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CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA FINS NÃO HABITACIONAIS
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
NULIDADE DO CONTRATO
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
ALVARÁ
EXCEÇÃO DE INCUMPRIMENTO
ABUSO DE DIREITO
Sumário
I- Só se considera nulo o contrato de arrendamento, nos termos do art.º 5º nº 8 do Decreto-Lei nº 160/2006, de 8 de agosto, se tiver sido provado pelo arrendatário, que os espaços dados de arrendamento não tinham aptidão para o fim pretendido pelo contrato, nem que a licença de utilização daqueles espaços, permitisse a abertura e a laboração neles do negócio previsto pelo arrendatário. II- A licença de utilização do imóvel para os fins do contrato de arrendamento, apenas é exigível em termos genéricos, definidos na lei como fins habitacionais e não habitacionais, nestes últimos se incluindo os vários fins não habitacionais, em termos genéricos (comércio, indústria, profissão liberal, serviços…). III- Apenas essa licença (genérica) é da responsabilidade do senhorio/proprietário do imóvel, sendo a licença do espaço para a (concreta) atividade a nele ser desenvolvida, da responsabilidade do inquilino, se outra solução não for convencionada. IV - A “exceção do incumprimento do contrato” é uma exceção dilatória de direito material, oposta pelo demandado ao demandante, nos contratos bilaterais sinalagmáticos, que conduz, em regra, a uma condenação “futura”, mas que só tem aplicação se a prestação em falta for reconhecida (como devida) pelo demandado. V- Daí que para invocar de forma válida esta exceção, os RR tivessem de reconhecer o direito dos AA ao valor das rendas em dívida, apenas lhe assistindo o direito à suspensão da exigibilidade das mesmas enquanto eles se recusassem a cumprir a sua obrigação - na ótica dos RR, a obtenção da licença do estabelecimento.
Texto Integral
Relatora: Maria Amália Santos
1º Adjunto: Jorge Teixeira
2ª Adjunta: Maria da Conceição Bucho
AA, BB, CC, DD, EE e FF, todos melhor identificados nos autos, vieram instaurar a presente ação declarativa sob a forma de processo comum, contra “EMP01..., Lda.”, e GG, também melhor identificados nos autos, formulando contra os mesmos os seguintes pedidos:
“a) Decretar-se a resolução do contrato de arrendamento entre os Autores e a Ré arrendatária, por falta de pagamento das rendas supra descritas;
b) Ser a Ré arrendatária condenada a despejar o imóvel identificado nesta petição e a restitui-lo aos Autores, livre de pessoas e bens;
c) Condenar-se os Réus a pagar, de forma solidária, aos Autores, as rendas vencidas e não pagas no montante de € 48.000,00 (…), bem como as quantias relativas às rendas vincendas até à efetiva entrega do locado;
d) Condenar os Réus a pagar aos Autores os juros de mora sobre as rendas em dívida à taxa legal, a partir da citação relativamente às já vencidas, e a partir do dia 8 (oito) dos meses subsequentes relativamente às vincendas até à efetiva entrega do locado”.
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Alegam para o efeito e em síntese, que são donos e legítimos possuidores de duas frações autónomas destinadas a comércio, que identificam, as quais foram dadas de arrendamento aos RR, por contrato de arrendamento para fins não habitacionais, celebrado em 26 de junho de 2009, pelo prazo de 5 anos, com início em 1 de setembro de 2009, pela então usufrutuária dos imóveis, HH, entretanto falecida.
A renda anual estabelecida foi de € 400,00 mensais nos primeiros doze meses de execução do contrato; de € 500,00 mensais, no segundo ano de execução do contrato; de € 600,00 mensais, a partir do terceiro ano de execução do contrato; e a partir de 1 de setembro de 2011 a renda seria atualizada anualmente, de acordo com o coeficiente legal em vigor.
Acontece que a Ré deixou de pagar as rendas acordadas desde janeiro de 2011, o que constitui fundamento legal para a resolução do contrato de arrendamento, encontrando-se aquela em dívida perante os AA, até à data da p.i., pela quantia global de € 48.000,00, a que acresce o valor das rendas futuras, até à efetiva entrega do imóvel, devoluto de pessoas e bens.
O Réu assumiu-se como fiador da Ré, com renúncia ao benefício da excussão prévia, pelo que é também responsável solidário pelos valores peticionados.
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Os Réus apresentaram contestação, aceitando ter celebrado com a falecida HH o aludido contrato de arrendamento, o qual se destinava a um ginásio e atividades conexas – prestação de serviços -, sendo certo que os espaços dados de arrendamento só podiam ser destinados a comércio (e não a prestação de serviços), facto impeditivo da possibilidade de licenciamento específico para a atividade de um ginásio, o que era do conhecimento da senhoria, que apesar disso, não se coibiu de elaborar e assinar o contrato de arrendamento em apreço.
Ora, a primeira Ré só constatou tal facto quando já tinha as obras concluídas e o espaço devidamente equipado e pronto a abrir, tendo contactado a senhoria, para a necessidade de licenciar os espaços em apreço para serviços, o que aquela nunca fez, apesar de prometer fazê-lo, razão pela qual a ré, através do seu mandatário, em 23 de abril de 2012, enviou uma carta à senhoria, advertindo-a de que não pagaria mais a renda enquanto o licenciamento geral para serviços não fosse obtido, dando-lhe conta de que já havia investido mais de € 100.000,00 em obras nos espaços, sem que o ginásio pudesse ter atividade pública e nessa medida rentabilizar o despendido.
Foram enviadas novas missivas à senhoria, em 23 de maio e 26 de novembro de 2012, de igual teor, tendo ainda, em 31 de outubro de 2013, sido enviado à filha da senhoria uma comunicação, propondo um acordo, tudo sem resultado.
Considera assim a ré que a recusa da sua parte no pagamento das rendas ocorreu na sequência do incumprimento, por parte da senhoria, da sua obrigação de licenciamento dos espaços arrendados para o fim a que os mesmos se destinavam, o que era do conhecimento daquela.
Mais alega que o contrato de arrendamento celebrado é nulo, porquanto o alvará de licença dos espaços arrendados só consentia o seu uso para o comércio.
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Deduziram os RR ainda Reconvenção, pedindo que os Autores sejam condenados a pagar à Reconvinte o montante de € 125.000,00, atinente às obras efetuadas no locado, e caso se entenda que existem os créditos reclamados pelos Autores, devem os mesmos ser compensados com o crédito que a primeira Ré comprovadamente detém sobre os mesmos.
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Os AA vieram Replicar, impugnando os factos alegados na Reconvenção, dizendo ainda que, aquando dacelebração do contrato, os RR conheciam bem a realidade física do imóvel, tendo-lhe sido facultados todos os documentos atinentes ao mesmo, e tendo ficado expresso na cláusula 4.º do referido contrato, que o destino do arrendado era para um ginásio e atividades conexas, ficando a cargo dos arrendatários o licenciamento e as obras para essa atividade.
Acresce que, de acordo com a cláusula 5.ª do mesmo contrato, todas as benfeitorias efetuadas no locado ficariam a pertencer ao prédio, sem que a inquilina pudesse alegar direito de retenção ou indemnização sobre as mesmas.
Mais alegam que o pedido reconvencional é deduzido com abuso de direito (na modalidade de “venire contra factum proprium”), pois foram os RR que criaram a situação pela qual pretendem agora obter vantagens patrimoniais à custa dos Autores.
Pugnam pela sua improcedência.
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Tramitados regularmente os autos foi proferida a seguinte decisão: “Pelo exposto, julgo a acção procedente e improcedente a reconvenção e, em consequência: Condeno os Réus no pedido e absolvo os Autores do pedido reconvencional. Custas a cargo dos Réus (cf. artigo 527.º, números 1 e 2, do C. P. Civil)”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela vieram os Réus interpor o presente recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:
“1- O Mtº Juiz “a quo” analisou e valorou incorrectamente toda a prova produzida, a qual de per si e analisada conjugadamente teria que culminar na improcedência da acção e na procedência da Reconvenção. 2- O Mtº Juiz “a quo”, erradamente, mas também incompreensivelmente não deu crédito às declarações de parte do Réu GG, não deu crédito às testemunhas arroladas pelos Réus, não deu crédito ao relatório pericial que mereceu acordo unânime dos três peritos, não deu crédito aos vários documentos que foram juntos aos autos. 3- O tribunal “a quo” atribuiu credibilidade a testemunhas cujos depoimentos foram no essencial incongruentes, tendenciosos e falsos. 4- O Mtº Juiz “a quo” fez errada interpretação do clausulado do ajuizado contrato de arrendamento, tendo validado o mesmo quando na verdade e cumprindo a lei tinha que o considerar nulo e de nenhum efeito ao abrigo do alegado nos arts. 38º e 39º da contestação/reconvenção, quando ali se invocam os arts. 294º e 1070º, nº 1, ambos do Cód. Civil, e os nºs 1 e 8 do art. 5º, do Dec-Lei nº 160/2006, de 8 de Agosto. 5- Nos termos do disposto no nº 1 do art. 280º, do Cód. Civil, dado que o negócio que as partes pretendiam celebrar era legalmente impossível, o contrato é nulo. 6- O contrato é nulo também ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 401º, do Cód. Civil, posto que ocorre no caso dos autos uma impossibilidade originária da prestação, que conduz à nulidade do contrato, com os consequentes efeitos legais. 7- Declarando nulo o ajuizado contrato de arrendamento, os custos de todas as obras e benfeitorias que foram efectuadas nos imóveis devem ser suportados pelos Autores-Reconvindos, pagando aos Réus-Reconvintes o valor por estes peticionado em sede da reconvenção deduzida. 8- As obras efectuadas, também de conservação, constituem no seu todo benfeitorias que beneficiaram e valorizaram patrimonialmente os imóveis, pelo que o pedido reconvencional deve ser julgado provado e procedente. 9- Em sede do direito aplicado pelo tribunal “a quo” crêem os Recorrentes que toda a alegação nesse âmbito e as normas que aplicou para justificar a decisão são errados. 10- Cometendo, assim, ilegalidade, ao violar os acima invocados preceitos legais, bem como os que infra se vão elencar e invocar. 11- É certo que os Recorrentes celebraram o contrato de arrendamento dos ajuizados imóveis que destinaram desde o início ao exercício da actividade de um ginásio e actividades conexas, tal como é verdade que a então Senhoria, entretanto falecida, deu de arrendamento os imóveis para estes referidos exclusivos fins. 12- A presente acção de despejo, que tem como única causa de pedir e pedido a falta de pagamento de rendas, só deu entrada em juízo no dia 6 de Novembro de 2017, ou seja, só deu entrada quase SETE anos sobre a data em que os Recorrentes deixaram de pagar rendas. 13- Bem sabendo os Recorridos que o arrendado nunca chegou a ser utilizado para os fins que constam do contrato de arrendamento, nem para qualquer outro fim pelos Recorrentes 14- Ao entrar com a presente acção a pedir a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas ocorre por banda dos Recorridos uma gritante má-fé contratual e processual e um claro e manifesto abuso de direito – art. 334º do Cód. Civil -, devendo ser condenados a esse título com justa multa e indemnização, o que se requer.. 15- Sobre os arts. 14.º, 15.º, 16.º e 17.º dos factos dados como provados pelo Mtº Juiz “a quo” importa levar em consideração as provas que foram carreadas para os autos, bem como os depoimentos ou declarações prestadas em sede de audiência de julgamento, que são suficientemente claros e inequívocos para infirmar aqueles factos dados como provados na sentença recorrida, o que se requer seja decidido. 16- A cláusula 4ª do contrato de arrendamento é clara no sentido de que o licenciamento ali referido é para obras e não para a obtenção de uma qualquer licença de utilização de mudança de destino das fracções na propriedade horizontal. 17- Sem sustentação em qualquer prova é dado como facto provado o escrito no art. 14.º dos factos provados, o que constitui falsidade abstrusa. 18- Malévola, tendenciosa e com manifesta deturpação e falsidade, os Recorridos constroem uma tese ao longo de todo o processo no sentido de convencer que o licenciamento se refere á licença de utilização dos ajuizados imóveis. 19- As obras que os Recorrentes efectuaram foram autorizadas pelos Recorridos, tanto que delas sempre tiveram conhecimento. 20- O representante ou procurador da Senhoria, a testemunha II, sendo mediador imobiliário, tendo experiência de vários anos no ramo, tendo já efectuado três contratos de arrendamento sobre os mesmos imóveis, tinha a obrigação de saber, como efectivamente sabia e sabe, que a licença de utilização dos arrendados não permitia o exercício da actividade de ginásio. 21- Donde, pelas regras da experiência comum dever ter informado os Recorrentes dessa impossibilidade, o que não fez, agindo com reserva mental e de má-fé. 22- Perante os factos, as regras da experiência comum indicam que os Recorrentes nada ganharam com a celebração do ajuizado contrato de arrendamento, antes perderam muito dinheiro e fizeram com que os terceiros que efectuaram obras nos imóveis também perdessem, até ao presente, quantias vultosas. 23- O Mtº Juiz “a quo” validou o contrato de arrendamento, quando na verdade e cumprindo a lei, tinha que o considerar nulo e de nenhum efeito. 24- Seja ao abrigo do que se deixou alegado nos arts. 38º e 39º da contestação/reconvenção, quando ali se invocam os arts. 294º e 1070º, nº 1, do Cód. Civil e os nºs 1 e 8 do art. 5º do Dec-Lei nº 160/2006, de 8 de Agosto. 25- Seja ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 280º do Cód. Civil, dado que o negócio que as partes pretendiam celebrar era legalmente impossível. 26- De resto, também era e é nulo ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 401º, do Cód. Civil, posto que ocorre no caso dos autos uma impossibilidade originária da prestação, que conduz à nulidade do contrato, com os inerentes efeitos legais. 27- Declarando nulo o ajuizado contrato de arrendamento, o custo de todas as obras que foram efectuadas nos imóveis e as benfeitorias neles realizadas devem ser suportadas pelos Autores-Reconvindos, pagando aos Réus-Reconvintes o valor peticionado na reconvenção, ou, no mínimo, o valor que foi arbitrado na perícia colegial que se encontra junta aos autos. 28- Devem os Recorridos ser condenados a reembolsar os Recorrentes dos valores por estes pagos a título de rendas, já que nenhum benefício, e antes pelo contrário, retiraram do contrato de arrendamento celebrado. 29- Ocorre no caso concreto a figura do enriquecimento sem causa, devendo operar-se a restituição do valor das rendas pagas e das despesas e encargos suportados pelos Recorrentes ao abrigo do disposto nos arts. 473º e 479º, ambos do Cód. Civil, já que não se justifica o enriquecimento dos Recorridos à custa do empobrecimento dos Recorrentes. 30- O não pagamento das rendas aos Recorridos a partir do ano de 2011 constitui um direito que assistia e assiste aos Recorrentes, já que exerceram o direito legalmente previsto de invocar e usar o instituto da excepção do não cumprimento do contrato – art. 428º do Cód. Civil-. 31- As obras efectuadas pelos Recorrentes constituem benfeitorias que beneficiam e valorizam patrimonialmente os imóveis, pelo que o pedido reconvencional deve ser julgado provado e procedente. 32- Soçobram, pois, as teses e as conclusões constantes dos arts. 17.º e 18.º, dos factos dados como provados na sentença recorrida, pelo que devem tais factos ser dados como não provados, o que se requer. 33- O mesmo se diz quanto aos factos constantes dos arts. 9.º, 14.º, 15.º e 16.º. 34- O tribunal “a quo” violou o disposto nos arts. 294º, nº 1 do art. 1070º, nº 1 do art. 280º, nº 1 do art. 401º, 334º, 473º, 479º e 428º, art. 216º, todos do Cód. Civil, os nºs 1 e 8 do art. 5º, do Dec-Lei n.º 160/2006, de 8 de Agosto, o disposto nos arts. 516º e 574º, nº 3 do Cód. Proc. Civil, e o art. 46º da Lei do Contrato de Seguro, aprovada pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril. Termos em que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgue a acção não provada e improcedente, e a reconvenção provada e procedente…”
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Os AA vieram apresentar Resposta ao recurso, pugnando pela improcedência do mesmo.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso (artigos 635º e 639º do CPC), as questões a decidir no presente recurso (por ordem lógica de conhecimento) são as seguintes:
I- A de saber se é de admitir o recurso da Matéria de facto;
II - Em caso afirmativo, se ela deva ser alterada;
III - Se o contrato de arrendamento celebrado é nulo;
IV - Em caso afirmativo, se deve ser restituído aos RR o valor das rendas pagas, assim como o valor das obras e benfeitorias por eles efetuadas no locado;
V- Se procede a exceção do incumprimento do contrato, invocado pelos RR; e
VI – Se existe abuso de direito por parte dos AA/recorridos.
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Foram dados como provados na primeira instância os seguintes factos:
“1.º - Os Autores são donos e legítimos possuidores das fracções autónomas designadas pelas letras ... e ..., a primeira formada pelo .... Amplo, com 2 casas de banho e um logradouro à frente, e a segunda formada pelo .... Centro amplo, composto por 2 casas de banho e um logradouro à frente, sendo que ambas se destinam a comércio, respectivamente descritas na CRP ... sob o n.º ...79... e ...79..., e inscritas na matriz urbana sob o artigo ...87. 2.º - Por contrato de arrendamento para fins não habitacionais, celebrado em 26 (vinte e seis) de Junho de 2009 (dois mil e nove), os Autores – através de HH, à época usufrutuária, mas entretanto falecida - deram de arrendamento à Ré, pelo prazo de 5 (cinco) anos, com início em 1 (um) de Setembro de 2009 (dois mil e nove), para comércio, os prédios urbanos identificados no artigo 1.º. 3.º - O destino dos arrendados era para um ginásio e actividades conexas. 4.º - A renda anual estabelecida entre os Autores e a ora Ré, foi de € 400,00 (quatrocentos euros) mensais nos primeiros doze meses de execução do contrato, a quantia mensal de € 500,00 (quinhentos euros), durante a vigência do segundo ano do contrato, e a partir do terceiro ano de execução do contrato, a renda mensal passaria a ser de € 600,00 (seiscentos euros), sendo que as referidas rendas deveriam ser pagas através de transferência bancária, para a conta dos ora Autores – vide Doc. ... já junto. 5.º - A partir de 01 (um) de Setembro de 2012 (dois mil e doze), a renda em vigor entre as partes, seria actualizada anualmente, de acordo com o coeficiente legal em vigor, devendo os Autores, para o efeito, comunicar à Ré com a antecedência legal prevista para tal desiderato. 6.º - Desde a celebração do contrato de arrendamento atrás mais bem identificado, o Réu, apenas procedeu ao pagamento aos Autores das rendas vencidas até Dezembro de 2010 (dois mil e dez), ficando por liquidar: 1) € 4.000,00 (quatro mil euros), referentes aos meses de Janeiro a Agosto de 2011 (dois mil e onze); 2) € 2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros), referentes aos meses de Setembro a Dezembro de 2011 (dois mil e onze); 3) € 42.000,00 (quarenta e dois mil euros), referentes aos meses de Janeiro de 2012 (dois mil e doze) a Outubro de 2017 (dois mil e dezassete). 7.º - Aquando da assinatura do contrato de arrendamento, os Autores receberam, a título de caução, o valor de € 400, 00 (quatrocentos euros). 8.º - O Réu, na qualidade de fiador, renunciando ao benefício da excussão prévia, assumiu solidariamente com a Ré arrendatária, o cumprimento de todas as cláusulas do contrato de arrendamento supra identificado, até efectiva restituição do locado, livre de pessoas e bens 9.º - Os Autores por diversas vezes interpelaram os Réus para procederem ao pagamento das rendas em atraso. 10.º - A primeira Ré nunca teve a possibilidade de usar os espaços para o fim a que se destinavam, nunca tendo aberto ao público o ginásio. 11.º - Logo após a celebração do contrato de arrendamento, a primeira Ré iniciou as obras visando a adaptação, dos espaços a laboração de um ginásio. 12.º - Quando arrendou os imóveis, estes encontravam-se decrépitos, em mau estado geral, em bruto, o que não permitia o seu normal uso, como assim sem divisões algumas. 13.º - Nos locais arrendados, os Réus realizaram as seguintes obras: - Intervenção nas infraestruturas de água, esgotos, eletricidade, gás natural e telecomunicações, com os acabamentos identificados nas fotografias constantes, a fls. 271 a 275, do relatório pericial; - Colocação de sistema contra incêndios; - Revestimento a nível de pavimentos em toda a sua área com soalho flutuante e pavimento cerâmico; - Compartimentação dos espaços arrendados conforme o projecto do documento 20.º (junto com a contestação), sendo as paredes divisórias de alvenaria simples, rebocadas e pintadas, ou com revestimento cerâmico; algumas das paredes divisórias em tijolo de vidro; - Substituição de caixilharias exteriores na integralidade – montras e portas e vidros, com criação de antecâmara na entrada;- Colocação de sinalética em todo o ginásio; - Construção de três balneários, casa de banho de deficientes, casa de banho de serviço para funcionários, sala de primeiros socorros, lavandaria, área de recção e respectivos balcões, instalação de caldeira para água quente e respectiva sala, criação de duas alas, uma de aparelhos - 133m2 -, e outra para práticas livres – 68,25m2; - Efetivação de todo o trabalho de carpintaria no local, nomeadamente colocação de portas, rodapés e demais; e - Colocação de dez espelhos a revestir as paredes. 14.º - O licenciamento do locado era responsabilidade da Ré, só não o tendo concluído por manifesta falta de recursos financeiros para avançar com a actividade por si pretendida, e nunca pela referida falta de licenciamento. 15.º - Os Réus tiveram conhecimento de toda a situação do imóvel antes do próprio acto de assinatura do contrato de arrendamento do mesmo, sendo que toda a documentação inerente a tal locado lhes foi facultado, nomeadamente a correspectiva licença de utilização. 16.º - Não obtiveram tal documento apenas já quando planeavam abrir as “portas” para o desenvolvimento da sua actividade. 17.º - Nem os Autores / Reconvindos alguma vez prometeram aos Réus / Reconvintes, que tratariam do aludido licenciamento, pois tal ónus ficou desde sempre a cargo destes últimos. 18.º - A empresa inquilina (...) não pode realizar quaisquer obras que não sejam previamente autorizadas por escrito pela senhoria e devidamente licenciadas, sendo que, quando forem de beneficiação ou consideradas benfeitorias ficam a fazer parte integrante do arrendado, sem direito a retenção ou indemnização seja a que título for”.
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Embora de uma forma que consideramos incorreta/desordenada, atento o que vem disposto no art.º 607º nº 4 do CPC – onde se prevê que “na fundamentação da sentença o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados…” -, encontramos na fundamentação da sentença recorrida (juntamente com a respetiva motivação), os seguintes factos, julgados pelo tribunal como não provados: “Por falta de prova, não se considerou provada: - a matéria alegada no artigo 14.º da contestação (“A primeira Ré só constatou tal facto [que os espaços dados de arrendamento não poderiam ser licenciados para a atividade específica de ginásio] quando já tinha as obras concluídas, já com o espaço devidamente equipado e nessa medida pronto a abrir”); - a matéria alegada no artigo 15.º da contestação (“Tentou apresentar o respetivo projeto na Câmara Municipal, tendo o seu legal representante sido informado que o licenciamento não era possível em razão de tal facto, tendo-lhe sido entregue o documento n.º ...”) (…). - Ainda por falta de prova não se considerou provadaa matéria alegadanos artigos 19.º, 20.º, 21.º, 22.º, 23.º, 52.º (da contestação): 19- Em virtude de nada fazerem, que não falsas promessas, e do largo lapso temporal decorrido, em 23 de Abril de 2012 o signatário da presente enviou a missiva que se anexa e aqui se tem integrada, onde em súmula adverte a mesma que a sua representada não pagaria mais a renda enquanto o licenciamento geral para serviços não fosse obtido. (Doc. n.º ...). 20- Já em tal data se referiu que haviam sido investidos mais de € 100.000,00 em obras nos espaços, sem que o ginásio pudesse ter atividade pública e nessa medida rentabilizar o despendido. 21- Face ao protelar e continuar de estéreis promessas, foi necessário enviar missiva de idêntico teor em 23 de Maio de 2012. (Documento n.º ...) 22- Como bem assoma da carta envida diretamente em 26 de Novembro de 2012 pela primeira Ré à então dona, que junto se agrega, fruto das reuniões tidas entre as partes (incluso com genro e filha da dona) e seus Advogados, não terem produzido efeitos práticos alguns no que tange à resolução do problema, reiterou-se o conteúdo das anteriores. (Documento n.º ...) 23- Foi enviado em 31 de Outubro de 2013 à filha da senhoria – JJ a comunicação eletrónica que se anexa propondo um acordo, que também não teve sequência, o que bem resulta da resposta. (Documento n.º ...) 52- Em tal quantia não se incluiu o preço dos equipamentos e mobiliário amovível, que foi comprado especificamente para o local, nem todos os demais custos relativos à contração e manutenção de serviços de água, gás e eletricidade que serviram o local ao longo de anos…”. - não se considerou provadaa matéria alegada nos artigos 47.º, 49.º, 50.º e 51.º: 47- Foi necessário elaborar o respectivo projeto, projeto de segurança contra incêndio e projeto de gás, sendo que este ultimo já se encontra pago e foi despendido o montante de € 640,00. (Documentos n.º ...4 a ...8) 49- As intervenções em causa ficaram prontas seis meses após celebração do contrato de arrendamento e ficam bem demonstradas pelos fotogramas que se anexam, de onde redunda que os espaços locados em bruto ficaram aptos a serem utlizados como um ginásio, pronto a licenciar, dado que cumpriam com todos os normativos exigidos pelo licenciamento específico, faltando-lhe, claro é, o licenciamento para serviços da responsabilidade da senhoria (Documentos n.º ...5 a ...0). 50- Por o legal representante da primeira Ré ter sido vítima de um assalto em sua residência de ..., onde lhe furtaram toda a documentação atinente às obras em apreço, a mesma não tem os comprovativos dos pagamentos em relativos às obras que foram executadas nos locados. Todavia, 51- É certo e seguro que em tão vasta intervenção de adaptação para o fim contratado de laboração de um ginásio gastou a Reconvinte sensivelmente € 125,000.00 (…) (Cento e vinte e cinco mil euros)”.
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I- Da Admissibilidade do recurso da matéria de facto:
Consideram os recorrentes que o tribunal recorrido analisou e valorou incorretamente toda a prova produzida; que não deu crédito às declarações de parte do Réu GG; que não deu crédito às testemunhas arroladas pelos Réus; que não deu crédito ao relatório pericial que mereceu acordo unânime dos três peritos; e que não deu crédito aos vários documentos que foram juntos aos autos.
Que, pelo contrário, atribuiu credibilidade a testemunhas cujos depoimentos foram no essencial incongruentes, tendenciosos e falsos.
Concretizam depois que sobre os arts. 9º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º e 18º dos factos provados, importa levar em consideração as provas que foram carreadas para os autos, bem como os depoimentos ou declarações prestadas em sede de audiência de julgamento, que são suficientemente claros e inequívocos para infirmar aqueles factos dados como provados, pelo que devem tais factos ser dados como não provados.
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Na sua Resposta ao recurso, os recorridos começam por invocar a inadmissibilidade do recurso da matéria de facto, por falta de cumprimento, por parte dos recorrentes, dos ónus previstos no art.º 640º do CPC, nomeadamente a indicação correta dos meios de prova em que se estribam para fundamentar a impugnação da matéria de facto, não dilucidando por que razão o meio de prova de que lançam mão, analisado conjuntamente com os demais meios de prova, impunha uma decisão diversa da estatuída na douta sentença, no que tange à matéria de facto.
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Efetivamente, dispõe-se no artigo 640.º do CPC sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto” que “1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”
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O que resulta do preceito legal transcrito, em suma, é que o recorrente que queira impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, tem que dar cumprimento a um tríplice ónus:
- Indicar, individualmente, os pontos da matéria de facto constantes da decisão - provados e não provados -, que considera incorretamente julgados;
- Indicar as provas - de entre as que se encontram nos autos e as que foram produzidas em audiência -, que impõem decisão diversa da proferida, com a menção concreta das passagens da gravação dos depoimentos em que funda a impugnação (caso os mesmos tenham sido gravados);
- Indicar que decisão se impõe face a esse meio de prova, e porque se impõe.
Isto na sequência do que tem sido considerado, de forma pacífica e uniforme na doutrina e na jurisprudência, de que o recurso da matéria de facto constitui um instrumento facultado às partes (e ao tribunal), especialmente concebido (apenas) para a correção de erros de julgamento, devidamente assinalados e discriminados pelas partes, as quais, para poderem beneficiar da reapreciação da prova pelo tribunal da Relação, terão de cumprir os requisitos mencionados no art.º 640º do CPC.
O que se exige ao recorrente, em nosso entender, é que manifeste desde logo, de forma clara e inequívoca, que pretende recorrer – também – da matéria de facto, da qual discorda, apontando também, de forma clara e inequívoca, quais os pontos da matéria de facto dos quais discorda, assim como as razões da sua discordância (com apelo às provas produzidas ou existentes nos autos). Os ónus impostos ao recorrente devem, além disso, mostrar-se cumpridos nas conclusões do recurso, e não apenas no corpo das alegações.
As conclusões assumem-se, de facto, como as ilações ou deduções lógicas terminais de um ou vários argumentos ou proposições parcelares, finalizando um raciocínio, sendo a imposição do ónus de concluir justificada pela necessidade da indicação resumida daquilo que na opinião do recorrente é fundamento de alteração ou anulação da decisão recorrida, evitando que a parte contrária se veja numa situação insustentável na preparação do contraditório, por não entender convenientemente os motivos da divergência do recorrente.
Ora, sendo as conclusões do recurso que efetivamente delimitam o seu objeto – artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do CPC - para que se tenha por bem executada a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve cada um dos ónus impostos ao recorrente nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do art.º 640º estar devidamente espelhado nas conclusões do recurso, nem que seja por remissão expressa para o corpo das alegações.
Sempre terá o recorrente, na opinião unânime, quer da doutrina, quer da jurisprudência, de especificar, nas conclusões do recurso, os pontos concretos de facto que pretende impugnar, mesmo que apenas venha a indicar os meios de prova em que, para esse efeito, se baseia, no corpo das alegações - no entendimento, sufragado pelo STJ (e que tem sido seguido pelas Relações), de que “o pedido” do recorrente é a impugnação da decisão da matéria de facto relativamente a certos pontos concretos, sendo “a causa de pedir” associada a esse pedido constituída pelo conjunto dos meios probatórios destinados à procedência daquele pedido. Daí que o pedido deva constar das conclusões, em consequência do princípio de que são as conclusões que balizam o objeto do recurso, embora a indicação dos meios probatórios possa apenas constar da motivação do recurso (corpo das alegações), não sendo obrigatória a sua inclusão nas conclusões.
Do exposto se conclui, que se o recorrente não fizer constar das conclusões do recurso as menções inscritas no n.º 1 do artigo 640º (pelo menos a indicação dos pontos da matéria de facto dos quais discorda), terá de rejeitar-se o recurso nessa parte, não se conhecendo do seu objeto.
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Transpondo agora os ensinamentos expostos para o caso dos autos,da análise das Conclusões apresentadas resulta, ainda que de forma não muito clara, que o recorrente pretende impugnar a matéria de facto assente (dada como provada), indicando os pontos da matéria de facto dos quais discorda, e fazendo uma referência, ainda que genérica, aos meios de prova que no seu entender deverão ser reapreciados por este tribunal de recurso, de modo a dar-se como não provados os pontos da matéria de facto indicados. Analisadas depois as Alegações de recurso, verificamos que os recorrentes transcrevem (parte) das declarações de parte do R GG, assim como (parte) dos depoimentos das testemunhas, que no seu entender, sustentam a alteração pretendida da matéria de facto, referindo-se também ali aos documentos que deveriam ser analisados de forma diferente pelo tribunal recorrido. Concordamos com os recorridos, de quenão foi dado cumprimento escrupuloso, pelos recorrentes, ao que se dispõe no art.º 640º do CPC, nomeadamente, não tendo sido indicados nas conclusões de recurso, ainda que por remissão, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; nem a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, com um juízo crítico dos meios de prova incidentes sobre os concretos pontos da matéria de facto impugnados; assim como a indicação, com exatidão, das passagens da gravação dos depoimentos em que se funda o seu recurso (sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes).
Agora, como tem sido defendido pelo Supremo Tribunal de Justiça (entre outros, no Ac. de 28/04/2016, disponível em www.dgsi.pt), “…Sem ceder a facilitismos que acabam por desprezar os objetivos e os fundamentos do ónus de alegação previsto no art.º 640º do CPC, não é legítimo que se faça do regime vigente uma interpretação excessiva (…), representando uma inaceitável sobreposição de aspetos de ordem formal, numa situação em que se mostra razoavelmente cumprido o ónus de alegação (…). Pese embora o rigor e a seriedade com que as partes devem enfrentar as exigências legais, estas não devem ser exponenciadas pelo Tribunal da Relação a quem a pretensão é dirigida. Importa que não se sacrifique o direito das partes no altar de uma jurisprudência formal, a um ponto que seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto, com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara, nem na letra, nem no espírito do legislador. Enfim, é necessário que a verificação do cumprimento do ónus de alegação regulado no art.º 640º do CPC seja compaginado com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, atribuindo maior relevo aos aspetos de ordem material…”.
Como também se decidiu no Ac. da RL de 16.04.2015 (também disponível em www.dgsi.pt), “o espírito e a filosofia que estão subjacentes ao Código de Processo Civil –concretizada por diversos modos em várias disposições legais –, visa assegurar, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, pretendendo que o processo e a respetiva tramitação possam ter a maleabilidade necessária para que possa funcionar como um instrumento (e não como um obstáculo) para alcançar a verdade material e a concretização dos direitos das partes…”.
Ora, subscrevendo na íntegra o entendimento perfilhado nos Acs. citados, consideramos que os recorrentes deram cumprimento mínimo às exigências legais que lhe são impostas pelo art.º 640º do CPC, indicando, quer os pontos da matéria de facto (provada) dos quais discordam (o que fazem nas conclusões de recurso), quer os meios de prova que pretendem ver reapreciados, com vista a alterar aqueles pontos da matéria de facto (transcrevendo os depoimentos, ou parte deles, no corpo das alegações), pelo que é de admitir o recurso da matéria de facto, devendo ser reapreciada a prova indicada pelos recorrentes, de modo a aferir, se devem ser mantidos ou não na matéria de facto provada, os pontos 9º, 14º, 15º, 16º, 17º, e 18º.
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II- Da Impugnação da matéria de facto
São os seguintes os factos impugnados pelos recorrentes:
“9.º - Os Autores por diversas vezes interpelaram os Réus para procederem ao pagamento das rendas em atraso.
14.º - O licenciamento do locado era responsabilidade da Ré, só não o tendo concluído por manifesta falta de recursos financeiros para avançar com a atividade por si pretendida, e nunca pela referida falta de licenciamento.
15.º - Os Réus tiveram conhecimento de toda a situação do imóvel antes do próprio ato de assinatura do contrato de arrendamento do mesmo, sendo que toda a documentação inerente a tal locado lhes foi facultada, nomeadamente a correspetiva licença de utilização.
16.º - Não obtiveram tal documento, apenas (…) quando planeavam abrir as “portas” para o desenvolvimento da sua atividade.
17.º - Nem os Autores/Reconvindos alguma vez prometeram aos Réus/Reconvintes, que tratariam do aludido licenciamento, pois tal ónus ficou desde sempre a cargo destes últimos.
18.º - A empresa inquilina (...) não pode realizar quaisquer obras que não sejam previamente autorizadas por escrito pela senhoria e devidamente licenciadas, sendo que, quando forem de beneficiação ou consideradas benfeitorias, ficam a fazer parte integrante do arrendado, sem direito a retenção ou indemnização seja a que título for”.
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O facto descrito em 9) está relacionado com a interpelação feita pelos AA aos RR para pagamento das rendas em atraso, facto que, apesar de impugnado pelos recorrentes, os mesmos não indicaram qualquer prova que o permitisse infirmar, pelo que o mesmo deve ser mantido.
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Quanto aos factos descritos em 14, 15, 16 e 17, estão os mesmos relacionados com a obtenção da licença de utilização do locado para a atividade a exercer pelos RR (atividade de ginásio), e que o tribunal considerou que a mesma seria da responsabilidade daqueles e não dos AA.
Para fundamentar a decisão quanto àqueles factos, considerou-se na decisão recorrida, na respetiva motivação, o seguinte: “Na verdade, quem redigiu o contrato de arrendamento (documento n.º ... junto com a petição), foi o advogado dos Réus, Dr. KK (cf. o, a nosso ver, sério e convincente depoimento da testemunha II, agente imobiliário, representante da falecida HH, que mediou a realização do contrato de arrendamento e esclareceu ter falado com o advogado, por telefone e por e-mails, e ter-lhe enviado os elementos, a documentação das Finanças e da Conservatória, e a Licença de Utilização), que, no contrato, identificou as fracções, objecto do arrendamento, “com o Alvará de Licença de Utilização, n.º ...8, emitido em .../.../1998 pela Câmara Municipal ...”), pelo que, quanto nos parece, será falsa a alegação de que a Ré “só constatou tal facto quando já tinha as obras concluídas, já com o espaço devidamente equipado e nessa medida pronto a abrir”.
E de facto, analisado o contrato de arrendamento junto aos autos, é bem verdade que do mesmo consta, nos Considerandos prévios, na parte respeitante à identificação dos prédios, que as duas frações dadas de arrendamento aos RR possuem o Alvará de Licença de Utilização nº ...8, emitido em .../.../1998 pela Câmara Municipal .... Auditado o depoimento da testemunha II, do mesmo resulta também, que os RR sempre estiveram cientes da existência desse Alvará, antes da assinatura do contrato. Garantiu a testemunha ao tribunal que foi ela quem negociou o contrato; que depois de mostrar as lojas fizeram o acordo de arrendamento; que falou com o advogado do Sr. GG, por telefone e por e-mails; que lhe enviou os elementos, ou seja, a documentação das Finanças e da Conservatória, e a Licença de Utilização. Mais garantiu a testemunha ao tribunal que a cláusula 4ª do contrato foi escrita a seu pedido, pois o licenciamento do estabelecimento seria por conta do inquilino (tanto para o estabelecimento, como para as obras), nunca tendo tido, ademais, qualquer queixa dos inquilinos quanto à falta de licença de utilização dos imóveis. Emitiu a sua opinião no sentido de que terá sido por razões económicas que a licença do estabelecimento não foi emitida – cujo pedido nem sequer chegou a entrar na Câmara, segundo afirmou -, o mesmo se passando quanto à falta do pagamento das rendas, e quanto à falta do pagamento das obras, sabendo que o R GG não pagou sequer as obras que mandou fazer no local. E justificou a sua opinião, dizendo que o Sr. GG já teve um ginásio no ..., conhecendo bem os trâmites que eram necessários para a abertura do estabelecimento. Aliás, diz ter conhecimento que ele tentou licenciar o ginásio, recolhendo várias assinaturas dos condóminos, com a sua ajuda, mas que não concluiu o processo.
E temos de concordar com o juízo de valor que foi feito pelo tribunal recorrido quanto ao depoimento desta testemunha, que se nos afigurou muito credível e circunstanciado, já que foi por seu intermédio que o contrato de arrendamento foi celebrado, tendo deposto em tribunal de forma muito assertiva e convincente, sendo ainda certo que a falta de capacidade financeira do R GG foi atestada pelos depoimentos das testemunhas LL (vidraceiro), MM (serralheiro), NN (carpinteiro), OO (carpinteiro), PP (comerciante), QQ (comerciante), e RR, profissionais que dizem ter andado na obra dos RR a trabalhar, sem terem recebido daqueles o pagamento das obras efetuadas, esperando ainda vir a receber, caso os RR recebam dos AA, por via reconvencional, o valor peticionado. A confirmar as afirmações da testemunha II, esteve a testemunhaSS (que exerceu funções na Câmara Municipal ... desde o ano de 2001, tendo na altura o Pelouro do Urbanismo, Obras públicas e particulares), confirmando que não teve conhecimento que o projeto de licenciamento do estabelecimento dos RR tenha sequer dado entrada na Câmara. Disse que se lembra de ter reunido com o R GG, antes de 2013, e que o técnico camarário terá informado o Réu sobre os procedimentos (informações técnicas) para abrir o ginásio e outros pressupostos, sendo um deles a autorização dos condóminos para tal (pensa que 100% dos condóminos). Mais esclareceu que se o documento da autorização dos condóminos tivesse dado entrada na Câmara, e estivessem preenchidos os requisitos relativos ao local, a Câmara não se opunha, validava e licenciava a atividade de ginásio. Estas declarações são coincidentes com as afirmações feitas pela testemunha II, que referiu que faltavam dois condóminos assinar a declaração (pensa que seriam emigrantes), referindo-se também a uma incompatibilidade do R GG com alguns deles.
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Ora, a prova analisada, e que foi considerada pelo tribunal recorrido, não é infirmada pela prova que os recorrentes indicam, e que pretendem ver reanalisada, desde logo as declarações de parte do recorrente GG.
Auditado o seu depoimento, o que retivemos do mesmo é que confirmou tudo quanto foi dito pelas testemunhas anteriores, incluindo as dificuldades que teve na obtenção da licença de abertura do estabelecimento, o Alvará, embora diga ser da responsabilidade do senhorio a sua obtenção.
Esclareceu que fez as obras, em seis meses, findas as quais verificou que não podia abrir o ginásio, por falta de licenciamento do mesmo, o qual, como confirmou, até aí não tinha sequer tentado obter.
E aqui, o que verificamos é que o R GG tenta confundir o tribunal, ao referir que “Tentamos que o senhorio licenciasse o espaço”, quando é certo e sabido que o espaço em si sempre esteve licenciado para comércio, com a Licença de Utilização nº ...8 emitida em 24 de julho de 1998, pela Câmara Municipal .... O que era preciso era licenciar o espaço para nele funcionar o estabelecimento de ginásio, que são coisas bem diferentes, como a testemunha SS esclareceu. Aliás, admitiu também o depoente que pediu ajuda à testemunha II para o ajudar a resolver o problema na Câmara, para obter o Alvará de licenciamento do estabelecimento, o que terá acontecido, segundo as testemunhas II e SS, tendo o próprio Réu ido obter informações à Câmara para saber como proceder para licenciar o seu estabelecimento, apenas não lhe dando seguimento.
E auditado novamente o depoimento da testemunha II, sobre o tipo de licenças que ficariam a cargo dos inquilinos na cláusula 4ª do contrato – que os recorrentes dizem que eram apenas as licenças para obras -, cremos ter ficado bem claro do depoimento daquela testemunha, que eram todas as licenças – para obras e para o estabelecimento -, o que é razoável, não sendo normal que sejam os senhorios a envolver-se em licenças que apenas digam respeito aos donos dos estabelecimentos. Uma coisa é a licença de utilização do prédio para fins habitacionais ou outros - comerciais, industriais, de serviços, para profissões liberais ou outros –, a chamada licença genérica -, outra bem diferente, é a licença específica para cada ramo de negócio, dentro daquela utilização genérica de atividade, que ficará, por norma, a cargo dos inquilinos (a menos que seja outra a convenção celebrada entre as partes). Auditamos também o depoimento da testemunha TT (arquiteto), o qual referiu que lhe foi pedido pelo R GG para lhe fazer um projeto para instalação de um ginásio, embora já no final das obras concluídas. Esta testemunha afirmou de facto ao tribunal, que quando o R GG foi pedir o licenciamento, o ginásio tinha de ter licenciamento para serviços, e que o projeto (que lhe foi pedido) não chegou a dar entrada na Câmara Municipal, pois para o projeto entrar tinha de haver alteração do licenciamento para serviços, sendo necessário que o proprietário do prédio fizesse essa alteração.
O depoimento desta testemunhanão nos convenceu minimamente, quer por não estar documentada nos autos a entrada desse pedido de licenciamento na Câmara, assim como a recusa do mesmo, devidamente fundamentada, quer ainda, e sobretudo, porque vai contra as declarações prestadas pela testemunha SS, autarca responsável pelo pelouro do Urbanismo na altura, e que garantiu ao tribunal que tal pedido de licenciamento nunca foi solicitado pelo R, nada impedindo a sua obtenção, desde que, efetuadas as obras necessárias, reunisse a assinatura de todos os condóminos a autorizar a respetiva atividade, facto que também é referido, curiosamente, pelo Sr. Arquiteto TT, de que era preciso autorização dos condóminos, “não sei se 2/3, se todos”.
Como se disse, auditados que foram os depoimentos, quer do Réu GG, quer das testemunhas por ele indicadas, nenhum deles permite infirmar a prova dos factos dados como provados nos pontos 14º, 15º, 16º e 17º da matéria de facto provada, a qual também deverá ser mantida.
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Quanto ao facto descrito em 18.º, do qual consta que “A empresa inquilina (...) não pode realizar quaisquer obras que não sejam previamente autorizadas por escrito pela senhoria e devidamente licenciadas, sendo que, quando forem de beneficiação ou consideradas benfeitorias, ficam a fazer parte integrante do arrendado, sem direito a retenção ou indemnização seja a que título for” –, tal facto decorre desde logo do teor do contrato de arrendamento, da sua cláusula 5ª, que os RR nem sequer põem em causa, constando ainda do final da mesma cláusula, do seu ponto 4, que a senhoria autoriza a realização das obras necessárias à adaptação das frações ao fim a que as mesmas se destinam.
A testemunha II referiu-se também a essas obras, acrescentando que as mesmas deveriam ser licenciadas, facto meramente redundante, dado que qualquer obra necessita da respetiva licença camarária “para poder arrancar”, sobretudo obras da envergadura das que os RR levaram a cabo. Por outro lado, não vemos sequer utilidade em referir essas obras no contrato, depois de se frisar no mesmo que as obras ficariam a cargo dos inquilinos. É por demais evidente que é quem faz as obras que tem de pedir a licença para as mesmas. Nenhum reparo temos assim a fazer à inclusão deste facto na matéria de facto provada, improcedendo assim, na totalidade, a pretendida alteração da matéria de facto.
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III - Da nulidade do contrato:
Alegam também os recorrentes que o tribunal recorrido fez errada interpretação do clausulado do contrato de arrendamento, tendo validado o mesmo, quando na verdade, e cumprindo a lei, tinha que o considerar nulo e de nenhum efeito, ao abrigo dos arts. 280º, 294º, 401º, e 1070º nº 1 do CC, e dos nºs 1 e 8 do art.º 5º do DL nº 160/2006, de 8 de agosto.
Declarando nulo o contrato de arrendamento, dizem que os custos de todas as obras e benfeitorias que foram efetuadas nos imóveis devem ser suportados pelos Autores-Reconvindos, os quais devem pagar aos Réus-Reconvintes o valor por eles peticionado em sede de Reconvenção.
Acresce que as obras efetuadas, também de conservação, constituem no seu todo benfeitorias que beneficiaram e valorizaram patrimonialmente os imóveis, pelo que o pedido reconvencional deve ser julgado provado e procedente.
Devem ainda os Recorridos ser condenados a reembolsar os Recorrentes dos valores por estes pagos a título de rendas, já que estes nenhum benefício retiraram do contrato de arrendamento celebrado.
Ocorre, no caso concreto, a figura do enriquecimento sem causa, devendo operar-se a restituição do valor das rendas pagas e das despesas e encargos suportados pelos Recorrentes, ao abrigo do disposto nos arts. 473º e 479º, ambos do Cód. Civil, já que não se justifica o enriquecimento dos Recorridos à custa do empobrecimento dos Recorrentes.
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Começamos por dizer, que contrariamente ao defendido pelos recorrentes, o contrato de arrendamento em causa nos autos é válido, e foi celebrado pelas partes em conformidade com as normas legais vigentes na data da sua celebração. Vejamos:
Nos termos do art.º 280º do CC, “É nulo o negócio jurídico cujo objeto seja física e legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável” (nº1), sendo também “…nulo o negócio contrário à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes” (nº2). Nos termos ainda do art.º 294º do mesmo código, intitulado “Negócios celebrados contra a lei”, “Os negócios celebrados contra disposição legal de caráter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei”.
Os recorrentes fazem apelo a estas disposições legais, com o objetivo de evidenciarem que o negócio jurídico celebrado é nulo, por violação de normas legais imperativas, normas essas atinentes à celebração do contrato de arrendamento no qual foram intervenientes, designadamente as normas vertidas no art.º 1070º nº1 do CC, e no art.º 5º nºs 1 e 8 do DL nº 160/2006, de 8 de agosto.
Mas não lhes assiste razão, como já adiantamos. O contrato de arrendamento em causa, para fins não habitacionais, foi celebrado em 26.6.2009, aplicando-se ao mesmo, na data da sua celebração, a Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), o qual veio dar nova redação/repor os artigos 1064.º a 1113.º do Código Civil (conforme artigo 3.º da mencionada Lei 6/2006), entre eles os seguintes, que convocamos para a resolução da questão colocada pelos recorrentes quanto à alegada nulidade do contrato:
O Arrendamento de prédios urbanos vem previsto, em termos gerais, nos artºs 1064.º e ss. do CC, sendo que, nos nº1 e 2 do art.º 1067.º, intitulado “Fim do contrato”, prevê-se que “O arrendamento urbano pode ter fim habitacionalou não habitacional. Quando nada se estipule, o local arrendado pode ser gozado no âmbito das suas aptidões, tal como resultem da licença de utilização”.
No que respeita depois à forma da sua celebração, prevê-se no art.º 1069.º que “O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito, desde que tenha duração superior a seis meses”, e quanto aos requisitos de celebração, preceitua o art.º 1070.º que “O arrendamento urbano só pode recair sobre locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestada pelas entidades competentes, designadamente através de licença de utilização, quando exigível” (nº1). Diploma próprio regula o requisito previsto no número anterior, e define os elementos que o contrato de arrendamento urbano deve conter (nº 2)”. Esse diploma (para o qual a lei remete) é o Decreto-Lei nº 160/2006, de 8 de agosto, que veio aprovar, por sua vez, os elementos do contrato de arrendamento, e os requisitos a que obedece a sua celebração, esclarecendo no seu Preâmbulo, que “Tendo sido aprovado o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), pela Lei 6/2006, de 27 de fevereiro, importa publicar os diplomas necessários à sua completa aplicação. Entre esses encontra-se o decreto-lei que regula os elementos do contrato de arrendamento, e os requisitos a que obedece a sua celebração, previsto no n.º 2 do artigo 1070.º do Código Civil, na redação que lhe foi dada pelo NRAU. Trata-se de matéria procedimental que não deve integrar o texto do Código Civil, o qual não se dedica a semelhante pormenorização a propósito de qualquer outro tipo contratual. O presente decreto-lei estabelece que às partes é dada ampla liberdade na conformação do contrato de arrendamento, sendo poucos os elementos que dele necessariamente devem constar. Assim, são elementos suficientes para a celebração de um contrato de arrendamento - necessariamente reduzido a escrito quando de duração superior a seis meses - os seguintes: a identidade das partes, a identificação do local arrendado, a existência da licença de utilização, o valor da renda, e a data da celebração. Com apenas estes elementos, é possível a celebração de um contrato perfeito, pois o Código Civil estabelece um conjunto adequado de disposições supletivas, regulando os aspetos não contemplados expressamente pelas partes (…). Continua a exigir-se a licença de utilizaçãopara se poder dar de arrendamento um prédio urbano ou uma fração autónoma, explicitando-se que compete às câmaras municipais a aplicação das coimas resultantes da falta dessa licença. Por forma a garantir a harmonia do sistema jurídico, explicita-se que esta exigência só se coloca em relação aos edifícios de construção posterior a 1951, data em que foram criadas as licenças de utilização. Para os edifícios anteriores, só a alteração da sua utilização ou o arrendamento para fim não habitacional são sujeitos a autorização…”. No que à licença de utilização diz respeito, preceitua o art.º 2.º do citado DL, sob a epígrafe “conteúdo necessário”, que no contrato de arrendamento deve constar “… d) A existência da licença de utilização, o seu número, a data e a entidade emitente, ou a referência a não ser aquela exigível, nos termos do artigo 5.º.”
Por sua vez o art.º 5.º do mesmo diploma legal, ainda referente à “Licença de utilização”, refere que “Só podem ser objeto de arrendamento urbano os edifícios ou suas frações cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestada pela licença de utilização. O disposto no número anterior não se aplica quando a construção do edifício seja anterior à entrada em vigor do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951, caso em que deve ser anexado ao contrato documento autêntico que demonstre a data de construção (…) O arrendamento para fim diverso do licenciado é nulo, sem prejuízo, sendo esse o caso, da aplicação da sanção prevista no n.º 5 e do direito do arrendatário à indemnização…”.
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Definida a legislação aplicável ao contrato de arrendamento celebrado entre as partes, e analisado o mesmo contrato, reduzido a escrito e assinado por ambas as partes, estamos em condições de afirmar que o mesmo é válido e foi celebrado em obediência a todas as normas legais vigentes. Põem os recorrentes o acento tónico da sua nulidade, no facto de o local arrendado não estar licenciado para os fins por eles previstos – para nele instalarem um ginásio -, que consideram ser uma atividade de prestação de serviços, destinando-se o local arrendado, pelo contrário, de acordo com a licença de utilização do mesmo, a comércio.
Mas a matéria de facto provada não nos permite concluir que os espaços locados – não obstante terem uma licença de utilização genérica para comércio -, não tinham aptidão para o fim pretendido pelos arrendatários – para nele instalarem o seu ginásio.
Aliás, de acordo com o que ficou provado, os Réus tiveram conhecimento de toda a situação do imóvel antes do próprio ato de assinatura do contrato de arrendamento, sendo que toda a documentação inerente a tal locado lhes foi facultado, nomeadamente a correspetiva licença de utilização. Isso mesmo resulta, aliás, da análise do contrato de arrendamento junto aos autos, assinado por ambas as partes, do qual consta que o local estava licenciado para comércio, e que o destino dos arrendados era para um ginásio e atividades conexas, o que não pode ter sido ignorado pelos arrendatários.
Ficou ainda provado, que logo após a celebração do contrato, a primeira Ré iniciou as obras, visando a adaptação dos espaços a laboração de um ginásio, pois quando arrendou os imóveis, estes encontravam-se decrépitos, em mau estado geral, em bruto, o que não permitia o seu normal uso, o que também só seria possível se os espaços tivessem aptidão para a execução das ditas obras.
Mais ficou provado que o licenciamento do locado era da responsabilidade da Ré, nunca os Autores tendo prometido àquela que tratariam do aludido licenciamento, tendo tal ónus ficado, desde sempre, a cargo dos arrendatários.
É certo que também ficou provado nos autos que a primeira Ré nunca teve a possibilidade de usar os espaços para o fim a que se destinavam, nunca tendo aberto ao público o ginásio. Mas de acordo com a matéria de facto provada tal só aconteceu por manifesta falta de recursos financeiros para avançar com a atividade por si pretendida, e nunca pela referida falta de licenciamento.
Resulta assim da matéria de facto provada que não tem aqui aplicação o disposto no art.º 5º nº 8 do Decreto-Lei nº 160/2006, de 8 de agosto, invocado pelos recorrentes - no qual se prevê que o arrendamento para fim diverso do licenciado é nulo -, pois que nada ficou provado nos autos que nos permita afirmar que os espaços dados de arrendamento aos RR não tivessem aptidão para o fim pretendido pelo contrato celebrado, nem que a licença de utilização daqueles espaços não permitisse a abertura e a laboração neles do negócio que os RR pretendiam neles instalar.
Pelo contrário, ficou provado nos autos que foi a falta de capacidade financeira dos RR que os impediu de levarem por diante a sua atividade, e não a falta de licenciamento dos espaços, nem a falta de aptidão dos mesmos para neles ser instalado o negócio de ginásio e atividades conexas, que era o fim a que se destinava o arrendado. Reiteramos por isso aqui a afirmação inicial, de que o contrato celebrado pelas partes é válido, e não padece da nulidade invocada pelos recorrentes.
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Sempre se dirá, ainda assim, que vem sendo defendido de forma pacífica, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, que a licença do espaço arrendado é apenas exigível para os fins do contrato (em termos genéricos), que são definidos na lei como fins habitacionais e não habitacionais, nestes últimos se incluindo os vários fins não habitacionais, mas em termos genéricos: comércio, indústria, profissão liberal, serviços (Luís Menezes Leitão, “Arrendamento Urbano”, 5ª edição, página 61; Jorge Aragão Seia, “Arrendamento Urbano”, 5ª edição, página 177, e M Januário Gomes, “Arrendamentos Comerciais”, 2ª edição, página 59, Jorge Pinto Furtado, “Manual de arrendamento urbano”, volume I, 4ª edição, páginas 401 a 402; e Acs. da RP, de 20.6.2011, e de 8.5.2012, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, e de 16.1.2012: CJ, ano XXXVII, tomo I, páginas 168 a 173).
A letra da lei é muito clara, quando se refere aos fins do contrato, no art.º 1067.º do CC: o arrendamento urbano pode ter fim habitacional ou não habitacional, determinando-se depois, como requisitos de celebração, no art.º 1070.º, que “o arrendamento urbano só pode recair sobre locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestada pelas entidades competentes, designadamente através de licença de utilização, quando exigível”, remetendo para diploma próprio a regulação do requisito previsto no número anterior e a definição dos elementos que o contrato de arrendamento urbano deve conter.
Também este último diploma legal (acima citado), se refere à licença de utilização do imóvel para os fins do contrato – habitacional ou não habitacional – reportando-se a licença de utilização ao imóvel e nunca ao estabelecimento (seja de que tipo for) a nele a instalar, assim como à respetiva licença de atividade.
Ora, como já referimos a propósito da impugnação da matéria de facto, confundem os recorrentes a licença (genérica) de utilização do imóvel – o qual estava licenciado para fins comerciais, através da Licença de Utilização nº ...8, emitida em 24 de Julho de 1998 pela Câmara Municipal ..., - com a licença (específica) do imóvel para o funcionamento do ginásio, que ficou a seu cargo, de acordo com a cláusula 4ª do contrato celebrado, como nos parece razoável e decorre das regras da experiência.
Efetivamente, se é lógico e razoável impor ao senhorio (ou ao dono do local arrendado) que o legalize para os fins destinados ao arrendamento – fins habitacionais ou não habitacionais, e entre estes, para comércio, indústria, serviços, ou outros -, já não é lógico nem razoável que seja o senhorio a legalizar o espaço para os fins específicos do negócio a nele instalar. A legalização do estabelecimento em si, ou das condições impostas pela respetiva autarquia para o mesmo poder funcionar, há-de ser da responsabilidade do próprio empresário, como titular do estabelecimento (ficando a sua licença, de resto, a fazer parte do acervo do próprio estabelecimento comercial como um todo, negociável e transacionável, quer em sede de trespasse, quer em sede de simples exploração do estabelecimento). A exigência da licença de utilizaçãodo imóvel baseia-se na necessidade de obrigar os proprietários dos imóveis (novos, reconstruídos ou alterados) ao cumprimento de todas as normas legais, quer relativas à construção, quer à segurança, salubridade ou estética, sendo diferentes as exigências, consoante o fim que se pretenda dar ao imóvel: para habitação ou para outros fins (em regra, não habitacionais), sendo requisito da celebração dos contratos de arrendamento, que fique a constar dos mesmos a existência dessa licença de utilização, como garantia de que o imóvel reúne as condições necessárias – de segurança, de salubridade ou outras para poder ser arrendado (para o fim a que o senhorio o destinou rentabilizar), sendo que essa licença deverá também ser facultada ao próprio arrendatário.
A licença de utilização, é assim um documento administrativo, a emitir pela respetiva autoridade municipal, que certifica a conformidade da construção com o respetivo projeto, sendo obrigatória para qualquer arrendamento, quer habitacional, quer para fins não habitacionais – para o exercício de atividade comercial, industrial, de profissão liberal ou de outra atividade, desde que lícita -, e encontra a sua justificação na necessidade de obrigar os proprietários dos imóveis (novos, reconstruídos ou alterados) ao cumprimento de todas as normas legais, quer relativas à construção, quer de segurança, salubridade ou estética.
Como esclarece Aragão Seia (“Arrendamento Urbano”, 7.ª ed, 508), trata-se de um “requisito formal do contrato de arrendamento” e “destina-se a salvaguardar a posição jurídica do arrendatário, obviando a que este venha a encontrar-se sujeito a uma medida administrativa de despejo, quando o local arrendado não disponha de funcionalidade adequada ao seu uso.” Há que distinguir, no entanto, essa licença (genérica) de utilização do imóvel, e a licença (específica) de utilização desse mesmo imóvel para o exercício de qualquer atividade específica que se pretenda nele instalar (farmácia, consultório médico, restaurante, ginásio etc.), podendo ser diversos os requerentes do respetivo licenciamento. Ora, só a primeira é obrigação do senhorio, por se tratar de licenciamento do edifício para necessidades comuns a certo tipo de utilização (habitação ou outros fins), devendo essa utilização ser conciliada, ademais, com os direitos dos restantes condóminos (em caso de fração em regime de propriedade horizontal), e com a própria estrutura e configuração do edifício e suas acessibilidades (cfr. neste sentido arts.º 2º e 4º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE).
Como facilmente se intui e decorre da lei, a autorização de utilização de edifícios ou das suas frações autónomas destina-se a verificar a conclusão da operação urbanística, a conformidade da obra com o projeto aprovado e com as condicionantes legais, e bem assim verificar a conformidade da utilização prevista com as normas legais e regulamentares que fixam os usos e utilizações admissíveis, bem como a idoneidade do edifício ou sua fração autónoma para o fim pretendido (art.º 62.º do RJUE).
Ora, como se disse, só esta licença é obrigação do senhorio, por só ela enquadrar a natureza funcional que a justifica, incidente sobre a necessidade de os proprietários dos imóveis obedecerem a certo tipo de normas legais de salvaguarda; por conseguinte, apenas a estas (às dos senhorios) se referindo as disposições específicas do RAU e do NRAU. Já as licenças, com o respetivo alvará, para o exercício de certo ramo de atividade (que podem também implicar a realização de obras internas, instalações de água e eletricidade próprias, e definição de áreas de compartimentos) cabem, em regra, ao arrendatário, que pretende exercer no imóvel a atividade específica.
O licenciamento dos estabelecimentos comerciais visa assegurar a higiene, a salubridade, a segurança, a comodidade, e as condições técnico-funcionais na instalação e laboração dos mesmos, sendo o respetivo Alvará a forma solene do ato administrativo, o título dos direitos conferidos aos particulares, por deliberação dos órgãos autárquicos ou decisão dos seus titulares (art.º 94º, do DL nº 169/99, de 18/09).
O Alvará é um título de licenciamento, um documento firmado pela autoridade competente, pela qual ela faz saber a quem dele tome conhecimento, a existência de certo direito constituído, em proveito de determinada pessoa, e cuja obtenção, como se disse, cabe, em regra, ao arrendatário, ao titular do estabelecimento.
Dizemos em regra, porque nada impedirá, no âmbito da liberdade contratual das partes, que fique a cargo do senhorio o licenciamento do espaço para determinada atividade, que pode, inclusivamente, já a ter obtido previamente, antes da própria celebração do contrato, caso nisso veja interesse negocial. Nesse caso, haverá que analisar o contrato, e aferir a cargo de qual das partes ficou a obrigação de licenciar o espaço para a atividade a nele exercer pelo arrendatário.
Como bem se ajuizou no acórdão do STJ de 13/12/2007 (citado, por sua vez, no Ac. do STJ de 19/02/2008, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.), “o senhorio tem a obrigação de assegurar o gozo da coisa ao locatário, estando este obrigado ao pagamento da renda, como contrapartida, não cumprindo ao locador a obtenção de qualquer licença ou alvará. Se nada tiver sido convencionado em contrário, tratando-se de arrendamento para exercício de restauração, é ao arrendatário que compete proceder às obras de adaptação, gestão de áreas, instalação de equipamentos e decoração para instalar o seu estabelecimento.”
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Tudo quanto se acabou de dizer, como é evidente, não tem aplicação direta ao caso dos autos, pois como ficou a constar da matéria de facto provada, o licenciamento do locado para o fim que lhe foi destinado pelos RR – para nele instalar um ginásio e atividades conexas -, ficou a ser da responsabilidade da locatária, a qual não o concluiu por manifesta falta de recursos financeiros para avançar com a atividade por si pretendida.
Mais ficou provado nos autos que os Réus tiveram conhecimento de toda a situação do imóvel antes do próprio ato de assinatura do contrato de arrendamento, sendo que toda a documentação inerente a tal locado lhes foi facultado, nomeadamente a correspetiva licença de utilização do imóvel, e que os Autores nunca prometeram aos Réus que tratariam do aludido licenciamento, ficando tal ónus desde sempre a cargo dos últimos – como resulta, de resto, da cláusula 4ª do aludido contrato.
Efetivamente, analisado o contrato celebrado, com particular cuidado a sua cláusula 4ª, da mesma consta que “O destino do arrendado é para um ginásio e atividades conexas (…), ficando a cargo dos segundos (arrendatários) o licenciamento e obras para esta atividade” – resultando assim daquela cláusula, que foi intenção das partes deixar a cargo da inquilina a obtenção do licenciamento do imóvel para o funcionamento do seu estabelecimento.
Não vemos, aliás, como pode a redação daquela cláusula comportar outra interpretação que não a que ficou a constar da matéria de facto provada.
Como refere Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, 418), são tarefas fundamentais da hermenêutica dos negócios jurídicos, dar resposta a duas questões: qual o tipo de sentido negocial decisivo, cuja determinação constitui o fim da atividade interpretativa; e quais os elementos, os meios ou subsídios que o intérprete deve tomar em consideração na busca do sentido negocial relevante.
Ora, a interpretação das declarações negociais deve fazer-se de acordo com as normas constantes dos artigos 236º e 238º do Código Civil, segundo as quais as declarações devem valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante. Consagra-se efetivamente na nossa lei civil a chamada teoria da impressão do destinatário.
Acresce que, embora o Código Civil não se tenha pronunciado sobre o problema de saber quais as circunstâncias atendíveis para a interpretação, como elucida Mota Pinto (ob. cit., 450), também aqui se deve operar com a hipótese de um declaratário normal: serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição de declaratário efectivo, teria tomado em conta.
Como bem refere o Professor Heinrich Horster (A Parte Geral do Código Civil Português-Teoria Geral do Direito Civil – 510), a normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade de entender o texto ou o conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante.
Acresce que, tratando-se, como é o caso, de um negócio formal, se o sentido da declaração não tiver reflexo ou expressão no texto do documento, ele não pode ser deduzido pelo declaratário, e não deve por isso ser-lhe imposto. O sentido da declaração tem de ter um mínimo de correspondência no texto do documento – o que vimos que tem, sendo bem clara, quanto a nós, a redação da cláusula 4ª do contrato de arrendamento em análise, no sentido de que ficou a cargo dos recorrentes a obtenção da licença relativa ao ginásio.
Donde, a conclusão a extrair de tudo quanto se disse, é a de que estaria a cargo da arrendatária a preparação do imóvel, nomeadamente a realização das obras necessárias para a obtenção da licença de funcionamento do seu estabelecimento (nos termos previstos no DL n.º 141/2009, de 16 de junho, em vigor à data da celebração do contrato, mas entretanto alterado pelo DL n.º 110/2012, de 21 de maio), diploma que estabelece o Regime Jurídico das Instalações Desportivas de Uso Público.
Em conclusão, como vem sendo entendido de forma pacífica na jurisprudência (inclusive ainda à luz do RAU), no que concerne à existência de licença de utilização do locado, haverá que distinguir a licença a cargo do senhorio/proprietário do imóvel a arrendar, atinente à genérica possibilidade de utilização do edifício, da licença adstrita à específica atividade que o locatário irá exercer no locado, cuja obtenção estará, em regra, a cargo do locatário e não do senhorio (Acs. do STJ, 06.7.2011 e de 19.02.2008; da RL, de 11.9.2014, e de 03-03-2016; e da RP, de 20/06/2011, e de 17.6.2013, todos disponíveis em www.dgsi.pt.)
No caso dos autos, como resulta da matéria de facto provada, e como seria, de resto de esperar, a ré arrendatária ficou encarregue de obter a licença necessária à exploração do seu estabelecimento de ginásio, segura, como vimos, que o imóvel arrendado tinha licença de utilização para o efeito (embora genérica, para comércio, nos termos supra expostos), tanto mais que no prédio em questão já haviam funcionado no passado outros estabelecimentos similares, de prestação de serviços (pelo menos uma oficina de reparação de motos, e um stand de automóveis), além de que a situação legal do prédio não parecia indiciar irregularidades, posto que estava inscrito na matriz predial, e descrito na competente conservatória do registo predial, com a sua propriedade inscrita a favor da senhoria, e com a licença de utilização emitida pela respetiva autarquia.
Ora, perante essa evidência, nada há a apontar ao contrato celebrado, não assistindo razão aos recorrentes para verem declarada a nulidade do mesmo.
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IV - A restituição do valor das rendas, das obras e das benfeitorias:
Com base na nulidade do contrato, pretendiam os recorrentes que lhes fosse restituído o valor das rendas pagas, assim como dos custos de todas as obras e benfeitorias que foram efetuadas por si nos imóveis.
Todos esses pedidos perdem utilidade, pois como se viu, o contrato celebrado é válido, devendo o mesmo ser integralmente cumprido, não ficando os recorrentes exonerados do pagamento da sua prestação – o valor das rendas acordadas -, nem lhes assistindo também o direito a reaverem o valor das rendas pagas, nem os custos com as obras e benfeitorias que efetuaram nos imóveis.
Aliás, como ficou provado nos autos, a inquilina não podia realizar obras no locado que não fossem previamente autorizadas por escrito pela senhoria, e devidamente licenciadas, sendo que, mesmo tendo sido autorizadas (como foram, de forma expressa, no próprio contrato), quando fossem de beneficiação ou consideradas benfeitorias ficavam a fazer parte integrante do arrendado, sem direito a retenção ou indemnização fosse a que título fosse.
Decorre assim do exposto que também não assiste aos recorrentes o direito a serem indemnizados das obras, mesmo que a título de benfeitorias realizadas nos espaços arrendados.
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V – Da exceção do Incumprimento do contrato:
A conclusão a que chegamos acima – de que o contrato celebrado pelas partes é válido e não enferma do vício da nulidade -, retira também força à questão colocada pelos recorrentes quanto à alegada legitimidade para o não pagamento das rendas, com a invocação da exceção do incumprimento do contrato por parte dos AA.
Efetivamente, nos termos do art.º 428º CC, se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação, enquanto o outro não efetuar a que lhe cabe, ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.
Assim, a possibilidade de invocar a “exceptio non adimpleti contractus”, depende da verificação cumulativa de três requisitos, a saber: a existência de um contrato bilateral ou sinalagmático, ou seja, em que se prevejam obrigações correlativas ou interdependentes; a não fixação de prazos diferentes para as prestações dos contratantes; e que a contraparte não tenha cumprido a sua prestação, ou que não se tenha oferecido para o seu cumprimento.
De acordo com o estipulado nos artigos 1031º e 1038º, nº1, alínea a), ambos do Código Civil, são obrigações do locador, entregar ao locatário a coisa locada, e assegurar-lhe o gozo dela para os fins a que a coisa se destina; e são obrigações do locatário, entre outras, a de pagar a renda ao locador, na data estipulada.
É pacífico o entendimento jurisprudencial de que “ao sinalagma da obrigação (do arrendatário) do pagamento das rendas, corresponde o da prestação (do senhorio) de entregar e assegurar o gozo do locado” (Acs. do STJ de 06-07-2011, de 31.03.2004, e de 13.12.2007, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
A “exceptio non adimpleti contractus” constitui assim uma exceção dilatória de direito material, cujo objetivo e funcionamento se ligam ao equilíbrio das prestações contratuais, valendo tipicamente no contexto de contratos bilaterais, quer haja incumprimento ou cumprimento defeituoso, pela qual uma das partes, não negando, nem limitando o direito do outro ao cumprimento, recusa a sua prestação enquanto não for realizada ou oferecida simultaneamente a contraprestação.
Dito de outro modo, a exceção de não cumprimento não é senão a recusa temporária do devedor – credor de uma prestação não cumprida no âmbito de um contrato sinalagmático – que, assim retarda, legitimamente, o cumprimento da sua prestação, enquanto o credor não cumprir a prestação que lhe incumbe. A invocação da exceção de não cumprimento pressupõe assim que uma das partes possa recusar a sua prestação à outra, enquanto esta não cumprir, o que naturalmente requer que o cumprimento seja ainda possível.
Como se pode ler no Ac. do STJ de 15.3.2012 (disponível www.dgsi.pt.) “…a excepção de não cumprimento, cujo objectivo é o de paralisar temporariamente a pretensão da contraparte (...) traduz-se na faculdade, em cujo exercício o juiz se não pode substituir à parte, de recusar o cumprimento de uma obrigação contratual invocando a não realização, pela contraparte, de prestações correspectivas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra, para cuja realização não haja prazos diferentes…” (no mesmo sentido Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I vol. anotação ao artigo 428º do Código Civil).
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No caso em apreço, dúvidas não há de que nos encontramos na presença de um contrato sinalagmático (arrendamento urbano comercial), que impõe a ambos os contraentes obrigações correspectivas, a saber: a do senhorio, a obrigação de assegurar o gozo da coisa ao locatário, estando este obrigado, por sua vez, ao pagamento da renda, como contrapartida da obrigação do primeiro (arts. 1031º e 1038º, al. a), do CC, já acima citados).
Aduzem os recorrentes na apelação, que estando os senhorios em mora – quanto ao não licenciamento do espaço para nele instalar o seu ginásio -, podiam recusar legitimamente o pagamento das rendas, invocando para o efeito a exceção de não cumprimento do contrato, prevista no citado art.º 428º, do CC.
Ora, já acima deixamos bem expresso que os AA/senhorios não estão em mora para com os RR/inquilinos, porquanto não lhes competia providenciar pela obtenção da aludida licença, sendo certo que a sua obrigação contratual era apenas e tão só, a de conceder aos RR/recorrentes o gozo dos locais arrendados, como fizeram, facultando-lhes os espaços para neles instalarem o seu estabelecimento comercial, de ginásio e outras atividades conexas, tendo os mesmos, inclusivamente, neles realizado as obras necessárias à respetiva instalação.
Como tem sido defendido pela jurisprudência do Supremo, é apenas esse o sinalagma contratual - de que ao dever de pagar a renda contrapõe-se apenas o dever de facultar ao inquilino o gozo da coisa locada; não o de obtenção de qualquer licença (Acs do STJ de 06-07-2011, de 31.03.2004, de 13.12.2007, acima referidos).
Na verdade, a factualidade provada não atesta que os réus tivessem ficado, devido à falta de licença de utilização do imóvel, impossibilitados de exercerem nele a sua atividade, ou que tivessem tido alguma dificuldade nesse exercício, por tal motivo; pelo contrário, o que resultou provado foi que foram razões económicas que estiveram na origem da não abertura do ginásio.
É assim inquestionável que os recorrentes passaram a utilizar o locado, que lhes foi entregue pela locadora, a qual lhes proporcionou dessa forma, após a entrega, o respetivo gozo, pelo que eles não tinham fundamento para recusarem o pagamento das rendas devidas.
Efetivamente, os recorrentes entraram na posse do local arrendado, fizeram nele as obras necessárias à instalação do ginásio, e pagaram as rendas do local, durante alguns meses. Tudo isto sem que os AA os tenham privado da utilização dos espaços. Nem sequer a falta de obtenção da licença do estabelecimento foi da responsabilidade daqueles, que, como ficou provado, se ficou a dever apenas à falta de capacidade financeira dos recorrentes para avançar com o negócio.
Donde, não ficou provado o incumprimento dos AA que justificasse a falta de cumprimento dos recorrentes, quanto à falta de pagamento das rendas.
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Ainda assim, haverá que esclarecer que laboram os recorrentes em erro, ao invocarem o instituto do incumprimento do contrato, como meio de defesa para o seu incumprimento, pois sempre negaram que os AA tinham direito ao crédito reclamado, invocando a nulidade do contrato, e pedindo, inclusivamente, a devolução do valor das rendas já pagas.
Ora, a exceção de não cumprimento do contrato pressupõe a aceitação e o reconhecimento do direito do credor, e não extingue o direito de crédito de que é titular o outro contraente.
Na verdade, e como vem sendo entendido, cremos que de forma pacífica, “…esta excepção é uma excepção dilatória de direito material, que, uma vez invocada pelos réus excipientes, obsta temporariamente a que o autor possa obter a prestação a que tem direito da parte dos réus, paralisando temporariamente essa pretensão…”. Daí que, para invocar de forma válida esta exceção, os RR tivessem de reconhecer o direito dos AA ao valor das rendas em dívida, apenas lhe assistindo o direito à suspensão da exigibilidade das mesmas, enquanto eles se recusassem a cumprir o que, na ótica dos RR, foi acordado – a obtenção da licença do ginásio.
Os efeitos da exceção são assim temporários. Trata-se de um meio de defesa dos réus para obterem a execução do contrato nos termos acordados; mas não extingue o direito do credor à prestação acordada (cfr. Ac. desta RG de 09.04.2003: CJ, ano XXVIII, tomo II, pág.281, e de 15.12.2022, disponível em www.dgsi.pt).
Ou seja, como muito assertivamente se decidiu no Ac. RP de 26.02.2015 (também disponível em www.dgsi.pt), “a excepção de não cumprimento do contrato é um meio de defesa que tende para a execução plena do contrato e não para a sua destruição. Por isso, é necessário que o contraente que a invoque pretenda a sua execução.”
Por isso, a exceção de não cumprimento do contrato não pode ser invocada pelo contraente que pretenda a sua resolução, ou a declaração da sua invalidade/nulidade, como sucedeu no caso dos autos.
Donde, não faz sentido a invocação pelos recorrentes da exceção do incumprimento do contrato, porque eles consideram que nada devem aos AA, já que o contrato entre eles celebrado é nulo (pedindo, inclusivamente, a restituição de tudo quanto prestaram).
O pedido que fazem, em sede reconvencional – de que pretendem obter a compensação do valor das rendas, com o crédito que dizem ter sobre os AA –, é feito em termos meramente subsidiários, apenas para o caso de virem a ser condenados no pagamento daquele valor; mas nunca admitem que são devedores daquelas rendas, ou que elas sejam devidas aos AA. Por isso, ao dizerem que nada devem aos AA, os RR não estão a invocar a exceção do incumprimento do contrato, porquanto a exceção pressupõe que quem a invoca assuma que é devedor da sua contraprestação ou de parte dela.
E não podemos deixar de concordar com o que vem sendo defendendo na doutrina, de que estão envolvidos nesta exceção princípios de boa fé. A exceção justifica-se efetivamente por razões de boa fé, de equidade e de justiça, uma vez que visa evitar que uma das partes tire vantagens, sem suportar os encargos correlativos (José João Abrantes, “A Excepção de Não cumprimento do Contrato no Direito Civil Português”, 1986, Almedina, pág. 124).
Efetivamente, para que não seja contrária à boa fé, a «exceptio» só pode operar quando se verifique uma tripla relação entre o incumprimento (total ou parcial, ou defeituoso) do outro contraente, e a recusa de cumprimento por parte do excipiente: uma relação de sucessão, uma relação de causalidade, e uma relação de proporcionalidade. A relação de sucessão significa que não pode recusar a prestação, invocando a «exceptio», a parte no contrato que primeiramente caiu em incumprimento. Por outro lado, deve haver um nexo de causalidade ou de interdependência causal entre o incumprimento da outra parte e a suspensão da prestação do excipiente. Por fim, a recusa do «excipiens» deve ser equivalente ou proporcionada à inexatidão da contra-parte que reclama o cumprimento, de tal modo que, se a falta for de pouca relevância, não será legítimo o recurso à «exceptio».
O “excipiens” não nega o direito da parte contrária, nem põe em causa o dever de cumprir a sua prestação; pretende tão-só realizar a sua prestação quando o outro contraente levar a cabo a sua própria prestação. A “exceptio” visa compelir o contraente em mora a cumprir; é um meio de pressão para o adimplemento, sob pena de não receber da contraparte a prestação correspetiva envolvida no sinalagma contratual. Essa suspensão, se não extingue o crédito do devedor faltoso, impede, contudo, o seu exercício enquanto o seu incumprimento se mantiver. Por isso se diz, com pertinência, tratar-se de uma exceção dilatória de direito material, na medida em que, por um lado se funda em razões de direito material ou substantivo, mas por outro, não exclui definitivamente o direito da parte contra quem é oposta, paralisando-o apenas temporariamente – dilatando no tempo o seu cumprimento.
Efetivamente, se a exceção for procedente, ela conduz à absolvição do pedido, mas não em definitivo (cfr. art.º 621º do CPC, quanto ao alcance do caso julgado), pois não extingue o direito exercido pela parte contrária, sendo por esse motivo doutrinalmente qualificada como exceção material dilatória, mas funcionando, no contexto do CPC, como exceção perentória (artigo 576º, nº 3). Ou seja, é uma exceção dilatória porque somente suspende ou impede temporariamente o efeito jurídico do facto constitutivo invocado pelo A.
É assim evidente, que a questão da exceção do incumprimento do contrato invocada pelos recorrentes, tem de improceder.
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VI – Do abuso do direito:
Alegam finalmente os recorrentes que é ostensivo o claro abuso de direito dos Recorridos, pois sabendo da impossibilidade dos Recorrentes exercerem a atividade no arrendado, por falta de licença de utilização para o efeito pretendido e contratado, mesmo assim celebraram o ajuizado contrato de arrendamento.
Mais alegam que a presente ação de despejo, que tem como única causa de pedir e pedido a falta de pagamento de rendas, só deu entrada em juízo no dia 6 de novembro de 2017, ou seja, quase 7 anos decorridos sobre a data em que os Recorrentes deixaram de pagar as rendas, bem sabendo os Recorridos que o arrendado nunca chegou a ser utilizado para os fins que constam do contrato de arrendamento, nem para qualquer outro fim.
Concluem assim, que ao entrar com a presente ação, a pedir a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas, ocorre por parte dos Recorridos uma má-fé contratual e processual, e um claro e manifesto abuso de direito (art. 334º do Cód. Civil), devendo eles serem condenados a esse título, com justa multa e indemnização.
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Se bem percebemos a argumentação dos recorrentes, eles invocam o abuso de direito dos recorridos, baseados numa dupla postura: terem celebrado o contrato de arrendamento com os recorrentes, mesmo sabendo não disporem de licença de utilização do imóvel para os fins por eles pretendidos; e terem intentado a presente ação decorridos quase 7 anos desde a data em que os recorrentes deixaram de pagar as rendas, bem sabendo os Recorridos que o arrendado nunca chegou a ser utilizado para os fins que constam do contrato de arrendamento, nem para qualquer outro fim. Mas concluem pedindo a sua condenação numa justa multa e indemnização, o que se revela, salvo o devido respeito, manifestamente incongruente, confundindo os recorrentes o instituto do Abuso de direito, previsto no art.º 334º do CPC, que invocam, com o pedido de Litigância de Má-fé dos recorridos, cujo pedido de condenação formulam. Mas não achamos que se verifique, no caso dos autos, o Instituto do Abuso de direito por parte dos AA/recorridos.
Como vimos acima, o contrato de arrendamento celebrado, no qual a locadora, antecessora dos AA, foi interveniente, foi julgado válido, e celebrado com respeito pelos preceitos legais em vigor, a ele atinentes.
Depois, o facto de os AA terem vindo interpor a presente ação de despejo volvidos 7 anos após a falta de pagamento das rendas por parte dos RR, não revela qualquer abuso de direito da sua parte, nada existindo nos autos que nos permita concluir que houvesse da parte dos AA algum compromisso ou acordo com os RR, no sentido de que os não demandariam, em termos de se poder falar em proteção da confiança daqueles, ou de Abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum próprio”. Para isso, haveriam os recorrentes de invocar algum facto donde se pudesse aferir tal princípio de confiança, a proteger, o que não fizeram.
Ademais, sempre poderiam os RR pôr fim à mora em que se colocaram – ao não pagarem as rendas contratualizadas –, pondo eles fim ao contrato, entregando o locado aos AA, pelo menos no final do prazo acordado (ao fim dos 5 anos previstos no contrato).
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Nada nos autos nos permite também concluir terem os recorridos litigado de má-fé, nos termos em que ela vem definida no art.º 542.º do CPC, ou seja, que tenham deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não deviam ignorar; que tenham alterado a verdade dos factos, ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; que tenham praticado omissão grave do dever de cooperação; ou que tenham feito do processo ou dos meios processuais, um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça, ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Antes pelo contrário, lograram os AA/recorridos provar que tinham razão com a ação que interpuseram contra os RR/recorrentes, cuja condenação dos mesmos lograram alcançar. Em suma, não vemos fundamento para que os mesmos sejam considerados litigantes de má-fé, e condenados em multa ou indemnização.
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Decisão:
Por todo o exposto, Julga-se Improcedente a Apelação e confirma-se, na íntegra, a sentença recorrida.
Custas da Apelação pelos recorrentes (art.º 527º nº1 e 2 do CPC).
Notifique e DN.
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Sumário (art.º 663º nº7 do CPC).
I- Só se considera nulo o contrato de arrendamento, nos termos do art.º 5º nº 8 do Decreto-Lei nº 160/2006, de 8 de agosto, se tiver sido provado pelo arrendatário, que os espaços dados de arrendamento não tinham aptidão para o fim pretendido pelo contrato, nem que a licença de utilização daqueles espaços, permitisse a abertura e a laboração neles do negócio previsto pelo arrendatário.
II- Alicença de utilização do imóvel para os fins do contrato de arrendamento, apenas é exigível em termos genéricos, definidos na lei como fins habitacionais e não habitacionais, nestes últimos se incluindo os vários fins não habitacionais, em termos genéricos (comércio, indústria, profissão liberal, serviços…).
III- Apenas essa licença (genérica) é da responsabilidade do senhorio/proprietário do imóvel, sendo a licença do espaço para a (concreta) atividade a nele ser desenvolvida, da responsabilidade do inquilino, se outra solução não for convencionada.
IV - A “exceção do incumprimento do contrato” é uma exceção dilatória de direito material, oposta pelo demandado ao demandante, nos contratos bilaterais sinalagmáticos, que conduz, em regra, a uma condenação “futura”, mas que só tem aplicação se a prestação em falta for reconhecida (como devida) pelo demandado.
V- Daí que para invocar de forma válida esta exceção, os RR tivessem de reconhecer o direito dos AA ao valor das rendas em dívida, apenas lhe assistindo o direito à suspensão da exigibilidade das mesmas enquanto eles se recusassem a cumprir a sua obrigação - na ótica dos RR, a obtenção da licença do estabelecimento.