurante (rés do chão, Piso 0), sendo excluída a área referente ao terraço (1º andar, piso 1).
29. Nos termos do contrato de arrendamento para fins não habitacionais foi convencionada renda no valor mensal de €10.000,00 (dez mil euros) durante os primeiros cinco anos, e o período de duração de cinco anos com início em 01.04.2020 e termo em 31.03.2025.
30. O denominado contrato de arrendamento celebrado entre Ph e a sociedade SW. foi resolvido por aquela em 07.05.2021, com fundamento na falta de pagamento de rendas.
31. Posteriormente à celebração do contrato aludido em 6. e da reorçamentação aludida em 17., em abril de 2020 a execução da obra foi suspensa a pedido do recorrente Ab com fundamento em falta de dinheiro para proceder ao seu pagamento, tendo sido retomada cerca de quatro semanas depois com a promessa de pagamento pelo mesmo, tendo Ab , ao longo do ano de 2020, continuado a contratar e a adquirir bens, serviços e equipamentos, e a solicitar a execução de trabalhos em nome e em representação da sociedade “SW”, sabendo que a Insolvente não dispunha de tesouraria suficiente, não gerava receitas ou outros rendimentos para cumprir os custos de aquisição e de execução, e que só dispunha de liquidez para o efeito se e quando os demais sócios da insolvente providenciassem pela entrega/transferência de dinheiro para a respetiva conta bancária.
32. Mediante R/20.09.2021 (processo principal) o AI juntou auto de apreensão composto por bens móveis descritos em 52 verbas, cujo teor se dá por reproduzido, designadamente: Balcões de inox, arcas verticais, máquinas de lavar loiça, armários em inox, torradeira, fornos verticais, balcões, armários de parede, fogões, fritadeiras elétricas, arcas de frio, grelhador elétrico, estantes de inox, arcas de frio, máquina de gelo, armários de frio, armários de tabuleiros, cadeiras, sofás, mesas, sistema de som, balcão de madeira e sistema de ar condicionado, bens que se encontravam em estado de novos a essa data.
33. Em 13.10.2021 o AI procedeu à constituição de Ph como depositária dos bens apreendidos.
34. Através de documento datado de 15.11.2021 Ph celebrou um acordo denominado de contrato de arrendamento com a sociedade comercial “R., Lda.”, referente ao R/C do imóvel que, por altura não determinada, passou a fazer uso dos bens pertencentes à massa insolvente na atividade de restauração, pela renda mensal de € 10.000,00 (espaço com a designação SVC…), constando da cláusula 3ª daquele contrato o seguinte: “3 – As rendas referentes aos meses de Setembro a Junho de 2022, a Arrendatária tem direito ao período de carência, livre de cobrança das respetivas rendas, tendo a duração de seis meses para a execução das obras no imóvel, a partir da data da assinatura do presente contrato.//4 – A Arrendatária tem conhecimento que parte do recheio que integra o locado encontra-se apreendido a favor da massa insolvente sob o n. processo 10840/21.1T8SNT junto do Tribunal (…), pelo que a obrigação do pagamento da renda iniciar-se-á apenas após a alienação e/ou remoção desses bens e equipamentos.”
35. Em 22.11.2021 a sociedade comercial “R., Lda.” propôs ao AI a aquisição dos bens móveis que integram a massa insolvente pelo montante de € 55.112,00.
36. Por email de 05.05.2022, Ph solicitou ao AI inicialmente nomeado nos autos a cessação das funções de depositária dos bens integrantes da massa insolvente, para que tinha sido nomeada em 13.10.2021.
36a). Os credores DM e ML opuseram-se à aceitação da proposta de aquisição apresentada e em 16/02/2023 a credora DM requereu a suspensão imediata da venda dos bens apreendidos.
37. Em 09.03.2023 o AI (nomeado nos autos na sequência da destituição do inicialmente nomeado) comunicou aos autos ter efetuado a adjudicação dos bens apreendidos pelo montante de €55.112,00 à sociedade comercial “R., Lda.”.
38. SP passou a explorar o bar sito no 1º andar do imóvel a partir de setembro de 2021, mediante o pagamento de uma renda mensal de €2.500,00.
39. No processo de insolvência foram reclamados créditos no valor total de €887.865,12, tendo sido já reconhecidos por decisão com valor de sentença créditos no montante total de €761.804,95. 39a). Da lista de créditos reconhecidos por saneador-sentença, para além dos créditos comuns de fornecedores no montante total de cerca de €166.630,00[28], constam os seguintes créditos: - Ab, no montante e €35.400,00, reconhecido como subordinado; - ML, no montante de €42.776,11, reconhecido como crédito laboral e, por isso, privilegiado; - An, no montante de €200.000,00, a título de empréstimos sócios, reconhecido como subordinado; - An H., no montante de €200.000,00, a título de empréstimos sócios, reconhecido como subordinado; - Instituto da Segurança Social, no montante de €31.969,50, privilegiado; - Autoridade Tributária no montante de €25.953,77 como privilegiado e € 733,35 como comum; 39b). Do balancete da insolvente extraído em junho de 2021[29] constam inscritos, - na conta 26 (sócios), quotas não liberadas de Ab, €39.000,00 - na conta 2781 – outros devedores e credores – An – €419.931,62 - na conta 4 (investimentos), saldo de €532.730, e na sub conta 45 (investimentos em curso), €434.194,55.
40. Entre março de 2020 e março de 2022 vigorou uma situação de pandemia declarada a nível mundial, em virtude da doença Covid-19, tendo a nível nacional vigorado o estado de emergência.
*
Factos não provados:
Não se provaram os demais factos alegados, designadamente, com interesse para a decisão da causa, que: (11) As instruções das alterações durante a execução das obras foram sempre dadas com o conhecimento e o acordo necessário de Ph. (26.) Na sequência de reuniões previamente agendadas com empresas do ramo, foi Ph quem procedeu à escolheu a empresa para efetuar as tarefas de branding e comunicação relativamente ao restaurante da insolvente. (31) A sociedade insolvente continuou a contratar, a adquirir bens, serviços, equipamentos, e a beneficiar da execução de trabalhos ao longo do ano de 2020 por instruções de Ph sabendo esta que a insolvente não detinha disponibilidades para pagar as dívidas daquelas emergentes.
a) A renovação da fachada do edifício onde se situa o estabelecimento da Insolvente foi efetuada pelo Senhor EA, empreiteiro, por imposição do Senhor An, sócio da insolvente;
b) Ng tomou decisões relativas a tarefas de gestão da sociedade;
c) Ph não prestou colaboração no âmbito do processo de insolvência;
d) A extensão dos referidos trabalhos ao Piso 1 foi sempre solicitada apenas pelo sócio e Gerente Ab;
e) Em Abril de 2020 foi celebrado o contrato de arrendamento entre a sócia Ph e a Insolvente, principalmente para garantir que a atividade desta última se circunscreveria apenas à parte arrendada (Piso 0);
f) Pois era, já à data, manifesto que os sócios de capital (Ph e An) não estavam de acordo com o sócio e Gerente Ab em relação à extensão das obras, gastos com as mesmas e, de um modo geral, com a condução do projeto;
g) Os sócios Ph e An nada decidiram quanto às obras ou bens móveis e equipamentos e em nada beneficiaram.
h) A Insolvente nunca laborou pelas razões sobejamente conhecidas derivadas do facto notório que foi (e é) a pandemia da doença COVID-19, que determinou o encerramento de restaurantes durante largos meses, resultando daí a sua incapacidade para fazer face aos seus compromissos financeiros
V – Fundamentos do recurso
B) Do erro de julgamento de direito
B1) Na aferição dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa
1. Considerações gerais
O incidente de qualificação da insolvência foi introduzido pela reforma do regime da insolvência levada a cabo pelo Decreto Lei nº 53/2004 de 18.03 com o propósito, desde logo, de atalhar a insolvências fraudulentas ou dolosas, mas também para prevenir o agravamento de situações de insolvência criadas sem atuação culposa dos devedores ou dos respetivos representantes, tudo, em ultima linha, para tutela dos credores e do comércio jurídico no qual aqueles se movem num circuito de interdependência de pagamentos. Lê-se no preâmbulo do citado diploma (que aprovou o CIRE), que (…) quem intervém no tráfego jurídico, e especialmente quem aí exerce uma actividade comercial, assume por esse motivo indeclináveis deveres, à cabeça deles o de honrar os compromissos assumidos. A vida económica e empresarial é vida de interdependência, pelo que o incumprimento por parte de certos agentes repercute-se necessariamente na situação económica e financeira dos demais. Concomitantemente, à liberdade de escolha de profissão e atividade, corresponde a responsabilização pelo respetivo exercício, com cumprimento das normas a que obedece e/ou que o condicionam.
Assim, nos termos do art.º 185º a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita. Quando culposa a relevância desta qualificação respeita à situação jurídica do insolvente ou das pessoas por ela abrangidas, nos termos previstos pelo art.º 189º. O art.º 186º, nº 1 faz corresponder a insolvência culposa àquela que tenha sido criada ou agravada em consequência da atuação dolosa ou com culpa grave do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Para efeitos do CIRE a al. a) do nº 1 do art.º 6º define administradores como “aqueles a quem incumba a administração ou liquidação da entidade ou património em causa, designadamente os titulares do órgão social que para o efeito for competente.”
Em suma, para efeitos de qualificação são pressupostos da insolvência culposa: i) uma conduta dolosa ou com culpa grave do devedor ou do respetivo administrador, ii) em relação de causalidade com a criação da situação de insolvência ou com o seu agravamento e, iii) com evidente exclusão da temporalidade da conduta prevista pela al. i) do nº 2[30], praticada nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, período que por força do art.º 4º, nº 2[31] se estende até à data da declaração da insolvência[32].
Quando culposa, a relevância desta qualificação respeita à situação jurídica do insolvente ou das pessoas por ela abrangidas e afetadas, nomeadamente, conforme prevê o art.º 189º, nº 2, al. a), administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas,(…) fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa. Culpa que, quer resulte legalmente presumida, quer resulte efetivamente demonstrada, deverá ser fixada ou a título de dolo ou a título de culpa grave, com repercussão na medida dos efeitos previstos pelo art.º 189º, desde a duração das inibições previstas pelas als. b) e c) do nº2, até às consequências da responsabilização patrimonial prevista pela al. e) do mesmo preceito, efeitos que revelam a função sancionatória do incidente com fundamento numa responsabilidade específica, insolvencial.
No nº 2 o legislador previu circunstâncias que, à laia de normas de proteção abstrata[33], importam presunção inilidível – júris et jure – da verificação dos pressupostos previstos no nº 1, levando as diversas situações ali previstas à atribuição de carácter culposo à insolvência. Da prova de qualquer um dos factos complexos ali descritos resulta adquirida, por presunção absoluta, a ilicitude do facto, a existência de culpa grave, e o nexo de causalidade entre o facto (ato ou omissão) e a criação ou agravamento da insolvência, sem a possibilidade de um juízo casuístico do julgador a esse respeito[34]. Ou seja, resulta adquirida a insolvência culposa que, na valoração normativa do legislador, faz corresponder aos factos previstos no nº 2 do art.º 186º. “[M]ais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal (não importa aqui averiguar se mediante enunciação taxativa ou concretizações exemplificativas) de situações típicas de insolvência culposa. (…)”[35]. Presunção de insolvência culposa que tem como pressuposto assumir que, em termos genéricos, todas as circunstâncias factos ou comportamentos ali previstos, direta ou indiretamente, envolvem efeitos negativos para a situação patrimonial do devedor aptos a causar ou a agravar a insuficiência do património do devedor para o cumprimento das suas obrigações, ou seja, a impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas[36]. Porém, e conforme anotado por Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[37], as várias alíneas do preceito exigem uma ponderação casuística, ou seja, na apreciação concreta de cada uma das situações ali previstas deve atender-se às circunstâncias próprias da situação de insolvência do devedor, e para o que aponta o recurso a conceitos indeterminados (tais como, em parte considerável, criado ou agravado artificialmente, incumprido em termos substanciais, reiterada, etc). Provados os factos constitutivos das presunções, por irrelevante, “não lhe é admitido provar que esse ato não criou ou agravou a situação de insolvência.”[38][39]
Do nº 3 do preceito constam descritas condutas omissivas, mas das quais não decorre presunção de insolvência culposa, mas tão só presunção juris tantum de culpa grave suscetível, por isso, de ser ilidida por prova em contrário (cfr. art.º 350º, nº 2, 1ª parte, do Código Civil), mais exigindo a alegação e demonstração dos demais requisitos previstos no nº 1: criação ou agravamento da situação de insolvência causada por aquelas condutas[40].
Enquanto caracterizadores da insolvência culposa e fundamento da afetação dos administradores através da responsabilização que dela emerge, os factos típicos e complexos previstos pelo art.º 186º concretizam específicos deveres a que os administradores estão vinculados e que enquadram nos deveres gerais de lealdade, de cuidado e diligência previstos pelo art.º 64º do Código das Sociedades Comerciais, aqui destinados à proteção de terceiros, dos interesses económicos dos credores sociais. Nas palavras de Carneiro da Frada[41], “o art.º 186 do CIRE corresponde a uma disposição de protecção cuja violação por parte dos administradores de uma sociedade desencadeia responsabilidade civil pela insolvência.”
Relevam apenas os factos que dependam da vontade do devedor ou dos respetivos administradores, e qualquer uma das condutas qualificadoras da insolvência basta-se com a voluntariedade da ação (ou da omissão) em que cada uma delas se consubstancia, sem que exija uma qualquer intenção ou dolo específico de causar prejuízo aos credores do devedor.
2. Da verificação dos pressupostos da qualificação da insolvência:
2.1. O tribunal a quo concluiu pela qualificação da insolvência como culposa com fundamento legal nas alíneas e) e g) do nº 2 do art.º 186º, que julgou verificadas nestes termos: “Sublinha-se que, salvo melhor entendimento, é irrelevante para o caso a circunstância de a insolvente não ter chegado a abrir o restaurante. De facto, todo o trabalho desenvolvido desde a sua constituição (planeamento, aquisição de bens e equipamentos, realização de obras, contratações, etc) deve considerar-se como integrante do seu escopo social por se dirigir finalisticamente à prossecução da atividade lucrativa. O que se verificou foi o prosseguimento pelos identificados gerentes de uma exploração claramente deficitária, a partir do momento em que os valores orçamentados subiram e os mesmos, perante a ausência de receitas, decidiram continuar a permitir um aumento (ou não redução) de custos (ex. continuação de alterações e de pedidos de trabalhos a mais, manutenção de um cozinheiro, recebimento integral da remuneração pelo próprio Ab, sem quaisquer receitas recebidas), devendo saber, sobretudo no contexto pandémico que vigorava, que tal desencadearia a situação insolvência. No mesmo sentido, a atuação dos gerentes revela igualmente que atendendo ao tipo de trabalhos e equipamentos fornecidos assistia-se a uma valorização do património de Ph, também proprietária do imóvel, que prosseguiu na recolha dos benefícios decorrentes da utilização de bens que integravam a massa insolvente. Tudo com prejuízo para a insolvente, que no caso de um exercício de gerência adequado, teria de suportar custos bem inferiores, e podido cumprir cabalmente o objeto social (restauração). Convém frisar que, não obstante o período pandémico vivido, não se apurou que essa tenha sido a principal razão para a ocorrência da insolvência, pois para além de ter ficado demonstrada uma execução regular de trabalhos, no caso concreto, as obras realizadas permitiam ponderar a abertura do restaurante.”
Contra o enquadramento dos factos nas als. e) e g) e a sua afetação pela qualificação, o recorrente Ab opõe que os factos provados não revelam qualquer proveito pessoal seu, antes ficou prejudicado a partir do momento em que deixou de auferir o seu vencimento até à data em que renunciou à gerência; que não agiu para prejuízo da empresa na medida em que foi concretizado o investimento inicial e deixou um restaurante totalmente equipado e pronto a trabalhar e a obter receitas para pagar os investimentos realizados; que só Ph enriqueceu em prejuízo de terceiros e agiu em seu proveito pessoal; que agiu como mero intermediário a mando e por conta daquela; que o restaurante nunca abriu porque os sócios investidores não dotaram a sociedade de capital para comprar produtos para confecionar as refeições.
Contra a qualificação com fundamento na al. g) a recorrente Ph opõe que a sociedade nunca gerou receitas porque estava numa fase de investimento inicial dependente das entradas de capital por parte dos seus sócios para realização de obras de adaptação do espaço destinado à instalação do estabelecimento, pelo que nessa fase seria sempre e por definição deficitária, acrescentando que os custos cresceram de tal forma que os sócios deixaram de ter capacidade financeira para continuar a dotar a sociedade dos meios necessários para fazer face ao investimento inicial e que a gerência, que pertenceu sempre e só ao gerente Ab, não tinha como saber que a disponibilidade financeira dos sócios de capital tinha um limite e que, perante o crescimento dos custos, deixaram de ter capacidade financeira para continuar a fazê-lo.
Contra o enquadramento dos factos na al. e) opõe que apenas relevam os factos ocorridos até ao início do processo de insolvência; que o proveito para a recorrente não releva porque era de facto a proprietária do imóvel em que seria instalado o estabelecimento de restauração da sociedade mas também a sócia que nesta investiu avultadas quantias sem delas obter qualquer retorno; que a putativa valorização do imóvel depende não só da procura mas também da disponibilidade de investimento para a instalação de um negócio dado tratar-se de imóvel destinado ao exercício do comércio; e que a realização das obras no 1º andar do imóvel não releva para concretizar uma valorização patrimonial em benefício da recorrente porque, não obstante o tenha solicitado, a faturação daquelas não foi separada das obras do piso térreo e tanto não permite quantificar qual é que foi o benefício para o imóvel fora daquela que era necessário para a instalação do restaurante, porque o acréscimo dos custos da obra relacionaram-se com elementos estruturais do prédio cuja realização era necessária para que o estabelecimento a instalar (no rés do chão) pudesse funcionar em condições de segurança, e porque não foi determinado/quantificado em que medida as obras estruturais do imóvel beneficiaram o 1º andar, nem a correspondência financeira ou económica desse beneficio.
2.2. Apreciando:
No seguimento da definição e identificação dos pressupostos gerais da insolvência culposa, o legislador mais avançou com a tipificação de situações de facto às quais atribuiu valor de presunção inilidível de insolvência culposa. Assim, nos termos do nº 2 do art.º 186º Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor; b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas; c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação; d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros; e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa; f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto; g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência; h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor; i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º
Subjacente à tutela legal visada pelo instituto da qualificação da insolvência[42] estão dois princípios estruturantes do processo falimentar - a garantia patrimonial e o tratamento igualitário dos credores sociais - por recurso aos quais se deverá alcançar a ratio dos factos qualificadores da insolvência e o alcance dos elementos normativos que os integram. Todas as qualificativas previstas pelo nº 2 assumem uma função de pré-proteção daqueles interesses, sancionando condutas suscetíveis de em abstrato lesar o património e prejudicar a solvabilidade do devedor independentemente da verificação do perigo concreto de conduzirem a essa situação. De um modo geral, nas als. a) a g) está em causa a preservação do direito dos credores à satisfação dos seus créditos através da preservação do património do devedor, entendido este no sentido lato, de bens e direitos que integram o seu ativo e em relação de balanço com o respetivo passivo. Mais concretamente, a al. a) pressupõe uma diminuição do ativo através de uma ação física ou material e voluntária sobre os bens[43] mas, para além do prejuízo patrimonial na esfera jurídica do devedor, não exige que da conduta resulte benefício para o administrador que a pratica ou para terceiro. Já as qualificativas das als. b), d), e), f) e f) exigem que de qualquer um dos atos ali previstos resulte benefício para o administrador que o praticou ou para terceiro[44], enquanto manifestação sintomática da violação do específico dever de fidelidade a que o administrador está vinculado na gestão do património que lhe está confiado e, assim, do perigo (abstrato) de lesão do património e da solvabilidade do respetivo titular, independentemente de este se verificar. Como se referiu, também não exige a verificação da intenção de prejudicar os credores; basta que o facto seja objetivamente apto a causá-lo.
i) Por referência aos fundamentos legais considerados pela decisão recorrida, antecipa-se que não colhe o previsto pela al. g) na medida em que ‘investimento’ não se confunde com ‘exploração. A situação de exploração deficitária pressupõe antes de mais o exercício de uma atividade económica e tem subjacente a relação entre os custos e os proveitos por aquela gerados - independentemente dos custos efetivamente pagos, que então tomam a designação de despesas, e independentemente dos proveitos efetivamente recebidos, que então tomam a designação de receitas. A existência de custos e proveitos pressupõem por sua vez o exercício de uma atividade económica de natureza lucrativa mas que, nos termos em que é concretamente exercida não é objetivamente apta a gerar proveito financeiro mas inevitável prejuízo. Pressupõe que o custo dos meios afetos ao exercício da atividade – de produção e/ou de venda de bens, de prestação de serviços, de exploração predial, etc. - sejam superiores aos valores pelos quais os produtos/bens/serviços dessa mesma atividade são colocados no mercado e, assim, superiores aos proveitos que no regular funcionamento do mercado dela são ou poderiam ser obtidos, o que se traduz numa situação de venda dos bens ou serviços abaixo do preço de custo de produção e/ou de aquisição dos mesmos. Em suma, pressupõe uma estrutura de encargos afetada à dinâmica operacional de uma atividade económica, e tem subjacente um ciclo de exploração caracterizado por fluxo triangular – em síntese, empresa, fornecedores, e respetivos clientes - que, por sua vez, determina o ciclo de tesouraria e a possibilidade de existência ou inexistência de saldo para cobrir os custos de exploração – por um lado, os valores das transações entre a insolvente e os demais respetivos stakeholders (fornecedores, trabalhadores, Banca, etc) e, por outro, os valores das transações entre a insolvente e os seus clientes, sendo que são estas as que permitem gerar proveitos e só existem depois de a empresa iniciar o exercício da sua atividade.
Ora, na equação que a situação de exploração deficitária pressupõe não se enquadram os custos correspondentes às obrigações pecuniárias contraídas/assumidas numa fase de investimento inicial da empresa, sendo investimento a aquisição ou criação de recursos a serem usados na produção, distribuição e comercialização de bens e serviços (construções, máquinas, equipamentos), ou seja, a serem usados na exploração/exercício de uma atividade económica. No caso, as despesas realizadas para criação de condições logísticas, materiais e recursos humanos para o exercício de atividade económica lucrativa de restauração socialmente definida – cujo valor é decidido com base na rentabilidade esperada e em função do custo do financiamento e das expectativas das pessoas relativamente à situação económica futura, de acordo com critérios de racionalidade empresarial. Fase - de instalação e preparação - que se caracteriza pela existência de custos sem proveitos e, assim, como é referido pela recorrente, deficitária por definição.
Daqui resulta que não se enquadram na definição de exploração deficitária na al. g) os factos considerados pela sentença recorrida - agravamento dos valores orçamentados e aumento ou não redução de custos através da “continuação de alterações e de pedidos de trabalhos a mais, manutenção de um cozinheiro, recebimento integral da remuneração pelo próprio Ab - na medida em que a ausência de receitas naquele âmbito considerada corresponde a situação natural e economicamente conforme à fase de investimento em que a insolvente se encontrava – de instalação e preparação para a atividade económica que se propunha exercer. Além de que, como é referido no acórdão da Relação de Coimbra de 14.01.2014, “II – O que está em causa na alínea g) da norma acima citada não é propriamente a mera gestão ruinosa e imprudente do património ou rendimentos do devedor, independentemente das concretas circunstâncias em que ela se traduza, sendo que o preenchimento dessa previsão legal pressupõe o prosseguimento de uma determinada actividade (…).”
Com o que se conclui pela não verificação da al. g) do nº 2 do art.º 186º.
ii) A insolvência culposa prevista pela al. e) do nº 2 do art.º 186º remete para a figura da desconsideração ou levantamento da personalidade jurídica de pessoas coletiva, questão que a sentença recorrida não abordou não obstante tenha concluído pela verificação daquela qualificativa. Cumpre por isso proceder a uma breve referência dos respetivos pressupostos para aferir da sua verificação no caso.
Conforme definição de Coutinho de Abreu, a desconsideração da personalidade jurídica das sociedades é “a derrogação ou não observância da autonomia jurídico-subjetiva e/ou patrimonial das sociedades em face dos respetivos sócios” e visa “contrariar algumas disfunções das sociedades perpetradas por sócios” através da quebra do princípio da autonomia e separação jurídica e patrimonial da sociedade relativamente aos sócios que, consoante os casos, tem como consequência, ou a imputação aos sócios de negócios ou atos que celebraram sob a ‘capa’ da personalidade jurídica da sociedade para contornar uma qualquer limitação ou proibição legal ou contratual do próprio sócio, ou a perda do benefício da limitação da responsabilidade destes perante os credores daquela “quando utilizam o «instituto» sociedade-pessoa coletiva (…) não (ou não tanto) para satisfazer interesses de que ele é instrumento, mas para desrespeitar interesses dos credores da [própria] sociedade; ou, em formulação mais próxima do art.º 334º do CCiv., quando excedam os limites impostos pelo fim social ou económico do direito de constituir e fazer funcionar (ou não) sociedade”[45].
Neste quadro concetual a sentença não justifica ou concretiza em que termos a valorização do imóvel propriedade da recorrente Ph e a subsequente utilização dos bens da massa insolvente no âmbito do contrato de arrendamento que aquela celebrou consubstanciam ou concretizam a quebra daquele princípio estrutural do direito societário - da autonomia e separação jurídica e patrimonial da sociedade relativamente aos sócios – já que, per si, esses factos não têm a virtualidade de consubstanciar ou demonstrar um ato contra legem ou abusivo dos recorrentes enquanto sócios da insolvente e por referência a essa mesma qualidade.
Com efeito, as benfeitorias – necessárias, úteis ou voluptuárias, conforme previsto pelo art.º 216º do CC – que resultam das obras realizadas por sociedade em imóvel de terceiro para o adaptar ou mesmo recuperar funcionalidades que permitam a sua utilização e afetação ao exercício da sua atividade económica, enquadram-se nos encargos económica e legalmente reconhecidos como passíveis de serem imputados a uma empresa desde que, como é óbvio, a fruição e gozo do imóvel por elas beneficiado lhe sejam para o efeito cedidos, seja a título gratuito (vg. comodato) ou oneroso (vg. arrendamento). Isso mesmo é ostensivamente demonstrado pela previsão legal da inscrição contabilística do custo das obras, a capitalizar ou seja, a reconhecer como ativo fixo tangível[46] na conta investimentos (conta 4, subconta 432) ou, tratando-se de obras ainda em curso, como ativo fixo tangível em curso (conta 453) cuja depreciação irá gerar gastos a relevarem na determinação dos rendimentos sujeitos a imposto (IRC); tratando-se de obras menores que não interferem com o período de vida útil dos bens ou não reúnem os requisitos para serem capitalizadas como ativo, devem ser inscritas como gastos do período (conta 6, conta 6226)[47], sem que num ou outro caso a lei disti entre imóvel propriedade da sociedade ou de terceiro. Como se decidiu no acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 16.09.2019 no âmbito de discussão fiscal atinente com obras realizadas em imóvel da sócia da sociedade que as custeou e citando entendimento da comissão executiva da comissão de normalização contabilística (CNC), “II. Sendo admissível a amortização de custos relacionados com obras em edifícios alheios, por definição a propriedade desses mesmos edifícios não é requisito de admissibilidade fiscal de tal amortização.//III. A titularidade do direito de propriedade de um imóvel não é requisito essencial para a admissibilidade de amortizações relativas a obras nele realizadas, refletindo, pois, a prevalência da realidade económica face à jurídica.”
Neste quadro, que corresponde a usos/práticas comummente aceites no mundo/vida empresarial, é legalmente contemplado e encontra correspondência na contabilidade da insolvente (espelhada no balancete de junho de 2021), a verificação da qualificativa prevista pela al. e) impunha a demonstração do alegado propósito de sócios da insolvente terem usado a sociedade SW como mero instrumento para a realização daquelas obras e imputação dos respetivos custos desacompanhada da vontade de através dela prosseguir uma qualquer atividade lucrativa geradora de proveitos que, além do mais, permitisse obter o retorno do investimento realizado no âmbito da sua esfera jurídica.
Com esse desiderato, e como facto instrumental indiciário da alegada intenção fraudulenta dos sócios da insolvente, a credora DM invocou nos autos a questão da subcapitalização da sociedade, que justificou pelo confronto do valor de €200.000,00 atribuído ao capital social da sociedade com o valor dos investimentos por ela realizados, questão que chama à colação a problemática do financiamento das sociedades.
Efetivamente, o capital social tem uma função de financiamento da sociedade correspondente ao valor das entradas a cumprir pelos sócios e que é por eles definido no pacto social. Numa fase inicial da sociedade as entradas do capital social correspondem ao valor dos capitais próprios disponíveis para o estabelecimento e desenvolvimento das atividades económicas por ela visadas exercer, e que podem ser imediatamente utilizadas pelos gerentes como “[b]em entenderem, não necessitando de qualquer autorização dos sócios para esse efeito.”[48] Por isso, é sobre as entradas dos sócios que recai antes de mais o risco económico do projeto societário, de perda desses capitais. Para além deste, como é sabido, o financiamento das sociedades é feito por recurso a capital alheio, incluindo dos sócios através dos empréstimos por eles realizados à sociedade, sendo que por esta via o recurso ao dinheiro dos sócios constitui um ato da competência do órgão da administração, que para o efeito e em representação da sociedade o solicitará e receberá dos sócios, em princípio, e de acordo com as regras da experiência, indicando/justificando a necessidade do mesmo.
Sobre a questão do valor dos capitais próprios e da proporção entre estes e os capitais alheios, com pertinência ao caso Paulo Tarso Domingues refere que, na impossibilidade de ser estabelecido um critério com validade universal, “[é] por isso deixada à sociedade e aos sócios uma grande liberdade para determinar em que medida deve recorrer a um e a outro financiamento. Na verdade, nada na lei obriga, ao menos de forma direta, a que a principal fonte de financiamento da sociedade seja efetuada através de capitais próprios (vg, através do capital social), nem sequer a que haja uma qualquer proporcionalidade entre capitais próprios e alheios ou de adequação do capital social relativamente à atividade desenvolvida pela sociedade; os sócios têm a faculdade de livremente optar pela forma de financiamento que consideram mais apropriada ao seu caso concreto, decidindo em que medida e proporção deve a sociedade financiar-se através de capitais próprios ou alheios. Dito de outro modo, a lei não prevê expressamente qualquer obrigação quanto ao valor a que deve ascender o capital social (seja no momento da constituição, seja ulteriormente através de reforços ou aumentos de capital), por forma a ajustá-lo ao objeto social e a permitir a prossecução da atividade societária.”[49] É neste enquadramento que o autor que aqui citamos situa a problemática da subcapitalização das sociedades e do seu endividamento por recurso ao crédito alheio, com consequente externalização[50] do risco empresarial da sociedade se e na medida em que os credores não consigam receber os seus créditos, referindo a subcapitalização originária – no momento da constituição da sociedade – e a superveniente - que exemplifica com a decorrente do aumento da dimensão da empresa ou do alargamento do seu objeto social -, avançando que é para a primeira que surge o recurso à teoria da superação da personalidade jurídica das sociedades comerciais para responsabilização dos sócios perante os credores face à liberdade destes na determinação da medida de financiamento da sociedade, fazendo-os responder pelas dividas sociais.
Neste campo mais distingue a subcapitalização formal – situação em que o capital social é desadequado ao objeto social mas a sociedade dispõe dos meios necessários que resultam de outros financiamentos que lhe são feitos pelos sócios, como por exemplo, a título de suprimentos – da subcapitalização material – situação em que o capital social é absolutamente desadequado ao objeto e dimensão da empresa sem que a (manifesta) insuficiência que daí decorre seja colmatada por outro financiamento por parte dos sócios – para restringir a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica a esta ultima[51] e, reconhecendo o carácter excecional desta figura, apenas “[q]uando a subcapitalização material resulte de uma atitude culposa por parte destes.”[52], e no que designa de “abuso institucional da personalidade coletiva”.
Na aferição de uma situação de desconsideração da personalidade jurídica elenca como pressupostos a ilicitude, a culpa, e o dano, a valorar nos seguintes termos:
- a ilicitude, que se verifica “[q]uando a subcapitalização for manifesta ou qualificada (…) i.é, quando for absolutamente impossível exercer o objeto social com os meios disponibilizados pelos sócios. Dito doutro modo, só uma total e absoluta desadequação dos meios proporcionados pelos sócios com a atividade exercida pela sociedade, só uma “sub-capitalização manifesta e totalmente impeditiva da realização do objeto social deverá ter a virtualidade de fazer acionar” aquele instituto;
- a culpa, que “[s]upõe que os sócios conhecem e têm consciência de que o montante com que financiaram a sociedade é manifestamente insuficiente e acarreta uma grande probabilidade de insucesso daquele projeto empresarial.”;
- e o dano, que identifica com a “[v]erificação da impossibilidade de os credores obterem o pagamento dos seus créditos.”[53]
Com pertinência ao caso, nesta matéria o autor mais distingue entre sub-capitalização e descapitalização, definindo esta como a situação em que “os recursos disponibilizados pelos sócios – adequados e suficientes ao exercício da atividade societária –se perdem no decurso da exploração e do desenvolvimento da atividade societária”, com consequente redução do património social, que qualifica de natureza fortuita quando resulte de vicissitudes e dos azares da vida empresarial, circunstância que entende não fundar a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade ainda que a sociedade seja mantida em atividade.[54]
Revertendo o exposto ao caso afigura-se-nos manifesto que a matéria de facto adquirida nos autos não permite dar como preenchidos os pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica da insolvente.
Assim, relevam:
- o facto de ter sido solicitado um projeto de arquitetura que contemplava a remodelação do piso térreo e do 1º piso do imóvel do qual a recorrente viria a ser ou já era proprietária[55] e que, no seu conjunto, orçava no valor de cerca de €180.000,00, sendo certo que, por um lado, parte (ainda que minoritária) daquele projeto seria imputável a trabalhos/bens a realizar ou a instalar no 1º piso e, por outro, que quando aquele projeto foi elaborado e submetido a concurso e posteriormente discutida em reunião a proposta de orçamento de cerca de €180.000,00 apresentada pela credora DM para a sua execução, os requeridos Ab, Ph e An (que participaram naquela reunião) ainda não tinham celebrado o pacto social da SW, sendo ademais certo que naquela reunião a recorrente manifestou que o estabelecimento de bar a instalar no 1º piso não se destinava à insolvente, que nela participou a pessoa ao qual manifestou pretender ceder aquele espaço, e que a contratação da credora DM ocorreu após a constituição da sociedade através de declaração de adjudicação comunicada pelo respetivo gerente, o recorrente Ab, o único que dos requeridos acompanhou a execução das obras iniciadas em fevereiro de 2020 e solicitou todas as alterações que a partir daí foram introduzidas ao projeto;
- o facto de o projeto de remodelação do espaço destinado à instalação do restaurante que a recorrente para o efeito cedeu à insolvente[56] importar num investimento inicial inferior a €180.000,00 a realizar durante um período de cerca de três/quatro meses, correspondente ao período inicialmente estimado para a execução daquele projeto de arquitetura de remodelação do espaço e, na posterior celebração do pacto social da SW, os sócios terem fixado o capital social em €200.000,00, do qual foi disponibilizado €160.000,00 através das entradas cumpridas pela recorrente e pelo sócio An;
- finalmente, o facto, de acordo com a prova produzida e o valor do crédito que reclamou nos autos[57], o custo dos trabalhos realizados pela credora DM ter ascendido a cerca de €300.000,00[58], e de, em momentos temporalmente não apurados - mas que se situam no ano de 2020 e enquanto a credora executou trabalhos e o recorrente Ab adquiriu equipamento para instalar no rés do chão e no 1º andar[59] -, os sócios terem diligenciado pelo financiamento da sociedade no valor acrescido de cerca de €400.000,00, correspondente aos créditos nesse valor reconhecidos nos autos a An e a An H.[60], importando assim num financiamento da sociedade para despesas de investimento no valor total de pelo menos €560.000,00 quando o valor inicial da empreitada conhecido pelos sócios previamente à constituição da sociedade era inferior a €180.000,00.
No seu conjunto os factos descritos revelam que os sócios tinham um propósito, sério, de exploração da atividade de restauração através da SW no espaço do imóvel que em nome e por conta desta foi objeto de obras, que deixa desamparada a tese da desconsideração da personalidade jurídica e, assim, a verificação da al. e) em análise.
Relativamente à utilização dos bens da massa insolvente no âmbito de contrato de arrendamento do espaço do restaurante que posteriormente à declaração da insolvência da devedora foi celebrado pela recorrente Ph, proprietária do imóvel, cumpre apenas acrescentar que, para além de localizada fora do período temporal relevante para efeitos de qualificação de insolvência, a atividade e qualidade que releva para este efeito – administração do devedor – não se compadece com a valoração daquele ato em dissociação com a qualidade de proprietária do imóvel onde os bens da massa se encontravam instalados à data da declaração da insolvência e foram mantidos pelo administrador da insolvência que procedeu ao seu arrolamento. Nesse contexto, fáctico e temporal, a utilização dos bens só pode ser juridicamente valorada no contexto das atividades de apreensão e liquidação da massa insolvente a cumprir pelo AI e, no âmbito destas, por referência à qualidade de depositária dos bens em que por este foi nomeada; já não por referência à qualidade de administrador e aos poderes de facto e de direito sobre os bens da insolvente que aquela qualidade disponibiliza a quem a exerce, sendo que é a estas atividade e qualidade – administração - que reporta a qualificação da insolvência.
iii) O afastamento dos fundamentos considerados pelo tribunal recorrido não prejudica a aferição dos pressupostos da insolvência culposa por referência às demais qualificativas invocadas no parecer apresentado pelo Ministério Público - als. a), b), d), h) do nº 2 do art.º 186º -, assim integrados no objeto dos autos, submetidos ao contraditório e à discussão pelos interessados pelo que, não tendo sido julgados improcedentes pelo tribunal recorrido, não fica vedada à Relação a confirmação da decisão recorrida com outros fundamentos legais, por força do princípio da livre indagação, interpretação e aplicação das regras de direito previsto pelo art.º 5º, nº 3 do CPC, substituindo-a por outra que, nas circunstâncias, o tribunal devia ter proferido. Neste sentido, citando, entre outros, Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes[61], acórdão da Relação de Lisboa de 10.03.2022[62]: I – O objecto do recurso não é definido pelas conclusões das alegações do recorrente. Estas apenas servem para, nesta parte, dizer quais, das decisões proferidas, são o objecto do recurso.//II – O afastamento do fundamento da decisão recorrida não impede que esta seja confirmada por outros fundamentos (se estes não tiverem sido julgados improcedentes pelo tribunal recorrido ou se, no caso de terem sido julgados improcedentes, eles forem de conhecimento oficioso ou a parte vencedora tiver requerido ampliação do âmbito do recurso).//III – Se estes diversos fundamentos possíveis estão discutidos pelas partes, que sobre eles já se pronunciaram, ou tiveram a possibilidade de os discutir, não há violação da proibição da decisão-surpresa ou do princípio do contraditório (art.º 3/3 do CPC).
Nesta apreciação, e para abreviar o que já vai longo, na senda dos factos acima elencados é de ‘la palisse’ afirmar que, na fase de investimento em que a insolvente se encontrava, a impossibilidade de cumprir as obrigações que contraiu e assumiu teve como causa imediata a superioridade das mesmas em relação aos recursos financeiros que os sócios não gerentes (e o familiar de um deles) entregaram e emprestaram à sociedade, que esgotaram sem que tenha permitido o cumprimento de todas as obrigações contraídas.
Superioridade e esgotamento que resultou da verificação combinada de, pelo menos, dois fatores, sem que os elementos de facto disponíveis nos autos permitam aferir da medida da contribuição de cada um deles na produção daquele efeito: por um lado, o prolongamento dos trabalhos de remodelação muito para além do prazo de três meses inicial e simultaneamente previsto para o início da exploração do restaurante – que, de acordo com a calendarização e duração inicial do projeto de obras – quatro meses -, seria em janeiro de 2020, sendo que só em fevereiro de 2020 foi dado início à execução do projeto de remodelação, depois da obras de especialidade que o estado das instalações elétricas, de saneamento e do ar condicionado impuseram realizar previamente – dilação à qual se associou o prolongamento, para além do tempo inicialmente esperado, dos encargos com remunerações, pelo menos a fixada pelos sócios para retribuição do cargo de gerente atribuído ao recorrente Ab, e a por este fixada ao credor ML que contratou para o cargo de cozinheiro; e por outro, os custos da remodelação arquitetónica e equipamento do espaço do imóvel destinado a estabelecimento de bar que não estava ab initio destinado à insolvente, como o comprovam os CAE’s indicados para identificação do seu objeto social[63], e que a sua proprietária ab initio destinou à exploração de estabelecimento de bar por outra entidade e que, por isso, se impõe considerar como afetação dos recursos da insolvente a interesses estranhos ao seu objeto social e, por isso, contrários ao seu interesse na medida em que não se destinavam a criar condições para o exercício da sua atividade e, assim, para gera rendimentos em seu benefício.
Estes factos afetaram negativamente o património da insolvente contribuindo, por um lado, para a diminuição dos recursos monetários que os sócios disponibilizaram para realização do investimento necessário ao exercício da atividade económica por eles definida para a insolvente e, por outro, para o agravamento do serviço de dívida da insolvente emergente não só da afetação dos recursos à preparação de atividade económica que não integrava o projeto societário da insolvente nem a ela estava destinado, sequer pela proprietária do imóvel, mas também da insistência no uso do crédito que à insolvente foi concedido pelos respetivos parceiros comerciais apesar de a determinada altura do ano de 2020 a gerência conhecer a ausência de recursos financeiros que não lhe permitia assegurar a possibilidade de o vir a honrar. Realça-se que para além do crédito da DM impugnado pela insolvente (no montante de €126.000,00), foram verificados nos autos outros créditos reclamados por fornecedores (de bens ou de serviços) no montante de cerca de €166.630,00, sendo certo que para além das faturas mensais emitidas pela credora CM entre janeiro e abril de 2021 e referentes a ‘custos de estaleiro’, dos autos não constam que naquele ano tenham sido emitidas outras a cargo da insolvente, pelo que aquele passivo respeitará a obrigações contraídas no ano de 2020.
Em síntese, o acervo factual adquirido nos autos permite concluir que a impossibilidade de a insolvente cumprir todo o serviço de dívida gerado com as despesas de instalação e preparação da atividade que se propunha exercer decorreu ou para ela contribuíram as opções feitas na gestão dos recursos financeiros que à insolvente foram disponibilizados, mais concretamente, na sua afetação, e da opção de junto dos seus parceiros comerciais continuar a adquirir bens e serviços a crédito ao longo do ano de 2020 apesar da incerteza quanto à disponibilização de novo financiamento pelos sócios para prover ao seu pagamento, conduta que enquadra na qualificativa prevista pela al. f) do nº 2 do art.º 186º que, precisamente, prevê uso do crédito ou dos bens do devedor contrário ao interesse deste e, no caso, em beneficio de um estabelecimento que não se destinava à exploração pela insolvente e, assim, em benefício do proprietário do imóvel onde foi instalado e/ou da entidade que o passou a explorar.
Com o que se conclui pela qualificação da insolvência como culposa com fundamento na al. f) do nº 2 do art.º 186º.
B2. Da afetação dos recorrentes pela qualificação da insolvência como culposa
1. Decorre dos termos dos art.ºs 186º e 189º nº 2 e 3 que a afetação pela qualificação da insolvência incide sobre pessoas singulares. O âmbito subjetivo do presente incidente vem suportado na qualidade de gerente de direito quanto ao recorrente Ab, e na qualidade de gerentes de facto imputada aos demais sócios e ao cônjuge da recorrente Ph, sendo que o objeto do recurso está limitado à apreciação da afetação dos recorrentes pela insolvência culposa porque apenas esta decisão foi objeto de oportuno e tempestivo recurso. O recorrente Ab alegou que as decisões da gestão eram submetidas à aprovação da recorrente ou tomadas por todos os sócios, e a recorrente rejeitou a qualidade de gerente de facto da insolvente.
A sentença recorrida, frisando que a qualidade em que cada um atuou foi um dos temas de maior discussão em sede instrutória, considerou a designação de Ab para o cargo de gerente logo na constituição da sociedade e a sua manutenção no cargo até ao final da execução dos trabalhos e concluiu pela sua efetiva intervenção nos atos de gestão da sociedade, conclusão inatacável e que se confirma de facto e de direito. Relativamente à recorrente Ph, considerou que “participou nas decisões sobre alterações a realizar que implicassem custos (controlo da situação financeira), procedeu à indicação de trabalhadores, escolha de bens necessários à atividade, definição do menu, presença em reuniões importantes” e concluiu que a mesma detinha a qualidade de gerente de facto da insolvente, conclusão que não se confirma, mais não seja, porque foram seriamente abalados e alterados os pressupostos de facto em que assentou e os que restaram são claramente insuficientes para preencher os pressupostos da qualidade de administrador de facto.
Conforme se expôs, a qualificação da insolvência como culposa tem como pressupostos uma conduta ilícita do devedor ou dos seus administradores praticada com dolo ou com culpa grave, e em relação de causalidade com a situação de insolvência ou com o seu agravamento. Considerando que o prius da qualificação é, precisamente, uma conduta, por ação ou por omissão, é pela autoria desta que em concreto se impõe aferir do âmbito subjetivo das consequências da insolvência culposa. Sem prejuízo das presunções legais de culpa, “[a] responsabilidade dos administradores e gerentes é por culpa e por facto próprio, não é responsabilidade sem culpa e por facto de outrem.”[64] Corresponderá esse ao sentido da apreciação feita pelo acórdão do Tribunal Constitucional nº 280/2015 de 20.05[65], ao considerar que “a determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 189.º do CIRE (inibição para a administração de patrimónios alheios, exercício de comércio e ocupação de cargo de titular de órgão nas pessoas colectivas aí identificadas) e, naturalmente, a própria fixação do montante da indemnização prevista na alínea e) do n.º 2 do mesmo preceito legal, deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal” (subl. nosso).
Como se infere da apreciação da decisão de facto, no contexto dos factos que fundamentam a qualificação da insolvência da devedora como culposa nenhum existe que permita imputar à recorrente a prática de uma ação proibida ou a omissão de uma atuação devida.
O art.º 6º, nº 1 do CIRE define como administradores “aqueles a quem incumba a administração ou liquidação da entidade ou património em causa, designadamente os titulares do órgão social que para o efeito for competente.” A figura do administrador de facto corresponde a uma realidade material que existe à margem da previsão legal do órgão social competente para a administração da sociedade – que não prescinde do elemento formal da designação ou nomeação pelos sócios -, e para a qual não existe uma definição ou previsão de critérios legais que a definam para além da que é possível extrair da analogia com a figura do administrador de direito, da qual se distingue pela ausência do título de investidura formal no cargo (nos termos do art.º 252º, nº 2 do CSC para as sociedades por quotas). Assim, e conforme definição comummente aceite pela generalidade da doutrina e jurisprudência, é administrador de facto Quem, sem título bastante, exerce, direta ou indiretamente e de modo autónomo (não subordinadamente), funções próprias de administrador de direito na sociedade.”[66] Com a mesma clareza, nas palavras de Soveral Martins, “[p]ara que um sujeito seja considerado como administrador de facto é necessário que atue da mesma forma que os administradores de direito.”[67] De tal forma que, como refere David Nunes dos Reis[68], “é a atividade que cria o administrador de facto”. Importa por isso atender à concreta atividade exercida pelo sujeito, e em que termos.
No âmbito da regulação das sociedades por quotas prevê o art.º 259º do CSC que “Os gerentes devem praticar os actos que forem necessários ou convenientes para a realização do objecto social, com respeito pelas deliberações dos sócios.” A administração de facto exige, por natureza, o efetivo exercício de poderes de gestão no âmbito do objeto social, por princípio, de forma sistemática e continuada. A partir daqui, independentemente das várias construções e densificações doutrinárias da problemática da identificação do administrador de facto, um outro ponto parece reunir consenso – exige que a direção que caracteriza a administração de uma sociedade seja exercida de modo independente, com total e ilimitada autonomia na tomada de decisões e na atuação, influindo e conformando de forma decisiva os destinos da sociedade, com compressão da autonomia do administrador de direito na tomada dessas decisões, que não se basta com uma situação de mera influência ou de sugestões, antes exige uma imposição e uma expectativa de obediência[69].
No caso, os recorrentes e An constituíram a insolvente, designaram gerente o sócio Ab que, com a aquiescência dos demais, beneficiou do diferimento da realização da entrada correspondente à sua participação no capital social (20%)[70], e os demais dispuseram-se a financiá-la, quer através da realização do capital social correspondente às suas participações (80%), quer através de financiamentos que à mesma realizaram e que nos autos constam reconhecidos como suprimentos. Como já se referiu, contra a versão apresentada pelo recorrente Ab não resultou provado que este submeteu à prévia aprovação e concordância da recorrente Ph todas as decisões tomadas/executadas na gestão da insolvente - que então se deveriam resumir à celebração, acompanhamento e cumprimento de contratos para aquisição de bens e serviços com vista à preparação do espaço para instalação do estabelecimento comercial a explorar pela insolvente, mas que aquele estendeu a espaço que a esta não estava destinado, contrariando o projeto societário e as informações que nas reuniões de apresentação do projeto e do orçamento para a sua execução realizadas ainda antes da constituição da sociedade lhe foram dadas pela recorrente, proprietária do imóvel, relativamente ao destino do 1º piso do imóvel.
Com evidente relevância na questão, não existe um único elemento de facto que permita concluir que a recorrente detinha o domínio sobre cada custo imputado à insolvente e o controlo e conhecimento das disponibilidades de tesouraria em cada momento em que em nome desta foram contratados serviços e bens ou pedida a alteração dos mesmos, atividade que ficou na total dependência do recorrente Ab, quem detinha a gestão das disponibilidades de tesouraria e das aquisições e contratações se serviços que fez em nome e em representação e com recurso ao dinheiro que a esta foi financiado pelos demais sócios. Ora, a administração de uma sociedade exige uma relação com a esfera patrimonial desta já que, como refere Carneiro de Frada[71], “Há uma relação fiduciária entre o administrador e a sociedade. O serviço que ele presta a favor da sociedade envolve a atribuição de poderes alargados sobre ela e sobre o seu património.”. Nas palavras de Ricardo Costa[72] “exigir-se-á a intensidade do comando e planeamento gerais no que toca ao destino comercial e financeiro da sociedade, ao provimento dos recursos humano e materiais, atendendo à dimensão da sociedade e ao tipo de atividade societária.” (subl. nosso). O exercício da administração por administrador de facto pressupõe que abranja a prática de atos com conteúdo patrimonial ‘intenso’, suscetíveis de determinar ou comprometer o destino comercial e financeiro da sociedade, agindo sobre o património da sociedade através desta. Poderes que a recorrente não detinha ou, pelo menos, não resultaram demonstrados, assim como não resultou demonstrada uma qualquer instrumentalização do recorrente Ab, gerente de direito, no sentido de sobre este exercer influência decisiva, decidindo, ordenando e determinando-o à execução de atos de gestão e de direção da insolvente, impondo-lhe a cada ato as suas decisões. Apesar de assim ter alegado, não resultou demonstrado que a atuação do recorrente Ab se limitava ao acatamento e execução de instruções da recorrente – ou de qualquer um dos outros sócios; não resultou demonstrado que tenha atuado como mero instrumento da vontade e decisão destes, sendo certo que é o próprio recorrente que, desse modo, assume que sempre atuou com o domínio dos factos.
De todo o modo, a afetação do recorrente Ab pela qualificação da insolvência na qualidade de gerente de direito não ficaria prejudicada ainda que, como alegou, se comportasse na insolvente como um ‘mero assalariado’, ‘testa de ferro’ ou ‘intermediário’. Com efeito, é consensual na doutrina e na jurisprudência que um administrador de direito que não exerce de facto está a incumprir o dever funcional social que sobre ele recai, e que o dever de administrar, de zelar e até de fiscalizar os demais elementos da direção, é incompatível com o não exercício do cargo e que, em princípio, conduzirá à responsabilização por omissão. Ricardo Costa defende que havendo responsabilidade do administrador de facto, o administrador de direito responde pela sua própria atuação se coexistiu com aquele administrador de facto ou, não tendo atuado, responde por omissão ilícita, “se se demitiu em absoluto da gestão social e a entregou, ainda que por afastamento não querido da vida da sociedade, ao administrador de facto directo; nesta circunstância, o exercício de poderes que consentiu ou tolerou (por ex., não registando a cessação de funções do administrador com título extinto) e o sucessivo comportamento danoso do administrador de facto representam a infracção do dever de controlar (culpa in vigilando) a gestão efectiva, mesmo se não levada a cabo por quem não está legitimamente investido para o efeito.”[73]. Nas palavras do acórdão da Relação de Coimbra de 21.01.2014 (na esteira do proferido pela mesma Relação em 11.12.2012, processo nº 3945/08.6TBLRA-E.C1 e de outros entretanto proferidos), “[a]oreportar-se tanto aos administradores de direito como aos administradores de facto, no art.º 189º, nº 2, a), do CIRE, o legislador não visa excluir da qualificação da insolvência os administradores de direito que não exerçam as suas funções de facto (…). Afirmação que é impressivamente justificada no acórdão de 23.03.2021 desta secção: “3 – Um administrador de direito que não exerce, de facto, está, por opção, a não exercer o seu fundamental dever de cuidar, previsto no art.º 64º do CSC, nomeadamente na modalidade do dever de controlo, com gravidade acrescida em situação de dificuldades em que o cenário de insolvência é um dos possíveis.//4 - O cargo de gerente/administrador é incompatível com o respetivo não exercício. Numa situação de impedimento de exercício de funções o titular do órgão social tem duas opções: ou renuncia ao cargo ou requer judicialmente o seu investimento no mesmo. A opção de se manter inativo e nada fazer viola lei imperativa e não funciona como causa de exclusão de responsabilidade, podendo e devendo ser abrangido pela qualificação da insolvência da sociedade administrada como culposa.”
Com o que se conclui pela procedência do recurso interposto pela recorrente Ph e pela improcedência do recurso interposto pelo recorrente Ab, com consequente alteração da sentença em conformidade.
VII - Decisão
Por todo o exposto, acordam as juízas que integram a 1ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em:
- julgar a apelação do recorrente Ab. improcedente;
- julgar a apelação da recorrente Ph procedente e, consequentemente, em revogar a sentença em todos os segmentos que a esta reporta, nas als. b) a e), que passam a constar nos seguintes termos, mantendo-se a sentença recorrida inalterada no demais:
“b) Declarar o gerente de direito e de facto Ab afetado pela qualificação da insolvência como culposa; c) Declarar Ab inibido da administração do património de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para ocuparem qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, por um período de 3 (três) anos; d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a massa insolvente, que Ab detenha sobre a sociedade insolvente; e) Condenar Ab a indemnizar os credores da devedora insolvente reconhecidos em sede de apenso de reclamação de créditos no montante de €70.669,30 (setenta mil seiscentos e sessenta e nove euros e trinta cêntimos), considerando a força do respetivo património;”
As custas do incidente na primeira instância ficam a cargo do recorrente Ab.
As custas da apelação ficam a cargo do recorrente Ab e da credora DM na proporção de metade para cada um, o primeiro porque vencido no recurso que interpôs, e a segunda porque vencida no recurso interposto pela recorrente Ph (cfr. art.º 527º, nº 1 e 2 do CPC).
Lisboa, 31.10.2023
Amélia Sofia Rebelo
Paula Cardoso
Manuela Espadaneira Lopes
_______________________________________________________ [1] Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Ed., 2ª ed., p. 684 e ss. [2] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, p. 150. [3] Se de caducidade do direito, como alegou o recorrente, se de preclusão de faculdade/ónus processual, como se nos afigura ser e que legitima o seu conhecimento oficioso independentemente de ser ou não invocada pelas partes, como também vem alegado pelo recorrente. [4] Acórdão desta secção de 08.02.2022, não publicado, relatado pela ora relatora no processo nº 1932/19.8T8PDL-B.L1. [5] Entre outros, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, Coimbra Editora 1987, em anotação ao art.º 625º, p. 356 e ss., Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da matéria de facto, em Estudos em Homenagem ao Professor Lebre de Freitas, Vol. I, 2012, e acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20.02.2019, proc. nº 4603/16.3TBCBR.C1, disponível em www.dgsi. [6] CPC Anotado, GPS, Vol. I, p. 506. [7] Manual de Processo Civil, p. 456 e s. [8] Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, p. 349 e ss. [9] Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora 1984, vol. V, p. 25. [10] Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 329. [11] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6ª ed., p. 350 [12] Vd. Tiago Milheiros, “Nulidades da Decisão da Matéria de Facto”, Revista Julgar on line, 2013, p. 15. [13] Sob a epígrafe Princípio do inquisitório prevê-se no art.º 11º que No processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes. [14] Nessa matéria, entre outros, acórdão da RC de 19.12.2018, proc. nº 2179/14.5TJCBR-A.C1, acórdão da RP de 07.10.2019, proc. nº 400/19.2T8AMT-D.P1, e acórdão desta Relação e secção de 29.10.2019, proc. nº 384/18.4T8SNT.L1 (não publicado). [15] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2014, 2ª ed., p. 233 [16] Ob. cit., p. 353. [17] Acórdão de 17.10.2019. [18] Nessa matéria, vd. Luis Pires de Sousa, ob. cit., p. 277 e ss. [19] Concedendo alguma margem para eventuais falhas na transmissão e compreensão de conteúdos comunicados entre aqueles interlocutores e em contexto de audiência tendo em consideração que, conforme resultou da audição dos depoimentos, o recorrente Ab , apesar de compreender e falar a língua portuguesa, manifestou limitações semânticas e gramaticais, que estas limitações se manifestaram sobre maneira mais evidentes na pessoa de An, que a recorrente Ph e o seu marido Ng não se expressa(vam) nem compreende(iam) a língua portuguesa, que Ab e Ph comunicavam entre si em inglês, língua que não era falada nem compreendida por An. [20] Coutinho de Abreu e Elisabete Ramos, Responsabilidade Civil de Administradores e de Sócios Controladores”, in IDET-Miscelâneas, nº 3, Almedina, 2004, p. 43 [21] Requerimento de 25.11.21. [22] Requerimento de 21.10.2021 [23] Juntos com requerimento de 28.03.2023, e que foram valorados pelo tribunal recorrido. [24] O standard de prova no processo civil e no processo penal, Janeiro de 2017, p. 6-7, disponível em http://www.trl.mj.pt/PDF/O%20standard%20de%20prova%202017.pdf [25] De acordo com a classificação portuguesa de atividades económicas (CAE) aprovada pelo Decreto-Lei n.º 381/2007, de 14.11.2007, consultada em https://smi.ine.pt/Categoria/Detalhes/2 [26] Como acima se transcreveu, o recorrente Ab declarou, textualmente, que “o dinheiro não era um problema”, que “o dinheiro foi caindo sempre” que os outros sócios “não queriam chegar à fase da justiça por falta de pagamentos, era um problema para eles”; “sentiu que o dinheiro não estava a chegar”, que “disse à DM que [o dinheiro] ia chegar mais tarde” e “no fim fiz pressão sobre a DM para terminar o trabalho porque pensou sempre que o dinheiro ia chegar”. [27] Junto aos autos com o requerimento de 24.02.2021 do AI então em funções. [28] Não inclui o crédito reclamado por DM no montante de cerca de €126k que, tendo sido objeto de impugnação e esta de resposta, prosseguiu para instrução. [29] Junto aos autos com o requerimento de 24.02.2021 do AI então em funções. [30] Posto que os deveres previstos pelo art.º 83º emergem da sentença de declaração da insolvência. [31] Estabelece que Todos os prazos que neste Código têm como termo final o início do processo de insolvência abrangem igualmente o período compreendido entre esta data e a da declaração de insolvência. [32] Nesse sentido, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2005, Iº vol., p. 79 e 80, e acórdão desta secção de 25.01.2022, processo nº 15973 [33] Vd. Manuel Carneiro da Frada, A responsabilidade dos administradores na insolvência, ROA, Ano 66, Set. 2006, p. [34] Nesse sentido, entre outros, ac. STJ de 15.02.2018, proc. nº 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1, ac. da RP de 21.02.2019, proc. n.º 1733/15.2T8STS-B.P1, e ac. do TC 570/2008 de 26.11.2008. [35] Acórdão do TC acima citado. [36] Sobre a conexão entre as causas de qualificação da insolvência previstas pelas als. h) e i) do nº 2 e al. b) do nº 3 do art.º 186º e a (potencial) criação ou agravamento da situação de insolvência, vd. Soveral Martins, Administração de Sociedades Anónimas e Responsabilidade dos Administradores, Almedina, p. 315-317. [37] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Iuris, Vol. II, p. 15. [38] Carina Magalhães, Incidente de Qualificação da Insolvência. Uma Visão Geral, em Estudos de Direito da Insolvência, Coord. Maria do Rosário Epifânio, Almedina, 2015, p. 121. [39] A este respeito Carneiro da Frada justifica que “a inadmissibilidade dessa prova não é todavia (em geral) excessiva, enquanto puder justificar-se como forma enérgica de dissuadir insolvências e estão com elas intimamente ligadas. É isso que justifica a declaração da insolvência como culposa sem necessidade de mostrar a ligação entre a conduta censurada e a concreta insolvência ocorrida (vedando a prova em contrário ou aceitando que a superveniência de elementos fortuitos que codeterminaram a insolvência não exclui essa insolvência culposa.” – Texto cit., p [40] Com a alteração introduzida pela Lei nº 9/2022 de 11.01 esta norma passou a prever que Presume-se unicamente a existência de culpa grave (…), pondo fim à posição que, ainda que em minoria na doutrina e na jurisprudência, defendia a extensão da presunção legal, agora ilidível, aos demais pressupostos da insolvência culposa - nexo causal entre o facto e a criação ou agravamento da situação de insolvência. [41] Texto citado. [42] Bem como com o instituto da resolução extrajudicial de atos de caráter patrimonial pelo administrador da insolvência, sendo que este produz efeito direto nos bens a integrar na massa insolvente. [43] Em sentido divergente, acórdão da RC de 28.05.2013 (proc. nº 102/12.0TBFAG-B.C1), e acórdãos da RG de 01.10.2013 (proc. 2127/12.7TBGMR-D.G1) e de 01.06.2017 (proc. nº 280/14.4TBPVL-E.G1), qualificando como ação de ocultação a alteração da situação jurídica do bem (como por exemplo, a venda do bem a terceiro) ou a celebração de ato negocial simulado. [44] A qualificativa prevista na al. b) mais exige que o terceiro beneficiado seja pessoa especialmente relacionado com o devedor, nos termos taxativamente previstos pelo art.º 49º. [45] Código das Sociedades Comerciais, em Comentário, Coordenação de Coutinho de Abreu, IDET, Vol. I, 2ª ed., p. 108, 109 e 116. [46] A NCFR (norma contabilística de relato financeiro) 7 referente a activos fixos tangíveis, define-os como itens tangíveis que: (a) sejam detidos pra uso na produção ou fornecimento de bens ou serviços, para arrendamento a outros, ou para fins administrativos; e (b) se espera que sejam usados durante mais do que um período. Ao nível do reconhecimento do custo do item como ativo: se, e apenas se: (a) for provável que futuros benefícios económicos associados ao item fluam para a entidade-, e (b) o custo do item puder ser mensurado fiavelmente. Considera como custo de um item do ativo fixo tangível (a) o seu preço de compra (…); (b) quaisquer custos diretamente atribuíveis para colocar o ativo na localização e condição necessárias para o mesmo ser capaz de funcionar da forma pretendida. Entre outros, assim exemplificados: (b) custos de preparação do local; (c) custos inicias de entrega e de manuseamento; (d) custos de instalação e montagem; (e) (…); (f) honorários (informação disponível em https://www.cnc.min-financas.pt/_siteantigo/SNC_projecto/NCRF_07_activos_fixos_tangiveis.pdf) [47] Os custos das obras relevam ainda no direito à dedução/reembolso do IVA por elas faturado a cargo da sociedade na qualidade de adquirente dos bens e serviços, cfr. art.ºs 1º, 2º e 31º do CIVA. [48] Paulo Tarso Domigues, O Financiamento Societário pelos Sócios (e o seu reverso), Almedina, 2022, 2ª ed., obra que aqui seguimos de perto. [49] Págs. 82-83. [50] Efeito que identifica como característico das sociedades de capitais, categoria em que enquadra as sociedades por quotas (p. 84). [51] Pág. 85 [52] Pág. 222-223. [53] Pág. 224. [54] Pág. 226-227. [55] Dos autos não consta documentada a data em que o mesmo foi adquirido, facto que apenas foi referido no âmbito da prova pessoal produzida, tendo a recorrente declarado que chegou a Portugal em agosto de 2018, celebrou contrato promessa do imóvel em novembro desse ano e a escritura publica em agosto de 2019. [56] Cedência que, na ausência de alegação e documento que declare o contrário, foi a título gratuito no período de outubro de 2019 a abril de 2020, mês que no contrato de arrendamento consta como a data do seu início, sendo certo que n sequência da celebração do contrato de empreitada em setembro de 2019 a credora DM ‘entrou’ no imóvel para dar início à sua execução em outubro de 2019. [57] Crédito que, entretanto, foi reconhecido por sentença proferida em 25.05.2023 nos autos em apenso a insolvente impugnou alegando não ser verosímil que a credora tenha executado trabalhos no restaurante
que correspondam à quantia avultada que reclama, que a execução da obra avançava consoante os pagamentos já realizados e nunca atingiram valores tão alto, e que resulta da contabilidade que a insolvente efetuou pagamentos à reclamante no montante de €188.815,90; e que, entretanto, foi reconhecido por sentença proferida em 25.05.2023 nos autos em apenso [58] Anota-se que parte do valor faturado não corresponde a realização de obras mas a item ‘despesas de estaleiro’ associado a suspensão de trabalhos e à ausência de receção da obra. [59] Bens que foram arrolados para a massa insolvente mas que não foram retirados do imóvel da recorrente Ph e só em abril de 2023 foram vendidos, depois de vicissitudes processuais atinentes com a fixação do valor de venda e com a atuação nos autos do AI inicialmente nomeado, que veio a fundamentar a sua destituição. [60] Que em audiência foi identificada como irmã de An. [61] “[O] preceito [agora artigo 636 do CPC] só se aplica quando o tribunal recorrido tenha efectivamente conhecido o fundamento em causa, julgando-o improcedente: a parte vencedora há-de ter nele decaído. Se, ao invés, tal fundamento, invocado pela parte em 1.ª instância, não tiver chegado a ser apreciado (designadamente por ser subsidiário e proceder o pedido principal, ou por proceder um dos fundamentos em alternativa), o tribunal de recurso não deixará de o conhecer, sem necessidade de requerimento de ampliação, se julgar improcedente o pedido tido por procedente pelo tribunal recorrido: esse fundamento constitui já objecto do recurso.” [62] Também disponível na página da dgsi. [63] Entre os CAE secundários que integram o objeto social da insolvente consta o nº 47250-R3 – descrito como comércio a retalho de bebidas, em estabelecimentos especializados, compreende o comércio a retalho de todo o tipo de bebidas (alcoólicas e não alcoólicas), sendo que a Venda de bebidas para consumo no local, característico dos estabelecimentos de bar, integra-se no CE 5630. [64]Coutinho de Abreu, Responsabilidade civil dos administradores, apud Ricardo Costa, Os administradores de facto das sociedades comerciais, p. 780. [65] Publicado no Diário da República n.º 115/2015, Série II de 2015.06.16. [66] Coutinho de Abreu e Elisabete Ramos, Responsabilidade Civil de Administradores e de Sócios Controladores”, in IDET-Miscelâneas, nº 3, Almedina, 2004, p. 43. [67] “Administração de Sociedades Anónimas e Responsabilidade dos Administradores, Almedina, p. 201 [68] “Administradores de Facto, Vinculação e Responsabilidade por Omissão”, Almedina, 2021, p. 23 [69] Vd. David Nunes dos Reis, ob. cit., p. 20 e 29. [70] As sociedades por quotas não admitem entradas de capital por contribuições de indústria (cfr. art.º 202º, nº 1 do CSC) mas admite o diferimento da realização da entrada nos termos dos art.ºs 26º e 203º do CSC, que dá origem a direito de crédito da sociedade sobre o sócio cujo pagamento pode ser exigido pelos credores logo que exigível ou se necessário para conservar ou satisfazer o seu crédito pela sociedade (art.º 30º CSC). Os sócios que não realizaram a entrada podem ainda ser responsabilizados perante a sociedade pelos danos causados com o não cumprimento da realização do capital social nos termos do art.º 71º nº 3 do CSC. [71] “A responsabilidade dos administradores na insolvência”, ROA, 2006, disponível em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados-roa/ano-2006/ano-66-vol-ii-set-2006/doutrina/manuel-a-carneiro-da-frada-a-responsabilidade-dos-administradores-na-insolvencia/ [72] “Responsabilidade Civil Societária dos Administradores de Facto”, in Temas Societários, IDET/Almedina, Coimbra, 2006, p. 29, nota 4. [73] Ob. cit. pág. 781.