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ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DA ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
FACTOS CONSTITUTIVOS
ÓNUS DA PROVA
USUCAPIÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário
1. Da circunstância de se entender que não foi feita prova de um facto positivo – v.g., que traduz a existência de conluio – não se pode, num salto lógico, retirar que foi feita prova do facto do facto negativo contrário – v.g., negação da existência de conluio –, pois esta conclusão só poderia assentar na prova concludente deste facto contrário. 2. O autor pode servir-se do mesmo processo para instaurar uma ação de impugnação de justificação notarial e uma ação de reivindicação. 3. Na ação de impugnação de justificação notarial, tendo sido o réu quem na escritura pública respetiva afirmou os factos que levam à aquisição, por usucapião, do direito de propriedade, incumbe-lhe a prova de tais factos constitutivos do seu direito. 4. Cabe ao autor fazer a prova dos factos constitutivos do direito real de que se arroga na ação de reivindicação instaurada, no mesmo processo, com a ação de impugnação de justificação notarial. 5. É interessado na impugnação da justificação notarial o titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica como prática, seja afetada pelos efeitos jurídicos que decorrem do facto justificado. 6. Não é indiferente ao arrendatário (nem a quem se arroga essa qualidade) a justificação notarial por meio da qual um terceiro pretende o reconhecimento de um direito que o coloca como contraparte na relação locatícia, especialmente quando esse direito é invocado, pelo justificante ou por um subadquirente, na sustentação de uma pretensão de entrega formulada contra o arrendatário (ainda que sob a forma de uma notificação judicial avulsa). 7. A litigância de má-fé é do conhecimento oficioso do tribunal, quer nas instâncias, quer no Supremo Tribunal de Justiça, podendo este conhecimento incidir sobre uma conduta desenvolvida quando o processo estava pendente perante o tribunal a quo, ainda que este não tenha emitido pronúncia sobre a questão.
Texto Integral
Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
A. Relatório A.A. Identificação das partes e indicação do objeto do litígio
OT instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra LS e contra M, L.da, pedindo a procedência da ação “e em consequência: a) Ser declarada ineficaz por impugnação a escritura pública de Justificação Notarial realizada pelo 1.º réu em 30 de outubro de 2020 (…); b) Ser imediatamente comunicado ao Ex.mo Sr. Notário Dr. JC a pendência da presente ação, para os efeitos previstos no art.º 101.º do Código do Notariado; c) Ser ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor do primeiro réu e da segunda ré; d) Ser o autor declarado dono do prédio sito à rua da BN n.º 56-58, da freguesia de São Pedro do Concelho de Ponta Delgada, por o haver adquirido por usucapião; e) Serem condenados os réus a reconhecerem o direito de propriedade do autor sobre o mesmo prédio, abstendo-se de qualquer ato que contenda com tal direito”.
Para tanto, afirmou serem falsos os factos declarados na escritura referida na al. a), pelo que respeita a um dos prédios por ela abrangidos. Alegou, ainda, ter adquirido por usucapião tal prédio.
Citados os réus, ofereceram estes contestações separadas, defendendo-se por exceção e por impugnação.
O réu LS afirmou, como verdadeiros, os factos que alegou na escritura de justificação notarial e, em reconvenção, pediu a condenação do autor:
(…) a reconhecer a aquisição do direito de propriedade por usucapião pelo 1.º réu do imóvel identificado (…), bem como a plena validade e eficácia da escritura de justificação notarial datada de 30 de outubro de 2020, (…) e da posterior venda do imóvel à 2.ª ré, com todas as consequências legais.
A ré M pediu a condenação do autor como litigante de má-fé e, em reconvenção:
(…) a reconhecer a 2.ª ré como legítima proprietária e possuidora do imóvel em discussão nos autos, abstendo-se da prática de qualquer ato incompatível com tal direito, condenar-se a restituir imediatamente à 2.ª ré o imóvel devoluto de pessoas e bens, ordenando-se ainda e concretamente a destruição do muro por aquele erigido em 2021, a expensas suas (…).
Na fase intermédia da ação, o tribunal a quo julgou admissíveis os pedidos reconvencionais, fixou à causa o valor de €102.058,25, fixou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.
Após a realização da audiência final, o tribunal a quo proferiu sentença, concluindo: “julgo totalmente improcedente a ação e consequentemente”:
– absolvo os réus LS e M, L.da, de todos os pedidos contra ela formulados pelo autor OT;
– não conhecer, por tautologia, as reconvenções formuladas pelos réus LS e M, L.da, quanto a verem reafirmado um direito que não foi posto em causa;
– absolvo o autor OT do pedido de demolição do muro formulado contra si pela ré M, L.da, e bem assim da sua condenação em indenização em razão da má-fé processual;
– condeno o autor OT, como litigante de má-fé, na multa de 4 Uc´s.
Inconformado, o autor apelou desta decisão, concluindo, no essencial: a) O presente recurso tem por objeto a, aliás douta, sentença proferida nos presentes autos, na parte em que absolve os réus dos pedidos e condena o autor, ora recorrente, como litigante de má-fé. b) O presente recurso versa matéria de facto e de direito. c) O recorrente considera que a sentença recorrida, julgou erradamente as seguintes questões: i) Que a ré M não tenha sido parte na “marosca” (citação da sentença) orquestrada pelo réu LS, para usucapir o prédio objeto dos autos; ii) Que o autor (…) tenha litigado de má-fé; iii) A inconstitucionalidade dos art.ºs 89.º e 101.º do Código do Registo Notariado, na interpretação de que não tem legitimidade substantiva para arguir a nulidade da usucapião, quem não tiver direito compatível o direito real impugnado. d) Desde logo, o tribunal julgou incorretamente o ponto 27 da matéria de facto dada como assente – adiante ponto 28 –, na parte final do referido ponto (…). l) Por outro lado, não pode o autor ser condenado em litigante de má-fé nos termos do disposto nas als. a) e b) do n.º 2 do art.º 542.º do Cód. Proc. Civil. m) Ainda que não o autor não tenha provado os elementos constitutivos do direito à usucapião, desde logo o elemento volitivo – o animus possidendi, o mesmo não equivale a dizer que o mesmo litigou de má-fé, em especial de forma dolosa. n) O autor logrou provar que é arrendatário há mais de 5 décadas. (…) q) Não se podendo ainda olvidar que, face aos factos e objeto do litígio em presença nesta ação, é, no mínimo, injusto, que quem vem denunciar a aquisição fraudulenta, por via de uma justificação assente em pressupostos falsos (conforme resulta da sentença, dos factos não provados e respetiva apreciação crítica) é uma inversão total da justiça. r) Ou seja, o autor não logra provar o animuspossidendi, e acaba condenado em litigante de má-fé. Por seu turno o primeiro réu – que “mente a bandeiras despregadas” (sic), não só é absolvido dos pedidos, como vê legitimada as suas alegações falsas, que aliás resultam em ilícito criminal. (…) s) Estamos pois perante uma inadmissível subversão da justiça, assim como o uso indevido e sancionável do instituto da litigância de má-fé. t) Por último refira-se que ainda que fosse reconhecido, pelo menos quanto ao primeiro réu (…) que as suas aquisições foram ilícitas (…), os mesmos foram absolvidos dos pedidos porque o autor não gozava de um direito “incompatível” com o que pretendiam abalar. u) Ora, salvo o devido respeito, em primeiro lugar parece-nos que tal não resulta, ao contrário do que sustenta a decisão recorrida, do teor dos artigos 89.º n.º 1 e 101.º do Código do Notariado (…). cc) Mas caso assim não se entenda, a interpretação de que tal é impeditivo do autor sindicar a falsa aquisição do imóvel que toma de arrendamento, ainda mais quando não há proprietário conhecido, viola o princípio da igualdade das partes previsto nos artigos 13.º e 20.º da CRP, este último na vertente da tutela jurisdicional efetiva, concatenado com o art.º 65.º da Lei Fundamental. dd) Matéria de facto violada: ponto 27 in fine da matéria dada como assente – adiante ponto 28 – e por contrapondo acrescentar que a segunda ré – M – sabia e participou na aquisição falsa pelo primeiro réu LS. ee) Normas jurídicas violadas: art.º 542.º, n.º 2, als. a) e b), do Cód. Proc. Civil e inconstitucionalidade material dos art.ºs 89.º, n.º 1, e 101.º do Código do Notariado, por violação dos princípios da igualdade de armas e tutela jurisdicional efetiva ínsitos nos art.ºs 13.º e 20.º da CRP, concatenado com o artigo 65.º da Lei Fundamental.
Nestes termos e nos melhores de Direito que Vossas Excelências – Venerandos Desembargadores – mui doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado e por via dele: a) Ser alterada a parte final do ponto 27 de matéria de facto dada como provada – adiante ponto 28 –, dando-se como assente que a segunda ré tinha conhecimento do negócio ilícito; b) Ser revogada a sentença recorrida na parte em que condena o autor em litigante de má-fé; c) Desaplicar os artigos 89.º, n.º 1, e 101.º do Código do Notariado, na interpretação dada pela sentença recorrida, por violação dos princípios da igualdade de armas e tutela jurisdicional efetiva (art.ºs 13.º e 20.º da CRP) concatenados com o art.º 65.º.
Os apelados contra-alegaram, pugnando pela manutenção de decisão do tribunal a quo recorrida. O réu apelado LS acompanhou o entendimento segundo o qual o autor carece de legitimidade substantiva para impugnar a justificação notarial. A ré apelada M, acompanhando o mesmo entendimento, acrescentou que é “imprestável a hipotética alteração do ponto 27 da matéria de facto para a procedência da sua ação”, para além de suscitar a questão da inadmissibilidade da apelação, por suposta falta de interesse do apelante.
Já neste tribunal, foi oferecido o contraditório ao apelante, nos termos previstos no art.º 655.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, sendo, ainda, convidado a completar ou esclarecer as conclusões da alegação, de modo a poder ser claramente compreendido o sentido da decisão que pretende ver proferida pelo tribunal ad quem, bem como clarificar a delimitação objetiva da apelação (arts. 635.º, n.º 2, do 639.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil). Foi também oferecida aos réus a possibilidade de se pronunciarem sobre a apreciação das suas condutas nos quadros do instituto jurídico da má-fé processual.
Em resposta ao convite ao aperfeiçoamento das conclusões, o apelante acrescentou dois enunciados à motivação e três enunciados às conclusões, bem como completou o leque das “normas jurídicas violadas” e a derradeira conclusão apresentada, esclarecendo o sentido da alteração da decisão impugnada pretendido.
São as seguintes as novidades:
76. Os tribunais têm o dever de não aplicar as normas contrárias à Constituição, nos termos do artigo 204.º da CRP.
77. A desaplicação de tais normas, faz cair a ausência do pressuposto processual que impediu a procedência de ação, estando reunidas as condições para sua procedência.
(…) dd) Os tribunais não podem aplicar normas contrárias à Constituição e aos princípios nela consignados, conforme o art.º 204º da CRP. ee) A não aplicação destas normas faz cair a falta de pressuposto processual que determinou a improcedência da ação. ff) Pelo que, perante a desaplicação destas normas, por inconstitucionalidade material, estão verificados os pressupostos para procedência da ação. (…) hh) Normas jurídicas violadas: (…) e art.º 204º da CRP.
[D]everá o presente recurso ser julgado procedente, por provado e por via dele: // c) Desaplicar os artigos (…) e, em consequência ser julgada procedente a ação.
Exercido o direito de contraditório, nesta instância, foi decidido que não existem razões para não admitir o recurso, em toda a sua extensão. A.B. Questões que ao tribunal cumpre solucionar
A única questão de facto a decidir é o acerto do julgamento da “parte final” do “ponto 27 da matéria de facto dada como assente” – adiante ponto 28 –, pretendendo o apelante que seja dado “como assente que a segunda ré tinha conhecimento do negócio ilícito”.
As questões de direito a tratar serão enunciadas no início do capítulo dedicado à análise dos factos e à aplicação da lei.
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B. Fundamentação B.A. Factos provados[1] 1. Da justificação notarial
1 – Por escritura pública de justificação notarial, lavrada em 30 de outubro de 2020, a fls. 114 a 117 do livro de escrituras diversas n.º 751-A do Cartório Notarial de Ponta Delgada (…), o réu LS declarou, para o que aqui importa:
Que é dono dos seguintes imóveis:
UM
URBANO: constituído por casa baixa com quintal, destinada a habitação, com a superfície coberta de sessenta e um vírgula cinquenta metros quadrados e descoberta com a área de vinte e oito vírgula cinquenta metros quadrados, sito na Rua do F, n.º 17, na freguesia de São Sebastião do Concelho de Ponta Delgada.
Que, o referido prédio encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o número 2104 da freguesia de Ponta Delgada (São Sebastião), com registo de aquisição a favor de GP, no estado de solteiro, maior, feito através da inscrição de vinte e oito de outubro de mil novecentos e sessenta e cinco a que corresponde a apresentação número quatro e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Matriz sob o artigo 654, com o valor patrimonial e atribuído de valor de vinte e oito mil e sessenta e quatro euros e setenta e cinco cêntimos; e
DOIS
URBANO: constituído por casa alta com quintal, destinada a habitação, com a superfície coberta de noventa e um vírgula oitenta metros quadrados e descoberta com a área de cento e oitenta e oito vírgula vinte metros quadrados, sito na Rua da BN, n.º 58, na freguesia de Ponta Delgada (São Pedro) do concelho de Ponta Delgada.
Que, o referido prédio encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o número 2891 da dita freguesia, com registo de aquisição a favor de GP, já no estado de casado com MECP também conhecida por MEC, sob o regime da separação de bens, feito através da inscrição de três de outubro de mil novecentos e setenta e quatro a que corresponde a apresentação número onze e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de São Pedro sob o artigo 728, com o valor patrimonial e atribuído de valor de cento e dois mil e cinquenta e oito euros e vinte e cinco cêntimos”.
“Que (...) ainda no estado de solteiro, maior, tomou posse dos referidos prédios, em quatro de abril de mil novecentos e setenta e sete, por compra meramente verbal, feita não ao titular inscrito GP, que já tinha falecido, mas sim à sua mulher MEC, herdeira testamentária do usufruto, e ao seu irmão AFZP, herdeiro testamentário e legítimo da nua propriedade (...)”.
“Que o prédio atrás identificado sob o número 'DOIS' foi adquirido pelo preço global de cinquenta mil escudos, (atualmente duzentos e quarenta e nove euros e quarenta cêntimos), aos ditos AFZP e MEC”.
“Que (...) não celebraram a escritura naquela data porque os vendedores achavam que não tinham a documentação legalizada de forma a realizar a escritura”.
“Que, entretanto, foi deixando passar o tempo e como a partir daquela data tomou posse dos referidos prédios, não mais se preocupou em realizar a escritura, sendo certo que desde aquela data nunca interrompeu a posse que vinha exercendo e que se manteve até aos dias de hoje”.
“Que passado algum tempo cada um dos vendedores, ausentou-se para parte incerta, nos Estados Unidos da América, sem nunca mais terem dado notícias, desconhecendo qual o seu atual paradeiro, ou mesmo se já terão falecido e nesse caso quais os seus herdeiros se os houver”.
“Que, não obstante esse facto, que continuou a exercer a posse da mesma forma pacífica, pública e de boa-fé, por ignorar lesar direito alheio, com o conhecimento de toda a gente das referidas freguesias de São Sebastião e São Pedro e sem oposição ou qualquer contestação de quem quer que seja, tendo nesses prédios vindo a realizar obras de limpeza e conservação, pelo que, esta posse em função do tempo decorrido até agora e da forma como tem sido exercida, já conduziu à aquisição do direito de propriedade por usucapião, facto que, agora pretende formalizar, estabelecendo assim um novo trato sucessivo”.
2 – Na escritura referida no ponto 1 – factos provados –, declararam MRDR, MFSR e PMCT, como testemunhas, que, por reporte às declarações do réu LS, referiram: “Que, por serem inteiramente verdadeiras, confirmam as declarações prestadas sobre o identificado prédio”.
3 – Em 3 de novembro de 2020, o extrato da escritura referida no ponto 1 – factos provados – foi publicada no jornal Diário dos Açores, publicado em Ponta Delgada.
4 – Em 14 de janeiro de 2021, pela inscrição AP. 2289 de 2021/01/14 – “Aquisição”, concernente à descrição objeto da ficha n.º 2891/20190327, freguesia de Ponta Delgada (São Sebastião), da Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada, foi inscrita a aquisição da propriedade a favor do réu LS, por usucapião. 2. Posição jurídica do autor
5 – O prédio identificado em “DOIS” da escritura referida no ponto 1 – factos provados –, apesar de não estar constituído em propriedade horizontal, tem, a partir da rua, duas portas, com os números de polícia 56 e 58, portas essas que correspondem a duas frações autónomas de facto.
6 – O autor, na fração do prédio a que se acede pelo n.º 56 de polícia, reside há mais de 50 anos, pois essa fração foi tomada de arrendamento pela sua mãe, MCP, a GP, ainda que esta ali nunca tenha habitado, pois, logo que contratou o arrendamento, entregou o locado ao autor e sua esposa, MLRT, para dele fazerem a sua residência permanente com a sua família.
7 – As correspondentes rendas mensais eram pagas por MCP a GP, até ao falecimento deste em 1976, e após essa data a MVQ, procurador do cônjuge sobrevivo daquele MECP, também conhecida por MEC.
8 – MECP, também conhecida por MEC, deu a fração de facto do prédio a que se acedia pelo n.º 58 de polícia, sucessivamente, a várias pessoas, sendo os últimos arrendatários desse espaço o senhor AC e a sua esposa.
9 – A partir de agosto de 2003, MVQ, na sequência da morte de MECP, ocorrida em 16 de julho de 2002, recusou-se a receber as rendas dos inquilinos do prédio aqui em causa.
10 – Nessa sequência, entre 8 de agosto de 2003 e outubro de 2003, o autor passou a efetuar o depósito das rendas na Caixa Geral de Depósitos, à ordem dos herdeiros desconhecidos de GP, sendo certo que o último movimento nessa conta foi em 21 de agosto de 2006, com o levantamento do valor ali existente.
11 – Desde agosto de 2003, o autor e o inquilino da fração do prédio que tem acesso pelo n.º 58 de polícia, AA, passaram a pagar, dividindo entre si esse encargo, o IMI do imóvel aqui em causa, coisa que lhe foi sugerida pelo MVQ, com o fito de evitarem penhoras por parte da autoridade tributária, e isso mau grado os respetivos documentos de liquidação continuarem a ser dirigidos aos proprietários e endereçados ao n.º 58 da rua da BN.
12 – Na fração a que se acede pelo n.º 56 de polícia da rua da BN, viu o autor nascer a maior parte dos seus treze filhos, ICRT, OJRT, MLRT, AJRT, NCRT, PMRT, RJRT, LMRT, SPRT, RMRT, CART, LFRT e ACRT.
13 – Foi na fração referida no ponto 12 – factos provados – que os filhos do autor foram criados e educados, alguns permanecendo a ali residir mesmo após a sua maioridade;
14 – O autor, com o consentimento da MECP e, depois, do procurador dela, MVQ, procedeu a todas as obras de conservação e manutenção da fração que ocupava no imóvel, a expensas próprias, tendo inclusive ampliado o imóvel com novas divisões que ele construiu.
15 – É o autor quem, desde que ocupa a fração referida no ponto 12 – factos provados –, paga a energia elétrica, os serviços de telecomunicações e a água que consome, ainda que os contratos respetivos, à exceção do segundo, não sejam por si titulados.
16 – O domicílio fiscal do autor sempre foi no n.º 56 da rua da BN, por isso as declarações de IRS do autor foram sempre dirigidas à referida morada, bem como os recibos da sua pensão e respetiva documentação conexa.
17 – Foi sempre na morada referida no ponto 12 – factos provados – que o autor recebeu a demais correspondência a si dirigida, como, por exemplo, a correspondência relativa a seguros e à pensão de sobrevivência.
18 – Foi na morada referida no ponto 12 – factos provados – que o autor aumentou a sua família, celebrou com esta os seus aniversários, o Natal, a Páscoa e outras ocasiões festivas, nela recebendo os seus amigos e convidados, e nela vindo a falecer a sua esposa, MLRT, no ano de 2010.
19 – Ao longo do tempo durante o qual o autor se mantém a habitar na fração referida no ponto 12 – factos provados –, nem ele nem qualquer membro da sua família ali viu, falou ou contactou com o réu LS, pessoa que nunca frequentou aquele imóvel, nem aquele se lhes apresentou a arrogar qualquer direito sobre ele, coisa que também sucede com qualquer uma das testemunhas que intervieram na escritura referida no ponto 1 – factos provados.
20 – Correu termos no Ministério Público – Procuradoria da República da Comarca dos Açores, o processo administrativo n.º 160/19.7T9PDL, instaurado na sequência de comunicação feita pelo filho do inquilino da fração do prédio que tem acesso pelo n.º 58 de polícia da rua da BN, FEBA, após a morte do seu pai em 2018.
21 – Em 26 de junho de 2019, o autor foi ouvido no âmbito do processo referido no ponto 20 – factos provados –, não se tendo arrogado proprietário do prédio aqui em causa, antes afirmando o seu interesse em lá continuar a viver.
22 – No processo referido no ponto 20 – factos provados –, procurou-se averiguar se a herança aberta por óbito de GP e MECP era passível de ser declarada vaga a favor do Estado, apurando-se: a) que o prédio urbano sito na rua da BN, n.ºs 56 e 58 havia sido objeto de escritura de justificação notarial a favor de do réu LS, com registo de aquisição a seu favor em 14 de janeiro de 2021, sendo que esses prédios, em 8 de fevereiro de 2021, vieram a ser vendidos à ré M; e b) que no prédio em causa e na fração com acesso pelo n.º 56 de polícia, reside o autor.
23 – No ano de 2018 e, bem assim, em outros anos, o réu LS candidatou-se e foi-lhe concedida a subvenção associada ao programa de Incentivo ao Arrendamento de Prédios ou de Frações Autónomas para Residência Permanente promovido pela Secretaria Regional da Solidariedade Social – Direção Regional da Habitação.
24 – Foi o réu LS, já depois da escritura referida no ponto 1 – factos provados –, quem mandou cessar o fornecimento da água e da luz, ou seja, cancelou os respetivos contratos de fornecimento de eletricidade e água da casa e verificou que a porta de ligação entre a fração com entrada pelo n.º 56 e a restante casa tinha sido arrombada, coisa que participou à PSP.
25 – O autor nunca morou na fação de facto que tem entrada pelo n.º 58 da Rua da BN.
26 – Em 4 de fevereiro de 2022, o autor recebeu uma notificação judicial avulsa, apresentada pela ré M, na qual, em resumo, alega que, em 2 de fevereiro de 2021, adquiriu ao réu LS o direito de propriedade plena sobre o prédio urbano constituído por casa alta com quintal, destinada a habitação, com a superfície coberta de noventa e um vírgula oitenta metros quadrados e descoberta com a área de cento e oitenta e oito vírgula vinte metros quadrados, sito na Rua da BN, n.º 58, na freguesia de Ponta Delgada (São Pedro) do concelho de Ponta Delgada, prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o número 2891 da dita freguesia, mais alegando que, após tal aquisição, foi surpreendida com a presença do autor no referido prédio, coisa que a determinará a recorrer à via judicial, a fim de forçar a entrega do imóvel livre de pessoas e bens, no prazo de 15 dias contados da receção de tal notificação.
27 – Até este momento, a ré M, não recorreu à via judicial nos termos em que o anunciou que faria. 3. Posição jurídica da ré M
28 – A ré M, por escritura de 2 de fevereiro de 2021, adquiriu ao réu LS o direito de propriedade plena sobre o imóvel constituído por casa alta com quintal, destinada a habitação, com a superfície coberta de noventa e um vírgula oitenta metros quadrados e descoberta com a área de cento e oitenta e oito vírgula vinte metros quadrados, sito na Rua da BN, n.º 58, na freguesia de Ponta Delgada (São Pedro) do concelho de Ponta Delgada, pagando o respetivo preço acordado, confiando, naturalmente, que o transmitente era seu legítimo proprietário e possuidor e que o negócio que estava a fazer era absolutamente lícito, sem ofensa de quaisquer putativos direitos ou interesses de quaisquer terceiros.
29 – Em 8 de fevereiro de 2021, pela inscrição AP. 1726 de 2021/02/08 – “Aquisição”, respeitante à descrição objeto da ficha n.º 2891/20190327, freguesia de Ponta Delgada (São Sebastião), da Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada, foi inscrita a aquisição da propriedade a favor da ré M, por compra ao réu LS (ref. 42425096).
30 – Após o facto referido no ponto 28 – factos provados –, numa visita ao imóvel acompanhada pela mediadora da compra, a ré M deparou-se com a presença do autor no seu interior, ocupando, concretamente, a fração de facto acessível pelo n.º 56 de polícia, sendo certo que, nessa altura e noutras visitas posteriores, o autor nunca invocou perante si qualquer direito real sobre o imóvel.
31 – Nas alturas referidas no ponto 30 – factos provados –, o autor afirmava que tinha direito de permanecer na casa pois tinha contrato de arrendamento, que não apresentou, e que pagava rendas ou que, até há muito pouco tempo atrás, as pagava, embora nunca o tenho feito junto da ré M.
32 – É a ré M quem dispõe, após o facto referido no ponto 28 – factos provados –, da titularidade dos contratos de fornecimento de água e de energia elétrica;
33 – A ré M detém a chave da porta com o n.º 58 do prédio, nele entra quando quer e exerce os direitos inerentes à titularidade do direito de propriedade, sendo que foi também esta quem foi notificada, pelas autoridades, sobre um evento de vandalismo ocorrido com as janelas do primeiro piso. B.B. Factos não provados[2] 4. Da reivindicação
34 – Pelo menos desde o ano de 1967, o autor é possuidor do prédio sito na Rua da BN n.º 56, posse essa de boa fé, pois, ao adquiri-la ignorava lesar o direito de outrem e sem que tivesse de recorrer a qualquer tipo de violência, exercendo-a, ao longo dos anos, à vista de toda a gente e de modo a ser conhecida por todos.
35 – Há mais 54 anos, o autor exerce a posse do imóvel aqui em causa de forma seguida, ininterrupta, sempre à vista de toda a gente e com a convicção plena de ser ele o verdadeiro dono daquele prédio, que sempre tratou como seu, seguro de não violar qualquer direito alheio, pois ao longo destes anos nunca teve qualquer oposição de ninguém.
36 – Todos os vizinhos, familiares e conhecidos do autor o têm por verdadeiro proprietário daquele imóvel e ninguém, colocou em dúvida ou contestou esta titularidade do autor até ao presente.
37 – Os filhos do autor sempre consideraram a casa como sua, não se pondo, sequer, a possibilidade de existir alguém que pudesse reivindicar a sua propriedade, coisa que também ele fez, nomeadamente a partir de 2003.
38 – Foi o autor quem celebrou contrato de fornecimento de energia elétrica em seu nome.
39 – Na década de 1990 a 1999, o procurador da proprietária recusou-se a receber as rendas.
40 – Pelo menos desde 1999, foi o autor a assumir os encargos fiscais do imóvel pagando a contribuição autárquica/Imposto municipal sobre imóveis, despesa que dividia com o senhor AC, ocupante do primeiro andar, bem como com NMSC, que residia no imóvel sito à rua do F, melhor identificado na escritura referida no ponto 1 – factos provados –, coisa que vai sucedendo até ao presente; 5. Da justificação notarial
41 – Em 4 de abril de 1977, o réu LS, declarou verbalmente comprar o prédio identificado em “DOIS” da escritura referida no ponto 1 – factos provados.
42 – O réu LS comprou o prédio identificado em “DOIS” da escritura referida no ponto 1 – factos provados –, não ao titular inscrito GP, que já tinha falecido, mas sim à sua mulher, MEC, herdeira testamentária do usufruto, e ao seu irmão, AFZP, herdeiro testamentário e legítimo da nua propriedade.
43 – Em 4 de abril de 1977, o réu LS tomou posse do referido imóvel.
44 – Entre os anos de 1970 e 1976, o réu LS conheceu o então proprietário do imóvel, GP, assim como a sua mulher, MEC, tendo conhecimento de que era dono de alguns prédios em Ponta Delgada.
45 – Em 1977, depois da morte de GP, em 1976, o réu LS falou com a viúva e herdeira, MEC, e propôs comprar a casa supramencionada, bem como a outra que consta da escritura de justificação, sita na rua do F, também em Ponta Delgada.
46 – A aludida MEC, que falava, também, em nome de AP, residente nos EUA, anuiu e acordou com o réu LS o valor de 50.000$00 pela sua venda do imóvel sito à rua da BN n.º 58.
47 – O prédio identificado em “DOIS” da escritura referida no ponto 1 – factos provados – foi, assim, adquirido pelo preço global de cinquenta mil escudos, aos ditos MEC e AP, valor que o réu LS entregou, em dinheiro, à aludida MEC, a qual, por seu turno, lhe entregou, mais tarde, um recibo em papel selado do aludido pagamento do preço.
48 – Em 1977, não foi celebrada a escritura porque os vendedores não tinham a documentação legalizada de forma a realizar a escritura, tendo a referida MEC garantido ao réu LS que iam “tratar dos papeis” da casa.
49 – A aludida MEC mudou-se, depois, para os Estados Unidos da América, mas regressou algumas vezes a São Miguel, alturas em que o réu LS lhe perguntava se a situação da casa já estava legalizada, ou seja, se a titularidade do prédio já estava devidamente averbado nas finanças e inscrito no registo, para ser marcada a outorga da escritura de compra e venda, dizendo-lhe a primeira, em resposta, que estava a tratar de atualizar a documentação necessária e que não se preocupasse, que estavam a tratar de tudo.
50 – Entretanto, foi passando o tempo e o réu LS não mais se preocupou em realizar a escritura.
51 – Passados anos, cada um dos vendedores ausentou-se para parte incerta, nos Estados Unidos da América, sem nunca mais terem dado notícias, desconhecendo qual o seu atual paradeiro, ou mesmo se já terão falecido e nesse caso quais os seus herdeiros se os houver.
52 – A partir da compra verbal referida no ponto 41 – factos não provados –, o réu LS tomou posse dos referidos prédios e, designadamente, no que aqui interessa, da casa sita na rua da BN, n.º 58, na freguesia de São Pedro, em Ponta Delgada, passando, desde aí, a falar com os inquilinos da casa, na qualidade de proprietário, tanto da parte principal do imóvel, com entrada pelo n.º 58 como da parte com acesso pelo n.º 56, transmitindo-lhes que tinha comprado o imóvel e que apenas aguardava a formalização da compra através da escritura notarial de compra e venda.
53 – Desde aquela data, o réu LS nunca interrompeu a posse que vinha exercendo e que manteve até que vendeu o imóvel à ré M, no dia 2 de fevereiro de 2021, através da escritura notarial de compra e venda, data em que se transmitiu a posse do imóvel do réu LS para a ré M.
54 – O réu LS sempre acompanhou proximamente a situação da casa, na qualidade de proprietário, como era de conhecimento público; aliás, conhecia o Senhor AC, inquilino do imóvel, desde que este se mudou para aquela casa e Informou-o de que era o seu novo dono, por tê-la adquirido verbalmente por 50 contos e que estava a aguardar a formalização do negócio.
55 – Neste sentido, o réu LS informou o arrendatário que, a conselho do seu solicitador, não receberia rendas até ter a casa registada no seu nome e poder, assim, emitir os correspondentes recibos. Por esse motivo, e como contrapartida do arrendamento, combinou com o inquilino, senhor AC, que este faria, a expensas suas, algumas obras de conservação no locado, que ficaram a pertencer a este.
56 – Tendo também ficado combinado que o Senhor AC procederia ao pagamento às finanças de algumas prestações de IMI, uma vez mais, como contrapartida pelo arrendamento e em face da falta do atraso na outorga da escritura de compra e venda.
57 – Designadamente nos anos de 2007, 2010, 2011, 2018 e 2019, não obstante o combinado, o réu LS também pagou diversas prestações de IMI relativos ao prédio em causa.
58 – Em 2017, o inquilino AC, que sabia que o réu LS tinha comprado verbalmente o imóvel e considerava-o como o legítimo proprietário (…), quando a sua mulher estava já doente e antes mesmo de se ter mudado para a casa do filho, entregou-lhe as chaves do imóvel, momento a partir do qual passou a entrar livremente na casa antes arrendada e agora devoluta.
59 – Nos anos de 2016, 2017, 2018 e 2019, o réu LS também entrou diversas vezes nas divisões do prédio em que se encontrava o autor, designadamente, tendo sido acompanhado por este, que lhe mostrou o espaço.
60 – Nas ocasiões referidas no ponto 59 – factos não provados –, o réu LS conversou com o autor sobre o espaço e suas condições de habitabilidade, referindo-lhe este que, apesar de não ter um contrato escrito, tinha direito a estar ali porque depositava a renda e era inquilino, chegando mesmo a dizer-lhe que não se importava sair e entregar-lhe o espaço mediante o pagamento de uma compensação, coisa que não aceitou.
61 – Foi o autor quem informou o réu LS da intenção do inquilino do imóvel, Senhor AC, querer entregar àquele as chaves do imóvel.
62 – Desde 1977, o réu LS exerce a posse do prédio aqui em causa de forma pacífica, pública e de boa-fé, por ignorar lesar direito alheio, com o conhecimento de toda a gente das freguesias de São Sebastião e São Pedro e sem oposição ou qualquer contestação de quem quer que seja, tendo nesses prédios vindo a realizar obras de limpeza e conservação.
63 – Nem o autor, nem outra pessoa opuseram-se ou reagiram de qualquer forma à posse do réu LS.
64 – O autor transmitiu ao réu LS, numa das várias vezes em que falaram, que tinha ido para aquele local (n.º 56) porque um colega de trabalho lhe teria passado verbalmente a posição contratual de inquilino.
65 – Quando a ré M se deslocou ao imóvel aqui em causa, logo após a outorga da escritura de compra e venda dele a seu favor, pode comprovar que todo o imóvel se encontrava, com exceção do tal corredor/divisão interior, a que não acedeu, em muito elevado estado de degradação e deterioração, e sobretudo num estado de completa inabitabilidade.
66 – Em meados de 2021, o autor fez obras no prédio, designadamente erguendo um muro. B.C. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto 1. Matéria de facto objeto da impugnação
Tal como referimos na enunciação das questões a resolver, o apelante apenas impugna a decisão de facto contida no “ponto 27 in fine da matéria dada como assente” – acima ponto 28 –, entendendo que se deve “por contraponto acrescentar que a segunda ré – M – sabia e participou na aquisição falsa pelo primeiro réu LS”.
O tribunal a quo deu por provada a seguinte factualidade:
A R. M, por escritura de 2.2.2021 adquiriu ao R. LS o direito de propriedade plena sobre o imóvel constituído por casa alta com quintal, destinada a habitação, com a superfície coberta de noventa e um vírgula oitenta metros quadrados e descoberta com a área de cento e oitenta e oito vírgula vinte metros quadrados, sito na Rua da BN, n.º 58, na freguesia de Ponta Delgada (São Pedro) do concelho de Ponta Delgada, pagando o respetivo preço acordado, confiando, naturalmente, que o transmitente era seu legítimo proprietário e possuidor e que o negócio que estava a fazer era absolutamente lícito, sem ofensa de quaisquer putativos direitos ou interesses de quaisquer terceiros.
O segmento impugnado pelo apelante será, pois, o seguinte, correspondendo o restante enunciado à correta apreciação da prova produzida:
(…) confiando, naturalmente, que o transmitente era seu legítimo proprietário e possuidor e que o negócio que estava a fazer era absolutamente lícito, sem ofensa de quaisquer putativos direitos ou interesses de quaisquer terceiros. 2. Motivação da convicção apresentada pelo tribunal ‘a quo’
O tribunal a quo motivou a sua convicção começando por descrever a prova documental junta. Seguidamente, relatou o conteúdo dos depoimentos prestados na audiência final e, por fim, faz a sua apreciação crítica da prova produzida.
No que respeita à factualidade impugnada ou nela implicada, o tribunal a quo motivou a sua decisão do seguinte modo:
De seguida, há que analisar de forma crítica os depoimentos colhidos em audiência e, à cabeça, o do representante da ré M, RG. É certo que teve um depoimento com algumas falhas e lacunas, escapando-se a explanar a forma como logrou chegar ao imóvel aqui em causa e as ligações que manteria com a imobiliária que mediou o negócio, designadamente com a mediadora que esteve nas negociações e com o próprio vendedor. Mau grado isso, a verdade é que, como resulta da certidão da ré M, esta se dedica, entre o mais, à compra e venda de imóveis, razão que, de forma segura, demonstra o interesse dele no negócio aqui em causa e que celebrou com os contornos que explicou. (…) Assim, é transparente a razão da aquisição do prédio aqui em causa, para revenda como constitui seu objeto social, nada nos autos nos permitindo concluir ou até indiciariamente sustentar que a compra foi feita com o intuito de diluir em terceiro a “marosca” que o autor associa à justificação notarial, é, pois, credível o depoimento de RG. (…)
Os depoimentos das testemunhas MRR, MFR, JS e PMCT, porque eivados de um comprometimento percetível a léguas, sem qualquer conhecimento direto do que declararam, quer na audiência quem na estritura de justificação não é credível e, por isso, quanto ás três que intervieram na escritura será determinada a extração de certidão para o correspetivo procedimento criminal. (…).
Por outro lado, é uma mentira deslavada tudo o que foi avançado pelo réu LS na escritura de justificação. Efetivamente não há qualquer indício de compra que nunca foi falada pela proprietária ao respetivo procurador, que até nem dele careceria se efetivamente tivesse feito o negócio efabulado pelo réu LS. (…)
Ora, aqui chegados se é verdade que o autor nunca teve a posse do prédio com o animus que e lei demanda, a verdade é que o réu LS nunca teve uma coisa nem outra, e, mau grado isso, adquiriu a propriedade do bem aqui em causa que, depois, alienou a terceiro que nenhuma relação se demonstrou ter tido com a “marosca” levada por diante pelo réu LS e as testemunhas que a seu favor depuseram na escritura de justificação. 3. Motivação apresentada pelo apelante
À motivação da convicção apresentada pelo tribunal, contrapôs o recorrente a seguinte motivação nas conclusões da sua alegação: e) Ora, dos autos, da apreciação crítica das declarações do legal representante da segunda ré M, das testemunhas MRR e MFR, conclui-se que a segunda, foi simultaneamente testemunha da escritura de justificação falsa, ao mesmo tempo que foi quem intermediou a compra e venda entre o primeiro e a segunda ré, respetivamente LS e M, Lda. f) Do mesmo passo era a referida MRR, o ponto de contacto entre estes dois réus: o primeiro com quem trabalhou, justamente no ramo imobiliário (conforme resulta dos depoimentos transcritos) e do segundo para quem já intermediou vários negócios imobiliários (conforme resulta dos depoimentos dos dois). g) A isto acresce que a forma parcial (por vezes insolente) com que depôs, demonstrando um interesse direto na questão (ao invés das demais testemunhas da escritura de justificação). h) Não se olvidando que é a própria que descreve o primeiro réu LS como uma pessoa doente, fragilizado e vulnerável (conforme depoimento da citada MRR). i) Sendo por isso o alvo preferencial para a negociata orquestrada (recorde-se que é dado como provado que o mesmo nunca foi visto no imóvel, nunca contactou os inquilinos, nunca diligenciou pela cobrança das rendas, nem nunca ninguém soube da alegada compra não concretizada). j) A isto acresce que à displicência na regularização da alegada aquisição à proprietária originária opôs-se uma invulgar celeridade na venda à segunda ré – M – tendo mediado apenas 4 meses entre ambas as escrituras (conforme resulta da matéria de facto dada como provada). k) Assim, dos depoimentos das testemunhas (referidos e transcritos os excertos na motivação) , das regras da experiência comum e dos demais factos acessórios alegados, resulta que não de pode dar como provado que a segunda ré desconhecia a ilicitude da aquisição pelo primeiro réu, conforme resulta da parte final do ponto 27 dos factos dados como provados – acima ponto 28 –, que deve ser alterada, em conformidade com o alegado.
Importa aqui notar que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto apresentada pelo apelante não é inútil. É certo que a sua relevância para a sorte do recurso, quer em matéria de impugnação da justificação notarial, quer no que respeita à apreciação da conduta do autor nos quadros da má-fé processual, é quase inexistente. No entanto, ainda assim, não é inútil por força da decisão do tribunal a quo de não apreciação das demandas reconvencionais. Fruto desta decisão, mantém-se em aberto o litígio entre o autor e a ré M, no âmbito do qual aquele contesta a qualidade de senhoria de que esta se arroga.
Ora, sendo a detenção do autor discutida numa eventual ação futura, porventura, de despejo, poderá a ré M ensaiar a extensão do caso julgado formado sobre a decisão final da presente ação aos seus fundamentos, sustentando que estava de boa-fé na data da sua aquisição, como ficou demonstrado no facto agora impugnado pelo apelante. Não nos cabe especular sobre a essencialidade deste estado subjetivo na sorte de uma futura discussão judicial; apenas devemos reconhecer que, de acordo com uma solução plausível para o diferendo de direito entre autor e ré, a factualidade em causa não é irrelevante, pelo que o autor tem interesse na sua impugnação (se entende que não corresponde à realidade). 4. Alteração da decisão de facto proferida
Ouvidos os registos áudio da prova produzida, não podemos deixar de alterar a decisão de facto impugnada. Se os depoimentos invocados e transcritos pelo apelante não permitem considerar provada a matéria pretendida pelo mesmo, em toda a sua extensão, também dos meios de prova invocados pelo tribunal a quo não se pode extrair a decisão vertida na sentença.
Resumidamente, o apelante fundamenta a sua impugnação nas regras da experiência e na circunstância de: a) a testemunha MRR (mediadora imobiliária) conhecer os réus desde data anterior à outorga da escritura de justificação; b) a testemunha MRR ter descrito “o primeiro réu LS como uma pessoa doente, fragilizado e vulnerável”; c) terem decorrido quatro meses entre a escritura de justificação e a escritura de compra e venda outorgada pelos réus.
Estas circunstâncias são manifestamente insuficientes para que se possa dar (positivamente) como provado que a ré M teve intervenção – designadamente, como instigadora – na decisão do réu de outorgar a escritura de justificação; não são sequer suficientes para que se possa considerar provado que, antes da outorga do contrato de compra e venda, conhecia a falsidade do que foi declarado nessa escritura. Mas a prova invocada pelo tribunal a quo também é insuficiente para que se possa concluir, com segurança, pela verificação do facto oposto. Na verdade, nenhuma prova concludente e credível foi produzida sobre esta factualidade – recorde-se que apenas se discute a parte final do ponto 28 –, sendo que os únicos depoimentos com ela relacionados – declarações de parte e testemunho de MRR – são, em geral, como bem assinalou o tribunal a quo, pouco firmes, coerentes e credíveis.
A este respeito, deteta-se uma aporia no silogismo apresentado pelo tribunal a quo. Ainda que se tenha por “transparente a razão da aquisição do prédio aqui em causa [pela ré M], para revenda”, e se tenha por seguro que “nada nos autos nos permit[e] concluir ou até indiciariamente sustentar que a compra foi feita com o intuito de diluir em terceiro a ‘marosca’”, nem por isso se poderá dar por positivamente provado que a ré atuou “confiando, naturalmente, que o transmitente era seu legítimo proprietário e possuidor e que o negócio que estava a fazer era absolutamente lícito, sem ofensa de quaisquer putativos direitos ou interesses de quaisquer terceiros”. Apenas se poderia dar por não provado exatamente o que o tribunal a quo referiu (embora empregando termos distintos): “a compra foi feita com o intuito de diluir em terceiro a ‘marosca’”. Da circunstância de se entender que não foi feita prova de um facto positivo – afirmação da existência de conluio – não se pode, num salto lógico, retirar que foi feita prova do facto do facto negativo contrário – negação da existência de conluio –, pois esta conclusão só poderia assentar na prova concludente deste facto contrário.
Em suma, pelas razões expostas, altera-se a decisão de facto, nela passando a constar, no ponto em análise:
28 – Em 2 de fevereiro de 2021, a ré M, por escritura pública, declarou adquirir ao réu LS, declarando este vender, além do mais, o prédio identificado em “DOIS” da escritura referida no ponto 1 – factos provados.
No leque de factos não provados passa a constar:
67 – Aquando da outorga da escritura pública referida no ponto 28 – factos provados –, a ré M confiava que o transmitente era legítimo proprietário e possuidor dos prédios adquiridos, e que o negócio que estava a fazer era absolutamente lícito, sem ofensa de quaisquer putativos direitos ou interesses de quaisquer terceiros
A decisão do tribunal a quo acima reproduzida – embora com uma sistematização distinta, mais ajustada à crónica dos factos essenciais – constituirá a fundamentação de facto deste aresto, dela já se tendo expurgado a contradição existente nas datas inscritas no ponto 27 da sentença e no ponto 5 da sentença (neste é indicada como data da escritura de compra e venda a data do registo da aquisição), sendo eliminado este último, por redundante. B.D. Análise dos factos e aplicação da lei
São as seguintes as questões de direito a abordar: 1. Objeto do recurso quanto ao mérito 2. Espécie da presente ação, considerando os primeiros três pedidos 3. Viabilidade da ação, quanto aos três primeiros pedidos 4. Legitimidade para a impugnação da justificação notarial 4.1. Interesse na impugnação, em geral 4.2. Interesse do autor na impugnação da justificação notarial 5. Procedência da ação, quanto ao primeiro pedido formulado 6. Restantes pedidos formulados 6.1. Comunicação da pendência desta ação ao notário 6.2. Cancelamento dos registos de aquisição pelo réu e pela ré 6.2.1. Nulidade do registo por efeito da nulidade substantiva 6.2.2. Registo imune aos efeitos da nulidade substantiva 6.3. Restantes capítulos da decisão sobre o objeto da causa 7. Apreciação da conduta das partes nos quadros da litigância de má-fé 7.1. Condenação do autor como litigante de má-fé 7.2. Atuação do réu LS como litigante de má-fé 7.3. Atuação processual da ré M 8. Responsabilidade pelas custas Objeto do recurso quanto ao mérito
No mesmo processo, o autor instaurou duas ações: uma ação de impugnação de justificação notarial; uma ação de reivindicação. Se os três primeiros pedidos dizem respeito à ação de impugnação de justificação notarial, já os dois últimos são próprios de uma ação de reivindicação. O objeto do recurso está limitado à ação de impugnação de justificação notarial, não mais se discutindo a ação de reivindicação – nem as demandas reconvencionais.
Quanto a estas – demandas reconvencionais, admitidas no despacho saneador –, por não ter sido impugnada pelos impetrantes a decisão proferida, está vedado ao tribunal de recurso apreciar a bondade da fundamentação apresentada pelo tribunal a quo, com o seguinte teor “[o]s pedidos reconvencionais dos réus, porque se estribam em circunstâncias factuais que não constituem realidade, pois a propriedade do bem aqui em causa nas respetivas esferas jurídicas não sofreu qualquer alteração, nelas permanecendo nos termos decorrentes do trato sucessivo, não podem ser analisados por desgarrados de fundamento, pelo que serão, naturalmente desconsiderados”. O mesmo se diga no que toca à ação de reivindicação.
No que respeita à impugnação de justificação notarial, é questionada toda a decisão sobre ela proferida pelo tribunal a quo, por força da primeira e da última parte das conclusões da apelação. Está, ainda, em discussão na instância recursiva a decisão de condenação do autor como litigante de má-fé. 1. Espécie da presente ação, considerando os primeiros três pedidos
O tribunal a quo inicia a motivação da convicção formada sobre a prova produzida deste modo:
Antes de começar a motivação da decisão de facto em sentido estrito, há que relembrar que, segundo as regras de repartição do ónus da prova, cabe ao autor, nos termos do art.º 342.º, n.º 1 do Código Civil (…) a demonstração dos factos constitutivos dos direitos alegados, sendo que, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, havendo dúvida, os factos devem ser considerados constitutivos desse direito. Aos réus, porque avançaram factos impeditivos daquele direito cabe-lhes fazer a prova deles nos termos do n.º 2 do mesmo preceito legal. Quando haja presunção legal as regras invertem-se – art.º 344.º, n.º 1, do Cód. Civil. Iluminando aquelas regras não pode desconsiderar-se a muito esquecida norma do art.º 516.º do Código de Processo Civil [será o art.º 414.º], segundo a qual cada um tem que cumprir o seu ónus probatório segundo um padrão legalmente tipificado e exigente – em caso de dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se a mesma contra a parte a quem ele aproveita. É assim que se concatenam aquelas normas de direito substantivo com esta de direito adjetivo.
Partindo destas considerações iniciais, o tribunal a quo desenvolve toda a fundamentação da sentença assente no pressuposto de que cabe ao autor o ónus de provar tudo o que de relevante alega, como se tivesse instaurado uma ação de condenação e constitutiva (art.º 10.º, n.º 3, als. b) e c), do Cód. Proc. Civil). Não é assim, pois não tem o autor, para lograr obter vencimento de causa, de provar os factos que tenha alegado na petição inicial em antecipação da impugnação da factualidade alegada pelo réu; poderá obter ganho de causa tão somente graças à insatisfação pelo réu do ónus da prova que lhe cabe.
Com efeito, quanto ao primeiro pedido e aos dois que se lhe seguem, dele apendiculares, a ação vertente é uma ação de simples apreciação negativa (art.º 10.º, n.º 3, als. a), do Cód. Proc. Civil). O mesmo é dizer que é ao réu justificante (ou ao réu que se pretenda valer da justificação) que cabe a prova dos factos declarados na escritura de justificação notarial, conforme estabelece o n.º 1 do art.º 343.º do Cód. Civil: “[n]as ações de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga”.
Pelo seu Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2008, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu, sinteticamente, que “Na ação de impugnação de escritura de justificação notarial (…), tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade (…), incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito (…)”. Sufragou, assim, o Supremo o referido entendimento, de acordo com o qual as ações de impugnação de escritura de justificação notarial são ações de simples apreciação negativa (art.º 10.º, n.º 3, al. a), do Cód. Proc. Civil).
Já cabe ao autor fazer a prova dos factos constitutivos do direito real de que se arroga na ação de reivindicação instaurada, no mesmo processo, com a ação de impugnação de justificação notarial – dois últimos pedidos.
2. Viabilidade da ação, quanto aos três primeiros pedidos
Conforme resulta do exposto no ponto anterior, na estrutura da ação de simples apreciação negativa cabe ao réu alegar – e, a seu tempo, provar – os factos constitutivos do direito de que se arroga. Tais factos são os que constam da escritura de justificação notarial. Nesta, o réu LS declarou, no essencial, que: a) “[É] dono dos seguintes imóveis: // (…) DOIS Urbano: constituído por casa alta com quintal, destinada a habitação, (…) sito na rua da BN, n.º 58, na freguesia de Ponta Delgada (São Pedro) do concelho de Ponta Delgada”. b) [O] referido prédio encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o número 2191 da dita freguesia, com registo de aquisição a favor de GP, (…) e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de São Pedro sob o artigo 728 (…)”. c) “[A]inda no estado de solteiro, maior, tomou posse dos referidos prédios, em quatro de abril de mil novecentos e setenta e sete, por compra meramente verbal, feita não ao titular inscrito GP, que já tinha falecido, mas sim à sua mulher MEC, herdeira testamentária do usufruto, e ao seu irmão AFZP, herdeiro testamentário e legítimo da nua propriedade (...)'”. d) “O prédio atrás identificado sob o número ‘DOIS’ foi adquirido pelo preço global de cinquenta mil escudos, (…) aos ditos ‘AFZP’ e ‘MEC’”. e) “[N]ão celebraram a escritura naquela data porque os vendedores achavam que não tinham a documentação legalizada de forma a realizar a escritura”. f) “Entretanto, foi deixando passar o tempo e como a partir daquela data tomou posse dos referidos prédios, não mais se preocupou em realizar a escritura, sendo certo que desde aquela data nunca interrompeu a posse que vinha exercendo e que se manteve até aos dias de hoje (…) da mesma forma pacífica, pública e de boa-fé, por ignorar lesar direito alheio, com o conhecimento de toda a gente das referidas freguesias de São Sebastião e São Pedro e sem oposição ou qualquer contestação de quem quer que seja, tendo nesses prédios vindo a realizar obras de limpeza e conservação (…)”.
Não se provando estes factos no processo, a ação deve proceder.
Ora, os factos afirmados pelo réu LS na escritura de justificação notarial foram objeto de pronúncia expressa pelo tribunal a quo, tendo sido dados por não provados. São eles os factos 41 – não provado – a 53 – não provado –, designadamente. Está, pois, a ação em condições de proceder, relativamente aos três primeiros pedidos formulados. 3. Legitimidade para a impugnação da justificação notarial 3.1. Interesse na impugnação, em geral
No entanto, o tribunal a quo entendeu que o autor não tem legitimidade para impugnar a justificação notarial, por não ser titular de um “direito incompatível com o declarado na escritura, tal como consta da lei nos art.ºs 89.º, n.º 1, e 101.º do Código do registo do Notariado”. Invoca a jurisprudência do “Ac. do TRC de 23.8.2008” (sic). (O dia 23 de agosto de 2008, para além de calhar em férias judiciais, foi um sábado. O tribunal a quo terá querido dizer 23 de setembro de 2008, data em que, pelo mesmo Tribunal da Relação de Coimbra, foi proferido um acórdão sobre esta questão no processo n.º 219/06.0TBVZL.C1).
A decisão invocada pelo tribunal a quo – admitindo-se que se trata do Ac. do TRC de 23-09-2008 (219/06.0TBVZL.C1) – não reconhece legitimidade processual apenas a quem é “titular de um direito incompatível com o declarado na escritura”; reconhece-a, sim, a quem “invoque ser titular de direito ou interesse incompatível com o declarado na escritura de justificação” – sublinhado nosso. O acórdão citado conclui pela absolvição dos réus da instância, porque “[a]nalisando os termos em que os autores, apelados, estruturam a ação, ressalta de imediato que os autores não se arrogam na titularidade de qualquer direito – de propriedade ou outro – sobre o prédio objeto da escritura de justificação” – sublinhado nosso. Não é, manifestamente, este o caso dos autos, já que o imóvel aqui em causa é a casa de habitação do autor, tendo sobre ele um direito pessoal de gozo – posto em crise por um putativo proprietário que estende as raízes do seu alegado direito até à escritura impugnada.
Ninguém negará que um arrendatário, se for demandado numa ação para cobrança da renda por alguém que afirma ter adquirido a propriedade dessa coisa – e, assim, a qualidade de senhorio –, tem interesse em defender-se impugnando o suposto direito do demandante, se entender que não corresponde ele à verdade. É este mesmo interesse que existe na impugnação da justificação pelo inquilino, quando entende que esta teve por base factos e declarações falsas. E maior interesse tem quando a sua detenção é contestada pelo putativo proprietário.
Também sobre a questão vertente, pode ver-se o Ac. do TRG de 17-12-2015 (228/14.6T8MDL.G1), no qual se decidiu ter legitimidade bastante para a impugnação quem, apesar de não ter ligação jurídica ao prédio, ficará prejudicado com a utilização que o justificante lhe dá. Conclui o TRG “que tem legitimidade para instaurar ação de impugnação da justificação (…) qualquer interessado que invoque ser titular de direito ou interesse incompatível ou objetivamente afetado pelo reconhecimento do direito justificado” – sublinhado nosso. No mesmo sentido, é dito no Ac. do TRP de 24-11-2005 (0535685) que “[o]s interessados, para efeitos de impugnação da justificação, são os titulares de uma relação jurídica ou direito que possa ser afetado, posto em crise pelo facto justificado (…). Interessados não são só aqueles que têm um direito ou interesse incompatível com o do justificante, mas também os que podem ser afetados em qualquer interesse relevante com o ato de justificação” – sublinhado nosso.
Repisa-se, não é indiferente ao arrendatário (nem a quem se arroga essa qualidade) a justificação notarial por meio da qual um terceiro pretende o reconhecimento de um direito que o coloca como contraparte na relação locatícia, especialmente quando esse direito é invocado, pelo justificante ou por um subadquirente, na sustentação de uma pretensão de entrega formulada contra o arrendatário (ainda que sob a forma de uma notificação judicial avulsa). Exigir mais do que isto – exigindo-se a titularidade de um direito real – significaria, na prática, recusar qualquer autonomia dogmática à ação de impugnação de justificação notarial, passando ela a ser, na verdade, uma normal ação de reivindicação – cfr. os art.ºs 1311.º e 1315.º do Cód. Civil.
Em suma, transpondo para a questão vertente a lição de Pires de Lima e de Antunes Varela sobre o conceito de interessado na arguição da nulidade do negócio jurídico – exposta em Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, com a colaboração de Henrique Mesquita, p. 263, em anotação ao art.º 286.º do Cód. Civil –, deve entender-se que é interessado na impugnação da justificação notarialo titular de qualquer relaçãocuja consistência, tanto jurídica como prática, seja afetada pelos efeitos jurídicos que decorrem do facto justificado. 3.2. Interesse do autor na impugnação da justificação notarial
Afigura-se-nos apodítico que o autor tem um efetivo interesse relevante na impugnação, estando este bem vincado nos factos provados. Por um lado, ele decorre logo do ponto 26 – fundamentação de facto –, como resulta evidente dos seus termos: “Em 4 de fevereiro de 2022, o autor recebeu uma notificação judicial avulsa, apresentada pela ré M, na qual, em resumo, alega que em 2 de fevereiro de 2021, adquiriu ao réu LS o direito de propriedade plena sobre o prédio urbano (…), mais alegando que após tal aquisição foi surpreendida com a presença do autor no referido prédio, coisa que a determinará a recorrer à via judicial a fim de forçar a entrega do imóvel livre de pessoas e bens, no prazo de 15 dias contados da receção de tal notificação”.
Já nesta ação, a M pede, em reconvenção, que seja o autor condenado “a restituir imediatamente à 2.ª ré o imóvel devoluto de pessoas e bens”, por não lhe assistir “qualquer legitimidade legal e/ou contratual para permanecer no referido imóvel” (art.º 52.º da contestação respetiva), apenas ocupando o imóvel porque os arrendatários “lhe foram tolerando o uso/gozo daquela divisão térrea interior do prédio”. Esta posição é reiterada pela ré M nas suas contra-alegações de recurso, nas quais afirma que o autor não é arrendatário (art.º 11.º), “[t]ratando-se antes de um mero e precário ocupante, sem poder ou direto algum sobre tal imóvel” (art.º 12.º), isto é, de “um ilegítimo ocupante” (art.ºs 15.º e 19.º).
Por outro lado, os factos descritos nos pontos 6 – factos provados – a 14 – factos provados –, designadamente, permitem concluir que o autor reside em parte do prédio objeto da justificação há mais de 50 anos, tendo sido reconhecido como arrendatário de tal parte pelos seus sucessivos proprietários – dele recebendo estes as rendas –, sendo o direito real destes – que legitima a posse precária do autor – incompatível com o direito invocado pelo réu LS. O mesmo é dizer que, mantendo-se a escritura de justificação notarial, o autor verá contestado o seu direito (fundamental) de habitar parte do prédio objeto da escritura, por não lhe ser reconhecida pelo putativo subadquirente a qualidade de arrendatário.
Em suma, o direito que pode ser reconhecido ao autor – direito pessoal de gozo –, porque onera o imóvel, é contrário ao direito que, supostamente, decorre dos factos justificados – direito real –, por ser este, na tese posta pelos réus – máxime, pela ré que tem registada a seu favor a aquisição da propriedade –, totalmente desonerado. Tem, pois o autor, na tutela da sua detenção, interesse em questionar a suposta aquisição originária do direito que veio a ser transmitido à segunda ré. 4. Procedência da ação, quanto ao primeiro pedido formulado
Não se pode confundir o ato notarial com o negócio jurídico ou ato jurídico substantivo documentados pelo notário. No caso da justificação notarial, o facto justificado pode ser objeto de impugnação judicial (art.º 101.º do Cód. do Notariado), ainda que o ato notarial (documentação) não seja nulo. O objeto da impugnação do apelante é, pois, em primeira linha, o facto justificado: a (declarada) posse por determinado período que, supostamente, conduziu à usucapião. Esta impugnação não está sujeita a qualquer prazo de caducidade do direito assim exercido.
Sendo afirmado o interesse do autor na impugnação da justificação, perde relevância a discussão em torno do seu enquadramento dogmático e processual: se no contexto da exceção de ilegitimidade processual – bem afastado pelo tribunal a quo –, se no âmbito da exceção de falta de interesse em agir, se no campo da legitimidade substantiva. Também a discussão em torno da constitucionalidade das normas enunciadas nos art.ºs 89.º, n.º 1, e 101.º do Código do Notariado perde utilidade – sendo certo, diga-se, que o legislador do Código do Notariado não oferece uma definição nem toma posição sobre o que deve entender-se por “interessado”.
No essencial, quanto à posição jurídica do autor, o tribunal a quo deu por provada a narrativa posta pelo réu LS – vejam-se os art.ºs 26.º, 60.º, 63.º, 65.º, 67.º, 75.º, 79.º, 85.º, 94.º e 98.º da contestação deste réu –, admitindo também ré M, ao menos a título subsidiário, que o autor teria a qualidade subarrendatário – vejam-se os arts. 13.º e 26.º, designadamente, da contestação da ré. No mais, deu por não provados os factos afirmados pelo justificante na escritura de justificação notarial.
A impugnação da justificação notarial objeto do processo, por tudo o que já se expôs, deve ser julgada procedente, reiterando-se a conclusão tirada acima, no capítulo 3. 5. Restantes pedidos formulados 5.1. Comunicação da pendência desta ação ao notário
Pede o autor que seja “imediatamente comunicado” ao notário “a pendência da presente ação, para os efeitos previstos no art.º 101.º do Código do Notariado”. É esta uma comunicação a ter lugar numa fase inicial do processo. Neste momento, a comunicação a fazer tem diferente base legal (art.ºs 131.º, n.º 1, als. c) e d), e 202.º, al. c), do Cód. do Notariado). Tal comunicação será ordenada a final. 5.2. Cancelamento dos registos de aquisição pelo réu e pela ré
No seu terceiro pedido, requer o autor que seja ordenado “o cancelamento do registo de aquisição a favor do primeiro réu e da segunda ré”. Apenas é suscetível de gerar algumas dúvidas o pedido de cancelamento da inscrição de aquisição da propriedade a favor da ré M.
Pelo autor não foi pedida a declaração de nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre os réus, por se tratar de uma venda de bem alheio (art.º 892.º do Cód. Civil). No entanto, esta nulidade constitui o fundamento – isto é, a causa de pedir – do pedido de cancelamento da inscrição de aquisição da propriedade a favor da ré M, pelo que o seu conhecimento, que é oficioso (art.º 286.º do Cód. Civil), constitui um pressuposto necessário ao julgamento deste pedido.
À luz dos factos provados, a ré M não adquiriu a propriedade de quem se encontrava legitimado para a alienar. O mesmo é dizer que a venda em causa é uma venda de bens alheios, a qual não produz efeitos translativos da propriedade (designadamente, perante os interessados), conforme decorre das normas enunciadas nos art.º 892.º, n.º 1, e 289.º do Cód. Civil.
Assente que está que o contrato descrito no ponto 28 – já com alteração acima determinada – não produz efeitos, podem ser apresentadas duas soluções plausíveis para a abordagem do pedido de cancelamento do registo de aquisição a favor da ré. No entanto, conduzindo ambas ao mesmo resultado, está este pedido em condições de proceder (art.º 13.º do CRPred.), como veremos de imediato. 5.2.1. Nulidade do registo por efeito da nulidade substantiva
Começa a abordagem da questão respeitante à primeira solução por reconhecer que as causas da nulidade substantiva – como, por exemplo, a ilegitimidade do transmitente − não se confundem com as causas da nulidade registal. Estas são apenas as previstas no art.º 16.º do CRPred. No exemplo dado, a ilegitimidade do transmitente não é causa de invalidade registal, não viciando a inscrição. No entanto, a nulidade substantiva, considerada em si mesma, abstraindo a sua causa, pode conduzir ao preenchimento de uma das hipóteses legais de nulidade registal (art.º 16.º, al. b), do CRPred.).
A nulidade é uma sanção que a lei estabelece para determinadas deficiências genéticas (vícios) do ato jurídico – Cfr. Henrich Ewald Hörster e Eva Sónia Moreira da Silva, A Parte Geral do Código Civil Português, Coimbra, Almedina, 2019, pp. 226 a 228 e 571. No seu regime-regra, a nulidade importa a total ineficácia do ato – no que respeita aos efeitos jurídicos visados com a sua prática. Deste conteúdo típico da nulidade (ineficácia absoluta) decorre, de acordo com esta primeira posição, que o registo pode resultar contaminado – à semelhança do que ocorre com uma venda originariamente válida afetada pela (subsequente) anulação da compra anteriormente feita pelo alienante.
Estão em causa dois registos. A escritura de justificação notarial não padece de qualquer vício. No entanto, por força da sua impugnação, deixa definitivamente de constituir título bastante para sustentar um registo, a partir do momento (efeito ex nunc) em que lhe é averbada a decisão transitada em julgado de procedência da impugnação (art.º 131.º, n.º 1, al. d), do Cód. do Notariado). O registo deve ser então cancelado (art.º 13.º do CRPred.) ou inutilizado (art.º 87.º do CRPred.).
Tal como já adiantámos, a aquisição derivada a favor da ré M é nula (art.º 892.º do Cód. Civil). Sendo esta invalidade de conhecimento oficioso, não é possível reconhecer ao negócio qualquer efeito (ex tunc), como se válido fosse (art.º 289.º do Cód. Civil). Atribuir a um documento (que formaliza o negócio nulo) a natureza de título para efeitos de registo predial, seria já reconhecer-lhe um efeito que apenas pode decorrer da sua validade – ou seria reconhecer-lhe (indevidamente) o efeito de permitir a “prova legal do facto registado” (art.º 16.º, al. b), do CRPred.). O regime da nulidade impede-o, o que explica, de resto, que, quando é manifesta a nulidade (ineficácia absoluta) do facto, o registo deva ser recusado (art.º 69.º, n.º 1, al. d), do CRPred). As consequências (legais) retroativas da nulidade (do negócio substantivo) conhecida levam a que o registo definitivo se mostre feito sem título (bastante para a prova do facto), sendo nulo.
De acordo com a solução plausível agora desenvolvida, também é de considerar a possibilidade de o princípio do trato sucessivo ser afetado (art.º 16.º, al. e), do CRPred.), mas aqui já por decorrência do cancelamento do registo a favor dos alienantes, obtido para os efeitos previstos no art.º 116.º, n.º 1, do CRPred.. Não é necessário enfrentar esta questão, pois seria uma fundamentação meramente subsidiária – não se desconhecendo a doutrina administrativa que sustenta que a nulidade do registo por violação do princípio do trato sucessivo reporta-se apenas ao momento em que é peticionado, não podendo decorrer de ulterior cancelamento ou declaração de nulidade de registo antecedente (que assim apenas teria, para o caso, uma eficácia ex nunc)‒cfr. os pareceres do Instituto dos Registos e do Notariado R.P. 58/2014 STJ-CC, R.P. 242/2009 SJC-CT e R.P. 106/99 DSJ-CT. 5.2.2. Registo imune aos efeitos da nulidade substantiva
A invalidade do registo é um fenómeno autónomo da invalidade substancial − embora a sanção legal para esta prevista (ineficácia absoluta) possa repercutir-se no processo de registo (art.º 69.º, n.º 1, al. d), do CRPred.).
É essencial não confundir o facto titulado suscetível de registo – por exemplo, o negócio jurídico composto pelas respetivas declarações negociais −, com o título – o documento que titula o facto, apresentado com pedido de registo (art.º 43.º do CRPred.). Concretizando num caso de compra e venda, não se deve confundir este negócio jurídico com a escritura pública que o formaliza. A distinção entre o facto e o título está presente em diversas normas do Código do Registo Predial – por exemplo, vejam-se as als. b) e d) do n.º 1 do art.º 69.º deste código.
O título que é suficiente para a prova de determinado tipo de factos – por exemplo, uma escritura pública − não deixa de o ser se o concreto facto documentado for inválido. Apenas releva aqui (no art.º 16.º, al. b), do CRPred.) a aptidão probatória abstrata do documento, isto é, o tipo de título.
No entanto, a relativa imunidade do registo aos efeitos da nulidade substancial não só cede a montante perante a ostensiva ineficácia absoluta do facto (art.º 69.º, n.º 1, al. d), do CRPred.), como também cessa, inevitavelmente, a jusante perante a decisão judicial que conhece a invalidade do facto registado ou a inexistência do direito publicitado (art.º 13.º do CRPred.). Assim se conclui que, ainda que se considere que os registos em causa não são nulos, o pedido em análise não pode deixar de proceder. 5.3. Restantes capítulos da decisão sobre o objeto da causa
Os restantes capítulos do dispositivo da sentença – quanto ao mérito do litígio –, correspondentes à ação de reivindicação e às ações instauradas por via reconvencional, não integram o objeto da apelação, tal como já foi acima sinalizado. Não encerram, acrescente-se, meras questões implicadas na solução a dar ao litígio que efetivamente integra o objeto da apelação – a impugnação da justificação notarial. Nada mais há a dizer sobre tais remanescentes capítulos da decisão do tribunal a quo. 6. Apreciação da conduta das partes nos quadros da litigância de má-fé
É incontroverso que a má-fé é do conhecimento oficioso do tribunal, quer nas instâncias, quer no Supremo Tribunal de Justiça – Ac. do STJ de 29-10-1998 (98B782). E este conhecimento pode incidir sobre uma conduta desenvolvida na fase em que a causa ainda pendia perante o tribunal a quo, máxime, quando se manifestou nas afirmações de facto vertidas nos articulados. Conforme se sufragou no Ac. do STJ de 08-02-2022 (4964/20.0T8GMR.G1.S1), “[a] condenação em litigância de má-fé de qualquer das partes pode/deve ter lugar nos tribunais superiores ainda que nenhuma das partes entenda recorrer da decisão de 1.ª instância que optou pela não condenação a este título”. O mesmo é dizer que, mesmo quando a conduta de má-fé se desenvolve logo perante o tribunal a quo, não está vedado ao tribunal ad quem dela conhecer, ainda que a instância recorrida não tenha emitido pronúncia sobre a questão. É esta uma consequência do efeito devolutivo do recurso – que justifica, por exemplo, os casos de intervenção oficiosa previstos no art.º 662.º do Cód. Proc. Civil.
Os tipos gerais de ilicitude reveladores de má-fé processual encontram-se enunciados no n.º 2 do art.º 542.º do Cód. Proc. Civil. Entre eles, destacam-se, pela sua materialidade e essencialidade, os tipos de ilícito enunciados nas suas als. a) e b): “Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: // a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa”.
Do citado proémio do n.º 2 do art.º 542.º do Cód. Proc. Civil extrai-se o tipo de culpa exigido: dolo ou negligência grave. Neste sentido, atua com negligência grave a parte que não podia ignorar que deduzira uma pretensão sem fundamento, procedendo dolosamente a parte que sabe que não tem razão quando deduz determinada pretensão ou quando sustenta ser infundada a pretensão da contraparte, designadamente, afirma serem falsos os factos que a sustentam, quando sabe ser tal pretensão fundada e verdadeiros os factos alegados pela contraparte – Ac. do STJ de 15-02-2022 (1246/20.0T8STB.E1.S1).
Importa aqui sublinhar que “[a]tua de má-fé não apenas a parte que tem consciência da falta de fundamento da pretensão ou oposição, como aquela que, muito embora não tenha tal consciência, deveria ter agido com o dever de cuidado, pois o dever de verdade processual pressupõe que a parte tem a obrigação de indagar a realidade em que funda a sua pretensão (dever de pré-indagação)” – Ac. do STJ de 12-04-2023 (1915/11.6TBALM-A.L1.S1). Assim, tanto age de má-fé o sujeito processual que sabe que não tem razão quando pede, como aquele que não devia ignorar que não tem razão – Ac. do STJ de 15-02-2022 (1246/20.0T8STB.E1.S1). 6.1. Condenação do autor como litigante de má-fé
O autor insurge-se contra a sua condenação em multa, por litigância de má-fé. Sem razão, sobretudo quando a sua conduta é apreciada à luz da demanda, totalmente improcedente, que se constitui como uma ação de reivindicação, correspondente aos dois últimos pedidos – cfr. o Ac. do TRG de 30-03-2023 (159/20.0T8MLG.G1).
Pertinentemente, o autor sublinha a injustiça relativa em que se traduz a sua condenação, por contraponto com a inexistência de qualquer condenação do primeiro réu, que adotou uma conduta processual não menos censurável – mais ligada à parte da lide correspondente à ação de impugnação da justificação notarial. O vencimento de causa não limpa os comportamentos processuais do vencedor – cfr. o Ac. do TRL de 16-12-2021 (12367/19.2T8LSB.L2-2).
Justifica-se, plenamente, a condenação do réu LS em multa, por ter agido processualmente com clara má-fé, como veremos. No entanto, a não formulação deste juízo por parte do tribunal a quo também não limpa os comportamentos processuais do autor. Pode, sim, obrigar ao conhecimento oficioso da má-fé do réu LS nesta segunda instância.
6.2. Atuação do réu LS como litigante de má-fé
O réu LS violou as normas plasmadas no art.º 542.º, n.º 2, als. a) e b), do Cód. Proc. Civil, pois não podia ignorar que os factos que afirmou na escritura de justificação notarial, e que reiterou na contestação a esta ação de simples apreciação negativa – quanto ao primeiro pedido e aos dois apendiculares que se lhe seguem –, são falsos, não tendo nenhuma razão na sua pretensão de aquisição do prédio em litígio por usucapião, por ser manifesta, inequívoca e totalmente infundada. Tal como manipulou os serviços de notariado, o réu ensaiou manipular o tribunal e, assim, branquear o seu comportamento com uma sentença judicial favorável, recorrendo, para o efeito, à mentira sobre a ocorrência de factos essenciais.
Embora bastante frugal na inclusão da atividade processual do réu LS no leque de factos provados – pois da motivação da convicção resulta que poderia ter sido dada por provada toda a versão contrária à apresentada pelo réu, e não apenas por não provada a versão que lhe seria favorável –, o tribunal a quo considerou verificadas condutas reveladoras da litigância de má-fé deste demandado. Mais precisamente, resultaram provados factos incompatíveis com a narrativa posta por este réu na sua contestação.
São inconciliáveis entre si e reveladores da falta deste réu à verdade o facto 19 – factos provados – e os factos descrito nos art.ºs 25.º a 27.º, 43.º e 44.º da contestação. No art.º 3.º da contestação, o réu afirma serem falsos os factos descritos na petição inicial nos art.ºs 15.º e 16.º – factos provados no ponto 6 –, no art.º 18.º – facto provado no ponto 7 –, no art.º 19.º – facto provado no ponto 8 –, no art.º 27.º – facto provado no ponto 13 –, no art.º 30.º – facto provado no ponto 14 – e nos art.ºs 32.º e 33.º – factos provados no ponto 16 –, quando, como resulta da decisão sobre a matéria de facto, eles são verdadeiros. Os factos descritos nestes pontos, no que respeita ao comportamento de MCP e do seu procurador, conflituam, ainda, com a afirmação do réu de ser pública e não contestada a sua putativa atuação como proprietário – cfr. o art.º 49.º da contestação. Por serem pessoais os factos em questão, o réu não podia ignorar – impossibilidade de facto – a falta de adesão à realidade da narrativa por si apresentada, o que revela o seu dolo.
Em suma, o réu LS deve ser condenado, como litigante de má-fé, ao abrigo do art.º 542.º, n.º 2, als. a) e b), do Cód. Proc. Civil, numa multa processual. Deve o valor desta ser fixado considerando a gravidade da atuação do réu, devendo ser tomada em consideração a justiça relativa do caso – isto é, o juízo confirmado sobre a conduta paralela adotada pela contraparte –, sempre com o limite da culpa deste litigante. Entende-se, pois, ajustada a multa de 4 UC. 6.3. Atuação processual da ré M
Não resultaram provados factos dos quais se possa concluir que a ré M atuou no processo com má-fé. 7. Responsabilidade pelas custas
A responsabilidade pelas custas da apelação cabe aos apelados, em partes iguais, por terem ficado vencidos – tendo oferecido contra-alegações (art.º 527.º do Cód. Proc. Civil).
A responsabilidade pelas custas da causa cabe, em partes iguais (1/3), ao autor e a cada um dos réus, considerando a sorte repartida da lide.
C. Dispositivo C.A. Do mérito do recurso
Em face do exposto, na procedência parcial da apelação, acorda-se em alterar a sentença recorrida, quanto ao primeiro capítulo do seu dispositivo: a) julgando-se procedente a impugnação parcial da escritura de justificação notarial identificada no ponto 1 – fundamentação de facto –, outorgada pelo réu LS – na parte respeitante ao prédio nela identificado como “DOIS Urbano” –, por não ter este réu adquirido por usucapião tal prédio dela também objeto, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada, na ficha n.º 2891/20190327, freguesia de Ponta Delgada (São Sebastião), o que obsta a que produza quaisquer efeitos quanto ao mesmo; b) ordenando-se o cancelamento da inscrição AP. 2289 de 2021/01/14 – “Aquisição”, respeitante à descrição objeto da ficha n.º 2891/20190327, freguesia de Ponta Delgada (São Sebastião), da Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada; c) ordenando-se o cancelamento da inscrição AP. 1726 de 2021/02/08 – “Aquisição”, respeitante à descrição objeto da ficha n.º 2891/20190327, freguesia de Ponta Delgada (São Sebastião), da Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada, por assentar num contrato de compra e venda nulo.
Mais se acorda, quanto ao quarto capítulo do dispositivo da sentença recorrida e ao mais nela decidido: d) manter a decisão de condenação do autor apelante como litigante de má-fé; e) no mais subsistindo o decidido pela primeira instância, por não integrar o objeto da apelação.
Por último, acorda-se em: f) condenar o réu LS, como litigante de má-fé, na multa processual de 4 UC (quatro unidades de conta). C.B. Das custas
Custas da apelação a cargo dos apelados, em partes iguais.
Custas da causa a cargo, em partes iguais, do autor (1/3), do réu LS (1/3) e da ré M (1/3). * Notifique.
Após trânsito, comunique-sena primeira instância:
− ao Cartório Notarial onde foi outorgada a escritura de justificação notarial, para averbamento (art.ºs 101.º, n.º 1, 131.º, n.º 1, als. c) e d), e 202.º, al. c), do Cód. do Notariado);
− à Conservatória do Registo Predial;
– ao Ministério Público, para eventual petição do imóvel a favor do Estado.
Lisboa, 07 de novembro de 2023
Paulo Ramos de Faria
Ana Rodrigues da Silva
Rute Alexandra da Silva Sabino Lopes
_______________________________________________________ [1] Conforme decisão do tribunal a quo ou de conhecimento oficioso. [2] Conforme decisão do tribunal a quo.