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JULGADO DE PAZ
TRAMITAÇÃO DE ACÇÃO
CITAÇÃO DE PESSOA COLECTIVA
FORMALIDADES
ÓNUS DA PROVA
Sumário
1 – Nos processos tramitados pelos julgados de paz é subsidiariamente aplicável o regime da citação previsto no Código de Processo Civil, por força do artigo 63.º da Lei dos Julgados de Paz, designadamente, o regime de citação de pessoas coletivas, previsto no artigo 246.º, do Código de Processo Civil. 2 – As pessoas coletivas consideram-se citadas caso seja recusada a assinatura do AR, ou o recebimento da carta e o incidente de recusa seja lavrado pelo distribuidor postal. 3 – É ao citando que cabe alegar e demonstrar que, pese embora se mostre verificado o procedimento legal e do mesmo resultar a conformidade do ato de citação, esta não ocorreu efetivamente por circunstância a si alheia (artigo 188.º, n.º 1. 1, al, e) do Código de Processo Civil). 4 – Não cumpre esse ónus o citando que se limita a alegar que nunca recebeu citação do julgado de paz e que nunca foi chamado ao processo para estar presente.
Texto Integral
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
RELATÓRIO
1 A apelada deduziu oposição à execução que o apelante moveu contra si invocando a nulidade da sua citação ocorrida no processo de onde resultou o título que serve de base à execução a que esta oposição se encontra apensa, processo que correu termos no Julgados de Paz de Lisboa. suscitou ainda a incompetência dos julgados de paz e impugnou os factos que foram alegados no processo que correu termos no julgado de paz, questões cujo conhecimento ficou prejudicado pela decisão que o tribunal de primeira instância veio a proferir, objeto deste recurso.
2 Alegou a ali embargante/ora apelada que nunca foi citada para o processo junto dos julgados de paz. Disse, concretamente, que nunca recebeu citação do Julgado de Paz de Lisboa e que nunca foi chamada ao processo para estar presente, exercer o contraditório e/ou apresentar provas, nem alguma vez sequer percebeu que tal seria necessário, ficando, por conseguinte, cerceada no seu direito de defesa.
3 Juntou certidão do processo dos julgados de paz.
4 A ali embargada/ora apelante contestou a suscitada nulidade de citação, invocando que a citação foi realizada nos termos legais, pelo que é válida.
5 Findos os articulados, o tribunal de primeira instância proferiu a decisão objeto de recurso.
6 A apelante, inconformada com a decisão do tribunal de primeira instância, apresentou recurso com alegações que concluiu, em suma, da seguinte forma
CONCLUSÕES DO APELANTE
A – A sentença recorrida apresenta contradições entre o despacho a que alude o artigo 595.º do C.P.C e a elaboração do relatório e respetiva decisão quando, por um lado, refere “inexistem quaisquer nulidades secundárias arguidas, exceções ou questões prévias que obstem à apreciação do mérito da causa e de que cumpra conhecer, à exceção da prescrição, única questão em apreciação nestes autos ”, e, por outro, além de não estar em causa uma qualquer exceção de prescrição, o tribunal formulou decisão sobre a nulidade da citação efetuada na ação que precede os autos executivos, o que não se compreende,
B - O tribunal a quo errou ao defender que não lhe cabia verificar, em sede de Embargos de Execução, se em algum momento, se deve considerar a ré regularmente citada, por ter sido recusada a carta de citação, quer pela empresa Executada, quer pelo seu legal representante.
C - Para o que aqui releva, ao contrário do que entendeu o tribunal a quo, a questão sub judice não se coloca em saber como efetivar nesses processos - que correm termos nos Julgados de Paz - a representação dos ausentes, mas sim apurar se, face às diligências tomadas pelo Julgado de Paz, tendentes à citação da ali Requerida, a sociedade Recorrida se considerou, ou não, citada, para aqueles autos.
D – Designadamente, deveria o tribunal a quo, ter considerado verificada a citação da ali requerida, ainda que as cartas registadas com aviso de receção que foram remetidas à ré tendo em vista a sua citação tenham sido por esta recusadas
E – Isto porque, as cartas de citação foram remetidas para a morada da apelada que constava nas bases públicas.
F – A frustração da citação por recusa em receber a carta de citação por parte da apelada, à do disposto no artigo 246.º, n.ºs 3 e 4 do C.P.C., deve valer como ato de citação, por ser norma aplicável subsidiariamente aos Julgados de Paz, no que concerne à citação das pessoas coletivas, por força do artigo 63.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho.
G – A circunstância de o tribunal de primeira instância não ter apreciado as consequências da recusa em receber a carta e os seus efeitos na citação constitui uma verdadeira omissão de pronúncia, além de constituir erro de julgamento.
H - É evidente, face a todas as diligências efetuadas pelo Julgado de Paz de Lisboa, que o mesmo obedeceu aos trâmites legais previstos no artigo 46.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, bem como ao disposto no artigo 246.º, n.º 4 do C.P.C.
I - Quer a Recorrida, quer o seu legal representante, não tomaram conhecimento da citação por causa que lhes foi inteiramente imputável, e, como tal, não podiam vir agora, em sede de Embargos de Executado, invocar possíveis desconformidades em seu proveito,
J - Mais: como se sabe, tanto a Executada/Recorrida, como o seu legal representante, foram citados na morada da sede da ré e domicílio do seu legal representante, para os termos do processo de execução.
K – A decisão do tribunal de primeira instância constitui uma violação das normas que o próprio Mm.º Juiz a quo invocou – artigo 10.º, n.º e 729.º, al. a) do C.P.C. - bem como a violação dos artigo 188.º, n.º 1, al. e) e 246.º, n.º 3 do C.P.C., e artigo 63.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, aplicável aos Julgados de Paz.
7 A apelada não respondeu ao recurso.
OBJETO DO RECURSO
8 O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC). O tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC).
9 À luz do exposto, o objeto deste recurso consubstancia-se em analisar e decidir o seguinte:
. Contradição entre o despacho a que alude o artigo 595.º do C.P.C e a elaboração do relatório e respetiva decisão.
. Omissão de pronuncia do tribunal de primeira instância sobre a regularidade da citação da ora apelada.
. Erro de direito sobre a regularidade da citação da ora apelada.
10 Para decidir, o tribunal considera os fundamentos constantes do relatório, a que acrescem os seguintes
FUNDAMENTOS FÁCTICO-PROCESSUAIS
FACTOS JULGADOS PROVADOS PELO TRIBUNAL A QUO
1. A execução tem como título executivo uma sentença proferida pelos julgados de paz.
2. Nesse processo, as cartas registadas com aviso de receção que foram remetidas à ré, aqui executada, tendo em vista a sua citação, pelas razões que constam na certidão enviada pelos julgados de paz, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais, nunca foram por aquela pessoalmente recebidas.
3. No âmbito desses autos, e por se entender não se poder considerar a ré citada, decidiu-se, para esse efeito, remeter a citação por carta registada com aviso de receção, dirigida ao seu legal representante.
4. A qual, pelas razões que constam na referida certidão, também não foi por aquele recebida.
5. Não admitindo a lei dos julgados de paz citação edital, e por não existir Magistrado do Ministério Público junto dos julgados de paz, decidiu-se solicitar à Ordem dos Advogados a nomeação de patrono oficioso para defender os interesses da ré, aqui embargante.
6. Nomeado patrono oficioso, foi o mesmo citado em representação da aqui embargante.
OUTROS FACTOS
11 É relevante considerar ainda, ao abrigo do disposto no artigo 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que resulta dos autos, designadamente do teor da certidão do processo dos julgados de paz junta pela apelada nos autos, o seguinte:
7. Por carta registada datada de 21/9/2020 foi remetida, dirigida à apelada, para a Av.ª S…, carta de citação, registada, no âmbito do processo pendente no Julgado de Paz de Lisboa aludido no ponto 1 dos factos provados. A carta registada foi devolvida com a menção “não reclamada”.
8. Por carta registada datada de 25/9/2020 foi remetida, dirigida à apelada, para a Av.ª S…, nova carta de citação, registada. Esta segunda carta foi devolvida com a menção “recusada”.
9. Por carta registada datada de 11/1/2022 foi remetida, dirigida a E…, para a Av.ª S…, carta de citação, na qualidade de representante legal da apelada. Esta carta foi devolvida com a menção “recusada”.
9. Na data de envio das mencionadas cartas, a sede da apelada inscrita no Ficheiro Central de pessoas coletivas do RNPC era na Av.ª S... e era gerente único da apelada, E...
10. Em 21/2/2022, foi proferido o seguinte despacho pelo Julgado de Paz de Lisboa:
“uma vez frustradas as diligências de citação postal da demandada EFG…, inclusive na pessoa do seu representante legal e desconhecendo-se o seu atual paradeiro (…). (Deve) ser designado defensor oficioso à referida demandada. (…) Determino se oficie à Delegação da ordem dos Advogados para com urgência proceder à respetiva nomeação”.
11. Em 2/3/2022, na sequência de resposta do CDOA, a juiz de paz proferiu o despacho: “cite-se o defensor oficioso”.
CONHECIMENTO DO OBJETO DO RECURSO Enquadramento legal Artigo 46.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho (Lei de Organização, Competência e Funcionamento dos Julgados de Paz)
1 - As citações e notificações podem ser efetuadas por via postal, podendo, em alternativa, ser feitas pessoalmente, pelo funcionário.
2 - Não se admite a citação edital.
3 - As notificações podem ser efetuadas pessoalmente, por telefone, telecópia ou via postal e podem ser dirigidas para o domicílio ou, se for do conhecimento da secretaria, para o local de trabalho do demandado.
4 - Não há lugar à expedição de cartas rogatórias e precatórias. Artigo 63.º, da Lei 78/2001, de 13 de julho
É subsidiariamente aplicável, no que não seja incompatível com a presente lei e no respeito pelos princípios gerais do processo nos julgados de paz, o disposto no Código de Processo Civil, com exceção das normas respeitantes ao compromisso arbitral, bem como à reconvenção, à réplica e aos articulados supervenientes. Artigo 188.º, n.º 1, do Código de Processo Civil
1 - Há falta de citação:
a) Quando o ato tenha sido completamente omitido;
b) Quando tenha havido erro de identidade do citado;
c) Quando se tenha empregado indevidamente a citação edital;
d) Quando se mostre que foi efetuada depois do falecimento do citando ou da extinção deste, tratando-se de pessoa coletiva ou sociedade;
e) Quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável. Artigo 191.º, n.º 1, do Código de Processo Civil
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 188.º, é nula a citação quando não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades prescritas na lei. Artigo 246.º, do Código de Processo Civil
1 - Em tudo o que não estiver especialmente regulado na presente subsecção, à citação de pessoas coletivas aplica-se o disposto nas subsecções anteriores, com as necessárias adaptações.
2 - A carta referida no n.º 1 do artigo 228.º é endereçada para a sede da citanda inscrita no ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas.
3 - Se for recusada a assinatura do aviso de receção ou o recebimento da carta por representante legal ou funcionário da citanda, o distribuidor postal lavra nota do incidente antes de a devolver e a citação considera-se efetuada face à certificação da ocorrência.
4 - Nos restantes casos de devolução do expediente, é repetida a citação, enviando-se nova carta registada com aviso de receção à citanda e advertindo-a da cominação constante do n.º 2 do artigo 230.º, observando-se o disposto no n.º 5 do artigo 229.º.
5 - O disposto nos n.ºs 3 e 4 não se aplica às citandas cuja inscrição no ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas não seja obrigatória.
6 - Quando a citação for efetuada por via eletrónica, nos termos do n.º 5 do artigo 219.º, não é aplicável a dilação a que se refere o artigo anterior.
Artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil
2 - O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Contradição entre o despacho a que alude o artigo 595.º do C.P.C e a elaboração do relatório e respetiva decisão.
12 Considera a apelante verificar-se contradição entre o despacho a que alude o artigo 595.º e o relatório e a decisão.
13 A leitura do relatório e da decisão proferida facilmente evidenciam que a alusão à prescrição constante do despacho a que alude o artigo 595.º, do Código de Processo Civil se tratou de um mero lapso material. Não se divisa na decisão qualquer contradição. O que se vê é que ocorreu uma mera alusão à questão da prescrição, como uma questão pendente de decisão.
14 Ora, considerando que a questão da prescrição nunca foi invocada por qualquer uma das partes, nem pelo tribunal em qualquer ponto da sua decisão, exceto na mera alusão já mencionada, estamos perante um manifesto erro material que, como tal, se depreende com toda a facilidade do texto da decisão.
15 Como dizia Alberto dos Reis, no Código de Processo Civil Anotado, Coimbra, Coimbra Editora, Volume V, 1984, p. 136., contra os erros materiais não cabe impugnação por via de recurso.
16 Cabia à parte, nos termos do artigo 614.º, n.º 2, do Código de Processo Civil requerer junto do tribunal a quo a retificação antes da subida do recurso que tenha sido interposto da mesma decisão.
17 Pelo exposto, não cabe no âmbito deste recurso a tomada de posição quanto a tal lapso.
18 Sem prejuízo, a questão é irrelevante atenta a presente decisão.
Omissão de pronúncia do tribunal de primeira instância
19 A apelada imputa ao tribunal de primeira instância a omissão de pronúncia relativamente à questão da conformidade legal da citação da ora apelada, em concreto, por não se ter pronunciado sobre a regularidade das cartas de citação enviadas à apelada no processo do julgado de paz.
20 Não enquadra jurídico-processualmente esta omissão, assumindo-se que pretenda reconduzi-la à nulidade a que alude o artigo 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil.
21 O artigo 615.º, nº 1, alínea d) do Código de Processo Civil, comina com a nulidade a sentença proferida sem que o juiz se pronuncie sobre questões que devesse apreciar, ou conheça questões de que não podia tomar conhecimento. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença, por se traduzir na violação de uma norma reguladora da forma do ato processual.
22 O artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil que deve balizar a verificação da nulidade, impõe ao juiz “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
23 De acordo com Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V Vol., p. 143, “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.”
24 A omissão de pronúncia cominada com nulidade circunscreve-se às questões/pretensões formuladas de que o tribunal tenha o dever de conhecer para a decisão da causa e de que não haja conhecido, realidade distinta da invocação de um facto ou invocação de um argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado, que não integram o conceito de questão a decidir.
25 Neste mesmo sentido ver entre outros, Acórdãos do STJ 12.1.2021, Graça Amaral, 7693/19, de 6.1.2020, Bernardo Domingos, de 7.7.94, Miranda Gusmão, BMJ nº 439, p. 526 e de 22.6.99, Ferreira Ramos, CJ 1999 – II, p. 161, da Relação de Lisboa de 10.2.2004, Ana Grácio, CJ 2004 – I, p. 105, de 4.10.2007, Fernanda Isabel Pereira, de 6.3.2012, Ana Resende, 6509/05, acessíveis em www.dgsi.pt/jtrl.
26 A nulidade também não se verifica quando a questão que deveria ter sido decidida, se mostra prejudicada pela decisão dada a outras questões. O conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição direta sobre ela, ou resultar da ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou a exclui. Não ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia quando nela não se conhece de questão cuja decisão se mostra prejudicada pela solução dada anteriormente a outra - cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8.3.2001, Ferreira Ramos e de 3.10.2002, Araújo de Barros, acessíveis em www.dgsi.pt.
27 A análise da decisão do tribunal de primeira instância permite verificar que não existe a apontada omissão.
28 Isto porque o tribunal se pronunciou sobre a questão em causa, afastando expressamente a necessidade de a abordar pelos motivos que indicou. Disse o tribunal de primeira instância:
“Ora, em primeiro lugar, e como parece defender o embargado, não cabe a este Tribunal verificar agora se em algum momento se deve considerar a ré regularmente citada, por ter sido recusada a carta de citação. Na verdade, os Julgados de Paz entenderam que a citação não se podia considerar válida e eficaz, e, por essa razão, tentaram efetuar a citação na pessoa do legal representante da ré, e, como a carta de citação veio devolvida, solicitaram a nomeação de patrono oficioso a quem fizeram a citação”.
29 O tribunal pronunciou-se no sentido de que não deveria tomar posição sobre aquela questão, pelos fundamentos que apresentou. O que é diferente de omitir a tomada de posição.
30 Ao tomar expressamente posição no sentido da desnecessidade de apreciar a questão, o tribunal de primeira instância formulou um juízo sobre a questão, o que afasta a nulidade por omissão de pronúncia e reconduz a questão a analisar ao erro de julgamento do tribunal, conforme a apelante também suscitou.
Erro de julgamento do tribunal de primeira instância relativamente à nulidade da citação
31 A apelante imputa à decisão do tribunal de primeira instância o erro de julgamento, por ali se ter ali decidido não ser relevante apreciar se o envio das cartas de citação no processo dos julgados de paz configurava um ato de citação em conformidade com os ditames legais.
32 Efetivamente, como já vimos a propósito da análise da omissão de pronúncia, o tribunal expressamente decidiu afastar esta análise, por entender que não caberia verificar nesta fase se se devia considerar a ré citada, atenta a posição do julgado de paz quanto à questão.
33 É desta decisão que discordamos, com todo o respeito.
34 A circunstância do julgado de paz ter decidido nomear um representante à apelada, invocando que se frustrou a citação postal, não torna verdadeira essa realidade. Isto é, não passa a verificar-se falta de citação da apelada, pelo facto de o julgado de paz ter entendido frustrada a citação e ter agido em conformidade com esse juízo. Nem sequer se trata de circunstância em que, por força dessa decisão, se tenha criado na esfera da parte qualquer expectativa que deva, por isso, ser acautelada.
35 Impõe-se, por isso, verificar se, à luz dos procedimentos adotados pelo julgado de paz a apelada se deve considerar devida e legalmente citada no processo que ali correu termos; ou se, pelo contrário, tal citação é nula (por omissão absoluta ou por estar viciada). Assim,
36 A nulidade (em sentido lato) da citação comporta duas modalidades: a falta de citação e a nulidade stricto sensu (artigos 188.º e 191º do Código de Processo Civil).
37 A mera nulidade ocorre quando na sua realização não tenham sido observadas as formalidades prescritas na lei; devendo ser arguida no prazo indicado para a contestação ou, sendo a citação edital ou não tendo sido indicado prazo para a defesa, na primeira intervenção do citado no processo (artigo 191.º, do Código de Processo Civil).
38 É considerada falta de citação (artigo 188.º, do Código de Processo Civil):
- a absoluta omissão do ato;
- erro de identidade do tenha havido erro de identidade do citado;
- o uso indevido da citação edital;
- citação efetuada após o falecimento do citando (ou extinção, sendo pessoa coletiva);
- a situação em que o destinatário não chegou a ter conhecimento do ato por motivo que não lhe é imputável.
39 A falta de citação constitui uma nulidade principal que pode ser invocada em qualquer estado do processo, é de conhecimento oficioso e só se sana com a intervenção do interessado nos autos (artigos 189.º, 196.º e 198º, nº 2 do Código de Processo Civil).
40 A falta ou nulidade da citação é ainda fundamento de embargos de executado, ainda que o título executivo seja uma sentença – artigo 729.º, al. d) 696.º, al. e), do Código de Processo Civil.
41 No regime das nulidades, a que decorre das vicissitudes relacionadas com a citação (quer em sentido mais amplo ou mais estrito) ocupa tratamento relevante na legislação, atenta a importância do ato de citação no procedimento civil.
42 O que facilmente se compreende, dado que a citação é o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele uma determinada ação e se chama ao processo para se defender, constituindo, pois, o meio essencial para a concretização do princípio do contraditório (artigos 3.º, n.º 1, 219.º, n.º 1 do Código de Processo Civil). Neste sentido, Código de Processo Civil anotado de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, 3ª ed. Almedina, p. 247.
43 Portanto, quando se analisa a nulidade de citação pretende-se, em primeira linha, garantir que os direitos de defesa do citando foram devidamente acautelados.
44 Não é despiciendo considerar, por isso, que a lei considere verificar-se falta de citação quando, ainda que a mesma tenha ocorrido em termos concordantes com as normas legais, seja demonstrado nos autos que o citando não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável (cf. artigo 188.º, n.º 1, al. d, do Código de Processo Civil). Como dizem os seus autores, no Código de Processo Civil anotado, obra citada. 250, esta norma do artigo 188.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil constitui o contraponto da opção legislativa de presumir, em certos casos, o conhecimento pelo citando da citação. Ou, acrescentamos, da opção do legislador de ficcionar a citação, em certos casos.
45 A fim de que possa reconhecer-se a omissão da citação nas situações em que a lei ficciona ou presume a sua verificação, e assim aplicar a o regime da nulidade que decorre do artigo 188.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil, há que demonstrar nos autos: (i) que o destinatário não chegou a tomar conhecimento da citação; (ii) por motivo que não lhe é imputável.
46 Este segundo requisito é fundamental, como também é reconhecido na obra citada pelos autores do Código de Processo Civil anotado, considerando que existem situações em que pode ser reconhecido que o citando não tomou conhecimento do ato de citação, mas, ainda assim, este não demonstrar que tal desconhecimento não lhe é imputável. O que afasta a nulidade por falta de citação.
47 Podemos, pois, concluir que a importância do regime da citação como meio de exercício do direito ao contraditório não é abalada pelas presunções ou ficções legais existentes, na medida em que o citando tem sempre a oportunidade de alegar e demonstrar que não tomou conhecimento do ato, por motivo a si não imputável. Como se diz na obra citada, p. 251, “o ónus de alegar e provar os pressupostos legais referidos recai sobre o réu”
48 Neste caso, notamos que a apelada, nos embargos de executado que originaram a decisão impugnada, limitou-se a invocar que não foi citada. Que nunca tomou conhecimento da existência do processo em causa. Nada mais alegou quanto a este concreto aspeto.
49 A análise sobre a citação é aplicável nos termos atrás enunciados, igualmente aos processos tramitados nos julgados de paz.
50 Os julgados de paz, que são reconhecidos pela Constituição da República Portuguesa (artigo 209.º, n.º 2) e pela Lei 62/2013, de 26/8 (artigo 29.º, n.º 4), criados pela Lei 329/2001, de 20/12 têm a sua competência, organização e funcionamento regulado pela Lei nº 78/2001, de 13/07, com as alterações decorrentes da Lei nº 54/2013, de 31/07.
51 O procedimento nos julgados de paz é simplificado, e particularmente dirigido a potenciar o acordo das partes.
52 Sobre a citação nos julgados de paz, determina o artigo 46.º, da Lei dos Julgados de Paz, que é feita por via postal, podendo ser também pessoalmente, pelo funcionário.
53 De resto, o regime normativo aplicável é omisso quanto à forma de efetuar a citação. Não é ali estabelecido qualquer regime de citação particular, com exceção da proibição da citação edital.
54 Tal omissão deve ser colmatada de acordo com o artigo 63.º da mesma Lei, pela aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, desde que com respeito pelos princípios gerais do processo nos julgados de paz, o disposto no Código de Processo Civil.
55 Como dizia o Conselheiro Cardona Ferreira, no livro Julgados de Paz, 4ª ed., p. 248, “o Código de Processo Civil é o diploma processual básico no ordenamento jurídico português e, como tal, é subsidiário no âmbito de vários direitos processuais. Também assim no que concerne à normatividade processual dos julgados de paz.”
56 Só não se convocará aquele regime subsidiário quando a solução chamada contenda com os princípios próprios do procedimento dos julgados de paz enunciados no artigo 2.º da LJP: princípios de simplicidade, adequação (em sentido semelhante ao artigo 265.º-A do Código de Processo Civil), informalidade (é privilegiada a substancia dos atos sobre a forma), oralidade (potenciando a maior proximidade entre as partes e entre estas e o decisor) e absoluta economia processual (com alcance idêntico ao do artigo 137.º, do Código de Processo Civil).
57 O regime de citação previsto no Código de Processo Civil deverá ser, pois, convocado subsidiariamente para os processos tramitados nos julgados de paz - com exceção das normas relativas à citação edital -, já que nada no mesmo atenta contra aqueles princípios.
58 Em concreto, tratando-se a citanda de pessoa coletiva, é aplicável o artigo 246.º do Código de Processo Civil que determina a adoção do seguinte procedimento:
a. A carta de citação deve ser enviada para a sede da citanda registada no RNPC;
b. Em caso de recusa de assinatura do AR ou de recusa do recebimento da carta de citação (seja pelo representante legal, seja por funcionário), o distribuidor lavra nota de tal incidente e a citação considera-se efetuada.
59 Neste caso, no processo tramitado no julgado de paz de Lisboa, foi remetida uma primeira carta para a morada da citanda, constante do RNPC, na pessoa da citanda, que veio devolvida com a indicação de não reclamada.
60 Foi enviada uma segunda carta de citação para a mesma morada, na pessoa da citanda, que foi devolvida com a indicação de recusada, conforme o distribuidor postal fez constar.
61 A recusa de recebimento da carta de citação, que se verificou aquando da expedição da segunda carta de citação, devidamente anotada em conformidade pelo distribuidor postal, determina, à luz do regime processual analisado, que se considere regular e legalmente efetuada a citação.
62 A verificação, atestada pelo distribuidor postal, da recusa de recebimento da carta é fundamento bastante para que, à luz do artigo 246.º, do Código de Processo Civil, se tenha por devidamente citada a ali demandada/ora apelada.
63 Como também já analisámos, a apelada poderia alegar e demonstrar nos autos que, não obstante o procedimento legal ter sido adotado e do mesmo resultar a conformidade do ato de citação, esta não ocorreu efetivamente por circunstância a si alheia (artigo 188.º, n.º 1. 1, al, e) do Código de Processo Civil).
64 Nada demonstrou nesse sentido. E, diga-se, nada alegou também.
65 Razão pela qual, à luz de tudo quanto ficou exposto, deve julgar-se verificada a citação da apelada no âmbito do processo que correu termos no julgado de paz, por força da aplicação do regime normativo do artigo 246.º do Código de Processo Civil (ex vi artigo 63.º da LJP).
66 O que determina a procedência do recurso e, consequentemente a revogação da decisão do tribunal de primeira instância.
DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o presente recurso, revogando a decisão impugnada e substituindo-a por decisão que julga não verificada a falta de citação da apelada para os termos do processo junto dos julgados de paz.
Custas pela apelada.
Após trânsito, baixem os autos ao tribunal de primeira instância.
Lisboa, 7 de novembro de 2023
Rute Lopes
Diogo Ravara
Ana Mónica Pavão