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VENDA EXECUTIVA
TRANSMISSÃO DA POSSE
CONSTITUTO POSSESSÓRIO
REIVINDICAÇÃO
BENFEITORIAS
Sumário
I – Para aferir da legitimidade singular direta não relevam elementos externos ao objeto formal do processo, mas apenas a posição das partes em relação a esse objeto, tal como ele é gizado pelo autor na petição inicial. II – Com a penhora que recaia sobre objeto corpóreo de um direito real cessa a posse do executado e inicia-se uma nova posse pelo tribunal, que é exercida através do depositário. III – Sendo essa uma posse derivada, dá-se entre ela e a do executado a acessão. IV – Como sucede em qualquer contrato de compra e venda de coisa específica, a venda executiva tem um efeito real de transmissão da propriedade sobre a coisa penhorada. V – Deste modo, ocorre, a par da transferência do direito real de propriedade, um efeito translativo da posse, através da figura do constituto possessório, consagrada, enquanto modo de aquisição derivada da posse, no art. 1263, c), e desenvolvida no art. 1264-1 do Código Civil. VI – O direito ao levantamento das benfeitorias ou à indemnização pelo respetivo valor não tem natureza propter rem ou ob rem. Assim, penhorada a coisa onde foram feitas as benfeitorias, continua a ser o anterior titular do direito a responder junto do possuidor benfeitorizante pelos créditos inerentes e não o exequente, a quem a coisa seja adjudicada, ou o comprador.
Texto Integral
I.
1. EMP01..., SA, intentou a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra EMP02... – Sociedade de Cartões e Papéis, Lda., pedindo que:
a. Seja declarado que a autora é proprietária do prédio urbano destinado a armazém e atividade industrial, com a área total de 12 320,00 m2 e a área coberta de 3 564,00 m2, situado em ..., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...48.º e inscrito no art. ...36.º da matriz predial respetiva;
b. A Ré seja condenada a restituir o prédio à Autora, livre de pessoas e bens;
c. A Ré seja condenada a cessar a prática de qualquer ato que viole o direito de propriedade da Autora sobre o prédio;
d. A Ré seja condenada a pagar à autora uma indemnização para a ressarcir pelo valor da ocupação ilícita do prédio e dos demais danos patrimoniais que causou, a liquidar posteriormente, mas nunca inferior a € 360 000,00;
e. A Ré seja condenada a pagar uma sanção pecuniária compulsória para assegurar a efetividade da sentença, no valor que o tribunal considere adequado, mas nunca inferior ao valor diário de € 100,00.
Alegou, em síntese, que: no Serviço de Finanças ... - 3 correu termos a Execução Fiscal nº...70 em que era executada a Ré; nessa execução, foi penhorado o identificado prédio urbano; no dia 24 de Março de 2010, procedeu-se à venda por propostas em carta fechada, tendo sido aceite a proposta apresentada pelo Banco 1...; no dia 19 de Agosto de 2010, o prédio foi adjudicado ao Banco 1..., pelo valor de € 743 404,59; a Ré invocou, na execução fiscal, a nulidade da venda, mas a sua pretensão foi julgada improcedente pelo Tribunal Tributário ...; no dia 20 de Dezembro de 2015, por deliberação do Banco de Portugal, foi aprovada a resolução do Banco 1...; na medida de resolução ficou decidida a transmissão dos imóveis que eram utilizados ou ocupados pelo Banco 1... no exercício da sua atividade e daqueles cuja transmissão ocorreu por força de uma relação contratual para o Banco 2... e a transmissão dos restantes eram transmitidos para a autora; o prédio que foi adjudicado ao Banco 1... na execução fiscal integrava-se nos imóveis que foram transmitidos para a Autora; a Autora requereu, na execução fiscal, a sua habilitação para prosseguir a causa em substituição do Banco 1..., o que foi deferido por despacho proferido no dia 23 de Janeiro de 2018; a Ré continuou a utilizar o prédio, mantendo nele diverso material; no dia 11 de setembro de 2019, através de carta registada, a Autora reclamou junto da Ré a entrega do prédio, o que esta recusou; a Autora está impossibilitada de utilizar o prédio ou de obter qualquer rendimento através da sua venda ou arrendamento; assim, pretende que a Ré seja condenada a reconhecer o seu direito de propriedade sobre o prédio e a indemnizá-la pelos prejuízos que causou.
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2. Citada, a Ré contestou alegando, também em síntese, que: a Autora carece de legitimidade ativa, uma vez que a medida de resolução do Banco 1..., tomada pelo Banco de Portugal, em virtude da qual alega a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio, é nula, nos termos do disposto no art. 280 do Código Civil, por indeterminabilidade do seu objeto; na data em que essa medida foi tomada, o Banco 1... ainda não tinha adquirido o direito de propriedade sobre o prédio, uma vez que estava pendente, no Tribunal Tributário, o pedido de declaração de nulidade da venda; a venda ao Banco 1... é nula, uma vez que o prédio não foi corretamente identificado nos anúncios quanto à sua composição e o preço praticado foi muito inferior ao do valor de mercado do prédio; é possuidora do prédio há mais de 20 anos, pelo que adquiriu o direito de propriedade sobre ele por usucapião; construiu no prédio um pavilhão destinado a armazém e atividade industrial, no que despendeu € 1 250 000,00.
Concluiu pedindo, ademais da improcedência da ação, em sede de reconvenção, que:
a) Seja declarada anulada ou nula a venda judicial fiscal do prédio;
b) Seja reconhecido o exclusivo direito de propriedade da Ré sobre o prédio;
c) Seja a Autora condenada abster-se de qualquer ato ou prática lesiva do mesmo direito de propriedade da Ré, sem interferência de pessoas e bens;
d) Seja ordenado o cancelamento da Ap. ...66 de 2021/01/12 que incide sobre a descrição urbana ...48 da Conservatória do Registo Predial ... (freguesia ...), com registo de aquisição derivada por compra em processo de Execução a favor do Banco 1..., S.A.;
e) Caso assim não se entenda, seja a Autora condenada a pagar à Ré a quantia de € 1 250 000,00€ atinente aos gastos com a construção no imóvel de um edifício destinado a Armazém e Atividade Industrial, com área coberta de 3 564 m2, acrescida de juros comerciais de mora à taxa legal, a contar da citação até efetivo e integral pagamento, com as legais consequências.
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3. A Autora apresentou réplica, em que: reafirmou a sua legitimidade ativa, por ser a titular do direito de propriedade sobre o prédio reivindicado; disse que a questão da nulidade a venda em execução fiscal ao Banco 1... já foi decidida, por sentença transitada em julgado, pelo Tribunal Tributário, a qual tem força vinculativa entre a as partes; com a penhora, realizada há mais de uma década, a Ré perdeu a posse do prédio. No mais, impugnou o alegado pela Ré.
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4. Na sequência de despacho de adequação do processado, a Ré respondeu à Réplica, reafirmando o teor da contestação.
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5. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, no qual: foi rejeitado o primeiro pedido reconvencional formulado pela Ré, com fundamento na incompetência absoluta, em razão da matéria, do tribunal para o apreciar; julgou-se não verificada a exceção dilatória da ilegitimidade ativa; afirmou-se, tabularmente, estarem verificados os demais pressupostos processuais; foi fixado o valor processual.
Seguiu-se a delimitação dos termos do litígio e o enunciado dos temas da prova.
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6. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença com o seguinte segmento decisório:
“Pelo exposto, decido: 1. Julgar a presente ação parcialmente procedente e, em consequência: Declaro que a autora é proprietária do prédio urbano destinado a armazém e atividade industrial, com a área total de 12.320,00 m2 e a área coberta de 3.564,00 m2, situado em ..., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº...48 e inscrito no art. ...36º da matriz predial respetiva; Condeno a ré a restituir este prédio à autora, livre de pessoas e bens; Condeno a ré a cessar a prática de qualquer ato que viole o direito de propriedade da autora sobre este prédio; Condeno a ré a pagar à autora uma indemnização para a ressarcir pelo valor da ocupação ilícita do prédio e dos demais danos patrimoniais que causou, a liquidar posteriormente. 2. Julgar a reconvenção integralmente improcedente e, em consequência, absolvo a autora dos pedidos contra si formulados.”
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7. Inconformada, a Ré interpôs recurso, quer do despacho saneador, na parte em que julgou não verificada a exceção dilatória da ilegitimidade ativa, quer da sentença, acompanhado da respetiva motivação, em que concluiu do seguinte modo (transcrição):
1) O douto despacho de saneador proferido nos Autos, no que diz respeito à improcedência da exceção da Ilegitimidade Ativa, na vertente adjetiva e substantiva, deve ser revogado, visto ter violado, entre outros, o aposto no artigo 30.º CPC; 2) A Apelada vem dizer que, por deliberação do Banco de Portugal, doravante BdP, datada de 20/12/2015, conjugadamente com o disposto nos artigos 145.º - S e 145.º-T do RGICSF, foram transferidos para a sociedade Autora os direitos e obrigações correspondentes a ativos do Banco 1..., S.A., doravante Banco 1.... 3) Todavia, quer da referida deliberação, quer dos sobreditos preceitos legais, em nenhum momento, se vislumbra que a Autora tenha sido investida na posição de titular do imóvel identificado, ressalvando sempre, que uma das questões /objeto do litígio da demanda está relacionada com a averiguação de resolver “Objeto do litígio: - A quem pertence a propriedade do prédio urbano destinado armazéns e atividade industrial sito em ..., Parque Industrial ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...48 da dita freguesia, e inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... sob o artigo ...85.”, de acordo com o despacho aqui em crise; 4) A verdade é que a Autora foi somente investida num conjunto genérico e indeterminado de direitos e obrigações correspondentes a ativos do Banco 1..., sem que se especifique em lado nenhum que tenha sido investida na posição de titular do imóvel propriedade da aqui Recorrente ou dos créditos daí advenientes. 5) Ademais, do exposto pela Autora, fica-se sem saber que créditos é que o Banco 1... detinha sobre a aqui Requerente e que imóvel propriedade da Recorrente é que ficou investida na posição de titular. 6) Ou seja, podemos reconhecer que o objeto da deliberação do BdP, quanto à identificação concreta e precisa dos direitos e obrigações correspondentes a ativos do Banco 1... sobre a Ora Recorrente, que foram supostamente transferidos para a Autora é indeterminável, de acordo com o artigo 280.º Código Civil. 7) Como tal, a ser assim, como na verdade é, atento o disposto no artigo 30.º, n.º1 do CPC, a Autora não tem interesse direto em demandar. 8) Pelo exposto, inexiste qualquer facto que sustente o pretenso direito demando pela Autora, pelo que, deve esta ser considerada parte ilegítima da presente ação e absolver a aqui Recorrente da instância com as legais consequências – art.º 577.º, alínea e); 578.º e 278.º, n.º 1, alínea d) todos do CPC. 9) E, por conseguinte, estamos perante uma nulidade da deliberação do BdP! 10) Ora, verifica-se que não está determinado e concretizado o objeto dessa mesma deliberação, ou seja, a deliberação devia identificar que direito determinado e obrigações do Banco 1..., máxime da aqui Recorrente, é que aparentemente foram transmitidos para a Autora. O que não aconteceu! 11) Ao não determinar nem concretizar o objeto da deliberação do BdP, esta é nula, por indeterminabilidade do seu objeto, isto porque a Recorrente não sabe se as suas responsabilidades foram transmitidas, ou para o Banco 2..., S.A. que ficou com os ativos, ou se permaneceu no Banco 1..., ou ainda se estão na esfera jurídica da Recorrente. 12) Assim sendo, toda e qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o obrigado/devedor intervenha é nula por indeterminabilidade do seu objeto, podendo ser aplicada à presente situação, por similar, o Acórdão do STJ de uniformização de jurisprudência n.º 4/2001, de 23 de janeiro de 2001. 13) A validade desta operação de transferência para a sociedade Autora dos direitos e obrigações correspondentes a ativos do Banco 1... depende de as partes terem estabelecido o critério ou os critérios objetivos com base nos quais essas obrigações ou créditos serão avaliados no vencimento, a pretensão do credor e o dever do devedor e as circunstâncias legais, judiciais e contratuais correspondentes, o que não se sucedeu! 14) Esta incerteza jurídica, em nenhum momento, poderá ser admitida. E, no caso em apreço, estamos perante uma transmissão de direitos e obrigações genérica ou de conteúdo indeterminado. Assim sendo, há que atentar no problema da sua determinabilidade, à luz do disposto no art.º 280º do Código Civil. 15) Assim sendo, há que atentar no problema da sua determinabilidade, à luz do disposto no art.º 280º do Código Civil. 16) Contudo, e sabendo que a prestação pode ser indeterminada, mas determinável, ou seja, tem que se saber, no momento da constituição, qual o respetivo teor através de um critério para proceder à fixação do respetivo objeto, vide Ac. STJ, Revista 180/98-2ª Secção, 24-02-1999, Ac. STJ Revista n.º 1182/98, 2ª Secção, 14-04-1999; 17) De acordo com a anotação Vaz Serra ao Acórdão do STJ, datado de 02.11.73, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 107 (1974/75), pág. 259), leia-se “Sendo que no momento da constituição da fiança, se exige que seja determinado o título de que a obrigação futura poderá ou deverá resultar, ou, ao menos como há-de ele ser determinado”. 18) Quanto à transmissão dos direitos e obrigações do Banco 1... sobre a Recorrente, requisito este que em nenhum momento se verificou! 19) Desta maneira, sendo a deliberação supra considerada nula, a Autora nunca possuiu a legitimidade que aqui diz possuir, visto que, todos os atos consequentes são nulos e não produzem qualquer efeito jurídico! 20) De acordo com a anotação do Novo Código de Processo Civil Anotado, Abílio Neto, 2ª Ed. Revista e Ampliada, Janeiro 2014, EDIFORUM, Edições Jurídicas, Lda., podemos ler “(…) tal problemática ao campo da definição da legitimidade singular e direta – isto é, à fixação do “critério normal” de determinação da legitimidade das partes, assente na pertinência ou titularidade da relação material controvertida – e resultando da formulação proposta que, pelo contrário, a legitimação extraordinária, traduzida na exigência do litisconsórcio ou na atribuição de legitimidade indireta, não depende das meras afirmações do autor, expressas na petição, mas da efetiva configuração da situação em que assenta, afinal, a própria legitimação dos intervenientes no processo.” 21) Neste sentido, veja-se, ainda, M. Teixeira de Sousa, A Legitimidade Singular em Processo Declarativo, em BMJ, 292.º-53 e ss. e As Partes do Objeto e a Prova na Ação Declarativa na Ação Declarativa, 1995, págs. 48 e ss “A legitimidade processual é apreciada por uma relação da parte com o objeto da ação. Essa relação é estabelecida através do interesse da parte perante esse objeto: é esse interesse que relaciona a parte com o objeto para aferição da legitimidade.” 22) Tendo em consideração a doutrina supra exposta, bem como tudo o que foi mencionado até ao momento, a alegada Autora, não cumpre os requisitos enquanto parte legítima na presente ação. 23) Visto que, não “não depende das meras afirmações do autor, expressas na petição, mas da efetiva configuração da situação em que assenta, afinal, a própria legitimação dos intervenientes no processo.”, como foi o caso. 24) À vista disso, não há qualquer interesse que relaciona a presumida Autora com o objeto da presente ação, para aferir a sua legitimidade. 25) Por isso mesmo, podemos apenas constatar pela total Ilegitimidade Ativa da Autora! 26) Sem prescindir, a douta SENTENÇA que condenou a Ré assenta em pressupostos de facto e de direito erróneos pelo que deve ser revogada; 27) O tribunal a quo proferiu uma sentença estribado na impressão subconsciente de que a Apelada adquiriu o imóvel porque o Banco 1..., credor originário o havia adquirido em venda executiva fiscal e daí não se libertou, relativizando o enquadramento fático trazido ao processo pela Ré para explicar o que aconteceu e a sua pretensão de tutela jurisdicional. 28) Relativamente ao RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO, a Impetrante ouviu quatro (4) testemunhas, a saber: AA, Presidente da Junta de freguesia onde se localiza o imóvel reivindicado, à data da venda executiva fiscal; BB, sócia gerente da empresa que, por mero favor, autorização e consentimento da Ré utiliza uma unidade industrial do complexo industrial na pose da Ré; CC, credor da Ré na quantia de 300.000,00€, utilizado pela Ré para construir o pavilhão industrial, ainda sem receber o capital mutuado e ..., conhecido e das relações do sócio gerente da Ré que explicou a relação da Ré, em termos de posse, com o imóvel reivindicado; 29) Já no que concerne à Impetrada, esta ouviu apenas 2 testemunhas, sendo que a testemunha DD explicou a visita ao imóvel em que a Ré se apresentou como proprietária e possuidora do dito e EE, com funções administrativas na empresa que gere o imóvel, que explicou as dificuldades da Autora em registar o imóvel, devido essencialmente às deficiências da resolução do Banco de Portugal; 30) Todas as testemunhas, inquiridas sobre os atos praticados pela Ré sobre o imóvel, foram unânimes em identificar os atos de posse e não de mera detenção praticados pela Ré sobre o imóvel; 31) Desde já nos adiantamos e estamos seguros que toda a prova carreada pela Ré: declarações de parte, testemunhal foi absolutamente linear, espontânea, coerente, desinteressada e convincente, como a própria decisão sobre a matéria de facto dada como provada pelo tribunal o inculca redondamente; 32) E só não foi considerada suficiente para considerar procedente a contestação/Reconvenção porque o tribunal, procedendo à qualificação jurídica de tais factos, entendeu que essa prova produzida não configurava atos de posse sobre o imóvel mas apenas e tão só atos de mera detenção; 33) Efetivamente, na sessão de julgamento do dia 13/02/2023, a testemunha DD referiu que é a empresa EMP03... gere o imóvel, a 4m e 5s; 34) Esta empresa tentou ter aposse do imóvel e não conseguiu, a 5m51s; 35) O Sr. FF não mostrou sinais de querer sair e não mostrou intenção de pagar renda E quando fez a visita estava cheio …, declarações de 6m01s a 8.59s; 36) Quanto à testemunha EE, da Autora, referiu que existem problemas com o registo predial do imóvel que têm a ver com regularização documental do imóvel… e tomada de posse, o imóvel está ocupado, de 8m e 7s a 11m e 22s; 37) A área comercial fez uma visita em 2019 e enviaram uma carta mas os senhores não desocuparam o imóvel…; 38) Adiantou que o registo ainda não está em nome da EMP01..., esclareceu que existiu uma ata da resolução do banco de Portugal que não inclui este ativo e é por isso que o imóvel ainda não está registado em nome da Autora e ainda está à espera de uma nova ata do banco de Portugal que o inclua…, estas todas de 12m a 42s a 16m a 16s; 39) Quanto às declarações de parte do FF…, esclareceu que a Ré foi obrigada a cessar a atividade e não a retomou devido a dificuldades financeiras e dívidas a credores, nomeadamente à autoridade tributária …, E 40) Explicou que a Ré possui no imóvel uma máquina pesa 16 toneladas e que não se consegue retirar do imóvel e que, desde 2018, cedeu a utilização dessa máquina onde estão as instalações à empresa EMP04..., Lda., cuja sócia gerente é a testemunha BB e não paga nada; 41) As finanças não sabiam que existia pavilhão…. nunca foi abordado por ninguém para pagar renda, as obras realizadas no local e o valor das mesmas, os cães que o guardam e que se considera dono do imóvel, tudo de 41m e 11s a 58m a 31s ….; 42) BB, sócia única e gerente da empresa que utiliza de destruição de papel e detritos orgânicos propriedade da Ré, explicou porque utiliza o imóvel sem pagar renda, porque era funcionária da Ré e cessou o contrato com créditos por liquidar e é uma forma de a compensar, de 7m e 19s e 12m e 56s; 43) Explicou ainda as remodelações nos muros, que o telhado caiu, a implementação das casas de banho e as obras que existiam ao tempo da venda judicial do imóvel em execução fiscal e as que se efetuaram posteriormente, de 13m e 31s a 14m e 56s. 44) A Testemunha da Ré, CC …., esclareceu não tem relação com as partes e contatou na altura em que o imóvel foi colocado à venda pelas finanças com a Dra. GG no Banco 1...…, com a intenção de comprar o imóvel, para garantir o pagamento do seu empréstimo de 300.000,00€, mas que o Banco 1... nunca aceitou, vindo a aperceber-se mais tarde que o Banco 1... comprado o imóvel na venda executiva fiscal, sem que tivesse sabido do anúncio da venda e das respetivas condições, de 12m e 22s a 21m e 46s; 45) Portanto, a convicção do tribunal quanto à prova documental e testemunhal produzida no processo está integralmente colada à apreciação que a Apelada fez da prova nas suas alegações. 46) Destarte, não podemos esquecer a avaliação do terreno e da construção já realizada e a realizar no imóvel levada a cabo pelo Banco 1... em 2010, próxima da venda fiscal, comparando-os pelo valor da adjudicação ao Banco 1.... 47) Pelo exposto, o tribunal devia ter dado como assente os seguintes factos, a saber: 2) A ré despendeu a quantia de € 1.250.000,00 na construção no prédio de um pavilhão destinado a armazém e atividade industrial, noutros melhoramentos e em manutenção.” 48) Ora, estes factos foram os que resultaram da instrução da causa e da audição das testemunhas e são essenciais para formação da convicção do tribunal, reiterando-se que o tribunal, relativamente à provada da posse da Ré sobre o imóvel reivindicado transmutou atos de posse em atos de mera detenção, não aceitando que um ato tão evidente de acordo com as regras da experiência comum como seja a existência de cães a guardar o imóvel e a proibir a entrada a quem quer que seja, sejam configurados com atos de mera detenção e não de posse. 49) DE DIREITO: nenhuma das partes beneficia da presunção estabelecida no art.º 7.º do C R Predial, sendo certo que tal presunção não abrange a área, confrontações e/ou limites dos imóveis registados, vide a este propósito o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 23/01/2017, Proc. n.611/13.4TBFLG.P1, disponível in www.dgsi.pt 50) No entanto, no caso sub juditio ambas as partes arrogaram-se donas do mesmo prédio urbano, sendo que o que a Autora reivindica é um terreno apto para construção, como se nenhuma construção existisse implantada, o que, como se apurou da instrução da causa, não é verdade e a Ré reivindica esse mesmo prédio, mas já com a construção existente incluída; 51) Portanto, confrontados com a inexistência de presunção legal da titularidade do direito de propriedade do prédio em dissídio, não tem aplicação ao caso concreto o plasmado no art. 350.º, n.º 2 do CC; 52) Assim, a Apelante demonstrando que por si e pelos seus antepossuidores possuía aquele prédio urbano, há mais de 20 anos, com o pavilhão construído, reconhecido lhe devia ter sido o seu direito de propriedade; 53) Cumprindo referir que a Apelante beneficia da presunção da titularidade do direito de propriedade a seu favor, nos termos do nº 1 do art. 1268. do CC. 54) Isto porque, de acordo com alguns pensadores como sejam Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, III, anotação ao art. 1311º, Carvalho Fernandes, in Lições de Direitos Reais, 4ª Ed., pp. 262 e 263, Menezes Leitão, in Direitos Reais, 4ª ed., p. 234, José Alberto Gonzalez, in Direitos Reais, 5ª ed., pp. 425 e 426 e Machado Oliveira, in A Posse, 1981, pp. 80, 81 e 82), importa ter em atenção que àquele que quer ver reconhecido o seu direito de propriedade contra outrem, e eventualmente obter a restituição da coisa, cabe sem dúvida o ónus de provar esse direito de propriedade e que a coisa se encontra na posse ou é detida pelo demandado. 55) Porém, poderia suceder que o transmitente não fosse o verdadeiro ou legítimo proprietário, nada podendo então ter transmitido, pelo que, não lhe é suficiente provar que adquiriu derivadamente, antes terá que provar que o direito já existia na pessoa deste e antecessores adquirentes, até se chegar à formação originária do direito, o que a Apelante fez no caso concreto juntado aos autos todos os documentos constituídos da sua aquisição derivada ainda antes do ano de 2000, pelos seus antepossuidores. 56) Isto será frequentemente difícil ou mesmo impossível de fazer (trata-se da probatio diabolica de que se fala frequentemente). Esta necessidade de prova sucessiva é facilitada (“sofre duas atenuações”, na expressão de Carvalho Fernandes, ibidem), pelo regime decorrente ora do da usucapião ora das presunções conferidas pelo registo (art. 7º do CRPredial) e pela posse (art. 1268º nº 1 do CCivil). No primeiro caso, feita a prova da posse boa para a usucapião (facilitada pelo regime da acessão e da sucessão na posse) e da correspondente aquisição, fica provada a titularidade do direito (é sabido que a usucapião é uma forma de aquisição originária que destrói quaisquer direitos em contrário). Temos aqui um fenómeno constitutivo do direito, que leva então à demonstração efetiva do direito de propriedade. A presunção possessória (e a registral) atua por via diversa, fazendo-o mediante a inversão do ónus da prova. Se o reivindicante beneficiar da presunção, cabe a quem se arrogue dono da coisa fazer a prova que a ilida. Neste caso não pode falar-se, obviamente, num fenómeno constitutivo do direito que leva à demonstração efetiva do direito de propriedade, mas sim num fenómeno presuntivo. Ora, tal situação presuntiva, não sendo ilidida a presunção, não tem por que não poder vale para todos os efeitos como se o direito de propriedade tivesse sido provado constitutivamente. Na realidade, a função de qualquer presunção legal é precisamente a de conferir o direito (até demonstração do contrário) sem que o beneficiário o tenha de provar (tem que provar é a base da presunção, o que é uma coisa muito diferente)”, seguimos de perto o Acórdão citado infra de 21/06/2016. 57) Ora, no caso dos autos, atentos os factos concretos dados como provados na sentença, de 13) a 20), tais factos ou comportamentos da Recorrente e dos antepossuidores traduzem manifestações claramente inseríveis no conceito de posse, neste caso posse à imagem do direito de propriedade; 58) Pelo que exteriorização mais pujante da atuação material à imagem do direito de propriedade sobre um imóvel não existe do que como é referido na sentença ter cães a guardar o terreno e o pavilhão industrial que se considera de sua propriedade e para evitar a entrada de terceiros, não autorizados ou a entrega do prédio devoluto de pessoas e bens à Apelada, exercendo desta forma uma atuação que revela só por si a presença do corpus (o exercício material do direito) e do animus (o sentimento psicológico ou intenção de exercer o direito como sendo o seu titular) em termos de propriedade (posse à imagem do direito de propriedade); 59) Neste sentido, segue o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 21/06/2016, Proc. 7487/11.4TBVNG.P2.S1, disponível in www.dgsi.pt: “II. Mostrando-se, através dos factos provados e da interpretação que a estes dá o decisor da matéria de facto, serem concordantes entre si as confrontações físicas de um prédio e as confrontações constantes da descrição registral, goza o titular inscrito da presunção da titularidade do direito (art. 7º do CRPredial), sendo desinteressante para o caso a circunstância da presunção não dever abranger os elementos identificadores do prédio.”. 60) Sem prescindir e ainda quanto ao direito de propriedade, como acima se disse ninguém pode transferir para outrem mais do que o próprio possui - nemo plus alio transferre potest quam ipse habet -, pelo que necessário se torna que o adquirente demonstre que o direito existia na esfera do alienante, alegando e provando os factos que consubstanciam a sua causa genética - usucapião, ocupação ou acessão. 61) Contudo, muitas vezes, a prova da aquisição originária, máxime a da usucapião, é tremendamente difícil de conseguir (prova diabólica), pelo que, a lei estabelece presunções legais do direito de propriedade. 62) Ora, no caso em apreço, a Apelante alegou que desde o ano de 2000, por si e pelos seus antepossuidores, que utilizava o referido prédio urbano onde se integra o pavilhão industrial no exercício do seu escopo lucrativo com exclusão de outrem, como se pode verificar pelos art.ºs 85.º a 103.º da contestação/Reconvenção e factos assentos na sentença 13) a 20), tal situação, em conjugação com a escritura de aquisição derivada do imóvel a seu favor poderia traduzir-se, por parte da Apelante, numa aquisição derivada da posse na modalidade de traditio brevi manu, da qual se poderia então presumir o direito de propriedade nos termos do disposto no art.º 1268.º, 1, do CC. 63) E para tal tornava-se necessário que a Apelante se mantivesse como possuidora atual da coisa. 64) Ora, volvendo ao caso concreto, verifica-se que a Apelante se mantém possuidora atual, fatos 13) a 20) da sentença. 65) Pelo exposto, atendendo a que a Apelante mantém a posse atual sobre o imóvel aqui em discussão nestes autos, a ação deverá ser procedente. 66) Ainda sem prescindir, para o caso de se admitir, o que não se aceita, que a Apelante é mera detentora e não possuidora sobre o aduzido imóvel: terreno e unidade industrial, composta por três naves aqui em causa, considerando os factos provados 13) a 20) da sentença, e ainda o facto cuja prova se peticiona na presente apelação, 67) Pagando a mesma todos encargos inerentes do prédio, nomeadamente de água, luz e gás, bem como as normais despesas de conservação do prédio, estando inclusive uma parte arrendada a outra empresa. 68) Sempre agiu e age perante todos como legítima e jurídica proprietária, mormente perante empresas vizinhas, conhecidos, clientes, fornecedores, entidades administrativas; Câmaras Municipais, Ministério do Ambiente, Economia e outros. 69) Sendo certo que, continua a todo o tempo a fazer obras de melhoramento, manutenção e adaptação do armazém e instalações de apoio ao fim que pretende. 70) Obras e benfeitorias essas realizadas a expensas suas, nas quais cfr. se verifica pelo Doc. n.º ... e ... da contestação/reconvenção e da prova testemunhal produzida gastou mais de 801.120,00€. 71) Mas que, com os melhoramentos, a manutenção e as benfeitorias que foi introduzindo no imóvel, desde 2010, data do relatório junto como Doc. n.º ... da contestação/Reconvenção até ao momento presente, devidamente atualizados, se computam em mais de 1.250.000,00€ (Um milhão duzentos e cinquenta mil euros), cujo montante pretende ser ressarcida, caso não lhe seja reconhecido o seu direito de propriedade sobre o sobredito imóvel. 72) Deve ser a Apelada ser condenada a pagar à Apelante a quantia de 1.250.000,00€ (Um milhão duzentos e cinquenta mil euros) atinente aos gastos com a construção no imóvel de um edifício destinado a Armazém e atividade Industrial, com área coberta de 3.564 m2, acrescido de juros comerciais de mora à taxa legal, a contar da citação até efetivo e integral pagamento, com as legais consequências, ou, em quantia que se venha a liquidar em execução de sentença. 73) Da indemnização para ressarcir a apelada pela ocupação ilicita do prédio e demais danos patrimoniais, configura uma verdadeira sanção pecuniária compulsória, pese embora não se entenda até o seu deferimento, uma vez que, o tribunal a considera como tal, mas no seguimento decisório acaba por decretar esta indemnização; 74) Quanto a esta questão importa precisar que a sanção pecuniária compulsória decorre da aplicação do disposto no art. 829.-A do CC e alicerça-se na insuficiência da execução específica prevista no art. 827. CC. 75) No que concerne à fungibilidade ou da infungibilidade da prestação, esta soluciona-se, na realidade, pela possibilidade ou pela impossibilidade de ter lugar o cumprimento por terceiro. 76) Como refere, Calvão da Silva, in Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, § 95, e Estudos de Direito Civil, pg. 256, esta perscrutação constitui um problema de interpretação negocial, que não pode ser encontrada com base em critérios presuntivos. 77) Em todo o caso, em abstrato, sempre se poderá dizer que, as prestações de coisas são fungíveis e que mesmo que a coisa a prestar seja infungível, ou seja, atento o plasmado no art. 207 do CC, insubstituível por outra, de acordo com Calvão da Silva, na obra antedita, no local citado, nota 665, há sub-rogabilidade do devedor sem qualquer prejuízo para o credor, que vê o seu interesse plenamente satisfeito pela entrega da coisa, quer seja feita pelo devedor, quer seja feita por terceiro. 78) Assim, não tem aplicabilidade no caso concreto a sanção pecuniária compulsória peticionada pela Apelada sob a forma de indemnização por ressarcimento pelo valor da ocupação ilícita do prédio e dos demais danos patrimoniais que causou, a liquidar posteriormente. 79) Como ensina Calvão da Silva, in “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, 1987, pág. 274, “A decisiva condição legal da intervenção do tribunal é, por conseguinte, a presença, ao tempo da sentença, de uma cláusula manifestamente excessiva, - não basta uma cláusula excessiva, cuja pena seja superior ao dano -, de uma cláusula cujo montante desmesurado e desproporcional ao dano seja de excesso manifesto e evidente, numa palavra de excesso extraordinário, enorme, que salte aos olhos. Tem de ser, portanto, uma desproporção evidente, patente substancial e extraordinária, entre o dano causado e a pena estipulada, mas já não a ausência de dano em si”. 80) Assim, deve a presente ação deve ser julgada totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, ser julgado procedente, por provado o pedido reconvencional deduzido pela Apelante; 81) Assim, apodítico é que a sentença recorrida violou, entre outros, os seguintes preceitos legais: 13.º, 20.º, 202.º e 205.º da CRP; e os artigos 3.º, 5.; 6.º, 8.; 186., n.s 1 e 2; 465.; 572.; 577., b); 581., n. 4; 590.º; 597.; 607.º n.ºs 4 e 5; 609.º, n.º 2 e 662.,n. 2, alínea c) todos do CPC e os art.s 342.º; 344.; 350.; 829-A; 859.º; 1251.; 1267; 1268.; 1311. do CC; e art. 7. do Código de Registo Predial.
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8. A Recorrida respondeu, concluindo as suas contra-alegações nos seguintes termos (transcrição):
1) Inconformada com a sentença proferida nos presentes autos, veio a Recorrente apresentar recurso que assenta essencialmente na incorreta avaliação dos factos e erro na matéria de facto julgada como provada e não provada, e, em consequência, numa errada aplicação do Direito. Como se irá demonstrar, não tem qualquer fundamento a pretensão do Recorrente. Ao contrário do alegado por esta, andou bem o Tribunal “a quo” quando julgou procedente a ação. 2) Andou bem o Tribunal “a quo” em considerar que: • A Recorrida é proprietária do prédio urbano destinado a armazém e atividade industrial, com a área total de 12.320,00 m2 e a área coberta de 3.564,00 m2 , situado em ..., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº...48 e inscrito no art. ...36º da matriz predial respetiva; 3) Condenar a Recorrente a restituir este prédio à Recorrida, livre de pessoas e bens; 4) Condenar a Recorrente a cessar a prática de qualquer ato que viole o direito de propriedade da Recorrida sobre este prédio; 5) Condenar a Recorrente a pagar à Recorrida uma indemnização para a ressarcir pelo valor da ocupação ilícita do prédio e dos demais danos patrimoniais que causou, a liquidar posteriormente 6) No Serviço de Finanças ... - 3 correu termos a Execução Fiscal nº...70 em que era executada a ré; 7) Nesta execução foi penhorado o prédio urbano destinado a armazém e atividade industrial, com a área total de 12.320,00 m2 e a área coberta de 3.564,00 m2, situado em ..., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº...48 e inscrito no art. ...36º da matriz predial respetiva 8) No dia 24 de março de 2010 procedeu-se à venda deste prédio por propostas em carta fechada. Em 19 de Agosto de 2010 este prédio foi adjudicado ao Banco 1... pelo valor de € 743.404,59 9) 19 de maio de 2010 a ré invocou na execução fiscal a nulidade da venda. A pretensão da ré foi julgada improcedente por despacho do Tribunal Tributário ... proferido no dia 29 de março de 2019, já transitado em julgado. 10) No dia 20 de dezembro de 2015, por deliberação do Banco de Portugal, foi determinada a resolução do Banco 1.... Na medida de resolução ficou decidido que os imóveis que eram utilizados ou ocupados pelo Banco 1... no exercício da sua atividade e aqueles cuja transmissão ocorreu por força de uma relação contratual eram transmitidos para o Banco 2... e que os restantes imóveis eram transmitidos para a autora 11) O prédio que foi adjudicado ao Banco 1... na execução fiscal integrava-se nos imóveis que foram transmitidos para a autora. 12) No dia 12 de janeiro de 2021 a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio foi inscrita no registo predial a favor do Banco 1... por compra em processo de execução 13) A ré não entregou o prédio à autora. A autora está impossibilitada de utilizar o prédio ou de obter qualquer rendimento através da sua venda ou arrendamento. Da Legitimidade da Recorrida – EMP01.... S.A. 14) No âmbito do Processo de Execução Fiscal (PEF) N.º ...70, o Banco 1..., S.A. (Banco 1...) apresentou proposta de adjudicação pelo imóvel reivindicado nos autos – prédio urbano sito em ..., Parque Industrial ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...48 da dita freguesia, e inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... sob o artigo ...85 – tendo depositado o preço no valor de € 743.404,59 (setecentos e quarenta e três mil quatrocentos e quatro euros e cinquenta e nove cêntimos). 15) A ora Recorrida foi habilitada no referido processo judicial e ficou investida na posição do adquirente (porque sucedeu ao Banco 1... na titularidade da propriedade do imóvel reivindicado nos autos), conforme Sentença proferida no apenso 2062/10.... e já transitada em julgado a 08/02/2018. 16) Da Sentença proferida pelo Tribunal Tributário no referido apenso A resultou que: “Compulsados os autos verifica-se que, os documentos juntos pela Requerente, ids. no probatório, comprovam a aquisição, pela requerente EMP01... S.A., da qualidade jurídica assumida no presente incidente de execução fiscal pelo banco Banco 1... S.A., atento ainda o disposto no artigo 145.º-O, n.ºs 1, 3, 4, 5 e 7 do DL 238/92 de 31/12. Pelo que, de acordo como o disposto no artigo 356.º, n.º1, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil, cumpre considerar a requerente habilitada a prosseguir os ulteriores termos processuais, na posição jurídica assumida pelo banco Banco 1... S.A.” 17) Já com a EMP01..., S.A., aqui Recorrida, devidamente habilitada nos autos em substituição do Banco 1..., a 30 de março de 2019, o Tribunal Tributário ... proferiu Sentença final decidindo pela não anulação da venda fiscal conforme certidão de Sentença proferida. 18) Não tendo sido anulada a venda fiscal, a EMP01..., S.A., aqui Recorrida, – já habilitada na posição processual do Banco 1... aquando da prolação da sentença final – é mais do que parte legítima para concretizar a decisão proferida pelo Tribunal Tributário .... Da Medida de Resolução Do Banco De Portugal 19) Pois de acordo com o exarado na Medida de Resolução imposta pelo Banco de Portugal ao Banco 1..., conjugado com os n.ºs 1, 3, 4, 5 e 7 do artigo 145º-O do Decreto-Lei 238/92, de 31 de dezembro, com a redação atualmente em vigor, afigura-se estar devidamente legitimada a posição da EMP01..., S.A. nos processos anteriormente titulados pelo Banco 1.... 20) No caso concreto, ainda que se questione o mérito da medida de resolução do BdP, existe uma sentença judicial a habilitar a EMP01..., S.A., ora Autora, na posição processual do adquirente Banco 1... no âmbito do processo que correu no Tribunal Tributário .... 21) Por isso, ainda que à data da resolução do Banco 1..., o processo judicial estivesse pendente no Tribunal Tributário, o que é facto é que a Recorrida se habilitou neste processo na posição do Banco 1... ficando sujeita à decisão que, em 2019, veio a ser proferida no sentido de não anulação da venda fiscal. Assim, 22) Estamos perante uma dupla legitimidade: a legitimidade material/substantiva por força do ato administrativo que configura a medida de resolução (ope legis) e a legitimidade processual considerando a EMP01... habilitada a prosseguir os ulteriores termos processuais, na posição jurídica assumida pelo Banco 1.... 23) Aqui chegados, além da legitimidade ope legis da EMP01..., S.A., proprietária do imóvel por força da medida de resolução do Banco de Portugal – investida na posição de titular dos direitos e obrigações correspondentes a ativos anteriormente detidos pelo Banco 1... – in casu, existe uma sentença judicial, já transitada em julgado, que determinou a habilitação processual da EMP01... em substituição do Banco 1... no processo fiscal em que foi discutida a adjudicação deste imóvel 24) Nessa medida, é nosso melhor entendimento que, considerando que, a 2019, o titular da propriedade do Imóvel era o Banco 1... (como aponta o título de transmissão, ainda que em data de posterior à resolução), então essa titularidade foi transferida para a EMP01..., S.A., nos termos e por efeitos da Deliberação do Banco de Portugal, de 20 de dezembro de 2015, que aplicou ao Banco 1... uma medida de resolução (cfr. alínea (a), do n.º 1, do Anexo 2, referida supra). 25) Duvidas não restam da aquisição do direito de propriedade sobre o prédio a favor do Banco 1... presume-se atendendo à sua inscrição do registo predial. Pelo que, este direito transmitiu-se para a EMP01..., S.A., ora Recorrida, por força da medida de resolução que foi aplicada pelo Banco de Portugal e da sua habilitação na Execução Fiscal nº...70. Da Nulidade ou ilegalidade da Venda e da Adjudicação 26) Como é do conhecimento da Recorrente, dado que teve intervenção ativa do processo n.º 2062/10...., que correu seus termos no ..., UO 2, na qualidade de requerente – a anulação de uma venda efetuada no âmbito de uma execução fiscal tem de ser peticionada nos Tribunais Tributários (como já aconteceu) 27) que estamos perante uma decisão judicial transitada em julgado e que, neste momento, é inatacável. Existe autoridade do caso julgado! 28) Nos termos do n.º1, do art.º 619.º do CPC, “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”. 29) Os argumentos ora trazidos pela Recorrente já foram todos apreciados e decididos no processo judicial que decorreu no Tribunal Tributário ..., tratando-se de uma repetição. 30) Todos os argumentos trazidos pela Recorrente estão ancorados em pressupostos que já não são sequer atacáveis uma vez que a Recorrente retende por em causa o mérito de uma decisão já transitada em julgado. 31) Por força da autoridade de caso julgado, impõe-se aceitar a decisão proferida no primeiro processo, não cabendo nestes autos discorrer novamente sobre uma causa já decidida. 32) Mais, trata-se de uma questão que foi suscitada pela Recorrente em sede do processo de execução fiscal e foi inclusivamente julgada improcedente pelo Tribunal Tributário ... por despacho que transitou em julgado, pelo que, esta questão está definitivamente decidida e julgada. Da Aquisição por Usucapião 33) A Recorrente invoca que adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio propriedade da Recorrida pela usucapião, contudo vejamos, 34) Estatui o artigo 1287º do Código Civil que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação. 35) Usucapião que produz uma aquisição originária e que opera com efeitos retroativos, reportados ao início da posse respetiva, conforme prescreve o artigo 1288º do Código Civil, mas que, relativamente ao direito possuído, não pode verificar-se nos detentores ou possuidores precários, exceto achando-se invertido o título de posse, caso em que o prazo para usucapir só corre desde que se verifique a inversão do título (artigo 1290º do Código Civil). 36) Princípio que entronca naqueloutro de que a posse precária não constitui uma verdadeira posse, senão a partir do momento da interversio possessionis. 37) Posse que se traduz num elemento material de fruição de um direito (o corpus) e de um elemento intencional vertido na intenção de exercer um poder sobre as coisas (o animus sibi habendi). 38) Necessário se torna que o detentor expresse diretamente junto da pessoa em nome de quem possuía a sua intenção de atuar como titular do direito. Estando os interessados investidos numa posse precária (derivada da ocupação ilegítima), é necessária a conversão dessa posse em nome de outrem em posse em nome próprio. 39) E não denunciem qualquer atos suficientes de oposição da Recorrente em relação à dona e proprietária do imóvel, ora Recorrida, suscetível de consubstanciar a inversão da posse, de modo a poder concluir-se que de possuidor em nome alheio à Recorrente passou à qualidade de possuidor em nome próprio do direito de propriedade. 40) é a Recorrida tentada a afirmar que, na ausência de exteriorização de uma vontade categórica de possuir em nome próprio, por parte da Recorrente revelada por atos positivos de oposição ao proprietário, é vedado à Recorrente adquirir por usucapião. 41) A Recorrente não adquiriu a posse efetiva e, não passou de possuidor precário, logo não pode adquirir por usucapião. 42) Asserção que parece evidente, porque a detenção, enquanto não se converter em posse, mediante inversão do título, permanece precária, tal como se iniciou, não bastando para tanto a simples vontade do detentor. 43) ao longo destes anos a Recorrida esteve envolvida num processo de execução fiscal que viria a estar mais de uma década em tramitação no Tribunal Tributário ... que decidiu não haver fundamento para anular a venda fiscal e, como tal, levou ao decaimento as pretensões da Recorrente que perdeu a causa. 44) Acresce que, ao longo destes anos a Recorrente não pagou um euro a título de renda ou utilização do imóvel, o que também releva uma ocupação ilegítima (mera detenção). 45) A Recorrida apenas é mera detentora do prédio, não podendo adquirir, por usucapião, o correspondente direito de propriedade. 46) A relação material é idêntica na posse e na detenção e o que eleva a detenção à posse é o animus sibi habendi. Sem ele, a relação material é pura detenção e não pode invocar-se para justificar qualquer efeito possessório. 47) Tanto mais que não pode a Recorrente ignorar que está registada a favor do Banco 1... a aquisição da propriedade do prédio beneficiando da presunção da titularidade do direito a que alude o artigo 7º do Código de Registo Predial. 48) Veja-se as declarações de parte de FF de 08m e 39s a 12m e 51s “apresentei uma reclamação à venda no processo de execução fiscal, mas não foi atendida” 49) não devem proceder os argumentos aduzidos pela Recorrente, por não corresponderem à verdade, apenas denotam que a Recorrente pretende desvirtuar a verdade dos factos, pelo que, tais argumentos trazidos pela Recorrente não podem ser acolhidos, pelo que andam bem o Tribunal “a quo”. 50) Em consequência da penhora o executado perde os poderes de gozo que integram o seu direito de propriedade sobre os bens penhorados. Estes poderes são transferidos para o tribunal através da apreensão material dos bens ou da nomeação de um depositário. O depositário pode ser o próprio executado desde que não exista oposição do exequente (art. 756º nº1 do Cód. de Processo Civil). 51) Na jurisprudência pode ver-se o ver-se o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de maio de 2001, de acordo com o qual “o dono da coisa perde a posse da mesma com a penhora, ainda que seja nomeado depositário; com a venda judicial perde a propriedade; com a venda, a propriedade e a posse transferem-se para o adquirente” Proferido no processo nº01A1116, in www.dgsi.pt Da interrupção do prazo de usucapião – Artigo 1292º do Código Civil 52) Conforme decorre do Despacho emitido pelo Serviço de Finanças ... na data de 19 de agosto de 2010, o bem imóvel que se reivindica nos autos foi adjudicado pelo Banco 1..., através da ... venda judicial pela modalidade de carta fechada, num processo de execução fiscal em que a Recorrente foi executada, conforme documento ... junto com a petição inicial. 53) A Recorrente olvida ostensivamente a existência do referido processo de execução fiscal em que foi certamente citada e em que tomou conhecimento da adjudicação do bem imóvel em discussão pelo Banco 1... – tanto que recorreu do resultado do PEF para o Tribunal Tributário .... 54) Para tanto veja-se as declarações de parte do gerente da Recorrente, FF, com início às 10:29:23h e términus às 12:14:21h, com a duração de 1h:02m:52s, quando questionado ao minuto 00:33m:40s - Ilustre Mandatário: “soube mais tarde que o imóvel foi vendido ou Banco 1...?” - FF: “exatamente” 55) Face às declarações do gerente da Recorrente o mesmo afirmou que sabia que o imóvel, foi vendido no âmbito do processo de execução fiscal, pelo que, nesta data interrompeu-se o prazo de usucapião. 56) ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 323º do Código Civil, “A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente. 57) Dito isto, se o prazo de contagem da usucapião foi interrompido pela citação da Recorrente (no processo fiscal), teria que começar a contar novo prazo a partir do ato interruptivo, no fundo, a partir da data da adjudicação do imóvel ao Banco 1... em agosto de 2010. 58) Porquanto nos termos do n.º 1 do artigo 326º do Código Civil, “A interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do ato interruptivo, sem prejuízo do disposto nos n.os 1 e 3 do artigo seguinte.” 59) Se, porventura, se entender que está em curso o prazo para reconhecimento do direito de propriedade por usucapião – o que não aceitamos pelos argumentos já aduzidos, mas concedemos por mera facilidade de raciocínio – ele ter-se-á iniciado em Agosto de 2010, data da adjudicação do imóvel ao Banco 1.... 60) Tal prazo seria sempre de 20 (vinte) anos atendendo à existência de má fé por parte da Recorrente que tinha conhecimento de que o imóvel foi adjudicado ao Banco 1... e que litigou durante quase uma década no Tribunal Tributário ... pedindo que a venda fiscal fosse dada como anulada. apenas se poderia falar em usucapião em 2030…(termo do prazo de 20 anos a partir do ano de 2010) 61) Se se entendesse operar a usucapião, sempre estaria o prazo interrompido pois a Recorrente foi citada no âmbito do processo de execução fiscal, o que interrompe o prazo de usucapião. 62) Reproduzindo com a devida vénia o sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, no 399/10.0TCGMR.G2.S1, proferido em 13-02-2014, disponível em www.dgsi.pt indica-se que “O prazo da usucapião pode interromper-se, tal como a prescrição, por via de um “meio judicial” (para alem da citação ou da notificação), pelo qual se dê conhecimento da oposição àquele contra quem o direito possa ser exercido. Não sendo bastante a interpelação ou qualquer outra forma de comunicação extrajudicial ao obrigado da cessação da inércia do respetivo titular no exercício do direito. Sendo, pois, necessária a prática de ato judicial que, direta ou indiretamente, dê a conhecer a intenção do titular de exercer a sua pretensão.” Quanto às benfeitorias 63) A Recorrente alega ter realizado diversas benfeitorias no imóvel, contudo, não foi feita qualquer prova quer documental quer testemunhal nesse sentido, 64) Da prova produzida em sede de audiência de julgamento e das testemunhas arroladas e ouvidas pela Recorrente não resultou provado que tenha despendida a quantia de € 1.250.000,00 na construção no prédio do pavilhão que iniciou, ou noutros melhoramentos e em manutenção (art. 342º nº1 do Cód. Civil) 65) Não logrou a Recorrente em provar por meio de fatura, um documento, um orçamento que fundamente o valor peticionado a titulo de melhoramentos, manutenção e benfeitorias que a Recorrente alega ter introduzido no imóvel 66) Para tanto veja-se as declarações de parte do gerente da Recorrente, FF, com início às 10:29:23h e términus às 12:14:21h, com a duração de 1h:02m:52s, quando questionado ao minuto 00:38m:00s - Meritíssimo Juiz: “A partir de 2012 fez obras no local?” - FF: “a partir de 2012 não, a coisa começou a ficar deficitária, eu referia-me a antes de 2012, aí já não” 67) Pelo que andou bem o Tribunal “a quo” em considerar por não provado o pedido formulado pela Recorrente a titulo de benfeitorias realizadas no imóvel. 68) Deste modo, e face a todo o acima exposto resulta claro que quer quanto à matéria de facto e de direito não assiste qualquer razão à Recorrente. 69) Com efeito, a douta Sentença do Tribunal “a quo”, fez uma correta, fundamentada e completa apreciação das normas legais aplicáveis, tendo concluído em conformidade com as mesmas no sentido exposto na decisão final. 70) Em face do exposto, resta concluir pela falta de fundamento do recurso apresentado, pelo que, andou bem o Tribunal “a quo” ao ter condenado o Recorrente (…)”
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635-4, 636 e 639-1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608-2, parte final,ex vi do art. 663-2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Tendo isto presente, as questões que se colocam à apreciação podem ser sintetizadas do seguinte modo:
1.ª Impugnação do segmento do despacho saneador em que se julgou não verificada a exceção dilatória da ilegitimidade ativa: saber se a decisão recorrida, ao considerar, concretamente, que a Autora dispõe de legitimidade ad causam procedeu a uma interpretação errada do disposto no art. 30 do Código de Processo Civil (“Conclusões” 1) a 25));
2.ª Impugnação da sentença:
A) Decisão da matéria de facto: saber se a prova produzida impõe a alteração da decisão sobre o facto discriminado (“A ré despendeu a quantia de € 1 250 000,00 na construção no prédio de um pavilhão destinado a armazém e atividade industrial, noutros melhoramentos e em manutenção”) (“Conclusões” 26) a 48));
B) Decisão da matéria de Direito: saber se: a) a Autora adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio identificado, estando a Ré obrigada a proceder à sua entrega; b) em caso de resposta afirmativa, saber se: a ocupação do prédio pela Ré provocou dano na esfera jurídica da Autora; e se a Ré tem direito a indemnização por benfeitorias realizadas no prédio (“conclusões 49) a 81)).
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III.
1).1. Seguindo a sequência traçada, começamos pela impugnação do despacho saneador na parte em que foi julgada improcedente a exceção dilatória da ilegitimidade ativa.
A resposta afigura-se de grande simplicidade.
Nos termos do art. 30-1 do Código de Processo Civil (CPC) vigente, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06, “[o] autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.”
O n.º 2 do mesmo artigo define o alcance do interesse de que resulta a legitimidade: a legitimidade do autor afere-se pela utilidade derivada da procedência da ação e a legitimidade do réu pelo prejuízo que dessa procedência advenha. Quer isto dizer que o autor é parte legítima sempre que a procedência da ação lhe confira (para si e não para outrem) uma vantagem ou utilidade, e o réu é parte legítima sempre que se vislumbre que tal procedência lhe venha a causar (para si e não para outrem, também) uma desvantagem. Como escreve Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, I, 3.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1948, p. 84) exige-se que o interesse seja direto. “Não basta, pois, um interesse indireto ou reflexo; não basta que a decisão da causa seja suscetível de afetar, por via de repercussão ou por via reflexa, uma relação jurídica de que a pessoa seja titular.”
Ao contrário da personalidade e da capacidade judiciária – que são requisitos abstratamente exigidos para que qualquer pessoa possa ser autor ou réu em qualquer ação –, a legitimidade consiste numa posição da parte perante determinada ação – posição que lhe permite dirigir a pretensão formulada ou a defesa que contra esta possa ser oposta (Antunes Varela / J. Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra, 1985, p. 131).
Perante isto, a questão que se coloca é a de saber se a eventual procedência do pedido em causa é suscetível de trazer à Autora (rectius, à Recorrida) uma vantagem ou uma utilidade direta e concreta.
Sem prejuízo de disposição legal em contrário, a legitimidade apura-se pela relação controvertida tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial (art. 30-3).
Esta norma reproduz a do art. 26-3 do CPC anterior, na redação emergente da reforma levada a cabo pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12. Com a sua parte final, ficou resolvida, no sentido propugnado por Barbosa de Magalhães (Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil, I, p. 16), a questão que, no âmbito do primitivo art. 26, o opunha a Alberto dos Reis (Legitimidade das Partes, Boletim da Faculdade de Direito, VIII, pp. 64 e ss.). Entendia este processualista que a relação material controvertida atributiva da legitimidade não devia ser a configurada pelo autor na petição inicial, mas a que no decurso da causa se viesse a apurar como verdadeiramente existente.
A questão não era inócua: a solução de Barbosa de Magalhães, também sufragada por Palma Carlos (Projeto de Alteração de Algumas Disposições dos Livros I e II do Código de Processo Civil, Lisboa, 1961, pp. 57 e ss.) e por Castro Mendes (Direito Processual Civil, I, Lisboa, 1980, p. 170), tinha como consequência a absolvição do pedido nos casos em que se apurasse que os sujeitos da relação material controvertida real e verdadeira não coincidiam com os anunciados pelo autor. Pelo contrário, a tese de Alberto dos Reis, também defendida por Antunes Varela et. al. (ob. cit., pp. 140 e ss.), considerava que, em tais hipóteses, o réu era parte ilegítima e, em consequência, devia ser absolvido da instância.
Deste modo, podemos concluir que, como escreve Miguel Teixeira de Sousa (Sobre a Legitimidade Processual, BMJ, n.º 331, p. 46), “a legitimidade da parte pressupõe (...) uma relação formal, independente da apreciação do mérito da causa, da parte processual com o objeto adjetivo: a legitimidade processual é aferida pela posição, naturalmente decorrente ou legalmente configurada, da parte adjetiva perante a situação subjetiva constante do objeto processual. Como o objeto do processo é a função processual requerida para uma individualizada pretensão processual e como o réu está tematicamente vinculado ao objeto adjetivo definido pelo autor, a legitimidade adjetiva implica uma conexão das partes com o objeto adjetivo configurado pelo autor. Para aferir a legitimidade processual nada mais é preciso – não é nomeadamente necessário pressupor que o direito invocado pelo autor e o correlativo dever imputado ao réu existem, porque tal pressuposição só é infirmatória da legitimidade processual se as partes não forem os titulares do objeto adjetivo, isto é, se não existir uma coincidência entre as partes processuais e os alegados titulares do objeto do processo, e só é atributiva da legitimidade adjetiva se as partes forem os titulares do objeto processual, isto é, se existir uma coincidência entre as partes adjetivas e os invocados titulares do objeto da causa.”
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1).2. Do exposto decorre uma consequência importante: não relevam, nesta sede, elementos externos ao objeto formal do processo, mas apenas a posição das partes em relação a esse objeto, tal como ele é gizado pelo autor na petição inicial, pelo que não restam quaisquer dúvidas quando à improcedência da exceção.
Com efeito, na petição inicial, a Autora descreveu uma relação material controvertida em que surge como a titular do direito de propriedade sobre o prédio identificado nos autos, justificando, em obediência ao princípio da substanciação, consagrado no art. 581-4, 2.ª parte, do CPC, a causa de aquisição de tal direito ao Banco 1... – a Deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal – e deste à Ré – grosso modo,a venda em processo de execução fiscal.
Isto basta para afirmar a legitimidade ativa. Saber se, como defende a Ré, aquela Deliberação é nula, por indeterminabilidade do objeto, e se a venda em execução fiscal é também nula por preterição de formalidades, não tendo, assim, uma e outra, como consequência, a transmissão do direito de propriedade da esfera jurídica da Ré para o Banco 1... e da deste para a da Autora, é questão que se prende já com o mérito, a ser tratada na 2.ª parte deste Acórdão.
Deste modo, sem necessidade de outras considerações, a apelação é improcedente nesta parte.
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2).1. Vejamos a 2.ª das questões enunciadas.
Para tanto, começamos por respigar a decisão da matéria de facto do Tribunal a quo.
Assim, foram considerados como provados os seguintes factos(transcrição):
“1. No Serviço de Finanças ... - 3 correu termos a Execução Fiscal nº...70 em que era executada a ré;
2. Nesta execução foi penhorado o prédio urbano destinado a armazém e atividade industrial, com a área total de 12.320,00 m2 e a área coberta de 3.564,00 m2, situado em ..., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº...48 e inscrito no art. ...36º da matriz predial respetiva;
3. No dia 24 de março de 2010 procedeu-se à venda deste prédio por propostas em carta fechada;
4. No dia 19 de agosto de 2010 este prédio foi adjudicado ao Banco 1... pelo valor de € 743.404,59;
5. No dia 19 de maio de 2010 a ré invocou na execução fiscal a nulidade da venda;
6. A pretensão da ré foi julgada improcedente por despacho do Tribunal Tributário ... proferido no dia 29 de março de 2019, já transitado em julgado;
7. No dia 20 de dezembro de 2015, por deliberação do Banco de Portugal, foi determinada a resolução do Banco 1...;
8. Na medida de resolução ficou decidido que os imóveis que eram utilizados ou ocupados pelo Banco 1... no exercício da sua atividade e aqueles cuja transmissão ocorreu por força de uma relação contratual eram transmitidos para o Banco 2... e que os restantes imóveis eram transmitidos para a autora;
9. O prédio que foi adjudicado ao Banco 1... na execução fiscal integrava-se nos imóveis que foram transmitidos para a autora;
10. A autora requereu na execução fiscal a sua habilitação para prosseguir a causa em substituição do Banco 1...;
11. No dia 23 de janeiro de 2018 foi proferido despacho que considerou a autora habilitada para prosseguir a causa em substituição do Banco 1..., como havia requerido;
12. No dia 12 de janeiro de 2021 a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio foi inscrita no registo predial a favor do Banco 1... por compra em processo de execução;
13. Após a adjudicação do prédio na execução fiscal a ré continuou a utilizá-lo, mantendo ali diverso material que resultou da sua atividade;
14. No dia 11 de setembro de 2019, através de carta registada, a autora reclamou à ré a entrega do prédio;
15. A ré não entregou o prédio à autora;
16. A autora está impossibilitada de utilizar o prédio ou de obter qualquer rendimento através da sua venda ou arrendamento;
17. O prédio foi adquirido pela ré através de escritura pública outorgada no dia 22 de março de 2005, pelo preço de € 149.639,36; 18. A ré iniciou a construção de um pavilhão industrial no prédio que ainda não está concluído;
19. No dia 26 de março de 2010, o Banco 1... procedeu a uma avaliação do prédio que atribuiu ao terreno o valor de € 585.200,00 e ao pavilhão o valor de € 1.262.696,00;
20. Esta avaliação atribuiu ao prédio com o pavilhão industrial o valor de € 1.696.820,00.
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E foi considerado como não provado o seguinte facto:
1. A ré despendeu a quantia de € 1.250.000,00 na construção no prédio de um pavilhão destinado a armazém e atividade industrial, noutros melhoramentos e em manutenção.”
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2).2. O art. 640/1 do CPC impõe ao recorrente o ónus de circunscrever o âmbito da impugnação da decisão da matéria de facto, o que passa pela discriminação dos segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento e pela indicação clara da decisão que, a seu ver, deveria ter sido proferida. Impõe também ao recorrente o ónus de fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, implicam uma decisão diversa da impugnada.
Neste sentido, como se pode ler em RP 13.03.2023 (124/18.8T8PVZ.P1)[1], “a impugnação da decisão de facto não se basta com a afirmação pelo recorrente da sua discordância face ao decidido, sustentada em referências imprecisas, genéricas ou descontextualizadas, ou a mera reprodução parcial de um outro segmento parcial e descontextualizado de algum ou alguns dos depoimentos.”
Compreende-se que assim seja: o objeto da pretensão recursiva é, afinal, a desconstrução da narrativa factual constante da decisão recorrida, esta alicerçada, por imposição legal, na apreciação crítica e conjugada, segundo as regras da lógica, da experiência e, bem assim, as regras da ciência eventualmente convocáveis no caso concreto, de toda a prova produzida em termos que devem transparecer da motivação (art. 607/4 do CPC), condição, a um tempo, de transparência e, a outro, de controlo.
Deste modo, como se refere no citado aresto, o 2.º grau de jurisdição em matéria de facto não visa uma repetição do julgamento, “mas a deteção e correção de concretos, pontuais e fundamentados erros de julgamento”, o que é vincado pelo art. 662/1 do CPC, onde se pode ler que “[a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Significa isto que, estando em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador, a Relação, agindo dentro dos limites impostos pelas conclusões, deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, sujeito às mesmas regras de direito probatório material que são aplicáveis em 1.ª instância, conclua que os elementos de prova acessíveis impõem uma solução diversa da antes acolhida, sem prejuízo de, a titulo oficioso, providenciar pela correção de determinadas patologias (art. 662/2 do CPC).
Reconhecendo embora que o julgador em 1.ª instância se encontra em posição privilegiada para proceder ao julgamento da matéria de facto, por via oralidade e da imediação que caraterizam a sua atuação, apresenta-se como inequívoco que a mens legis (art. 662/1 e 2, a), e b)) é no sentido de configurar a Relação como um verdadeiro tribunal de instância permitindo-lhe que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, introduza as modificações que se justificarem com plena autonomia decisória, formando e formulando a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova acessíveis, podendo atender a todos quantos constem do processo, independentemente da sua proveniência (art. 413), “sem exclusão sequer de efetuar a audição de toda a gravação se esta se revelar oportuna para a concreta decisão” (António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 340-342).
De qualquer modo, como se pondera no citado aresto da RP, “a alteração da decisão de facto pela Relação deve ser efetuada com segurança e rodeada da imprescindível prudência e cautela, centrando-se nas desconformidades encontradas entre a prova produzida em audiência, após a efetiva audição dos respetivos depoimentos, e os fundamentos valorativos indicados pelo julgador da 1.ª instância e nos quais baseou as suas respostas, e que habilitem a Relação, em conjunto com outros elementos probatórios disponíveis, a concluir em sentido diverso, quanto aos concretos pontos de facto impugnados especificadamente pelo recorrente, partindo, pois, do pressuposto da existência de um erro ou desvio na apreciação crítica da prova.”
Do exposto decorre que, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida - que há-de ser reanalisada pela Relação mediante a audição dos respetivos registos fonográficos –, deve, por princípio, prevalecer a decisão proferida em 1.ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso, nessa parte.” Vale isto por dizer que “não se procura obter uma nova (e diversa) convicção a todo o custo, mas verificar se a convicção expressa pelo Tribunal a quo tem suporte razoável, à luz das regras da experiência e da lógica, atendendo aos elementos probatórios que constam dos autos, e aferir, assim, nestes termos, se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto, sendo necessário, de qualquer forma, que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente, impondo, pois, decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido – art. 640/1, b), parte final, do CPC.”
Por outro lado, conforme se pode ler em STJ 27.04.2023, 4696/15.0T8BRG.G1.S1, o art. 640 do CPC impõe a rejeição imediata da impugnação relativa à matéria de facto no recurso de apelação quando o recorrente não tiver procedido às especificações que constam das três alíneas do seu n.º 1.
Assim deve suceder também quando a especificação dos concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados tiver sido feita no corpo das alegações, mas a sua referência nas conclusões se apresente como deficiente por o recorrente se ter limitado a fazer uma referência genérica a essa alegação, sem indicar os concretos pontos de facto impugnados. É de refutar, em tais situações, a possibilidade de correção arrimada no disposto no art. 639/3 do CPC. É este o entendimento mais recente da jurisprudência do STJ, do que são exemplo o citado aresto e os demais nele indicados, que procedem a uma leitura do disposto no art. 639/3 que exclui do respetivo campo de aplicação a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, limitando-a às situações previstas no número que o antecede – ou seja, aos recursos que versam sobre matéria de direito e não sobre matéria de facto. É este, também, o entendimento prevalecente nesta Relação, do que são exemplo os recentes Acórdãos de 30.03.2023, 1025/20.5T8GMR.G1, e 26.04.2023, 1679/19.5T8BRG.G1.
Deste modo, quando a deficiência ocorre nos requisitos da impugnação da matéria de facto, a sanção é aquela que está prevista no artigo 640/1 – a rejeição imediata do recurso, sem hipóteses de correção.
Como se afirma no aresto, “[e]sta solução não infringe qualquer princípio constitucional, designadamente a exigência de um processo equitativo, uma vez que este modelo processual não impõe que em qualquer situação de omissão de cumprimento de determinados requisitos formais legalmente previstos não possa ser determinada a perda de um direito processual sem que seja concedida à parte uma oportunidade de suprir essa omissão, conforme tem sido entendimento reiterado do Tribunal Constitucional.
Na verdade, na definição da tramitação do processo civil, vigora uma ampla discricionariedade legislativa que permite ao legislador ordinário, por razões de conveniência, oportunidade e celeridade, fazer incidir ónus processuais sobre as partes e prever quais as cominações ou preclusões que resultam do seu incumprimento, desde que não sejam surpreendentes, sejam funcionalmente adequadas aos fins do processo e que as preclusões que decorram do seu incumprimento não se revelam totalmente desproporcionadas à gravidade e relevância da falta.
Estamos perante um ónus de alegação previsto na lei, de fácil cumprimento, com a cominação de rejeição também expressamente prevista na lei, e em que a imposição de um convite à correção resultaria desrazoavelmente em mais um acréscimo de um prazo para impugnação da matéria de facto que já se encontra legalmente acrescido.”
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2).3. Assim definidos os termos de apreciação do recurso sobre a matéria de facto, tendo a Recorrente observado o disposto no art. 640/1 do CPC, cabe proceder à análise do ponto da matéria de facto impugnado – que, relembramos, é o único facto considerado como não provado na sentença recorrida.
Por referência às conclusões, verificamos que a Recorrente pretende que esse facto seja considerado como provado, aduzindo, em suporte, que assim o impõe a prova produzida através das declarações de parte do seu gerente, FF, e dos depoimentos das testemunhas DD, EE, BB e CC.
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2).3.1. Para justificar a não formação de uma convicção positiva, o Exmo. Sr. Juiz, na motivação da sentença, escreveu o seguinte:
“O tribunal considerou provado que a ré iniciou a construção de um pavilhão industrial no prédio que ainda não está concluído porque este facto foi admitido por todas as testemunhas ouvidas.
Porém, não foi demonstrado que a ré despendeu a quantia de € 1.250.000,00 na construção deste pavilhão, tendo este facto sido considerado não provado. O que se apurou foi que a ré iniciou a construção do pavilhão com recurso a créditos que foram concedidos pelo Banco 1... e pela testemunha CC. Estes créditos estavam garantidos por hipotecas sobre o prédio, como resulta do termo de adjudicação de fls. 39. O crédito que foi concedido pelo Banco 1... não foi pago pela ré tendo sido para tentar recuperar a quantia que estava em dívida que o banco procedeu à aquisição na execução fiscal. O crédito que foi concedido pela testemunha CC também não foi pago pela ré. Acresce que, como resulta do termo de adjudicação de fls. 39, existia uma penhora sobre o prédio a favor de EMP05..., Ld.ª que era relativa à construção da estrutura metálica do pavilhão e que também não foi paga pela ré.
O mais que se apurou foi que o legal representante da ré utilizou alguns montantes próprios na construção do pavilhão juntamente com os créditos a que recorreu. Contudo, não se apurou minimamente que montantes seriam estes, não tendo sido junto qualquer documento sobre esta factualidade, sendo certo que, no essencial, o pavilhão foi construído com recurso aos créditos que foram concedidos pelo Banco 1... e pela testemunha CC. Basta atentar que o crédito que foi concedido por esta testemunha foi no valor de € 300.000,00.
Além de resultarem dos documentos juntos aos autos, estes factos foram admitidos pelo legal representante da ré nas suas declarações de parte e pela testemunha CC.
Também não foi demonstrado que a ré suportou despesas com melhoramentos e a manutenção do prédio, tendo, pelo contrário, resultado das declarações de parte do legal representante da ré e do depoimento da testemunha BB que o prédio está no mesmo estado em que se encontrava quando ocorreu a penhora e a adjudicação.
Importa ainda referir que ficou claro que na execução fiscal estava a ser vendido o prédio com o pavilhão industrial que a ré tinha iniciado. Por um lado, como resulta do termo de adjudicação de fls. 39, todos os credores estavam relacionados com a construção do pavilhão, pelo que sabiam da sua existência. Por outro lado, só assim se compreende que o Banco 1... tenha pago a quantia de € 745.000,00, uma vez que, como resulta do contrato promessa de compra e venda que consta de fls. 84, o terreno sem o pavilhão foi comprado pela ré pelo preço de € 149.639,36, pese embora na escritura pública tenha ficado a constar um valor inferior. Finalmente, o Banco 1... dispunha da avaliação de consta de fls. 70 em que era referida expressamente a existência do pavilhão.
O tribunal considerou provado apenas que após a adjudicação do prédio na execução fiscal a ré continuou a utilizá-lo, mantendo ali diverso material que resultou da sua atividade, porque o que resultou das declarações de parte do legal representante da ré e do depoimento da testemunha BB foi que a ré cessou a sua atividade pouco tempo depois da adjudicação e autorizou que a testemunha passasse a explorar numa parte do pavilhão uma empresa em seu nome na mesma área de negócio.
No espaço adjacente ao pavilhão ficou diverso material que resultou da atividade da ré e que ali permanece. Atualmente, o legal representante da ré limita-se a ter no local alguns cães para garantir a segurança.”
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2).3.2. Quid inde?
Antes de mais, importa começar por notar que está adquirido que: o prédio foi adquirido pela Ré no ano de 2005, pelo preço de € 149 639,36 (facto provado n.º 13); a Ré iniciou a construção de um pavilhão industrial no prédio, construção essa que ainda não está concluída (facto provado n.º 14); o prédio foi penhorado no processo de execução fiscal n.º ...70 (factos provados n.ºs 1 e 2); nesse processo, o prédio foi adjudicado ao Banco 1..., no dia 19 de agosto de 2010 (facto provado n.º 4); a Ré continuou a utilizar o prédio, mantendo ali diverso material que resultou da sua atividade (facto provado n.º 13).
Perante estes factos, podemos assentar que não é colocado em causa que a Ré continuou a ocupar o prédio e a praticar sobre ele atos materiais, mesmo depois da penhora e subsequente venda ao Banco 1....
A questão de saber se esses atos materiais exprimem uma situação de posse em termos do exercício do direito de propriedade contende com o aspeto jurídico da causa, conforme melhor será analisado mais à frente.
Assim, a única questão de facto que é colocada consiste em saber se, na construção daquele pavilhão, a Ré despendeu (sic) a quantia de € 1 250 000,00.
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2).3.3. Procedemos à audição do registo da audiência de discussão e julgamento, com destaque para as declarações do gerente da Ré, FF, e para os depoimentos das testemunhas DD, EE, BB e CC, meios de prova indicados pela Ré como impondo uma decisão diversa.
Aquele primeiro afirmou, em síntese, que a Ré adquiriu o prédio para nele exercer a sua atividade em finais de 1999; não havia lá qualquer edifício, pelo que, inicialmente, foram colocados dois contentores, um para o funcionamento dos serviços administrativos, outro para os sanitários; entretanto, foi iniciada a construção de dois pavilhões, cada um deles com cerca de 1 800 m2 de área coberta; essa construção foi custeada com um empréstimo contraído junto do Banco 1..., no montante de € 500 000,00, do qual ficaram cativos e nunca foram libertados 10%; foi custeada também com capitais tanto da Ré como do declarante, num total de “600 e tal mil euros”, tendo para esse efeito contraído empréstimos junto de um amigo (CC); a estrutura metálica dos pavilhões foi feita pela sociedade EMP05...; por volta de 2009/2010, a Ré começou a incumprir as suas obrigações, o que veio a resultar na penhora do equipamento necessário ao exercício da respetiva atividade; entre 2012 e 2018 ainda conseguiu manter essa atividade, de forma “muito reduzida”; cessou por completo em 2018; de lá para cá, continuou a deslocar-se diariamente ao prédio, onde estão guardados objetos da Ré; permite ainda que uma antiga empregada sua utilize o prédio, para exercer atividade que coincide com a que era desenvolvida pela Ré, sem qualquer contrapartida, como forma de a compensar por quantias que lhe ficou a dever; depois de 2010, fez “melhoramentos” no prédio; quando soube da venda do prédio ao Banco 1..., tentou obter a sua “anulação”, sem sucesso; ficou convencido que seria possível obter uma solução negociada.
A segunda (DD), responsável pelo departamento comercial da Autora, bem como a terceira, e a terceira (EE), coordenadora do departamento de imóveis da sociedade que gere os ativos da Autora, nada de relevante disseram sobre o facto em discussão, limitando-se a referir as diligências levadas a cabo pela Autora para “tomar a posse” do prédio.
A quarta (BB), pessoa que trabalhou para a Ré, como responsável de armazém, disse que: a Ré passou a desenvolver a sua atividade no prédio entre 2000 e 2001; então não havia ali qualquer construção; foram colocados contentores para os serviços administrativos (escritório) e sanitários; no ano de 2003, a Ré começou a construir os pavilhões; inicialmente fez a estrutura de ferro e o telhado; depois construiu os muros e colocou os portões; segundo ouviu, essa construção foi custeado com financiamento bancário e dinheiro do gerente da Ré, este em montante situado entre € 150 000,00 e € 200 000,00; a construção nunca foi concluída, faltando, por exemplo, a colocação dos vidros e dos sanitários; entre os anos de 2007 e 2008, a Ré começou a ter dificuldades financeiras, deixando mesmo de pagar salários; foi feita a penhora do camião e do equipamento que a Ré utilizava na sua atividade; não foram feitas quaisquer obras depois desta penhora, pois a Ré não tinha como as custear.
O quinto (CC), amigo do gerente da Ré há mais de 30 anos, disse que: entre 2008 e 2009, emprestou € 300 000,00 ao gerente da Ré para a compra de equipamentos e construção do pavilhão; como garantia do reembolso da quantia mutuada, foi constituída uma hipoteca sobre o prédio; chegou ao seu conhecimento que a construção também foi financiada através de um empréstimo do Banco 1...; teve conhecimento da penhora do prédio; a construção do prédio nunca foi concluída; depois da penhora, o gerente da Ré continuou a cuidar do prédio, fazendo o que é necessário para impedir que o edificado sofra deterioração.
Para além das declarações de parte e dos testemunhos acabados de referir, analisámos ainda os seguintes documentos:
Ø Alvará de licença de construção emitido pela Câmara Municipal ..., no dia 30 de novembro de 2006;
Ø Despacho de adjudicação, emitido a .../.../... a .../.../..., pelo Chefe do Serviço de Finanças ... 3, do qual consta, ademais da adjudicação do prédio ao Banco 1..., em resultado da venda por propostas em carta fechada, a menção discriminada dos direitos que caducaram com a venda, por referência às respetivas inscrições registrais, entre elas se incluindo: quatro hipotecas para garantia de créditos do Banco 1..., inscritas no registo a 19.12.2006, 5.04.2007, 14.07.2008 e 17.11.2008; uma penhora feita para cobrança de um crédito de EMP05..., Lda., inscrita a 28.07.2008; uma hipoteca para garantia de um crédito de CC, inscrita a 20.08.2009;
Ø Relatório de avaliação feita ao prédio, a pedido do Banco 1..., datado de 26 de março de 2010.
Da conjugação destes elementos, conseguimos formar uma convicção que aponta, com segurança, que a construção do pavilhão foi financiada com dinheiro proveniente de empréstimos obtidos pela Ré junto do Banco 1..., o que se conjuga, a um tempo, com o facto de estarem registadas quatro hipotecas para garantia de créditos desta entidade bancária sobre o prédio e, a outro, com o facto de surgir uma avaliação do prédio promovida por ela em março de 2010.
Assim, estes documentos conferem arrimo ao que foi declarado pelo gerente da Ré quanto ao recurso ao crédito bancário, no montante de € 500 000,00 (dos quais € 450 000,00 ficaram cativos), o que, de resto, se mostra conforme às regras do id quod plerumque accidit. Também conferem arrimo ao declarado pelo gerente da Ré quanto ao recurso a um empréstimo feito pela testemunha CC, que esta confirmou e quantificou em € 300 000,00. Considerando isto, afigura-se que a prova produzida permite concluir que a construção foi, pelo menos em parte (€ 450 000,00 + € 300 000,00), feita com dinheiro da Ré – sem entrar em questões de direito, sempre se nota que o contrato de mútuo é um contrato com eficácia real, pois importa a transmissão da propriedade da quantia mutuada do mutante para o mutuário, fazendo surgir na esfera jurídica daquele o direito de crédito à restituição do tantundem.
Os referidos documentos já são, porém, insuficientes para suportar o afirmado pelo gerente da Ré quanto ao investimento de capital desta: em primeiro lugar, pela confusão que o declarante fez entre o dinheiro investido que era da Ré e o que era seu; em segundo, pela inexistência de qualquer suporte documental desse investimento; em terceiro, pela ausência de qualquer outro meio de prova que, com o mínimo de segurança, seja apto a suportar a afirmação feita pelo principal interessado. Esta última asserção explica-se pela constatação de que a única testemunha que se pronunciou sobre o facto – a BB – não esclareceu a sua razão de ciência.
Perante o exposto, concluímos que a prova produzida permite formar uma convicção positiva quanto ao facto de a Ré ter despendido, pelo menos, € 750 000,00 na construção do pavilhão.
Não ignoramos que os referidos contratos de mútuo teriam de ser celebrados por escritura pública, condição da sua validade, o que constitui, portanto, uma formalidade ad substantiam, e que se desconhece se assim aconteceu. Contudo, uma vez que esses contratos não são o objeto da ação, nem sequer o que está em causa no concreto ponto de facto impugnado, mas apenas um elemento coadjuvante, entende-se que a prova produzida é suficiente para a formação de uma convicção positiva quanto ao facto de a Ré ter despendido, na construção do pavilhão, pelo menos o montante (€ 750 000,00) efetivamente obtido através deles.
Não ignoramos, também, que a Ré ficou devedora da sociedade que fabricou e colocou a estrutura de ferro do pavilhão, facto admitido pelo seu gerente e evidenciado pelo registo de uma penhora destinada à cobrança de um crédito desta, que poderia indiciar que as quantias emprestadas tiveram outro destino que não a construção do pavilhão. Contudo, se atentarmos no depoimento da testemunha CC, verificamos que a mesma, tendo acompanhado de perto a construção, não colocou nunca em causa o destino que foi dado ao dinheiro que emprestou. O quadro geral que perpassa do seu depoimento é que a Ré fez um investimento demasiado avultado, não tendo, apesar dos empréstimos, capacidade para fazer face a todas as despesas.
Não ignoramos, finalmente, que não foi feita a demonstração de qualquer pagamento feito pela Ré. Entendemos, porém, que o pavilhão, ainda que inacabado, é uma realidade incontornável. E o custo dessa construção inacabada foi avaliado, no referido relatório de 26 de março de 2010, em 82,5%, do custo total da construção concluída, então estimado em € 1 262 696,00.
Tudo ponderado, concluímos que, com ressalva do devido respeito, que é elevado, a prova produzida impõe uma decisão diferente, ainda que não totalmente coincidente com a pretendida pela Ré, quanto a este concreto ponto da decisão da matéria de facto.
Por outro lado, entende-se que é de introduzir aqui um fator de precisão temporal: o que se demonstra é que a Ré despendeu a referida quantia de € 750 000,00 antes de feita a penhora do processo de execução fiscal. A explicação é fácil de dar: os registos das hipotecas que garantem os empréstimos feitos pelo Banco 1... são anteriores a essa data; apesar do registo da hipoteca destinada a garantir o crédito feito pela testemunha CC ser ulterior, certo é que esta testemunha afirmou ter tomado conhecimento da penhora, não se afigurando minimamente plausível que fosse emprestar uma quantia tão avultada a quem tinha dívidas de natureza tributária e aceitando como garantia um prédio penhorado. O que se afigura mais plausível – e encontra suporte no depoimento da testemunha, que, relembramos, afirmou que emprestou um total de € 300 000,00 entre os anos de 2008 e 2009 – é que o empréstimo não tivesse sido feito uno actu, mas ao longo do tempo, em parcelas, apenas havendo o cuidado de constituir e registar a hipoteca quando a Ré começou a entrar em incumprimento. Tenha-se presente que: antes da penhora feita no processo de execução fiscal, foi registada a penhora para cobrança do crédito da sociedade EMP05...; como afirmado pelo próprio gerente da Ré, por volta do ano de 2009 foram penhorados os equipamentos e o camião que a Ré utilizava no exercício da sua atividade; como afirmado pela testemunha BB, a Ré começou a ter dificuldades financeiras entre 2007 e 2008, deixando mesmo de pagar os salários devidos aos seus trabalhadores.
Não ignoramos, finalmente, que o gerente da Ré disse que, mesmo depois da venda do prédio em sede de execução, continuou a fazer melhoramentos no prédio. Foi, porém, totalmente incapaz de concretizar esses melhoramentos, pelo que as suas declarações são demasiado pouco para colocar em causa a conclusão exposta no parágrafo anterior.
Deste modo, a impugnação da matéria de facto procede parcialmente, com a inclusão, no rol dos factos provados, de um facto, numerado como 18A com a seguinte redação:
“Essa construção foi levada a cabo entre os anos de 2006 e data do ano de 2009 anterior a 10 de agosto, tendo a Ré despendido nela um total de € 750 000,00.”
Concomitantemente, ficará a constar como facto não provado o que resta do conteúdo do facto cuja decisão foi impugnada, ou seja: A Ré despendeu outras quantias, para além da referida em 18A, seja na construção, seja em melhoramentos feitos no pavilhão.
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2).4. Antes de prosseguirmos, impõe-se notar que a exposição da matéria de facto feita na sentença carece de uma precisão: no ponto 2 não foi indicada a data de realização da penhora feita na execução fiscal.
Com base no título de adjudicação já mencionado, podemos afirmar que essa penhora foi feita, através da sua inscrição no registo predial, no dia 10 de agosto de 2009 (apresentação ...91), o que será aditado, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 662/1 do CPC, ao conteúdo do referido ponto 2 do rol dos factos provados, passando este a ter a seguinte redação: “Nessa execução, foi inscrita, no registo predial, através da apresentação n.º 3791, de 10 de agosto de 2009, a penhora do prédio urbano destinado a armazém e atividade industrial, com a área total de 12 320,00 m2 e a área coberta de 3.564,00 m2, situado em ..., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...48 e inscrito no art. ...36.º da matriz predial respetiva.”
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2).5. Sintetizando, a matéria de facto provada é a seguinte:
“1. No Serviço de Finanças ... - 3 correu termos a Execução Fiscal nº...70 em que era executada a ré;
2. Nessa execução, foi inscrita, no registo predial, através da apresentação n.º 3791, de 10 de agosto de 2009, a penhora do prédio urbano destinado a armazém e atividade industrial, com a área total de 12 320,00 m2 e a área coberta de 3.564,00 m2, situado em ..., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...48 e inscrito no art. ...36.º da matriz predial respetiva.
3. No dia 24 de março de 2010 procedeu-se à venda deste prédio por propostas em carta fechada;
4. No dia 19 de agosto de 2010 este prédio foi adjudicado ao Banco 1... pelo valor de € 743.404,59;
5. No dia 19 de maio de 2010 a ré invocou na execução fiscal a nulidade da venda;
6. A pretensão da ré foi julgada improcedente por despacho do Tribunal Tributário ... proferido no dia 29 de março de 2019, já transitado em julgado;
7. No dia 20 de dezembro de 2015, por deliberação do Banco de Portugal, foi determinada a resolução do Banco 1...;
8. Na medida de resolução ficou decidido que os imóveis que eram utilizados ou ocupados pelo Banco 1... no exercício da sua atividade e aquela cuja transmissão ocorreu por força de uma relação contratual eram transmitidos para o Banco 2... e que os restantes imóveis eram transmitidos para a autora;
9. O prédio que foi adjudicado ao Banco 1... na execução fiscal integrava-se nos imóveis que foram transmitidos para a autora;
10. A autora requereu na execução fiscal a sua habilitação para prosseguir a causa em substituição do Banco 1...;
11. No dia 23 de janeiro de 2018 foi proferido despacho que considerou a autora habilitada para prosseguir a causa em substituição do Banco 1..., como havia requerido;
12. No dia 12 de janeiro de 2021 a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio foi inscrita no registo predial a favor do Banco 1... por compra em processo de execução;
13. Após a adjudicação do prédio na execução fiscal a ré continuou a utilizá-lo, mantendo ali diverso material que resultou da sua atividade;
14. No dia 11 de setembro de 2019, através de carta registada, a autora reclamou à ré a entrega do prédio;
15. A ré não entregou o prédio à autora;
16. A autora está impossibilitada de utilizar o prédio ou de obter qualquer rendimento através da sua venda ou arrendamento;
17. O prédio foi adquirido pela ré através de escritura pública outorgada no dia 22 de março de 2005, pelo preço de € 149.639,36; 18. A ré iniciou a construção de um pavilhão industrial no prédio que ainda não está concluída;
18A.Essa construção foi levada a cabo entre os anos de 2006 e data do ano de 2009 anterior a 10 de agosto, tendo a Ré despendido nela um total de € 750 000,00.
19. No dia 26 de março de 2010, o Banco 1... procedeu a uma avaliação do prédio que atribuiu ao terreno o valor de € 585.200,00 e ao pavilhão o valor de € 1.262.696,00;
20. Esta avaliação atribuiu ao prédio com o pavilhão industrial o valor de € 1.696.820,00.
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3).1.1. Entrando agora na apreciação do recurso na parte em que versa sobre o aspeto jurídico da causa, seguindo a ordem de apreciação das questões colocadas, começamos por dizer que, conforme salientado na sentença recorrida, estamos perante uma típica ação de reivindicação, estribada no art. 1311 do Código Civil[2], a qual constitui o instrumento legal mais vigoroso posto à disposição do proprietário para lhe garantir o gozo do direito sobre a coisa que lhe pertence, quando dele efetivamente privado. Daí que Pires de Lima / Antunes Varela (Código Civil Anotado, III, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1987, p. 114) a definam como “a pretensão do proprietário não possuidor contra o possuidor não proprietário ou do proprietário possuidor contra o detentor.”
Nesta ação, o autor (reivindicante), invocando o titulo de proprietário de certa coisa na posse ou na detenção de outrem, pretende que, reconhecido judicialmente o seu direito, o possuidor ou o detentor seja, em consequência, condenado a restituí-la. A ação deve, pois, ser proposta contra quem, no momento da propositura, for possuidor ou detentor da coisa reivindicada.
O fundamento da pretensão do autor assenta na sua qualidade de proprietário da coisa reivindicada. Uma vez que o legislador processual civil português consagrou, no art. 581-4, 2.ª parte, do CPC, a denominada teoria da substanciação, segundo a qual a afirmação da situação jurídica tem de ser fundada em factos que, ao mesmo tempo que integram, tal como os outros alegados pelas partes, a matéria fáctica da causa, exercem a função de individualizar a pretensão para o efeito da conformação do objeto do processo (Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Coimbra; Coimbra Editora, 1997, pp. 54 – 55), ao autor cabe o ónus de provar os factos por virtude dos quais adquiriu o direito a que se arroga (art. 342-1).
Tal prova está facilitada no caso de aquisição originária do direito, designadamente por ocupação, acessão ou usucapião. Pense-se, por exemplo, na hipótese de o autor ser possuidor, ele próprio, pelo tempo necessário à aquisição por usucapião.
Já no caso de aquisição derivada, dominada pelo princípio nemo plus iuris in alium transfere potest quam ipse habet, a prova apresenta-se como mais difícil (diabolica probatio): o reivindicante tem de provar a regularidade, substancial e formal, da cadeia das sucessivas transmissões anteriores que, a partir de uma qualquer aquisição originária, sirva de suporte ao direito por ele invocado. A propósito, Pires de Lima / Antunes Varela, ob. cit., p. 115; na jurisprudência, STJ 5.05.2016 (5562/09.4TBVNG.P2.S1)
O legislador, ciente das dificuldades dessa prova, recorreu a presunções de propriedade, assentes numa ideia de probabilidade (cf. Michele Taruffo, La Prueba de los Hechos, 2.ª ed., Madrid: Trotta, p. 507), que o reivindicante pode invocar a seu favor. Havendo uma presunção, basta ao autor alegar o facto-base (factum probans) a partir do qual é induzido o facto desconhecido (factum probandum). São particularmente relevantes a presunção derivada do registo (art. 7.º do Código do Registo Predial) e a presunção fundada na posse (art. 1268).
Sobre esta última – a presunção fundada na posse – importa esclarecer um aspeto que, como vamos ver na sequência, assume relevo na situação decidenda. Assim, prima facie, parece um contrassenso dizer-se que o reivindicante pode beneficiar da presunção derivada da posse quando, afinal, ele está a reivindicar a coisa que se encontra sob o domínio material de outrem. Sucede que a passagem da coisa para o domínio material de outrem não significa a perda da posse do reinvindicante. A demonstrá-lo está o disposto no art. 1267-1, d), que prevê que a posse de outrem, quando constituída sem ou contra a vontade do anterior possuidor, apenas conduz à perda da posse deste depois de decorrido um ano e um dia. Por outro lado, quando a propriedade da coisa é transmitida para outrem, mas o anterior proprietário continua a ter o domínio material, a lei (art. 1264-1) considera que, não obstante, a posse é transmitida para o adquirente. Deste modo, como se conclui em STJ 21.06.2016 (7487/11.4TBVNG.P2.S1), “nada parece obviar a que (talqualmente sucede no caso da presunção fundada no registo) uma ação tendente ao reconhecimento do direito de propriedade, como é a ação ora em causa proposta pelos Autores, seja fundamentada na presunção estabelecida no nº 1 do art. 1268º do CCivil e que, consequentemente, seja nela (ação) reconhecido o correspondente direito de propriedade (e feita restituir a coisa, se disso se tratar).”
A exigência probatória pode ainda ser atenuada se o autor conseguir provar uma aquisição originária, nomeadamente por usucapião, beneficiando depois de institutos como a sucessão da posse (art. 1255) e a acessão na posse (art. 1256). Basta-lhe então provar que a sua posse, quando somada à posse do transmitente, permite a aquisição originária do direito de propriedade por usucapião. Já não tem de demonstrar que o direito existia na esfera jurídica do dante causa do transmitente e assim sucessivamente. A propósito, José Alberto Vieira, Direitos Reais, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 493.
É de considerar ainda que não é necessário fazer prova da aquisição do direito de propriedade do autor quando o réu não questione a sua existência, mas apenas a obrigação de entregar a coisa. Por identidade de razões, o mesmo deve suceder se autor e réu estiverem de acordo quanto ao facto de o transmitente do primeiro ter sido proprietário, apenas discutindo a existência ou a validade do ato de transmissão. A propósito, Oliveira Ascensão, “Ação de reivindicação”, ROA, II, 1997, pp. 511-545.
Ainda que o autor consiga provar a titularidade do direito, o pedido de restituição poderá improceder quando o réu prove que, apesar de não ser proprietário, tem um titulo que justifica a manutenção da coisa no seu domínio. Assim sucederá, por exemplo, se o réu provar que é titular de um direito de usufruto ou de um arrendamento.
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3).1.2. Assim traçado o esquema de funcionamento da ação de reivindicação, retomando o caso em apreço, podemos assentar que não suscita qualquer dúvida entre as partes que: a Ré adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio identificado; a Ré continuava a ser titular desse direito quanto o prédio foi penhorado[3], no dia 10 de agosto de 2009, para cobrança coerciva de uma dívida sua para com o Estado.
Não contendo o Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo DL n.º 433/99, de 26.10, qualquer especificidade quanto à função e aos efeitos da penhora em processo de execução fiscal (cf. arts. 215 e ss.), vale o regime comum do CPC (art. 2.º, e), daquele diploma).
Ora, como se sabe, a penhora é uma medida de execução finalisticamente ordenada à posterior venda executiva do bem penhorado. Tem assim, ademais de uma função individualizadora, na medida em que determina os bens ou direitos que respondem pelo cumprimento da obrigação, uma função conservatória: a penhora deve assegurar a subsistência física e jurídica dos bens ou direitos que se destinam a ser vendidos.
Daqui decorrem os seus efeitos jurídicos, dos quais importa destacar a perda dos poderes de gozo do executado sobre a coisa penhorada, os quais passam para o tribunal, que os exercerá através de um depositário. Na lição de Lebre de Freitas, A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª ed., Coimbra: Geslegal, 2017, p. 302, “[q]uando a penhora incide sobre o objeto corpóreo dum direito real (penhora de bem imóvel, penhora de bem móvel, penhora de quota em bem indiviso), a transferência dos poderes de gozo importa uma transferência de posse. Cessa a posse do executado e inicia-se uma nova posse pelo tribunal: o depositário passa, em nome deste, a ter a posse do bem penhorado.”
A afirmação não sofre alteração quando se trate de uma execução fiscal, uma vez que, conforme decorre do disposto no art. 103-1 da Lei Geral Tributária, oprocesso de execução fiscal tem natureza judicial, sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos atos que não tenham natureza jurisdicional.
Ainda que o executado, por ser nomeado depositário dos bens penhorados (arts. 756-1 e 722), mantenha o seu domínio de facto, a sua posse, exercida na qualidade de depositário, deixa de corresponder ao exercício de um direito real (assim, João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, II, Lisboa: AAFDL, 2022, p. 714). Não sendo a posse do tribunal originária, mas sim derivada, dá-se entre ela e a do executado a acessão, ut art. 1256-1. Neste sentido, expressamente, Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1987, p. 14), que escrevem: “O emprego da palavra sucessão e sucessores mostra que o legislador quis prever [no n.º 1 do art. 1256] todo e qualquer ato translativo da posse. Esta pode resultar de um negócio jurídico (venda, troca, doação), como duma expropriação, duma execução, etc.”
Por outro lado, sendo a penhora, como referimos, uma “antecâmera” daquela outra medida, “mais violenta para o executado”, no impressivo dizer de STJ 16.12.1999 (99A940), que é a venda executiva, importa acrescentar que esta configura um contrato especial de compra e venda com características de ato de direito público (Lebre de Freitas, A Ação Executiva cit., pp. 402-403).
É um ato de direito público porque o Estado, através dos seus órgãos, intervém nele, sendo inócua a vontade do executado. Apesar de o bem continuar a pertencer a este até à venda, como decorre do art. 824/1, quem aliena é o Estado, no exercício de um poder de alienar que é de direito público e não se confunde com o poder de alienação do executado – poder este que é preservado, embora os atos em que se traduza o seu exercício sejam ineficazes em relação à execução (art. 819). O poder do Estado é um poder de autoridade originário e não um poder derivado do devedor (Lebre de Freitas, ob. cit., p. 403, nota 44). O ato voluntário do devedor aparece assim substituído por um ato de autoridade, pelo qual o Estado vende em nome próprio, sobrepondo-se ao executado (Vaz Serra, “Realização Coativa da Prestação”, BMJ, n.º 73, p. 307). E é um contrato especial desde logo porque a vontade do comprador é determinante e releva como a de qualquer outro comprador no campo do direito privado. Por outro lado, a natureza originária do poder de alienação do Estado não descaracteriza a natureza derivada do ato de aquisição, baseado na titularidade do executado sobre o direito transmitido, como, aliás, resulta do art. 839-1, d), do Código de Processo Civil, ainda que o princípio segundo o qual nemo plus juris in alium transferre potest quam ipse habet sofra importante restrição, conforme decorre do art. 824-2. Em suma, o vendedor, como sujeito material do negócio, é o executado. O órgão do Estado é o sujeito formal, que atua no exercício de um poder de jurisdição executiva e não como representante do executado (Pedro Romano Martinez, “Venda Executiva”, Aspetos do Novo Processo Executivo, Lisboa: Lex, 1997, p. 336).
A venda executiva, para além das disposições especiais de natureza adjetiva que a regem, está sujeita ao regime geral da compra e venda, inclusive no que tange aos efeitos substantivos deste negócio (Lebre de Freitas, ibidem; Pedro Romano Martinez, ibidem; Miguel Teixeira de Sousa, Ação Executiva Singular, Lisboa: Lex, 1998, pp. 382-383): as obrigações de entregar a coisa e de pagar o preço (art. 879.º, b) e c)), esta com especificidades no seu cumprimento, e a transmissão do direito de propriedade sobre a coisa (art. 879, a)). Quanto aos dois primeiros efeitos, diremos que, como contrapartida do pagamento do preço, o adquirente tem o direito de receber o bem e o executado está obrigado a realizar a prestação de entrega adequada à satisfação desse crédito – isto é, está obrigado a entregar o bem, incorrendo em mora se o não fizer (art. 804/2). Quanto ao último – a transmissão do direito de propriedade – ele ocorre por “mero efeito do contrato”, na terminologia do art. 408-1, o que significa que, como sucede em qualquer contrato de compra e venda de coisa específica, a venda executiva tem um efeito real de transmissão da coisa. A propósito, Maria Victória Rocha, Comentário ao art. 824.º do Código Civil, AAVV, José Carlos Brandão Proença (coord.), Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Lisboa: UCE, 2019, p. 1210. Com mais rigor, tendo em conta que, na venda executiva, o efeito translativo da propriedade da coisa ou da titularidade do direito fica sujeito à verificação da condição suspensiva da realização dos depósitos a que se refere o art. 815 do CPC, a propriedade apenas se transfere, ipso facto, com estes, retroagindo, porém, os seus efeitos à data da aceitação da proposta, o que deve ser atestado pelo título de transmissão. Neste sentido RL 28-04-2015 (30347/09.4T2SNT.L1-1), RE 6.12.2018 (1866.14.2T8SLV-B.R1), RE 16.01.2020 (1283/16.0T8MMN-B.E1), RE 11.03.2021 (514/04.3TBORQ-C.E1), RE 15.04.2021 (930/19.6T8OLH-D.E1) e RL 7.12.2014 (717/19.8T8VFX.C.L1-1). De modo diverso, em STJ 19.06.2018 (17748/12.0T2SNT-B.L1-8) e em RL 27.03.2014 (17748/12.0T2SNT-B.L1-8) entendeu-se que a transmissão da propriedade ocorre com a adjudicação.
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3).1.3. Do que antecede decorre que, com a venda executiva – e, percute-se, por mero efeito dela –, o direito de propriedade que existia na esfera jurídica da Ré foi transmitido para a esfera jurídica do Banco 1.... Com a transmissão do direito de propriedade, transferiu-se também a posse, por efeito de uma fictio iuris,não obstante a Ré ter preservado o domínio material da coisa.
Expliquemos, começando por lembrar que um dos efeitos secundários da venda executiva é a obrigação, que se impõe ao depositário, de entrega ao comprador dos bens vendidos (arts. 756 e 757-1 do CPC). Se os bens não forem voluntariamente entregues ao comprador, este pode requerer, na execução contra o detentor, a entrega coativa (art. 828 do CPC).
Por outro lado, a venda executiva tem também um efeito extintivo, previsto no art. 824-2: ela provoca a extinção, dadas certas condições, de direitos de terceiro, sejam eles direitos reais de garantia, direitos reais de aquisição, direitos reais de gozo ou direitos pessoais de gozo, operando assim a transmissão dos bens alienados livres dos direitos de garantia, bem como dos direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros, independentemente do registo.
Este efeito extintivo, que contrasta com o que sucede com a venda realizada por via negocial, explica-se pela necessidade de favorecer a posição do adquirente e de rentabilizar a venda dos bens, cujo valor seria desvalorizado ou depreciado caso a transmissão operasse com a oneração resultante dos direitos de terceiro, impedindo a obtenção, através da venda, de um valor o mais aproximado possível do seu valor de mercado. Neste sentido, Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado, II, Das Obrigações em Geral, Coimbra: Almedina, 2021, p. 1096.
Deste modo, na venda executiva, ocorre, a par da transferência do direito real de propriedade, um outro efeito translativo – o relativo à posse – através da figura do constituto possessório, consagrada, enquanto modo de aquisição derivada da posse, no art. 1263, c), e desenvolvida no art. 1264-1. Dito de outra forma, em consequência do efeito da venda executiva, a posse que do executado passou para o tribunal é transmitida para o comprador, independentemente a entrega material da coisa. O referido art. 828 é o corolário adjetivo deste fenómeno. Neste sentido, na jurisprudência, STJ 7.02.2013 (CJ-STJ, XXI, t. 1, pp. 90-97, RP 19.01.2010 (537/09.6TBPVZ-A.P1) e RP 15.10.2015 (2230/12.3TBPNF.P1), escrevendo-se neste último que: “Uma das formas de aquisição da posse é o chamado constituto possessório (artigo 1263.º, alínea d), do Código Civil). Nos termos do artigo 1264.º do Código Civil que define esta figura, se o titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa. Em função dessa norma, tendo o autor adquirido por compra e venda o imóvel dos réus (com a interposição do encarregado da venda nomeado e por efeito dos poderes coercivos soberanos do tribunal), assim obtendo, de forma válida e eficaz, a propriedade do mesmo, tem de se entender que os réus da mesma forma que transferiram (mesmo sem vontade ou contra a sua vontade) a propriedade transferiram igualmente para o autor a posse do imóvel.”
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3).1.4.1. Como facto impeditivo da transmissão da propriedade a favor do Banco 1..., a Ré alegou uma série de vícios suscetíveis de levarem à invalidade da venda, nos termos previsto no art. 257, a) e c), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, questão que parece estar definitivamente ultrapassada, uma vez que não lhe é feita qualquer referência nas conclusões do recurso que estamos a apreciar.
Sem prejuízo, sempre se esclarece que as questões colocadas pela Ré, revestindo natureza endoprocessual – pois contendem com vícios da venda enquanto ato processual –, têm a sua sede própria no processo de execução fiscal. O seu conhecimento pressupõe um pedido, necessariamente constitutivo, feito por quem dispõe de legitimidade e para cuja apreciação é – atualmente, depois da alteração introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30.12 –, competente o órgão periférico regional da administração tributária sem prejuízo da reclamação, para cujo conhecimento são materialmente competentes os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, nos termos do disposto no art. 49/1, d), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Até ser anulada, a venda é tratada como válida. Por outro lado, se o direito potestativo de anular a venda não for exercido dentro do prazo previsto no citado art. 257, ter-se-á de considerar que a invalidade fica sanada. No fundo, estamos perante uma hipótese de anulabilidade da venda.
A solução coincide, grosso modo, com a consagrada no art. 839/3 do CPC para os casos em que a venda fica sem efeito com fundamento na anulação ou revogação da sentença exequenda fundada nas alíneas a), b) e c) do n.º 1, ou seja, na procedência da oposição à execução ou à penhora (a)), na anulação da execução por falta ou nulidade da citação do executado, que tenha sido revel, salvo o disposto no n.º 4 do artigo 851 (b)), ou na anulação do ato da venda, nos termos do art. 195 (c)). É que, também para tais casos, a anulação da venda não é automática (cf. Lebre de Freitas / Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, III, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 613): a lei estabelece um prazo para que seja pedida a restituição dos bens estabelecendo ainda que se esse prazo não for observado o executado só tem direito a receber o preço. Muito embora a expressão restituição dos bens possa dar lugar a dúvidas interpretativas, temos como certo que com ela não se quer aludir à necessidade de um pedido de restituição material dos bens – o que pressupunha que a invalidade da venda operasse automaticamente – mas a um pedido de restituição jurídica dos bens – ou, melhor dizendo, do direito real que os tem por objeto. Se assim se não entender, a solução da 2.ª parte da norma – onde se prevê que o executado que não requeira a restituição dos bens no prazo de trinta dias apenas tem direito a receber o preço – carece de sentido: ter-se-á de admitir que o executado, apesar de ter recuperado a propriedade sobre o bem vendido, como consequência automática da anulação da execução ou de um ato de um ato do processo de que a venda dependa absolutamente, não pode recuperar o domínio material sobre ele.
***
3).1.4.2. Como quer que seja, admitindo que a questão assume natureza prejudicial, o seu conhecimento nesta ação poderia ser justificado por força do disposto no art. 91-1 do CPC. Ocorreria, então, uma extensão da competência material, produzindo a decisão tomada mero efeito de caso julgado formal.
A razão de empregarmos o condicional do passado decorre do facto de a questão já ter sido apreciada, no confronto entre todos os interessados – exequente, executada e comprador –, pelo tribunal da jurisdição administrativa e fiscal, por decisão transitada em julgado (ponto 6 dos factos provados), cujo efeito positivo deve ser aqui acatado.
Para justificar esta afirmação, relembramos que, com o trânsito da sentença em julgado, produz-se o caso julgado. É o que resulta do disposto no n.º 1 do art. 619 do CPC, onde está plasmada a noção de caso julgado material. Aí se diz que, “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580 e 582...”
Através deste instituto pretende-se evitar que uma mesma ação seja instaurada várias vezes, obstando a que sobre uma mesma situação recaiam decisões contraditórias. Trata-se, no fundo, de um meio de garantir a boa administração da justiça, funcionalidade dos tribunais e salvaguarda da paz social, o que só é possível alcançar se sobre os litígios recaírem decisões definitivas. Sem esta proteção, a função jurisdicional seria meramente consultiva; as opiniões – resoluções, na verdade – dos juízes e dos tribunais, não seriam obrigatórias, já que podiam ser provocadas e repetidas de acordo com a vontade dos interessados. Em especial as sentenças, produto mais relevante do poder judicial, deixariam de sujeitar as partes; a sua execução seria sempre provisória; enfim, a segurança do tráfico entre os homens ficaria terrivelmente ameaçada. Não está, portanto, em causa a ideia de que a decisão transitada em julgado é expressão da verdade dos factos, mas a segurança jurídica.
A referida força obrigatória da sentença desdobra-se num duplo sentido: a um tempo, no da proibição de repetição da mesma pretensão ou questão, por via da exceção dilatória do caso julgado, prevista e regulada em especial nos arts. 577, i), 580 e 581 do CPC, que pode ser sintetizada através do brocardo non bis in idem; a outro, no da vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior, a que corresponde o brocardo judicata pro veritate habetur.
Dito de outra forma, o caso julgado não tem apenas relevância negativa: como a doutrina[4] e a jurisprudência[5] reconhecem de forma unânime, o caso julgado material pode funcionar como exceção, com a referida relevância negativa, ou como autoridade, caso em que a sua relevância é positiva.
De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ, n.º 325, p. 168, os efeitos do caso julgado material projetam-se em processos ulteriores necessariamente como autoridade do caso julgado material, em que o conteúdo da decisão anterior constitui uma vinculação à decisão de distinto objeto posterior, ou como exceção de caso julgado, em que a existência da decisão anterior constitui um impedimento à decisão de idêntico objeto posterior.
O mesmo autor acrescenta (O Objeto cit.,pp. 171 – 172) que a diversidade entre os objetos de uma e outra ação torna prevalecente um efeito vinculativo, a autoridade de caso julgado material, e a identidade entre os objetos processuais torna preponderante um efeito impeditivo, a exceção de caso julgado. Aquela diversidade e esta identidade são os critérios para o estabelecimento da distinção entre o efeito vinculativo, a vinculação dos sujeitos à repetição e à não contradição da decisão transitada: a vinculação das partes à decisão transitada em processo subsequente com distinto objeto é assegurada pela vinculação à repetição e à não contradição do ato decisório e o impedimento à reapreciação do ato decisório transitado em processo subsequente com idêntico objeto é garantido pelo impedimento dos sujeitos à contradição e à repetição da decisão.
Deste modo, pode dizer-se que a questão da autoridade do caso julgado material respeita, sobretudo, à extensão da auctoritas rei iudicatae à solução das questões prejudiciais, assim denominadas as relativas a relações jurídicas distintas da deduzida em juízo pelo autor, mas de cuja existência ou inexistência dependa logicamente o teor da decisão do pedido, sobre as quais não ocorre decisão, mas simples cognitio.
Verificados os seus pressupostos, designadamente a identidade de sujeitos, o tribunal da segunda ação fica inexoravelmente vinculado ao decidido pelo tribunal da primeira ação.
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3).1.5.1. Ultrapassado este óbice, podemos assentar que, com a venda executiva, a Ré deixou de ser a proprietária do prédio e, bem assim, de ter a posse, o que permite concluir pela improcedência das conclusões 49 a 65.
Na sequência, vejamos se o direito foi transmitido do Banco 1... para a Autora.
Como causa de aquisição, a Autora invocou a Deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal de 20 de dezembro de 2015 (23.30) que procedeu à constituição da Autora, inicialmente designada por EMP06..., SA, e à transferência para esta dos direitos e obrigações relativos a ativos do Banco 1..., constantes do respetivo Anexo 2, mediante o pagamento de uma contrapartida constituída pela entrega de obrigações representativas de dívida no valor de € 746 000 000,00.
De acordo com o ponto 1, alínea a), do referido Anexo 2, foram transferidos para a Autora “[t]odos os ativos imobiliários que sejam propriedade do Banco 1..., com exceção daqueles que estejam a ser utilizados ou ocupados pelo Banco 1... no exercício da sua atividade.”
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3).1.5.2. Esta deliberação assume, inequivocamente, a natureza de um ato administrativo, legalmente estribado nos arts. 145-S-1, 5, 145-T-2, c), conjugados com o art.145-L, todos do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31.12. Tal resulta, claramente, do disposto no art. 145-AR-1 do diploma mencionado, do seguinte teor: “(…) as decisões do Banco de Portugal que apliquem medidas de resolução, exerçam poderes de resolução ou designem administradores para a instituição de crédito objeto de resolução estão sujeitas aos meios processuais previstos na legislação do contencioso administrativo, com ressalva das especialidades previstas nos números seguintes, considerando os interesses públicos relevantes que determinam a sua adoção.” Neste sentido, vide STA 4.11.2021 (98/16.0BEFUN) e RL 27.06.2019 (6542/17.1T8FNC.L1-6).
Esta qualificação, que não suscita qualquer dúvida, impõe uma correção e uma nota.
A correção versa sobre a norma jurídica esgrimida pela Ré para justificar a nulidade – o art. 280 do Código Civil.
Com efeito, estando em causa um ato unilateral da autoridade pública, como é, por definição, o ato administrativo (art. 148 do Código do Procedimento Administrativo), não faz sentido invocar-se uma norma que rege sobre negócios jurídicos de natureza privada.
O fundamento da pretensa nulidade por indeterminabilidade do objeto tem de ser encontrado no Código do Procedimento Administrativo e não no Código Civil.
A nota para dizer que não suscita qualquer dúvida que a competência para a fiscalização da legalidade do ato está atribuída aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, nos termos do disposto no art. 4.º-1, a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19.02.[6]
Tenha-se presente que o Banco de Portugal, enquanto Banco Central Nacional (art. 102 da CRP), é garante do sistema financeiro português, rege-se por normas de direito público. Sendo uma pessoa coletiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira e património próprio (art. 1.° do DL 337/90, de 30.10, na redação do DL n.º 5/98, de 31.1), o interesse público que prossegue significa que a sua ação se inscreve no âmbito de uma verdadeira gestão pública.
O art. 39 da respetiva Lei Orgânica reforça esta ideia ao estabelecer que “[d]os atos praticados pelo (...) conselho de administração e demais órgãos do Banco, ou por delegação sua, no exercício de funções públicas de autoridade, cabem os meios de recurso ou ação previstas na legislação própria do contencioso administrativo.” Finalmente, o art. 64-2 diz que, “[n]o exercício de poderes públicos de autoridade, são aplicáveis ao Banco as disposições do Código do Procedimento Administrativo e quaisquer outras normas e princípios de âmbito geral respeitantes aos atos administrativos do Estado.”
É, aliás, este o contexto que justifica, em termos substantivos, as medidas previstas no Título VIII do RGICSF, como refere José Carlos Vieira de Andrade, “Parecer relativo à medida de resolução dos Banco 3..., SA, e respetivo enquadramento legal”, Cadernos Jurídicos, n.º 3, julho de 2021, disponível em ... [04.10.2023], pp. 9-58, que sintetiza a questão nos seguintes termos:
“(…) i) uma medida de resolução é uma intervenção pública concreta na vida de uma entidade privada, que deve estar a cargo de uma entidade administrativa, a quem são conferidos poderes para o efeito; ii) a medida de resolução visa, em primeira linha, objetivos de interesse público, como a preservação das funções de importância sistémica e crítica da entidade intervencionada, a proteção dos contribuintes, dos depositantes e investidores cobertos, assim como os fundos e os ativos dos clientes; iii) a medida de resolução há-de respeitar a liberdade de empresa prevista no artigo 16.º da CDFUE, devendo estar prevista em lei prévia, e devendo os critérios para a sua aplicação respeitar as diretrizes aí consagradas; iv) a autoridade de resolução, ao adotar a medida, tem de assegurar que a mesma é adotada de acordo com os critérios e princípios previamente determinados; v) as limitações dos direitos dos acionistas e dos credores devem ser conformes com o artigo 52.º da CDFUE, querendo isto dizer que as restrições impostas devem ser proporcionais e só podem ser aplicadas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros, e, bem assim, respeitar os standards de proteção definidos pela CEDH; vi) os acionistas e os credores devem poder beneficiar de regras claras em matéria de avaliação dos ativos e não sofrer prejuízo superior ao que resultaria da liquidação da instituição; vii) as medidas de resolução, precisamente porque são aplicadas em situações de crise e como medidas de gestão da mesma, pressupõem, pela sua natureza, amplos poderes discricionários e as autoridades devem fazer uso desses poderes de forma apropriada, garantindo-se a sindicabilidade judicial do exercício desses poderes e dos atos dele resultantes de acordo com dois critérios: a não desvirtuação das finalidades que a medida de resolução pretende alcançar (o que implica a impossibilidade de suspensão desses atos), e a sua fiscalização ou controle de acordo com o parâmetro de medidas de gestão de crise, o que não impede que o tribunal analise se os dados em que a autoridade de resolução se baseia são factualmente rigorosos, fiáveis e coerentes, se incluem todas as informações relevantes que deverão ser tidas em conta para avaliar uma situação complexa e se podem fundamentar as conclusões tiradas a partir deles. Todas estas dimensões constam do preâmbulo da Diretiva 2014/59/UE. No essencial, o que resulta do regime europeu e da sua análise à luz das regras e princípios da CDFUE é a circunstância de a medida de resolução ser uma medida necessariamente de natureza administrativa e regulatória, relativamente à qual, pelas razões especiais de complexidade técnica e contextos de crise e urgência em que tem de ser adotada, não existe outra forma de assegurar a sua operacionalidade que não seja a partir do reconhecimento de um espaço de discricionariedade à autoridade administrativa responsável pela sua aplicação.: : i) uma medida de resolução é uma intervenção pública concreta na vida de uma entidade privada, que deve estar a cargo de uma entidade administrativa, a quem são conferidos poderes para o efeito; ii) a medida de resolução visa, em primeira linha, objetivos de interesse público, como a preservação das funções de importância sistémica e crítica da entidade intervencionada, a proteção dos contribuintes, dos depositantes e investidores cobertos, assim como os fundos e os ativos dos clientes; iii) a medida de resolução há-de respeitar a liberdade de empresa prevista no artigo 16.º da CDFUE, devendo estar prevista em lei prévia, e devendo os critérios para a sua aplicação respeitar as diretrizes aí consagradas; iv) a autoridade de resolução, ao adotar a medida, tem de assegurar que a mesma é adotada de acordo com os critérios e princípios previamente determinados; v) as limitações dos direitos dos acionistas e dos credores devem ser conformes com o artigo 52.º da CDFUE, querendo isto dizer que as restrições impostas devem ser proporcionais e só podem ser aplicadas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros, e, bem assim, respeitar os standards de proteção definidos pela CEDH; vi) os acionistas e os credores devem poder beneficiar de regras claras em matéria de avaliação dos ativos e não sofrer prejuízo superior ao que resultaria da liquidação da instituição; vii) as medidas de resolução, precisamente porque são aplicadas em situações de crise e como medidas de gestão da mesma, pressupõem, pela sua natureza, amplos poderes discricionários e as autoridades devem fazer uso desses poderes de forma apropriada, garantindo-se a sindicabilidade judicial do exercício desses poderes e dos atos dele resultantes de acordo com dois critérios: a não desvirtuação das finalidades que a medida de resolução pretende alcançar (o que implica a impossibilidade de suspensão desses atos), e a sua fiscalização ou controle de acordo com o parâmetro de medidas de gestão de crise, o que não impede que o tribunal analise se os dados em que a autoridade de resolução se baseia são factualmente rigorosos, fiáveis e coerentes, se incluem todas as informações relevantes que deverão ser tidas em conta para avaliar uma situação complexa e se podem fundamentar as conclusões tiradas a partir deles. Todas estas dimensões constam do preâmbulo da Diretiva 2014/59/UE. No essencial, o que resulta do regime europeu e da sua análise à luz das regras e princípios da CDFUE é a circunstância de a medida de resolução ser uma medida necessariamente de natureza administrativa e regulatória, relativamente à qual, pelas razões especiais de complexidade técnica e contextos de crise e urgência em que tem de ser adotada, não existe outra forma de assegurar a sua operacionalidade que não seja a partir do reconhecimento de um espaço de discricionariedade à autoridade administrativa responsável pela sua aplicação. i) uma medida de resolução é uma intervenção pública concreta na vida de uma entidade privada, que deve estar a cargo de uma entidade administrativa, a quem são conferidos poderes para o efeito; ii) a medida de resolução visa, em primeira linha, objetivos de interesse público, como a preservação das funções de importância sistémica e crítica da entidade intervencionada, a proteção dos contribuintes, dos depositantes e investidores cobertos, assim como os fundos e os ativos dos clientes; iii) a medida de resolução há-de respeitar a liberdade de empresa prevista no artigo 16.º da CDFUE, devendo estar prevista em lei prévia, e devendo os critérios para a sua aplicação respeitar as diretrizes aí consagradas; iv) a autoridade de resolução, ao adotar a medida, tem de assegurar que a mesma é adotada de acordo com os critérios e princípios previamente determinados; v) as limitações dos direitos dos acionistas e dos credores devem ser conformes com o artigo 52.º da CDFUE, querendo isto dizer que as restrições impostas devem ser proporcionais e só podem ser aplicadas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros, e, bem assim, respeitar os standards de proteção definidos pela CEDH; vi) os acionistas e os credores devem poder beneficiar de regras claras em matéria de avaliação dos ativos e não sofrer prejuízo superior ao que resultaria da liquidação da instituição; vii) as medidas de resolução, precisamente porque são aplicadas em situações de crise e como medidas de gestão da mesma, pressupõem, pela sua natureza, amplos poderes discricionários e as autoridades devem fazer uso desses poderes de forma apropriada, garantindo-se a sindicabilidade judicial do exercício desses poderes e dos atos dele resultantes de acordo com dois critérios: a não desvirtuação das finalidades que a medida de resolução pretende alcançar (o que implica a impossibilidade de suspensão desses atos), e a sua fiscalização ou controle de acordo com o parâmetro de medidas de gestão de crise, o que não impede que o tribunal analise se os dados em que a autoridade de resolução se baseia são factualmente rigorosos, fiáveis e coerentes, se incluem todas as informações relevantes que deverão ser tidas em conta para avaliar uma situação complexa e se podem fundamentar as conclusões tiradas a partir deles. Todas estas dimensões constam do preâmbulo da Diretiva 2014/59/UE. No essencial, o que resulta do regime europeu e da sua análise à luz das regras e princípios da CDFUE é a circunstância de a medida de resolução ser uma medida necessariamente de natureza administrativa e regulatória, relativamente à qual, pelas razões especiais de complexidade técnica e contextos de crise e urgência em que tem de ser adotada, não existe outra forma de assegurar a sua operacionalidade que não seja a partir do reconhecimento de um espaço de discricionariedade à autoridade administrativa responsável pela sua aplicação.”
Não obstante, por estar em causa um facto impeditivo do direito invocado pela Autora (art. 576-3 do CPC), tem aplicação o já citado art. 91 do CPC, que permite o conhecimento da questão, com efeitos reportados à presente ação.
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3).1.5.3. Pois bem, de acordo com a lição de Mário Aroso de Almeida, Teoria Geral do Ato Administrativo, 8.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 409, o objeto do ato administrativo em sentido estrito pode ser definido como o termo passivo sobre o qual se projetam os efeitos do ato. Pode ser a pessoa ou as pessoas destinadas a suportar os seus efeitos, como, por exemplo, o funcionário que é objeto de uma sanção disciplinar; pode ser a coisa sobre a qual os efeitos se produzem, como, por exemplo, o prédio sobre o qual recai a declaração de utilidade pública para efeitos de expropriação; pode ser um ato administrativo que é anulado, convalidado ou revogado por um ato administrativo de segundo grau. Mas também pode atribuir-se à noção de objeto um sentido diferente e amplo, que compreende o próprio conteúdo do ato administrativo. Esta aceção ampla do conceito, diz o autor, está subjacente ao disposto no art. 161-2, c), do Código do Procedimento Administrativo.
Desta norma decorre que o objeto do ato deve ser possível, certo, inteligível e determinado ou determinável. O ato administrativo cujo objeto seja indeterminável ou impossível é nulo.
O ato administrativo traduz um conteúdo comunicativo: os destinatários devem tomar conhecimento do que ele significa, de modo a poderem comportar-se em consonância. Quando dele não derive uma informação clara, estamos perante um ato cujo objeto é indeterminável. A indeterminabilidade pode resultar de uma confusão vocabular inultrapassável ou de uma remissão para realidades que, por si, não tenham um teor percetível.”
Usualmente distingue-se entre objeto indeterminado e objeto indeterminável. No primeiro caso, o ato não permite apreender imediatamente o seu objeto ou o seu conteúdo, mas essa situação pode ser ultrapassada de acordo com um critério definido pelo próprio ato ou pela lei.
É este aspeto que nos permite dizer, sem qualquer tergiversação, que o ato administrativo em causa é claro quanto ao seu conteúdo, atento o concreto teor e o contexto em que foi emitido: dizer, no âmbito de uma medida de resolução bancária, assente na segregação de ativos e na criação de uma instituição de transição, que são transmitidos para esta todos os ativos imobiliários existentes na esfera jurídica do banco fornece um critério suficientemente claro para o destinatário compreender o que está em causa. Por um lado, a declaração define a natureza dos direitos – direitos reais –, por outro, o seu objeto mediato – coisas imóveis. O objeto mediato é ainda restringido em consequência de um segundo critério, este de natureza negativa – imóveis que não estejam a ser utilizados ou ocupados pelo Banco 1... no exercício da sua atividade.
Assim, para saber se um determinado direito foi transmitido do Banco 1... para a Autora há apenas que apurar: se se trata de um direito de natureza real; se o seu objeto imediato é um imóvel; se o imóvel não está a ser utilizado nem ocupado pelo Banco 1... para o exercício da sua atividade.
Por aplicação deste critério, conseguimos perceber que o direito de propriedade que o Banco 1... adquiriu à Ré através da execução fiscal se inclui entre os que foram transmitidos para a Autora: ele recai sobre imóvel propriedade do Banco 1...; que não está a ser por este utilizado nem ocupado para o exercício da sua atividade.
O objeto do ato, não estando determinado, é, porém, perfeitamente determinável, o que faz cair por terra as conclusões 3, 4, 5, 6 e 9) a 19) do recurso quando aplicadas ao aspeto substantivo da causa.
Independentemente disto, sempre se deve dizer que a Ré, não sendo titular de qualquer direito ou interesse diretamente afetado pela deliberação do Banco de Portugal, carece de legitimidade para invocar a nulidade do ato administrativo, o que resulta do disposto no art. 55-1, a), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22.02.
É fácil explicar esta afirmação: se a deliberação do Banco de Portugal fosse nula, a consequência seria a restituição, com efeitos ex tunc, do direito de propriedade por ela transmitido ao património do Banco 1..., o que não acarretaria qualquer benefício direto e imediato para a Ré que, como vimos, já não era a proprietária do prédio.
***
3).1.5.4. Resolvida a questão antecedente, cumpre agora acrescentar que a deliberação do Banco de Portugal produziu, de forma automática – isto é, sem necessidade de qualquer outro ato jurídico suplementar – o efeito de transmissão da titularidade do direito de propriedade sobre o prédio dos autos do Banco 1... para a Autora. É o que resulta, de forma clara, do disposto no n.º 7 do art. 145-S do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras.
Estamos aqui perante um dos “demais modos” de aquisição do direito de propriedade previstos na lei de que fala o art. 1316.
Com a transmissão da propriedade, deu-se também a transmissão da posse, por via do já analisado instituto do constituto possessório.
E, assim, chegamos à conclusão de que a Autora demonstrou ser a titular do direito de propriedade: a um tempo, demonstrou a aquisição do direito ao Banco 1... e deste à Ré – ou seja, o direito da Autora é o mesmo que existia na esfera jurídica da Ré; a outro, demonstrou a posse, adquirida através do constituto possessório, o que sempre permitiria presumir que é a titular do direito de propriedade.
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3).1.6.1. A conclusão que acabámos de expressar apenas poderia ser perturbada se tivesse ficado demonstrada uma perda da posse, por parte do Banco 1..., enquanto a teve, ou da Autora, subsequentemente à sua aquisição. Tal passaria, necessariamente, por uma inversão do título com base no qual a Ré se manteve no domínio da coisa (art. 1263, d)).
Diz o art. 1265 que “[a] inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por ato de terceiro capaz de transferir a posse.”
Resulta daqui, na lição de Armando Triunfante, Comentário ao art. 1316, AAVV, Henrique Sousa Antunes (coord.), Comentário ao Código Civil, Direito das Coisas, Lisboa: UCE, 2021, pp. 54-55, que na inversão do título, “o detentor exerce já o poder de facto sobre a coisa, mas exerce a posse em nome de outrem, o verdadeiro possuidor. Existe, portanto, uma causa que lhe permite exercer o corpus sobre a coisa, sem, no entanto, se poder falar em posse. Essa causa pode constituir, por exemplo, um direito real limitado ou um direito pessoal de gozo. Sucede que essa causa vai ser alterada, mostrando a intenção do antes detentor, agora possuidor, agir como titular do direito. Existe, pois, um facto que permite, sem margem para dúvidas, concluir pela aquisição de animus que, assim, se junta ao corpus já existente.”
Simplesmente, a oposição tem de ser expressa através de atos concludentes – ou seja, atos que permitam, com segurança, perceber a vontade do detentor em alterar o título da sua posse. Neste sentido, na jurisprudência, STJ 13.10.2020 (439/18.5T8FAF.G1.S1).
Mais duvidoso é saber se é exigível a existência de uma declaração expressa de oposição e a sua comunicação ao anterior possuidor. Assim foi entendido em STJ 12.03.2015 (3566/06.8TBVFX.L1.S2). Em STJ 17.12.2014 (1313/11.1TBCT.C1.S1) entendeu-se, porém, que a declaração expressa não é requisito indispensável, podendo ser substituída por factos materiais ou jurídicos concludentes. No mesmo sentido, em STJ 16.07.2009 (663/2002.L1-8), considerou-se que existe inversão do título da posse por parte do inquilino que deixou de pagar a renda e fez obras relevantes no prédio de modo a impedir a entrada nele dos proprietários. De forma impressiva, escreveu-se em STJ 9.02.2012 (3208/04.6TBBRR.L1.S1) que a inversão do título da posse pode consistir numa “contraposição ostensiva revelada por atitudes ou comportamentos que evidenciem uma oposição antinómica àquela que até esse momento era típica.”
Aceitando este segundo entendimento, uma vez que da lei não resulta a exigência de uma declaração expressa, sempre se tem de dizer que a inversão tem de ser facilmente cognoscível por parte do anterior possuidor ou titular do direito. Neste sentido, STJ 21.10.2020 (5080/17.7T8CBC.C2.S1). Na doutrina, Armando Triunfante, loc. cit., p. 55.
Havendo inversão do título da posse, começa a contagem do prazo para a usucapião (art. 1290). O novo possuidor não pode somar à sua a posse dos antecessores (art. 1256-1): a inversão do título é uma forma de aquisição originária da posse que, como vimos, pressupõe um ato de oposição a uma posse anterior.
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3).1.6.2. No caso vertente, mesmo considerando a matéria alegada pela Ré, não se vislumbra qualquer ato de inversão que tenha sido praticado depois da venda do prédio ao Banco 1....
O que perpassa é que a Ré continuou a utilizar o prédio, de uma forma que já era residual, aproveitando a inércia do Banco 1... – que, no entretanto, entrou numa situação de profunda crise financeira, facto que é publico e notório, que culminou com a resolução o Banco de Portugal – em efetivar materialmente a posse que adquiriu por vida da compra do prédio no processo de execução fiscal. Nesse ínterim, a Ré pediu, junto do Tribunal Tributário, a anulação da venda, o que demonstra que a pessoa singular responsável pela formação e exteriorização da sua vontade sempre esteve ciente de que o prédio era já propriedade do Banco 1....
De qualquer modo, ainda que tivesse havido um qualquer ato que significasse uma inversão, sempre se diria que: a nova posse, necessariamente de má-fé, não baseada num título de aquisição, não durou os vinte anos necessários para conduzir à aquisição do direito por usucapião (art. 1296), como, de resto, foi judiciosamente referido na sentença recorrida; sem prejuízo, a presunção de propriedade que então resultaria da nova realidade possessória sempre estaria ilidida pela prova de que a Autora adquiriu o direito de propriedade.
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3).2.1. Prosseguimos para a questão da indemnização fixada, começando por notar que a sentença recorrida recusou a aplicação da sanção pecuniária compulsória que havia sido pedida pela Autora. O que resulta do segmento decisório agora em análise é condenação da Ré a indemnizar a Autora pelos danos patrimoniais decorrentes da ocupação ilícita do prédio, relegando a sua liquidação para momento ulterior. Nada mais.
Deste modo, as conclusões do recurso surgem como totalmente desfocadas – em rigor, atacam uma parte da sentença que foi favorável à Recorrente –, o que tem como consequência evidente a respetiva improcedência.
Sem prejuízo, sempre se nota que não suscita dúvida a condenação da Ré.
Expliquemos, sucintamente.
Segundo Pedro Ferreira Múrias (“Regulações do dono. Uma fonte de obrigações”, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, II, Coimbra: Almedina, 2002, pp. 255 e ss.), em todos os direito de exclusivo – que reservam ao respetivo titular o aproveitamento de um bem ou outras atuações sobre ele –, a sua simples existência dá ao titular o poder jurídico de validamente autorizar e proibir intervenções de terceiro. A proibição é uma atuação direta do exclusivo e a autorização assenta num princípio geral de autonomia, aplicado àquele direito específico.
Incluem‑se nos direitos de exclusivo, sem dúvida, a propriedade e os restantes direitos reais de gozo, tanto na forma dominial quanto na possessória, os direitos pessoais de gozo, os direitos de personalidade, o direito de autor e os direitos de propriedade industrial.
Em todos os casos, o titular do direito tem o poder de autorizar ou permitir o aproveitamento por terceiros, como tem também o poder de proibir.
Ao proibir, está a tornar ilícita a detenção da coisa. Sendo as denominadas regulações do dono meros atos jurídicos, sem conteúdo negocial, a fonte da obrigação de indemnizar a cargo daquele que pratica o ato violador do direito de exclusivo encontra-se no art. 483.
Deste modo, a ocupação que a Ré vem fazendo do prédio é ilícita, pelo menos desde o momento em que a Autora a interpelou para proceder à entrega.
A questão seguinte consiste em saber se dela resultaram danos patrimoniais na esfera jurídica da Autora.
Está aqui em causa o denominado dano da privação do uso, acerca do qual se notam diferenças de entendimento, tanto na doutrina como na jurisprudência, do que é exemplo paradigmático STJ 17.11.2021 (6686/18.2T8GMR.G1.S1), onde, por maioria, se entendeu que a “ilícita privação do uso de um prédio rústico (um campo de cultura arvense e de regadio) configura, só por si, enquanto prejuízo resultante da impossibilidade temporária de usar tal bem, um dano autónomo. Dano este que é indemnizável ainda que não se tenha provado que utilidade ou vantagem concreta o proprietário teria retirado do bem durante o período de privação.”
A controvérsia centra-se na questão de saber se a simples privação do uso de um bem integra um dano a se, como tal ressarcível, ainda que não origine uma verdadeira diferença patrimonialpara o lesado.
Enquanto alguns arestos exigem do lesado a prova de uma repercussão negativa no acervo patrimonial, sem a qual a ação indemnizatória improcede – inter alia, STJ 12.07.2018 (875/10.6TBPVZ.P1.S1), 04.07.2013 (5031/07.7TVLSB.L1.S1), 12.07.2018 (2875/10.6TBPAZ.P1.S1), 27.04.2017 (685/03.6TBPRG.G1.S1) –, outros consideram que a privação do uso é, em si mesma, um dano passível de indemnização, dispensando o lesado do registo probatório do prejuízo concretamente sofrido – inter alia, STJ 12.01.2010 (314/07.6TBCSC.S1), 28.09.2011 (2511/07.8TACSC.L2.S1), 08.05.2013 (3036/04.9TBVLG.P1.S1), 22.01.2013 (3313/09.2TBOER.L1.S1), 20.01.2022 (6816/18.4T8GMR.G1.S1). Para os defensores do primeiro entendimento, sem prejuízo de, em último caso, a apuração do quantum ressarcitório ser relegado para o esquema da equidade, sobre o lesado recai o ónus de provar o uso que fazia (e que de outro modo continuaria a fazer) do bem de cujo gozo fora privado por ato ilícito de terceiro – ou seja, o ónus de provar a “frustração de um propósito, real, concreto e efetivo de proceder à sua utilização, os termos em que o faria e o que auferiria, não fora a ocupação-detenção, pelo lesante” (STJ 06.05.2008, 08A1389). Na ausência dessa prova, a ação indemnizatória está condenada ao insucesso.
Existe ainda uma posição intermédia que, rejeitando embora um dano in re ipsa, assente na mera intervenção ilícita sobre a propriedade alheia, admite que o onus probandi do lesado possa ser aliviado mediante o recurso a presunções e a máximas da experiência e razoabilidade humana (RC 16.03.2016, 288/14.0T8LRA.C1).
A mesma divergência ocorre na doutrina: autores como Mafalda Miranda Barbosa, Lições de Responsabilidade Civil, Cascais: Princípia, 2017, p. 337, consideram que apenas a impossibilidade de satisfazer uma necessidade concreta é atendível para efeitos indemnizatórios; outros, como Júlio Gomes, “O dano da privação do uso”, Revista de Direito e Economia, separata (1986), pp. 169-239, Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 15.ª ed., Coimbra: Almedina, 2018, p. 333, e António Abrantes Geraldes, Indemnização do Dano da Privação do Uso, Coimbra: Almedina, 2001, pp. 33 e 34, consideram que “o simples uso constitui uma vantagem suscetível avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano.”
A nosso ver, é inequívoco, como salientámos, que a privação do gozo de uma coisa pelo titular do respetivo direito consubstancia uma forma de ilicitude que preenche a previsão do art. 483-1. Não podemos, no entanto, miscigenar o pressuposto da ilicitude com o do dano, o que sucede, inevitavelmente, se prescindirmos da prova deste. Basta que se pense que um dos comportamentos possíveis do proprietário é o não uso da coisa. Numa situação desse tipo, não faz qualquer sentido atribuir uma indemnização pela privação do uso, simplesmente porque este – o uso – não existia. Seria uma subversão do princípio do ressarcimento integral, fruto de uma confusão entre os conceitos de ilicitude e dano. Neste sentido, Rodrigo da Guia Silva, “Aspetos Controvertidos dos Danos por Privação do Uso”, Revista de Direito do Consumidor, Ano 27, Vol. CXV, 2018, página 284, Paulo Mota Pinto, “Dano da Privação do Uso”, Estudos de Direito do Consumidor, n.º 8, Centro de Direito do Consumo da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2006/2007, p. 266-267.” Na jurisprudência, RE 20.10.2016 (125/15.8T8FTR.E1), onde se pode ler que, “[s]e o titular não se aproveita das utilidades que o uso normal da coisa lhe proporciona, não poderá falar-se de prejuízo ou dano decorrente da privação ilícita do uso.”
O que sucede é que as regras do id quod plerumque accidit nos indicam que o habitual é o proprietário fazer uso da coisa ou, pelo menos, ter essa finalidade, o que justifica que a prova do dano decorrente da privação do uso, cujo ónus recai sobre o lesado, pode ser facilitada a partir de ilações probatórias relacionadas com a utilidade económica do concreto bem em causa. Como contrapondo, fica sempre aberto o caminho para o lesante colocar em causa esse juízo de inferência, mediante a demonstração de que o proprietário, mesmo que não tivesse sido privado do bem, não lhe teria dado qualquer uso.
Deste modo, o ónus de alegação não sofre qualquer alteração, mantendo-se na esfera do lesado. É este entendimento que está subjacente à corrente jurisprudencial que vem exigindo do lesado a demonstração de que pretendia retirar as utilidades que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não tivesse sido dela privado pela atuação ilícita do lesante – ou, dito de outra forma, que pretendia ou tinha o propósito de exercer as faculdades inerentes ao seu direito de propriedade e que as deixou de poder exercer mercê da intervenção de terceiro. São exemplo, RG 4.02.2016 (3102/12.7TBVCT.G1), RP 29.09.2021 (325/19.1T8LOU.P1), RG 19.04.2018 (2231/14.7T8GMR.G1) e RG 24.04.2019 (279/17.9T8MNC.G1).
Ora, no caso vertente, a prova da intenção de uso do prédio, que é apto ao exercício e atividades industriais, realizadoras de riqueza, tendo, por isso, potencial de venda ou arrendamento, foi feita, como resulta do ponto 16 da fundamentação de facto, o que, de resto, é conforme ao escopo lucrativo que presidiu à criação da sociedade Autora através da já referida deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal.
Improcedem, portanto, as conclusões 73 a 79 do recurso.
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3).3.1. Passamos para a última questão.
Depois de concluirmos que a Autora é proprietária do prédio e que a Ré não é titular de qualquer direito, real ou pessoal, que lhe permita manter o gozo, estando obrigada à restituição, coloca-se a questão de saber se deve haver lugar a indemnização por benfeitorias.
Neste sentido, com a alteração introduzida na matéria de facto, resultou provado que a Ré edificou no prédio um pavilhão, no que despendeu € 750 000,00, levando, assim, a um incremente do valor do prédio.
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3).3.2.1. Consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa (art. 216-1), o que permite incluir no conceito a realização de obras, a incorporação de outras coisas ou simplesmente trabalho (José Alberto Vieira, “Das Coisas”, AAVV, Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil Comentado, I, Parte Geral, Coimbra: Almedina, 2020, p. 602.
As benfeitorias são necessárias, úteis ou voluptuárias (art. 216-2), classificação que se funda em dois critérios: i) a necessidade de melhoramento para evitar a perda ou a deterioração da coisa; ii) o eventual aumento do valor desta resultante desse melhoramento, que deve ser apreciado objetivamente (RL 17.05.2011, 2630/07.0TBPDL.L1-7). O que está em causa é o aumento do valor da coisa depois de feita a benfeitoria por comparação com o seu valor anterior e não o valor da despesa efetuada pelo benfeitorizante.
O regime das benfeitorias é tratado, em geral, no art. 1273, em cujo n.º 1 se lê que “[t]anto o possuidor de boa-fé como o de má-fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela.”
O n.º 2 acrescenta que “[q]uando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segunda as regras do enriquecimento sem causa.”
Desta remissão para o regime do enriquecimento sem causa – e, mais concretamente para o art. 479 – resulta que, sendo impossível a restituição em espécie – ou, por maioria de razão face ao que sucede com a reparação por equivalente relativamente à reparação natural, se ela for demasiado onerosa (Júlio Gomes, O Conceito de Enriquecimento, o Enriquecimento Forçado e os Vários Paradigmas do Enriquecimento sem Causa, Porto: UCP, 1998, p. 122) –, a obrigação de restituir converte-se numa prestação em dinheiro que é medida pelo valor do enriquecimento à data da verificação de um dos factos referidos no art. 480.
Por outro lado, a referência ao possuidor permite afirmar que o mero detentor não tem direito a indemnização por benfeitorias. Ressalvam-se as situações em que tal é expressamente previsto, como sucede com o locatário (art. 1046-1) ou o comodatário (art. 1138-1). Também o terceiro que realize despesas com obras na coisa, porque não é possuidor, não pode beneficiar do regime do art. 1273 (STJ 8.02.2011, 12/09.9T2STC.E1.S1).
É ao possuidor que incumbe alegar e provar a impossibilidade de levantamento por o mesmo causar detrimento da coisa – i. é, quem formula o pedido de indemnização pelas benfeitorias úteis é que tem o ónus de alegar e provar factos que permitam concluir que elas não podem ser levantadas sem detrimento da coisa. Esta regra está de acordo com o critério do ónus da prova definido no art. 342-1, pois constitui facto constitutivo do direito à indemnização a impossibilidade de levantamento sem detrimento da coisa. No sentido que expusemos, vide Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1987, p. 42. Na jurisprudência, RP 14.05.2005 (0530823), no qual se chama ainda a atenção para que o detrimento a que pode dar lugar o levantamento das benfeitorias úteis se refere não a estas, mas à coisa benfeitorizada. Daí que, independentemente da situação subjetiva do possuidor, seja juridicamente irrelevante que do levantamento das benfeitorias resulte o detrimento destas.
O direito ao levantamento das benfeitorias ou à indemnização pelo respetivo valor não tem natureza propter rem ou ob rem. Assim, sendo penhorada a coisa onde foram feitas as benfeitorias, continua a ser o anterior titular do direito a responder junto do possuidor benfeitorizante pelo créditos inerentes e não o exequente, a quem a coisa seja adjudicada, ou o comprador (STJ 5.05.2015, 78/11.1TBMDB.P1.S1).
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3).3.2.2. Estas breves considerações, permitem-nos concluir que a pretensão indemnizatória da Ré foi corretamente julgada improcedente, mesmo tendo em conta a alteração introduzida na decisão da matéria de facto.
Com efeito, há que cindir aqui o período que antecedeu a penhora do prédio do período subsequente.
Naquele primeiro, não se coloca a questão das benfeitorias: a Ré fez obras, que passaram pela construção de um pavilhão, num prédio de que era proprietária.
Esta conclusão não se altera pelo facto de o prédio ter sido penhorado e, na sequência, vendido a terceiro. É que, por um lado, este terceiro adquiriu o prédio tal como ele existia, com o pavilhão e demais obras feitas pela Ré incorporados no solo. Trata-se de uma consequência da vis atrativa da propriedade e da regra da primazia do solo, expressa através do brocardo superficies solo cedit. Por outro, ainda que, por absurdo, numa patente contradição lógica, se configurasse aqui um direito da Ré, então ele teria como sujeito passivo a própria credora, levando assim à sua extinção por confusão.
No segundo período, como vimos, a Ré não tem a qualidade jurídica de possuidor, o que exclui, logo à partida, a aplicação do regime da indemnização por benfeitorias. Como quer que seja, não resultou provada, mesmo com a alteração introduzida na matéria de facto, a realização de qualquer despesa feita neste período que possa ser qualificada como benfeitoria.
Improcedem, assim, também as conclusões 66 a 72.
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3).4. Na improcedência total do recurso, com a consequente confirmação da sentença recorrida, a Ré fica obrigada ao pagamento das custas respetivas: art. 527-1 e 2 do CPC.
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V.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem este coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em
Julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida;
Condenar a Recorrente no pagamento das custas.
Notifique.
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Guimarães, 26-10-2023
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O Juízes Desembargadores,
Gonçalo Oliveira Magalhães (Relator)
José Carlos Pereira Duarte (1.º Adjunto)
Alexandra Viana Lopes (2.ª Adjunta)
[1] Disponível, como os demais arestos indicados no texto, em www.dgsi.pt. [2] Diploma ao qual pertencem as disposições legais citadas sem menção expressa da respetiva proveniência. [3] Rigorosamente, o objeto da penhora é o direito. Afigura-se, porém, que a penhora, na sua materialidade, realiza-se sobre a coisa, para mais tarde ser concretizada a transmissão coerciva do direito. A propósito, Lebre de Freitas, A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª ed., Coimbra: Ges-legal, 2017, p., nota 3. [4] Sobre a questão, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 305; Castro Mendes, Limites Objetivos do Caso Julgado em Processo Civil, Lisboa: Ática, 1968, p. 162; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., Lisboa: Lex, 1997, p. 576, e O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325, p. 167, Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, p. 703, nota 1; Mariana França Gouveia, A Causa de Pedir na Ação Declarativa, Coimbra: Almedina, 2004, p. 394; Lebre de Freitas / Montalvão Machado / Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 325 – 326; Rui Pinto, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Julgar Online, disponível em https://julgar.pt/excecao-e-autoridade-de-caso-julgado-algumas-notas-provisorias/ [13.09.2023]; Lebre de Freitas, “Um polvo chamado autoridade do caso julgado”, ROA, ano 79, n.os 3-4 (jul.-dez. 2019), pp. 691-722. [5]Inter alia, os seguintes arestos do STJ: 30.04.2019 (4435/18.4T8MAI.S1), 14.09.2022 (24558/19.1T8LSB.L1.S1), 2.03.2023 (6055/18.4T8ALM.L1.S1), 12.04.2023 (979/21.9T8VFR.P1.S1), 30.05.2023 (3358/20.1T8BRG.G1.S1) e 4.07.2023 (142/15.8T8CBC-C.G1.S1). [6] Os tribunais judiciais gozam de competência genérica ou não discriminada. Significa isto que são competentes para o conhecimento de todas as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, conforme resulta, desde logo, do disposto no art. 211/1 da CRP, segundo o qual “[o]s tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”, norma que é desenvolvida no art. 40/1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.08.
Pelo contrário, os tribunais administrativos têm a sua competência limitada às causas que lhe são especialmente atribuídas. O n.º 3 do art. 212 da CRP define o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal em função dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais ao estatuir que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, norma que é reproduzida no art. 1.º do atual Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19.02, na redação da Lei n.º 114/2019, de 12.09. Estas normas contêm, portanto, uma cláusula geral positiva de atribuição de competência aos tribunais administrativos dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, que assim constitui a regra básica sobre a delimitação da competência jurisdicional dos tribunais administrativos com os demais tribunais: os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas são, em regra, julgados nos tribunais administrativos, que assim são os tribunais comuns em matéria administrativa, detendo reserva de jurisdição nessas matérias, exceto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição. Fala-se, a este propósito, de uma reserva material de jurisdição atribuída pela CRP aos tribunais administrativos, sendo debatido, na doutrina e na jurisprudência, se tal reserva é absoluta, quer num sentido negativo, implicando que os tribunais administrativos só poderão julgar questões de direito administrativo, quer num sentido positivo, conduzindo a que só eles poderão julgar tais questões.