ARROLAMENTO
BENS COMUNS
DIVÓRCIO
Sumário

Em arrolamento de bens comuns, como preliminar de uma acção de divórcio, o depositário deve, em regra, ser o outro cônjuge.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
B.......... veio requerer contra seu marido C.......... providência cautelar de arrolamento de bens comuns do casal, como preliminar da acção de divórcio.

A providência foi deferida, tendo sido nomeado depositário o detentor dos bens.

Veio depois o Requerido requerer a substituição do depositário, no que respeita ao veículo automóvel da marca ........., modelo ...., matrícula ..-..-FR.
Esse requerimento foi indeferido com esta fundamentação:
(...) tal como decorre da lei o tribunal nomeou como fiel depositário o "possuidor ou detentor" do veículo no momento do arrolamento. O veículo encontrava-se no momento do arrolamento num stand de automóveis, desconhecendo o tribunal a que título.
Independentemente da questão de saber (que para o caso é inócua) a que título o veiculo se encontrava no stand de automóveis a verdade é que o detentor de tal bem era, na altura do arrolamento, o proprietário do stand em causa.
Cumpre notar, aliás, que já quando requereu o arrolamento (29-04-2004) a requerente indicou que o mesmo se encontrava num stand de automóveis, o que se veio a confirmar aquando da efectivação da diligência (07-06-2004), cerca de mês e meio depois.
No momento do arrolamento o detentor do veículo era efectivamente o proprietário do stand de automóveis onde, segundo tudo indica, o veículo se encontrava pelo menos há mês e meio, considerando ainda a oposição da requerente e o facto de se encontrarem arrolados nos autos vários outros veículos (de que o requerido pode dispor para se deslocar) (...).

Discordando desta decisão, dela interpôs recurso o Requerido, de agravo, tendo apresentado as seguintes

Conclusões:

1. Vem o presente recurso do douto despacho de fls. 253, sobre o qual recaiu a aclaração de fls., proferida a 18/08/2004, que indeferiu a alteração de fiel depositário do veículo de marca .........., matrícula ..-..-FR, requerida pelo ora Recorrente.
2. O veículo de marca .......... é o único, propriedade do Recorrente, embora com reserva de propriedade a favor da "D........., S.A.", como se pode verificar do documento ora junto com o n°. 1, que se encontra arrolado à ordem dos presentes autos.
3. Não pode colher o argumento de que "se encontram arrolados nos autos vários outros veículos (de que o requerido pode dispor para se deslocar)" constante do douto despacho de aclaração.
4. É falso que o veículo em causa se encontrasse no stand aludido para venda, ali se encontrando apenas a fim de fazer publicidade ao mesmo, dado que é compreensível e bastante vulgar, que veículos automóveis da marca .......... e semelhantes sejam "emprestadas" pelos seus proprietários a stands diversos, pela atenção e interesse que atraem sobre os estabelecimentos comerciais onde se encontrarem.
5. O alegado perigo de venda do veículo não está colocado em causa no presente momento, uma vez que o veículo já se encontra arrolado, e a tal não foi deduzida oposição, apenas estando em discussão o cargo de fiel depositário.
6. Não existe qualquer inconveniente para que se proceda a alteração do cargo de fiel depositário.
7. Não se vislumbra o alcance da afirmação da Requerente B.........., no requerimento que obteve a total concordância do Meritíssimo Juiz "a quo", de que a manutenção do cargo de fiel depositário na pessoa do proprietário do stand "se afigura mais adequado aos fins visados pela presente providência" uma vez que o arrolamento consiste na descrição, avaliação e depósito dos bens, não visando qualquer outro fim, sendo certo que o Recorrente foi nomeado fiel depositário da quase totalidade dos bens cujo arrolamento foi requerido pela Requerente B......... . 8. Nenhum dos motivos avançados pela Requerente e reproduzidos pelo Tribunal "a quo", colocam em causa uma providência de arrolamento que, sublinhe-se, já foi decretada.
9. O Recorrente é o proprietário do veículo em questão, sempre tendo tido a posse do mesmo, sendo certo que o proprietário do stand jamais praticou qualquer acto que pudesse conduzir à conclusão de que o mesmo detinha qualquer direito de propriedade ou outro direito real sobre o veículo, tanto mais que era o Recorrente, seu proprietário, quem exercia todo o domínio sobre o mesmo, como sempre ocorreu.
10. O proprietário do stand onde o veículo à data do arrolamento se encontrava, apenas foi nomeado fiel depositário em virtude das circunstâncias concretas daquele momento específico, ou seja, por ali se encontrar a titulo de mero empréstimo.
11. Ainda que o veículo se encontrasse no stand a fim de ser vendido, o que é absolutamente falso e apenas por questão de raciocínio se equaciona, tal não alterava, sem mais, a posse do veículo, já que o mesmo continuaria a ser propriedade do Recorrente e seria ele quem mantinha o domínio sobre o mesmo, decidindo, por exemplo, se ali o mantinha, e por quanto tempo.
12. Existe no presente momento manifesto inconveniente em que se mantenha o proprietário do stand nomeado como fiel depositário, já que por força das funções que lhe foram incumbidas, aquele não permite, naturalmente, que o Recorrente retire sequer o veículo das instalações onde o mesmo se encontra, o que viola frontalmente os direitos do Recorrente, uma vez que o arrolamento dos seus bens não o impede de os usar ou fruir.
13. Deveria o douto Tribunal ter ordenado se procedesse à substituição do fiel depositário nomeado do veículo de marca ........... pelo ora Recorrente, nos termos por este peticionados.
14. Ao não decidir desde modo, a douta decisão em crise violou, assim, o disposto nos arts. 424° e 426° do Código Processo Civil, 1251° do Código Civil.
Nestes termos, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a douta decisão recorrida e substituída por outra que contemple as conclusões acima aduzidas, tudo com as legais consequências.

A Requerente contra-alegou concluindo pelo não provimento do agravo.
A Sra. Juíza sustentou a sua decisão.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:
Trata-se tão só de decidir se deve ser deferida a substituição do depositário nomeado.

III.

Os factos a considerar são os que constam da primeira parte do relatório deste acórdão, maxime os que decorrem da fundamentação da douta decisão recorrida.

IV.

Em causa no recurso está o despacho que indeferiu a substituição do depositário nomeado, no que respeita ao arrolamento do citado veículo, da marca .......... .
No essencial, as razões invocadas para fundamentar esse indeferimento foram estas:
- o detentor do veículo era efectivamente o proprietário do stand de automóveis onde aquele se encontrava;
- a oposição da Requerente;
- terem sido arrolados outros veículos de que o Requerido pode dispor para se deslocar.

Dispõe o art. 426º do CPC (como todos os preceitos adiante citados sem outra menção):
1. Quando haja de proceder-se a inventário, é nomeada como depositária a pessoa a quem deva caber a função de cabeça-de-casal em relação aos bens arrolados.
2. Nos outros casos, o depositário é o próprio possuidor ou detentor dos bens, salvo se houver manifesto inconveniente em que lhe sejam entregues.
3. O auto de arrolamento serve de descrição no inventário a que haja de proceder-se.

Será também de considerar que o arrolamento aqui requerido constitui um dos casos especiais previstos no art. 427º, que é deste teor:
1. Como preliminar ou incidente da acção de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer o arrolamento de bens comuns, ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro.
2. ...
3. Não é aplicável aos arrolamentos previstos nos números anteriores o disposto no nº 1 do art. 421º.

O arrolamento é uma providência cautelar com objecto e fim bem definidos: por um lado, visa proteger um direito já constituído ou a ser judicialmente declarado; por outro, tem por finalidade a conservação dos bens, para evitar o seu extravio ou dissipação e consiste na sua descrição, avaliação e depósito (arts. 421º e 424 nº 1).
Mas o depositário é o próprio possuidor ou detentor.

Como afirmava Alberto dos Reis [CPC Anotado, Vol. II, 123], há aqui dois interesses em conflito: o do requerente, no sentido de se proceder à apreensão judicial dos bens; o do possuidor ou detentor, no sentido de se manter o statu quo.
Por isso, com o arrolamento, não se pode pretender prejudicar o gozo e utilização normal que os bens possibilitam; daí que o depositário seja sempre o seu possuidor ou detentor. Só em casos excepcionais, havendo manifesto inconveniente, é que os bens são retirados da disponibilidade do seu possuidor.

Pode assim afirmar-se que, em regra, no arrolamento, os bens continuam a prestar ao seu detentor o gozo e utilidade que os caracteriza.
Por outro lado, quem tem interesse em opor-se à providência é o possuidor ou detentor, uma vez que, com o arrolamento, deixará de possuir o bem arrolado em nome próprio, passando a detê-lo em nome alheio (tribunal) e com especiais deveres (cfr. art. 843º); ou seja, o depositário é, em regra, o possuidor ou detentor e, em princípio, o requerido da providência. É este o sentido que parece implícito nos termos utilizados no preceito – o depositário é o próprio possuidor ou detentor.
É esta a interpretação de Lebre de Freitas [CPC Anotado, Vol. 2º, 170], ao afirmar que nos outros casos (nº 2 do art. 426º) é depositário o possuidor ou detentor dos bens requerido no procedimento cautelar, a menos que tal seja manifestamente inconveniente.

No arrolamento especial em análise só podem ser arrolados os bens comuns e os bens próprios que estejam sob a administração do outro cônjuge [Cfr. Abel Delgado, O Divórcio, 2ª ed., 238].
Como afirma Rodrigues Bastos [Notas ao CPC, Vol. II, 3ª ed., 206], o depositário deve, em regra, ser o outro cônjuge, não por lhe vir a pertencer o cabeçalato, visto que a providência é preliminar ou incidente da acção declarativa, e não do eventual inventário subsequente, mas sim em atenção à sua qualidade de administrador dos bens arrolados.
No mesmo sentido, Abrantes Geraldes [Temas da Reforma do Processo Civil, IV Vol., 271; cfr. também o Ac. da Rel. de Coimbra de 28.3.2000, aí citado e o Ac. da mesma Relação de 21.6.88, BMJ 378-797], ao concluir que, nestas situações, as funções de depositário devem ser exercidas, em regra, pelo cônjuge que estiver na posse dos bens.

Portanto, pressuposto da providência requerida nestes autos é o de que os bens, comuns, estão sob a administração do Requerido; designadamente o veículo em questão.
No fundo, por se reconhecer que é ele quem possui e detém esses bens; por isso foi ele a pessoa demandada.
Logo, em princípio, deveria ser nomeado depositário do veículo .......... o Requerido.
Apesar de ter colocado esse veículo num stand, o Requerido não deixou de ser seu dono e possuidor, quer tenha visado a venda do mesmo ou o empréstimo por simples cortesia. Em nenhuma dessas hipotéticas situações é posto em causa o direito do Requerido: continuava a ser ele quem poderia dispor do veículo, no sentido da sua utilização normal, que é o que aqui releva.
Se, por exemplo, o veículo tivesse sido colocado numa oficina para reparação, certamente que não se iria pretender que o depositário fosse o dono da oficina. Não seria “possuidor ou detentor” para este efeito. E que justificação se encontraria para a privação da normal utilização do veículo?

A ressalva apontada à nomeação do Requerido decorre de poder haver manifesto inconveniente em tal nomeação.
A decisão recorrida nada nos diz sobre esta questão.
No entanto, pelo teor das alegações de recurso infere-se que a mesma já foi suscitada na resposta da Requerente ao pedido de substituição do depositário.
Como parece evidente, estes autos de recurso não fornecem elementos que permitam uma tomada de posição segura a esse respeito.
O que pode neste momento afirmar-se é que as razões invocadas na douta decisão não determinam, por si, que o Requerido seja preterido na nomeação: a nomeação do requerido como depositário só deve ser excluída se houver manifesto inconveniente em que o veículo lhe seja entregue.
Deve, pois, anular-se a decisão para que, com todos os elementos do processo – e de outros que eventualmente se repute necessário averiguar – se pondere se há inconveniente, manifesto, na entrega do veículo ao Requerido, decidindo-se depois em conformidade.

V.

Em face do exposto, decide-se anular o despacho recorrido para que, considerando o entendimento acima referido, se pondere se existe inconveniente manifesto na entrega do veículo ao Requerido, decidindo-se depois em conformidade o pedido de substituição do depositário.
Custas segundo o critério a definir a final.

Porto, 25 de Novembro de 2004
Fernando Manuel Pinto de Almeida
João Carlos da Silva Vaz
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo