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PERDA DE BENS A FAVOR DO ESTADO
MOMENTO DA DECLARAÇÃO DE PERDA
Sumário
A decisão de declarar perdidos a favor do Estado os objetos apreendidos ou de ordenar a sua restituição a quem de direito pode ser proferida mesmo após o trânsito em julgado da sentença onde deveria ser tomada, sem que tal viole direitos constitucionais ou processuais dos visados.
A não ser assim, ter-se-ia de ficcionar que a transposição do momento da prolação da sentença, alteraria a natureza jurídica dos «instrumenta e producta sceleris» e, portanto, bens intrinsecamente perigosos na acepção relevante para serem declarados perdidos a favor do Estado, nos termos do art. 109º do CP, só porque não foi proferida qualquer decisão sobre eles, teria o condão de transformar a sua natureza jurídica, convertendo-os em bens lícitos, sendo a sua restituição feita contra os interesses de natureza e ordem pública que a perda clássica visa salvaguardar, ou, ao contrário, o próprio Estado se apropriaria de bens pertencentes ao arguido ou a terceiros, não obstante não serem perigosos, de forma ilegítima e contrária ao princípio da tipicidade das restrições ao direito de propriedade consagrado no art. 62º da CRP e nos arts. 1305º e 1306º do CC.
Em qualquer das hipóteses, os resultados seriam absurdos, injustos e contrários à constituição e à lei.
Texto Integral
Acordam as Juízas, na 3ª Seçcão do Tribunal da Relação de Lisboa:
I–RELATÓRIO
Por decisão proferida em 26 de Abril de 2023 no âmbito da instrução nº 4/22.2PBVT do Juízo de Competência Genérica de Vila do Porto, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, foram declarados perdidos a favor do Estado a arma de fogo e respectivo livrete previamente apreendidos a HM.
HM interpôs recurso desta decisão, tendo, para o efeito, formulado as seguintes conclusões:
1. O presente recurso vem interposto do douto despacho de fls... dos autos que decidiu declarar perdidos a favor do Estado os objectos apreendidos;
2. Tal despacho proferido, após o trânsito em julgado do despacho de encerramento do processo, o qual não foi objecto de reclamação ou recurso;
3. A declaração de perda a favor do Estado depende da verificação de um dos seguintes requisitos: ou de que tais bens tenham servido à prática de uma infracção ou que os mesmos tenham sido produzidos e sejam o resultado dessa infracção.
4. Ora, tais requisitos não se verificam no caso sub judice.
5. Porquanto, e contrariamente ao referido no douto despacho recorrido, nos presentes autos foi, sim, aplicada uma SPP (suspensão provisória do processo);
6. Não tendo resultado dos mesmos uma condenação propriamente dita.
7. Sendo certo que o art. 32.° da Constituição da República Portuguesa (CR) inclui entre as garantias do processo criminal, no seu n° 2, a de que “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.
8. O princípio da presunção de inocência, ali consagrado, “integra uma norma directamente vinculante e constitui um dos direitos fundamentais dos cidadãos (art. 18.° n° 1 da CR)”.
9. Logo, apenas em sede de sentença é que tal juízo poderá ser efectuado, pois antes do arguido ser submetido a julgamento não se pode concluir se os bens apreendidos serviram ou resultaram da prática de um facto ilícito típico.
10. O certo é que, não é manifestamente o caso dos bens cuja restituição está em causa, já que o arguido não foi condenado por nenhum crime, bem como os objectos apreendidos não foram utilizados para a prática de qualquer crime;
11. Em suma, o tribunal a quo ignorou, salvo o devido respeito por douto entendimento contrário, tais princípios que derivam da lei fundamental.
12. Decorrido o prazo de suspensão provisória do processo e mostrando-se a injunção cumprida, o processo foi arquivado, por decisão de 17-04-2023, transitada em julgado, na qual igualmente nada foi decidido sobre o destino dos objectos apreendidos.
13. Notificada ao arguido e ao MP, sem que depois lhe fosse oposto o que quer que fosse; tendo o MP, após tal decisão, promovido que os mesmos fossem declarados perdidos a favor do Estado.
14. Foi em face dessa promoção que, a Meritíssima juíza, determinou que os objectos apreendidos fossem declarados perdidos a favor do Estado.
15. Diga-se que, o arguido foi acusado pela prática de um crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152° n° 1, alínea a) do CPP não tendo sido sujeito a julgamento porque beneficiou da suspensão provisória do processo, o que implica um juízo da prática dos factos em causa nos autos.
16. Preceitua o artigo 178.°, n.° 1, do CPP, que: “São apreendidos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servira prova".
17. Estipulando o art. 109.°, n.° 1, do CP, por seu turno, que: “São declarados perdidos a favor do Estado os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos".
18. Das disposições conjugadas dos art. 186.° e 374.°, n.° 3, al. c), ambos do Código de processo penal (CPP), resulta claramente que só em sede de sentença é que o tribunal pode declarar perdidos a favor do Estado os bens apreendidos, sendo este o momento próprio para o efeito.
19.Diversa é a jurisprudência nesse sentido, a título exemplificativo, refira-se o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido a 12/04/2016, no processo n.° 1072/11.8GTABF-B.E1, por aplicação mutatis mutandis, resulta: “/ - Após o trânsito em julgado do acórdão condenatório, no âmbito do qual o tribunal omitiu pronúncia sobre o destino dos objetos que se encontravam apreendidos, de detenção lícita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no n.° 2 do art. 186.° do CPP, não sendo lícito determinar, por despacho posterior, o perdimento desses bens a favor do Estado”.
20. Mais à frente tal Acórdão prescreve: "Há que distinguir: Se o bem ou objecto em causa é, por sua própria natureza, algo cuja detenção é proibida por particulares, o seu perdi mento a favor do Estado deve ser declarado em despacho autónomo, mesmo após o trânsito em julgado da sentença onde, com desrespeito pelo estatuído no art° 374°, n° 3, al. c), se omitiu o destino a dar-lhe. Com efeito, carece de qualquer razoabilidade permitir, por exemplo, que ao abrigo do disposto no art. 186°, n.° 2 do CPP, seja devolvido ao arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, a droga que lhe foi apreendida, se o tribunal omitiu na decisão final o destino a dar-lhe. Se, porém, o objecto tem, em si, natureza lícita (rectius, se em abstracto a sua detenção por particulares é permitida por lei), então a sentença é o único momento em que pode ser declarado o seu perdimento a favor do Estado, verificados os pressupostos de que depende essa decisão. Entendimento contrário sempre consubstanciaria violação de caso julgado e, fundamentalmente, constituiria uma flagrante deslealdade processual e uma manifesta violação das garantias de defesa do recurso (...). Porque assim, mutatis mutandis, forçoso é concluir in casu que o despacho judicial recorrido deve ser revogado e substituído por outro que cumpra o disposto no art. 186.°, n.° 2, do CPP, já que os bens apreendidos são de detenção lícita por particulares e não foram objecto de declaração de perdimento a favor do Estado, no ‘momento correcto', no acórdão proferido em 12/07/2013, transitado em julgado - no mesmo sentido, v.g. Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 30/06/2004, proferido no processo n° 0413638 e de 17/05/2006, proferido no processo n° 0610514 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 12/01/2009, proferido no processo n° 2200/08.2, de 28/09/2009, proferido no processo n° 2143/05.5 TBBCL, de 17/01/2011, proferido no processo n° 1168/03.0 PBGMR e de 21/10/2013, proferido no processo n° 316/09.0 JABRG-F.G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt'.
21. Em suma, da análise da diversa jurisprudência advém que o momento próprio para declarar perdidos a favor do Estado bens apreendidos é a sentença;
22. Em momento anterior à sentença, apenas pode ser proferido despacho a ordenar a restituição dos bens, se tal se compadecer com os pressupostos legais, mas nunca a ordenar a sua perda a favor do Estado, a menos que se trata de bem ilícito pela própria natureza;
23. Considerando que o arguido não foi condenado pelo crime de que vinha acusado;
24. Considerando que os bens apreendidos não são bens ilícitos pela própria natureza;
25. Considerando que, os bens apreendidos são de proveniência licita, pois o arguido é detentor de licença de uso e porte de arma;
26. Considerando que a decisão que pôs termo aos presentes autos, proferida em 17-04-2023, não declarou perdidos a favor do Estado os bens em causa, tendo há muito transitado em julgado;
27. Considerando que em tal decisão não foi ordenada a perda a favor do Estado dos bens apreendidos,
28. Considerando que a declaração da perda dos bens a favor do Estado foi feita em despacho posterior - o que é ilegal,
29. Pelo que, tão decisão é nula.
30. Assim, para a declaração de um bem perdido a favor do Estado, impõe-se que se verifique a essencialidade da sua utilização e a relação da causalidade entre esse uso e a prática do ilícito, a que acresce a ponderação do princípio da proporcionalidade.
31. Nos termos do art. 374.°, n.° 3, al. c), do CPP, é requisito da sentença o constar do correspondente dispositivo “a indicação do destino a dar a (...) coisas ou objectos relacionados com o crime, com expressa menção das disposições legais aplicadas”.
32. Conjugando esta norma com a do art. 186.°, n.° 2, também do CPP, onde se dispõe que “logo que transitarem julgado a sentença, (...) as coisas ou os objectos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado”, bem se percebe que por princípio seja na sentença (ou acórdão) que deve decidir-se o destino dos bens que até aí se mantenham apreendidos (isto é, aqueles em relação aos quais não tenha antes tido lugar ou a restituição, nos termos do art. 186.°, n.° 1, do CPP, ou a alienação ou destruição, nos termos do art. 185.°, n.° 1, do CPP).
33. Entendemos que, o termo do processo sem uma decisão final que em substância conheça do mérito da causa (da culpa do arguido), não poderá ter como consequência os bens serem declarados perdidos a favor do Estado, a não ser, no caso de serem em si mesmos de detenção ilícita (o que não é o caso dos autos), caso contrário impondo- se restituir-lhos, desde logo porque não chegou a ser condenado e nem foi feito o juízo sobre os pressupostos da referida perda se encontram preenchidos,
34. Trata-se de uma arma de fogo e respectivo livrete (de detenção licita), pois o arguido possui a competente licença de uso e porte de arma, sendo que nada nos autos nos permite sequer cogitar terem sido utilizados pelo crime que ao recorrente foi imputado, i.e., mediante ele ou suas vantagens adquiridas, coisa de resto nem em momento algum sustentada pelo MP ou postulada pela Sra. Juiz recorrida.
35. Pode pois, e sem reservas, afirmar-se que tendo o processo sido arquivado sem que tivesse lugar julgamento e portanto não chegando a haver sentença ou acórdão, a decisão de perda dos objectos apreendidos é ilegal e está ferida de nulidade.
36. À perda presidem exclusivamente necessidades de prevenção, manifestamente não tendo a natureza de uma pena (acessória que fosse) ou medida de segurança, e que o juízo que a decisão concita não reclama, estruturalmente, uma afirmação sobre a culpabilidade do arguido, mas tão só sobre a relação de certos bens com uma determinada actividade, ficamos em crer que tudo é o bastante para concluir que embora cabendo sentença (ou acórdão...), seja aí que deve ser declarada, a hipótese de não caber por si só não afasta, não pode afastar, a eventualidade respectiva.
37. Ora, se o entendimento correcto das disposições dos art. 186.°, n.° 2, e 374.°, n.° 3, al. c), do CPP, é o de que em correspondendo o desenvolvimento do processo aos modos padrão, terminando em sentença ou acórdão, seja aqui que se decida sobre o destino dos bens apreendidos, então e aprofundando a análise, nisso tendo sempre em mente a necessária congruência entre o direito adjectivo e o subjectivo, chegamos à conclusão que para os desvios a esse iter processual, isto é, para os casos em que o processo termina sem sentença ou acórdão, a decisão que põe termo ao processo é que é o lugar adequado.
38. A regra verdadeiramente ínsita naqueles art. 186.°, n.° 2, e 374.°, n.° 3, al. c), do CPP, é a de que a decisão sobre o destino dos bens deve ser tomada na que em primeira instância põe termo ao processo.
39. Terminando o processo sem ser por sentença (ou acórdão) o destino a dar aos bens ainda apreendidos deve constar da decisão que lhe põe termo.
40. No caso, e para sermos rigorosos, não foi a decisão de suspensão provisória do processo, mas sim a de arquivamento dele (em 17-04-2023) que pôs termo ao processo.
41. Caso durante o período da suspensão o arguido tivesse cometido crime da mesma natureza pelo qual viesse a ser condenado, ou não cumprisse a injunção, teria o processo prosseguido (para julgamento), nos termos do art. 282.°, n.° 4, ais. a) e b), do CPP, e seria na sentença ulteriormente a proferir que cumpriria determinar destino aos bens.
42. De acordo com o exposto julgamos ficar já claro que era na decisão de arquivamento do processo, proferida a 17-04-2023, que a Meritíssima Juiz deveria ter decidido sobre o destino dos bens (em tese declarando a respectiva perda ou a sua restituição).
43. A situação, bem se vê, é em tudo paralela à que se verifica quando em sentença (ou acórdão) é omitida decisão sobre o destino dos bens, e por isso não pode deixar de ser enfrentada com os mesmos critérios.
44. O Ac. do TRP de 26/05/2021 (proferido no processo 970/18.2JAPRT-C.P1, relatora Paula Natércia Rocha - disponível em www.dgsi.pt): « /- Da análise do disposto no art. 374.°, n.° 3, al. c), em conjugação com o disposto no art. 186°, n.° 2, ambos do CPP, resulta que o momento correto para dar destino aos objetos que até esse momento continuam apreendidos é a sentença (...) V- Mas se nada foi declarado na sentença sobre o perdimento a favor do Estado de determinado bem apreendido nos autos teremos que distinguir duas situações para a resolução da questão. Pela clareza da sua explicação, passaremos a citar o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16/4/2013, disponível em www.dgsi.pt: "Se o bem ou objeto em causa é, por sua própria natureza, algo cuja detenção é proibida por particulares, o seu perdimento a favor do Estado deve ser declarado em despacho autónomo, mesmo após o trânsito em julgado da sentença onde, com desrespeito pelo estatuído no art.° 374.°, n.° 3, al. c), do CPP, se omitiu o destino a dar-lhe. Com efeito, carece de qualquer razoabilidade permitir, por exemplo, que ao abrigo do disposto no art.° 186.°, n.° 2 do CPP, seja devolvido ao arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, a droga que lhe foi apreendida, se o tribunal omitiu na decisão final o destino a dar-lhe. Se, porém, o objeto tem, em si, natureza lícita (rectius, se em abstrato a sua detenção por particulares é permitida por lei), então a sentença é o único momento em que pode ser declarado o seu perdimento a favor do Estado, verificados os pressupostos de que depende essa decisão" VI- Consoante a natureza do bem, assim merece e deve a questão ter um tratamento diferenciado. Não pode tratar-se do mesmo modo, juridicamente, nomeadamente no que respeita à restituição de bens apreendidos, bens que têm natureza diferente. Se são diferentes, devem diferentemente ser tratados. VII- Sempre se consigna que se o Ministério Público entendesse que tais bens deveriam ser declarados perdidos a favor do Estado, deveria - no tempo certo - interpor recurso da sentença que tal não decidira. Como não o fez: sibi imputet/ VIII- Em jeito conclusivo: transitada a sentença e nela se não decidindo o perdimento a favor do Estado de objetos apreendidos, de detenção lícita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no art.° 186°, n.° 2, do Cód. Proc. Penal, não sendo lícito determinar, por despacho posterior, o perdimento desses objetos. IX- Entendimento contrário sempre consubstanciaria violação de caso julgado e. fundamentalmente. constituiría uma flagrante deslealdade processual e uma manifesta violação das garantias de defesa do recurso.
45. Ac. Do TRC 22-10-2022, proferido no âmbito do processo n° 39/19.2JELSB-A.C1, o qual sumariou: I- Como modelo padrão, em conformidade com os preceitos dos arts. 186.°, n.° 2, e 374,°, n.° 3, al. c) , do CPP, é na sentença que deve ser decidido o destino dos bens ainda apreendidos no âmbito de um processo penal. II- Todavia, não tendo o processo atingido aquela fase, relevante, para o referido efeito, passa a ser a decisão que lhe põe fim - no caso dos autos, o despacho determinativo do seu arquivamento, em razão do cumprimento das injunções a que ficou subordinada a suspensão provisória do processo. III- Transitado esse despacho sem que nele seja declarado o perdimento a favor do Estado de objectos apreendidos cuja detenção, por particulares, seja lícita, deve ser dado cumprimento ao disposto no art. 186.°, n.° 2, do CPP, não sendo legalmente admissível a declaração de perda em despacho autónomo posterior.
46. Ac. do TRP de 05/11/2014 (proferido no processo 418/08.0PAMAI-O.P1 - relatora Lígia Figueiredo), de cujo sumário consta que “I- Os bens e objectos apreendidos em processo crime não sendo declarados perdidos a favor do Estado devem ser restituídos a quem de direito após o trânsito em julgado da sentença (...)”, no texto tendo-se consignado que “de resto, como supra deixamos exposto, chegados à sentença, das duas uma: ou os objectos são declarados perdidos ou não o foram e após o trânsito desta são restituídos a quem de direito nos termos do art° 186° n°2 do CPP”;
47. Ac. do TRE de 12/04/2016 (proferido no processo 1072/11.8GTABF-B.E1 - relatora Maria Filomena Soares), de cujo sumário consta que “I- após o trânsito em julgado do acórdão condenatório, no âmbito do qual o tribunal omitiu pronúncia sobre o destino dos objetos que se encontravam apreendidos, de detenção lícita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no n.° 2 do art. 186.° do CPP, não sendo lícito determinar, por despacho posterior, o perdimento desses bens a favor do Estado’1, escrevendo-se no texto que “há que distinguir: se o bem ou objecto em causa é, por sua própria natureza, algo cuja detenção é proibida por particulares, o seu perdimento a favor do Estado deve ser declarado em despacho autónomo, mesmo após o trânsito em julgado da sentença onde, com desrespeito pelo estatuído no art. 374.°, n.° 3, al. c), se omitiu o destino a dar-lhe. Com efeito, carece de qualquer razoabilidade permitir, por exemplo, que ao abrigo do disposto no art. 186.°, n.° 2 do CPP seja devolvido ao arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, a droga que lhe foi apreendida, se o tribunal omitiu na decisão final o destino a dar-lhe. Se, porém, o objecto tem, em si, natureza lícita (rectius, se em abstracto a sua detenção por particulares é permitida por lei), então a sentença é o único momento em que pode ser declarado o seu perdimento a favor do Estado, verificados os pressupostos de que depende essa decisão. Entendimento contrário sempre consubstanciaria violação de caso julgado e, fundamentalmente, constituiria uma flagrante deslealdade processual e uma manifesta violação das garantias de defesa do recurso. (...) Posto que os objectos apreendidos sejam de detenção lícita por particulares (como sucede no caso em apreço), a omissão de pronúncia quanto ao destino a dar-lhes em sentença transitada em julgado determina, nos termos do art. 186.°, n.° 2, do CPP a sua restituição ‘a quem de direito’, isto é, aos seus proprietários. Se o MP entendesse que tais bens deveriam ser declarados perdidos a favor do Estado, deveria - no tempo certo - interpor recurso da sentença que tal não decidira. Em jeito conclusivo: transitada a sentença e nela se não decidindo o perdimento a favor do Estado de objectos apreendidos, de «detenção lícita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no art. 186.°, n.° 2, do CPP, não sendo lícito determinar, por despacho posterior, o perdimento desses objectos (...). Porque assim (...), forçoso é concluir in casu que o despacho judicial recorrido deve ser revogado e substituído por outro que cumpra o disposto no art. 186.°, n.° 2, do CPP, já que os bens apreendidos são de detenção lícita por particulares e não foram objecto de declaração de perdimento a favor do Estado, no ‘momento correcto’, no acórdão proferido em 12/07/2013, transitado em julgado - no mesmo sentido, v.g. Acs. do TRP de 30/06/2004, proferido no processo n° 0413638, e de 17/05/2006, proferido no processo n° 0610514, e Acs. do TRG de 12/01/2009, proferido no processo n° 2200/08.2, de 28/09/2009, proferido no processo n° 2143/05.5TBBCL, de 17/01/2011, proferido no processo n° 1168/03.0 PBGMR, e de 21/10/2013, proferido no processo n° 316/09.0 JABRG-F.G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt”;
48. Ac. do TRL de 22/05/2018 (proferido no processo 174/11.5GDGDM-I.L1-5 - relator Simões de Carvalho), de cujo sumário consta que "Após a prolacão de uma sentença e, tratando-se de bens ou objectos apreendidos que tenham natureza e características lícitas, os mesmos devem ser restituídos às pessoas que tiverem direito a eles, não podendo ser declarados perdidos a favor do Estado, em despacho proferido após a sentença”.
49. Ac. do TRP de 02/02/2022 (proferido no processo 559/19.9JAAVR.P1, e este, ao contrário dos demais citados, todos disponíveis em www.dgsi.pt, por seu lado inédito), e voltando à afirmação de que a referida doutrina é de acompanhar sem reservas, não temos mais do que onde em toda esta jurisprudência se lê “sentença”, de acordo com as incidências dos concretos casos e como é a literal expressão legal, ler antes “decisão que põe termo ao processo”, para respeitar a já referida homologia das situações (e disso exceptuando os casos em que o final do processo resulta de decisão do MP, e não judicial - art. 268.°, n.° 1, al. e), do CPP), com isso chegando à conclusão de que se a decisão judicial de arquivamento (de 10/02/2022) omitiu a declaração de perda dos bens, e se estes são em si mesmos de detenção lícita (como manifestamente são: computador, seus periféricos e um telefone móvel), então após o trânsito dela, que é igualmente indiscutível, não poderia o tribunal recorrido ter declarado essa perda em despacho autónomo, como em 26/05/2022 veio a fazer. O que cumpria, o que não podia deixar de ter sido feito, porque a decisão final não determinara a perda de tais objectos e em face da licitude da respectiva detenção, era determinar a correspondente restituição, à luz do art. 186.°, n.° 2, do CPP, que em última análise textualmente o comanda: logo que transitar em julgado a sentença (...) as coisas ou os objectos são restituídos (...), salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado Sem ironia, registamos que, independentemente das razões, correcta foi a promoção do MP de 07/04/2022 (cfr. supra, ll/2/2.1/e), e errada a de 03/05/2022 (cfr. supra, ll/2/2.1/f), com que se procurou “emendá-la” e que a decisão recorrida indevidamente acolheu.
50. Ou seja, atento o exposto e porque o despacho de declaração de perda dos objectos a favor do Estado foi proferido após a decisão de termo de encerramento do processo, é manifesto que existe uma nulidade processual, a qual deve ser declarada com todas as legais consequências.
51. Em suma, o despacho recorrido incorreu em violação do art. 186.°, n.° 2, do CPP, e isso, nos termos que ficam miudamente esclarecidos, sendo bastante para ser dado provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida no que aos objectos em causa diz respeito.
52. Transitado esse despacho sem que nele seja declarado o perdimento a favor do Estado de objectos apreendidos cuja detenção, por particulares, seja lícita, deve ser dado cumprimento ao disposto no art. 186.°, n.° 2, do CPP, não sendo legalmente admissível a declaração de perda em despacho autónomo posterior
53. Assim sendo, o douto despacho proferido é nulo por violar ou dar errada interpretação ao disposto no art. 32.° da CR, art. 109.° do Código Penal (CP), e ao prescrito nas disposições conjugadas dos art. 186.° e 374.°, n.° 3, al. c), ambos do CPP, sendo consequentemente nulo, nulidade essa que expressamente se invoca, para os devidos efeitos legais, até mesmo inconstitucional.
Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, revogando-se a o despacho recorrido, e decidindo-se como se propugna supra, com todas as legais consequências, assim se fazendo a necessária e costumada JUSTIÇA.
Admitido o recurso, o Mº. Pº. apresentou resposta, na qual concluiu:
1. Inconformado com o despacho judicial que que decidiu declarar perdidos a favor do Estado os objetos apreendidos à ordem dos presentes autos (arma de fogo e respetivo livrete), veio o arguido do mesmo interpor recurso.
2. Refere o recorrente que o despacho judicial que decidiu declarar perdidos a favor do Estado os objetos apreendidos à ordem dos presentes autos (arma de fogo e respetivo livrete) é nulo porquanto, em termos sucintos, tal posição em relação aos objetos deveria ter sido tomada em aquando do despacho final proferido pela Mm.a Juíza a quo, in casu, despacho de arquivamento após cumprimento do prazo e respetivas injunções da Suspensão Provisória do Processo aplicada ao arguido em sede de Instrução.
3. Considera o ora recorrente que tal decisão proferida em despacho autónomo é nula por violadora dos artigos 32.°, da Constituição da República Portuguesa, artigo 109.°, do Código Penal, e artigos 186.° e 374.°, n.° 3, alínea c), do Código de Processo Penal.
4. Entendemos, todavia, que o despacho judicial posto em crise não carece de qualquer reparo.
5. A decisão que determinou o arquivamento do processo data de 17 de abril de 2023 e o despacho que decidiu o destino dos bens data de 26 de abril de 2023, pelo que tal decisão não ultrapassou a data de trânsito em julgado da decisão que pôs termo ao processo.
6. De resto, defendemos que tal despacho judicial ora posto em crise não padece de nulidade porquanto não existe norma legal que comine tal omissão com tal consequência. - cff. artigo 319°, do Código de Processo Penal, em conjugação com o artigo 374.°, n.° 3, alínea c), do mesmo diploma, invocado pelo recorrente.
7. Assim, mesmo que se entenda que tal despacho sofre de invalidade, deve-se entender que a decisão final de arquivamento padece de mera irregularidade quanto à sobremencionada questão do destino dos objetos apreendidos.
8. Por fim, mesmo admitindo que tal despacho é nulo e que o destino a dar aos objetos deveria, sempre, ter sido determinado no despacho que arquivou a Suspensão Provisória do Processo aplicada ao ora recorrente, tal consequência nunca poderia, sem mais, determinar a devolução os objetos apreendidos ao mesmo, nos termos do artigo 186.°, n.° 2.
9. Com efeito, e tal como foi defendido na promoção do Ministério Público e na respetiva decisão que determinou o seu perdimento a favor do Estado, a perda dos objetos apreendidos à ordem dos presentes autos tem um efeito preventivo quanto ao cometimento de novos crimes, dada a perigosidade dos mesmos.
Assim, se conclui no sentido de ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, mantida a decisão recorrida.
Porém, Vossas Excelências farão, como sempre, o que melhor for de JUSTIÇA!
Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, o Exmo. Sr. Procurador da República emitiu parecer, requerendo a realização de diligências complementares de informação, o que foi indeferido.
Cumprido o disposto no art. 417º do CPP, não houve respostas.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, nos termos previstos nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre decidir.
II–FUNDAMENTAÇÃO
2.1.-Do âmbito do recurso e das questões a decidir:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito.
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061 e Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica, no caso concreto e atentas as conclusões, a única questão a decidir é a da oportunidade/tempestividade da declaração de perda de bens depois da prolação da decisão que põe termo ao processo e respectivas consequências, designadamente, se é nula a decisão recorrida.
2.3.-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Para a solução do recurso, importa atender à seguinte factualidade:
No dia 16 de Fevereiro de 2022, a PSP apreendeu ao arguido HM e à ordem deste processo:
Arma de fogo – Espingarda, de calibre 12, de marca FABARM e modelo 2023698;
Um Livrete de Manifesto de Arma n.° 45115-02, emitido pela DN/PSP, do qual é titular o referido HM(auto de apreensão junto por certidão com a referência Citius 55556737 e que integra fls, 39 e verso do processo principal).
Em 23 de Junho de 2022, o Mº. Pº. deduziu acusação, em processo comum com intervenção do Tribunal Singular, imputando-lhe a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, com base nos seguintes
factos:
1. No dia 15 de Janeiro de 2022, pelas 21h00, o arguido HM(doravante HM) deslocou-se até ao estabelecimento comercial denominado “…, sito na …, na freguesia da Almagreira e, quando aí chegou, aproximou-se de NF e de MA e proferiu a seguinte expressão: “não atendes o telemóvel, nojenta de merda, nojenta do caralho, como é que emprestas uma coisa que também é minha, pedes-me ajuda quando precisas e ligas para mim a qualquer hora e não telefonas para me dizeres que emprestaste o carro”.
2. Acto contínuo, e porque NF não reagiu àquela interpelação, HM disse: “a tua mulher foi morta à catana, essa cabra que está aí vai ser à caçadeira e a outra é a seguir”.
3. Não satisfeito, HM continuou: “tu és uma velhaca, a tua pequena não gosta de ti, queres uma passagem para São Miguel, pago para ires.”
4. Ao agir da forma supra descrita, HM sabia que atormentava o equilíbrio psico-emocional de NF, que a ofendia na sua honra e consideração ao lhe chamar “nojenta de merda, nojenta do caralho, és uma velhaca”, que limitava a sua liberdade quando proferiu a expressão “essa cabra que está aí vai ser à caçadeira”, fazendo com que receasse pela sua segurança pessoal perante a possibilidade de que pudesse vir a concretizar o intento que anunciava, que abalava o seu amor próprio e a sua dignidade, ou seja, sabia que lhe provocava grande sofrimento psíquico, o que quis e logrou alcançar.
5. O arguido HM agiu livre, deliberada e conscientemente e, não obstante ter o perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida e criminalmente punida, não se absteve de a concretizar.(acusação com a referência Citius 53531633);
Na acusação, o Mº. Pº. promoveu, ainda, o seguinte:
«OBJECTOS: uma vez que, nos termos do disposto no artigo 107.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, se encontra apreendida uma arma de fogo e o livrete de manifesto de arma n.º 45115-02, melhor descritos a fls. 39 – 42, promove-se que os referidos objectos apenas sejam restituídos ao arguido após o transito em julgado da sentença que recair sobre esta acusação (acusação com a referência Citius 53531633);
Foi requerida e instrução e no debate instrutório realizado em 7 de Outubro de 2022, foram proferidas as seguintes decisões:
Decisão Instrutória
I. Relatório
Sob a forma de processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o Digno Ministério Público deduziu Acusação contra o Arguido:
HM, filho de … e de …., nascido a … titular do CC n.º …, casado, agricultor, residente …… ;
Imputando-lhe a prática, como autor material, na forma consumada de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
*
Não concordando com o libelo acusatório contra si deduzido pelo Ministério Público, após a realização do respectivo inquérito, veio o Arguido requerer a abertura da Instrução, em suma alegando que os factos vertidos na acusação pública não preenchem os elementos do tipo que lhe vem imputado, mais concretamente de que as expressões proferidas pelo arguido (isto respectivamente às expressões que o mesmo admitiu ter proferido, em sede de inquérito) serão apenas subsumíveis a um crime de injúria.
Ademais, alega ainda o Arguido que caso se considere que estamos perante um crime de injúria, constata-se ainda que, aos presentes autos poderá ser aplicado o instituto da Suspensão Provisória do Processo, nos termos do disposto no artigo 281.º do Código de Processo Penal.
*
Não tendo sido requeridas diligências de prova, nem se afigurando necessária a realização de outras diligencias complementares em sede de instrução, teve o lugar o debate instrutório, com observância do legal formalismo, conforme resulta da respectiva acta.
*
Em sede de debate instrutório, e conforme comprova a vertente acta, foi informado, por parte do Arguido, que, pese embora, e sem prescindir do exposto no Requerimento de Abertura de Instrução, o mesmo concorda com a aplicação do instituto da Suspensão provisória do Processo pelas injunções propostas a fls. 67 dos autos, pelos factos constantes na acusação, assim requerendo que seja decidido em conformidade.
II.–Saneamento
O Tribunal é competente, em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O Ministério Público tem legitimidade para deduzir acusação.
Inexistem nulidades processuais ou questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da decisão instrutória.
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III–Fundamentação
3.1.)– Das finalidades da Instrução:
A fase processual da instrução, que tem carácter facultativo, visa, in casu, a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento, conforme disposto no art.º 286.º n.º 1 do Código de Processo Penal.
Como tal, a prova produzida em sede de instrução tem carácter meramente indiciário, conforme disposto nos artigos 308.º n.ºs 1 e 2 e 283.º n.º 2 do CPP, ou seja, não se reclamando uma prova tão exigente como é aquela que tem na base a condenação de um arguido em audiência de julgamento, a qual não se fazendo em tal fase, levará a que esse arguido beneficie do princípio «in dubio pro reo» e seja absolvido.
Assim sendo, não se pretende nesta fase recolher prova de que os crimes denunciados se verificaram, mas sim de apurar se, em face das diligências probatórias realizadas, foram ou não recolhidos indícios suficientes da prática pelos arguidos de factos que constituam crime.
Deste modo, considerando que a fase de instrução está assente num critério orientador do juízo indiciário e fazendo um juízo de prognose, e conforme resulta dos normativos legais supra citados, haverão de se considerar como suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
Assim, e de um ponto de vista negativo, a insuficiência de indícios implicará uma decisão de abstenção da acção penal, mediante o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Todavia, a lei não definindo o conceito de “indícios suficientes”, tal função ficou a cargo da Doutrina e da Jurisprudência.
Segundo o Professor Figueiredo Dias, os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta fosse mais provável do que a absolvição (Cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Processual Penal, lições do Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias coligidas por Maria João Antunes Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, lições policopiadas, 1988-9 – pp. 133), aceitando o mesmo autor uma tese intermédia sobre o conceito em causa, que é defendida principalmente pelo Professor Germano Marques da Silva que, por seu turno, tratando o problema à luz do arquivamento do processo de inquérito, afirma que “não sendo possível formular um juízo positivo, impunha-se formalmente um juízo negativo e é esse que efectivamente traduz a decisão de arquivamento por insuficiência de prova: o arguido, quando o haja, há de continuar, para todos os efeitos, a presumir-se inocente” ( Cfr. SILVA, Germano Marques da, Direito Processual Penal Português – Do procedimento (Marcha do processo), Vol. III, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, p. 102).
Já Carlos Adérito Teixeira, entende que “apenas o critério da possibilidade particularmente qualificada ou de probabilidade elevada de condenação, a integrar o segmento legal da “possibilidade razoável”, responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do Estado de Direito Democrático, e é o que melhor se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido com a presunção de inocência de que ele beneficia e com o in dúbio pro reo”. Mais acrescenta o autor que “a formulação do juízo de indiciação suficiente pressupõe o estabelecimento de dois juízos prévios: o da admissibilidade legal do procedimento ou verificação das condições legais, adjetivas e substantivas; e o da suficiência do inquérito ou realização integral da investigação.” - in “Indícios Suficientes”: parâmetros de racionalidade e instância de legitimação, Revista CEJ, 2.º Semestre de 2004, n.º 1, Almedina, p. 180.
Verifica-se assim que a Doutrina se tem dividido entre três posições acerca do que deverá ser entendido por indícios suficientes: a primeira, segundo a qual se entende que o juiz deve pronunciar o Arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos, forma a convicção de que é mais provável que o Arguido tenha cometido o crime do que não o tenha feito, pelo que a lei não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento, bastando-se com um juízo de indiciação (Germano Marques da Silva); a segunda, que entende que não basta a maior probabilidade de condenação do que de absolvição, mas antes que deve pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade futura de condenação; e outra que equipara a convicção e quem acusa ou pronuncia com a convicção de quem julga e condena (Carlos Adérito Teixeira).
Afirmando que para ser proferido despacho de pronúncia não é necessária uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado veja-se também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 31/03/1993, in Colectânea de Jurisprudência, XVIII, 2, p. 65.
Igualmente, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21/05/2008 (disponível em www.dgsi.pt) é referido que (…) III- Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige a prova, no sentido da certeza moral da infracção, bastando-se com indícios da sua prática, de onde se possa formar a convicção de que existe uma probabilidade razoável de ter sido cometido um crime pelo arguido. IV- Assim sendo, os indícios probatórios – que não a mera discordância legal, doutrinal ou jurisprudencial – são suficientes sempre que dos mesmos resultar uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança – arts. 283.º, n.ºs 1 e 2, e 308.º, n.ºs 1 e 2, do CPP. V- Tanto a doutrina como a jurisprudência têm realçado que a “possibilidade razoável” de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa: “o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido” ou, noutras palavras, os indícios são suficientes quando existe “uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”. (sublinhados nossos)
Em face do exposto, por esta banda adoptamos o primeiro entendimento mencionado, na esteira do que alguma jurisprudência tem avançado quanto ao conceito de “indícios suficientes”, na medida em que, na instrução deve o juiz compulsar toda a prova recolhida e fazer um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, em consequência com esse juízo, remeter ou não a causa para a fase de julgamento quando verifique uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em julgamento, e por força dos indícios constatados, uma pena ou medida de segurança.
*
3.2.)–Do crime cuja prática é imputada ao Arguido:
Conforme já referido, ao Arguido vem imputada a prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de Violência Doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, em que se prescreve que “1- Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
Uma vez que o sobredito normativo se encontra inserido na parte especial do Código Penal, mais concretamente no seu Título I, dedicado aos “crimes contra as pessoas” e, dentro deste, no Capítulo III, reportado aos “crimes contra a integridade física”, afirma Américo Taipa de Carvalho que, em primeira análise, “[a] ratio do tipo não está, pois, na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana”.
Mais afirma o autor (reportando-se ao tipo de maus tratos contra cônjuges, na anterior versão do Código Penal), que em última instância, o bem jurídico protegido por este crime é a «saúde», “(…)bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade (…) do cônjuge”- Cfr. Comentário ao Artigo 152.º do Código Penal, in: AA.VV., Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 332.
Referem ainda os autores M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, que se trata de um crime de relação, ou seja, para que o mesmo se verifique é sempre exigível que entre o agressor e a vítima subsista, ou tenha subsistido, uma relação de namoro, coabitação conjugal ou análoga, ou que a vítima seja particularmente indefesa em razão da idade ou outra, consubstanciando, assim, um crime específico impróprio - Código Penal: Parte Geral e Especial – com notas e comentários, Coimbra: Almedina, 3.ª Edição, 2018, p. 701.
No que diz respeito ao tipo objectivo, a conduta típica consiste, e conforme resulta da própria norma, em “infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais (…) ao cônjuge ou ex-cônjuge”, entendendo-se como “maus tratos”, a título de exemplo, a subsistência “(…) no pólo objectivo, de uma agressão ou ofensa que revele um mínimo de violência sobre a pessoa inserida em relação; subjectivamente uma motivação para a agressão, ofensa, achincalhamento, menosprezo; o reflexo negativo e sensível na dignidade da vítima, por via de uma ofensa na sua saúde física, psíquica ou emocional, ou na sua liberdade de autodeterminação pessoal ou sexual.” – Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 08 de Janeiro de 2013 (Processo n.º 113/10.0TAVVC.E1) relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador, Sr. Dr. João Gomes de Sousa, disponível em www.dgsi.pt.
Em suma, poderá dizer-se que a tutela da dignidade humana no âmbito das relações familiares se prende aos qualificados deveres de respeito resultantes de tais relações e, bem assim, atento o comummente verificado ascendente do agente sobre a vítima, em especial no que concerne aos cônjuges, podendo tal ascendente traduzir-se, a título de exemplo, numa situação de superioridade física ou psicológica do agressor face à vítima, ou de dependência económica desta última face ao agressor.
De ressalvar ainda, que as variadas condutas subsumíveis ao tipo de violência doméstica são susceptíveis, também, de preencher elementos típicos objectivos de outros crimes como o de ofensa à integridade física (artigo 143.º), ameaça (artigo 153.º), coacção (artigo 154.º) injúria (artigo 181.º, todos do Código Penal), entre outros, que se encontram, assim, numa relação de concurso aparente com o crime de violência doméstica, mais concretamente de especialidade, que se funda no especial desrespeito, crueldade, insensibilidade, humilhação ou degradação da vítima, que ponha em causa a sua dignidade – Vide, a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26 de Maio de 2010, onde se afirma que “[n]o crime de violência doméstica, a acção típica tanto se pode revestir de maus tratos físicos, como sejam as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, nomeadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros maus tratos, como sejam as ofensas sexuais e as privações da liberdade, desde que os mesmos correspondam a actos, isolada ou reiteradamente praticados, reveladores de um tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima.”(sublinhados nossos - Processo n.º 179/08.3GDSTS.P1), relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador, Sr. Dr. Joaquim Gomes, disponível em www.dgsi.pt.
Por seu turno, é ainda de salientar que, actualmente, e após a revisão legislativa efectuada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro, para se verificar a consumação do crime de violência doméstica não é necessária a reiteração da conduta do seu agente, podendo uma única conduta isolada assumir gravidade tal que faça o seu agente incorrer na prática do crime em causa - neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10 de Setembro de 2014, em que consta o entendimento de que “[n]ão exigindo o tipo legal uma reiteração de acções, um único acto ofensivo só consubstanciará «maus tratos» se se revelar de tal modo intenso que ao nível do desvalor (quer da acção quer do resultado) seja apto a lesar em grau elevado o bem jurídico pondo em causa a dignidade da pessoa humana.” (Processo n.º 648/12.0PIVNG.P1), relatado pela Exma. Juíza Desembargadora, Sra. Dra. Elsa Paixão, disponível em www.dgsi.pt.
Ao nível do elemento subjectivo do tipo exige-se dolo genérico, em qualquer das suas modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal, traduzido na consciência e vontade de actuar de alguma das formas previstas no tipo, bastando, portanto, o dolo eventual.
*
3.3.)–Dos indícios suficientes de que o Arguido praticou os factos constantes da Acusação:
Como é sabido, objecto da instrução encontra-se limitado pelo conteúdo do requerimento de abertura de instrução.
No caso dos presentes autos, e conforme já supra exposto, não concordando com o Despacho de Acusação contra si formulado pelo Digno Ministério Público, veio o Arguido requerer a abertura da Instrução, alegando, em suma, que as expressões que o mesmo admitiu nos autos ter proferido perante a ofendida não correspondem a factos subsumíveis ao crime de Violência Doméstica, mas antes à prática de um crime de injúria.
Mais alegou e requereu o Arguido que, entendendo-se que estamos perante um crime de injúria, poderá ser aplicado nos autos o instituto da suspensão provisória do processo.
Ora, importa começar por notar que, do teor do Requerimento de Abertura de Instrução, bem como da posição anteriormente tomada pelo Arguido no âmbito do processo, o objecto da vertente instrução não se prende com todos os factos que se encontram imputados ao Arguido no libelo acusatório contra si formulado, mas sim, e apenas, aos factos que o mesmo admite ter praticado, mais concretamente de ter proferido a expressão “nojenta” à ofendida, factualidade essa que, a seu ver, não é subsumível ao crime de Violência Doméstica.
Sucede, porém, que o Arguido vem acusado da prática do referido tipo criminal não só mediante imputação dos factos que o Arguido admite ter praticado, como ainda por ter alegadamente dito (dirigindo-se a MA...) “a tua mulher foi morta à catana, essa cabra que está aí vai ser à caçadeira e a outra é a seguir”, o que constituirá, segundo o Digno Ministério Público, uma limitação da liberdade da ofendida, fazendo com que a mesma receasse pela sua segurança pessoal perante a possibilidade de que pudesse vir a concretizar o intento que anunciava, provocando grande sofrimento psíquico, o que quis e logrou alcançar.
Ora, não obstante o supra exposto, o libelo acusatório em causa nos autos respeita a um conjunto de factos e em face destes, vistos na sua globalidade, é que decorre a imputação ao Arguido do crime de Violência Doméstica, assim, importando decidir se existem indícios suficientes nos autos de que o Arguido praticou o crime de que vem acusado em função de toda a factualidade que lhe vem imputada, não sendo a mesma divisível de molde a ponderar, apenas e exclusivamente, uma das expressões que vêm imputadas ao mesmo.
Ora, delineado o objecto da instrução, de forma sucinta, resulta inequívoco que as questões suscitadas pelo arguido são de ordem factual indiciária e de ordem jurídica.
Cumpre apreciar os factos em análise e a prova recolhida e produzida no inquérito e na instrução.
A acusação do Ministério Público suporta-se em prova documental e testemunhal carreada para os autos em fase de inquérito, designadamente:
- Auto de notícia de fls. 3 a 5, em que a ofendida relata que no dia 13 de Janeiro de 2021, pelas 21h00, no estabelecimento comercial denominado M___, sito na F..... J..... L....., na freguesia da Almagreira, quando a mesma se encontrava numa mesa, a jogar às cartas, foi abordada pelo seu ex-marido, ora arguido, que começou a insultá-la com palavras ofensivas da sua honra e consideração e ameaçando-a de morte, com isto provocando-lhe medo.
- Auto de apreensão (fls. 39) de uma arma de fogo ao Arguido, mais concretamente uma espingarda da marca FABARM;
- Auto de exame e avaliação (fls. 40 a 42), onde consta cópia do Livrete de Manifesto da arma descrita no ponto anterior, pelo Arguido;
- Declarações do arguido, prestadas perante Magistrada do Ministério Público e acompanhado do seu Ilustre Defensor Oficioso (fls. 66 e 67), em que o mesmo confirmou o teor das declarações prestadas perante OPC (fls. 55), i.e., que não é verdade que tenha ameaçado de morte a ofendida, admitindo que, em data que não sabe concretizar, mas que correspondeu a um dia de Sábado, de Janeiro de 2021, estabelecimento comercial denominado M____ e aí abordou a ofendida devido a uma situação respeitante a uma viatura de ambos e, nessa altura, dirigiu-se à denunciante e afirmou “nojenta do caralho, como é que foste emprestar uma coisa que também é minha (…)”
- Testemunho de NF (fls. 16);
- Testemunho de JM (fls. 34) o qual confirma que estava no local da ocorrência, sentado na mesa com a vítima quando o se dirigiu à mesma «NÃO ATENDES O TELEMÓVEL, EH NOJENTA DE MERDA COMO É QUE EMPRESTAS UMA COISA QUE NÃO É TUA, QUE EU É QUE ESTOU A PAGAR», e nessa altura, a testemunha, afastou-se do local.
- Testemunho de PC (fls. 45) irmã da vítima, a qual confirma que estava no local da ocorrência, sentado na mesa ao lado da vítima quando o Arguido ao entrar no aludido café, deslocou-se para a mesa de NF, e proferiu «A OUTRA MATARAM À CATANA, ESTA É À PISTOLA/CAÇADEIRA, E A OUTRA É A SEGUIR», «TU ÉS UMA VELHACA, A TUA PEQUENA NÃO GOSTA DE TI», «QUERES UMA PASSAGEM PARA SÃO MIGUEL, PAGO PARA IRES».
- Testemunho de MA (fls. 47), namorado da vítima, que referiu estar sentado na companhia da mesma quando surgiu o Arguido que, dirigindo-se à vítima afirmou "QUERES DINHEIRO PARA IRES PARA SÃO MIGUEL?", "A TUA MULHER FOI MORTA A CATANA, ESSA CABRA QUE ESTÁ AÍ VAI SER À CAÇADEIRA E A OUTRA" tendo, nessa altura, apontado com o dedo para a NF, e "NÃO PRESTAS ÉS UMA CABRA".
- Testemunho de MP (fls. 49) proprietário do café, o qual declara não ter presenciado qualquer injúria e ameaça, confirma que o Arguido seguiu a vítima até ao exterior.
- Testemunho de JS (fls. 78) que afirmou que se encontrava no local, na data e hora dos factos em causa nos autos, na companhia do Arguido, tendo presenciado que o mesmo se deslocou para junto da ofendida e chamou-a de nojenta e porca de merda, em tom de voz normal, ou seja, sem parecer agressivo.
- Testemunho de AR (fls. 80) que relatou recordar-se que no dia em que decorria porco no espeto no café M____, presenciou o Arguido a proferir a expressão «Nojenta» ou «Nojento», desconhecendo a quem se dirigia.
Ora, de toda a prova carreada para os autos em sede de inquérito resultam suficientemente indiciados todos os factos descritos na acusação pública apresentada pelo Ministério Público, na medida em que os meios de prova para os quais remete a acusação, conjugados e devidamente articulados entre si, permitem ter por suficientemente indicados os factos ali descritos relativos ao Arguido, embora o mesmo tenha negado dirigir qualquer tipo de ameaça à ofendida.
Assim sendo, entende-se que os factos constantes da acusação estão alicerçados na prova produzida no inquérito e não foram postos em causa na instrução, pelo que se entende, pois, que nesta parte não há qualquer censura a fazer ao libelo acusatório.
Atenta a matéria de facto suficientemente indicada e, por outro lado, o enquadramento do tipo criminal cuja prática é imputada ao Arguido, resulta assim fortemente indiciado o cometimento dos factos que são subsumíveis ao tipo criminal imputado, na medida em que o mesmo não só proferiu expressões injuriosas dirigidas à ofendida, como subsistem indícios suficientes de que o mesmo também proferiu expressões indubitavelmente reconduzíveis a ameaça contra a sua vida.
Em face do exposto, da acusação pública deduzida pelo Digno Ministério Público constam todos os factos que, a provarem-se, permitem a condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado, integrando a prática de ilícito criminal, porquanto a alegada conduta é apta a, em abstracto, preencher todos os elementos, objectivos e subjectivos, de tal tipo de crime.
Mais importa referir que o enquadramento jurídico é abstractamente correcto em face dos factos constantes da acusação, uma vez que os mesmos, analisados no seu todo, são subsumíveis aos elementos objectivos e subjectivo do tipo.
Em suma, os indícios recolhidos durante o inquérito permitem considerar como altamente provável a futura condenação do Arguido ou que, pelo menos, é mais provável a condenação deste do que a sua não condenação, não tendo tais indícios sido infirmados na fase de instrução, impondo-se a sua pronúncia, nos exactos termos constantes da acusação.
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V–Decisão
Em face de todo o exposto, ao abrigo do artigo 308, n.º 1, primeira parte, do Código de Processo Penal, decide-se PRONUNCIAR o Arguido HM, melhor identificado nos autos, pela prática dos factos descritos na acusação do Ministério Público de fls. 83 a 84v. (para os quais se remete), e que consubstanciam a prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
*
Propõe-se que seja requisitado e junto aos autos o certificado de registo criminal actualizado do Arguido.
*
Prova: a constante nos autos e indicada na acusação pública.
*
Estatuto processual do arguido e medidas de coacção: Não resultando demonstrado qualquer dos pressupostos do artigo 204.º do Código de Processo Penal, determina-se que o arguido aguarde os ulteriores termos processuais submetido às obrigações decorrentes do termo de identidade e residência, já prestado.
*
Da Suspensão Provisória do Processo
Não obstante o supra decidido, em sede de debate instrutório foi informado, por parte do Arguido, que, pese embora, e sem prescindir do exposto no Requerimento de Abertura de Instrução, o mesmo concorda com a aplicação do instituto da Suspensão Provisória do Processo pelas injunções propostas a fls. 67 dos autos, pelos factos constantes na acusação, assim requerendo que seja decidido em conformidade.
Dispõe o artigo 307.º n.º 2 do Código de Processo Penal que o juiz de instrução pode suspender provisoriamente do processo, mediante a verificação dos pressupostos do artigo 281.º do mesmo Código, obtida a concordância do Ministério Público e da queixosa.
Na presente situação, o crime em causa é punido com pena de prisão até cinco anos, o arguido não tem antecedentes criminais e nunca beneficiou do instituto da suspensão provisória do processo por crime da mesma natureza, encontra-se social, familiar e profissionalmente inserido, a sua actuação surge num contexto muito especifico e singular, o que nos leva a concluir tratar-se de uma actuação isolada e não repetível, tudo circunstancias que nos levam a ter o grau de culpa como pouco elevado.
As circunstâncias que estão na base na prática dos factos, são de molde a configurar a culpa do arguido revelada no facto como de grau mediano, atento o carácter isolado da conduta, realidade que nos remete para um nível abaixo da média das exigências de prevenção especial sentidas no caso, o que, associado à situação pessoal do Arguido nos permite concluir pela existência de um comportamento conforme o direito, correspondendo esta acção a uma conduta que não é reconduzível a uma tendência criminosa, mas apenas a uma realidade ocasional que não radica na sua personalidade.
Ademais, não há lugar a medida de internamento.
Entende-se igualmente como adequada às exigências de prevenção geral uma solução de consenso como a prevista no artigo 281.º do Código de Processo Penal que, se por um lado não deixará de cumprir uma função de estabilização das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma violada e, por outro lado, tem a virtualidade de evitar a inevitável carga estigmatizante da submissão dos agentes primários ao sistema formal de aplicação da justiça penal, designadamente na sua materialização mais visível e que poderia consistir na fase processual de julgamento.
Por último, entendemos que a justiça penal não pode ser um momento que prejudique as soluções de consenso obtidas, para mais quando não existem exigências de prevenção especial e geral que justifiquem a submissão a julgamento de pessoas que nunca tiveram qualquer contacto com os tribunais.
Em conformidade com o exposto, entende-se por adequada a suspensão provisória do processo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 281.º e 307.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, por se entender que a mesma constitui resposta adequada e suficiente às necessidades de prevenção geral e especial que no caso concreto se fazem sentir, pelo prazo de 6 (seis) meses, sujeito à seguinte regra de injunção:
- Entregar a quantia de € 300,00 (trezentos euros) a uma IPSS à sua escolha, a efectuar dentro do período de suspensão, fazendo prova desse facto nos autos.
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Não são devidas custas por a elas não haver lugar (artigo 516.º do Código de Processo Penal).
Notifique.
Oportunamente devolvam-se os autos aos Serviços do Ministério Público.(Acta de debate Instrutório de 7.10.2022, com a referência Citius 53983658).
Por despacho proferido em 17 de Abril de 2023, o Mmo. Juiz decidiu:
Por despacho proferido no âmbito da decisão instrutória, no dia 07 de Outubro de 2022 (cfr. fls. 119 a 128), foi determinada a suspensão provisória do presente processo, pelo prazo 6 (seis) meses, mediante a imposição legal ao arguido HM da seguinte injunção:
- Entregar a quantia de € 300,00 (trezentos euros) a uma IPSS à sua escolha, a efectuar dentro do período de suspensão, fazendo prova desse facto nos autos.
Encontra-se já decorrido o prazo de suspensão provisória do processo, resultando de fls. 129-130 que o arguido cumpriu a aludida injunção.
No mais, decorre do certificado de registo criminal respeitante ao ora arguido, junto a fls. 138v., que o mesmo não regista qualquer condenação por prática de crime.
Pelo exposto, determina-se o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no artigo 282.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (com as necessárias adaptações, por força da remição operada pelo n.º 2 do artigo 307.º do mesmo diploma legal).
Notifique.
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Após, remetam-se os autos aos serviços do Ministério Público, solicitando que se diligencie pelo registo presente despacho na base de dados de suspensões provisórias do processo, e junte aos autos a respectiva informação.
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Quanto ao mais, oportunamente lavre-se termo de vista ao Digno Ministério Público para se pronunciar sobre o destino a dar aos objectos apreendidos nos autos (cfr. fls. 39-42 e 106-107). (despacho com a referência Citius 55072440);
Em 24 de Abril de 2023, o Mº. Pº. promoveu:
«(…) Assim, em relação à arma apreendida e examinada nos autos, ainda que a mesma não tenha sido utlizada diretamente pelo arguido contra a vítima, a verdade é que aquele proferiu expressão de teor intimidatório onde invocava a utilização de uma caçadeira para retirar a vida a esta, pelo que entendemos tal facto ser suficiente para, atentas as características do objeto em causa, ser o mesmo considerado, irrecusavelmente, instrumento objetivamente perigoso.
Destarte, ao abrigo do artigo 109.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, promovo que a arma e o respetivo livrete apreendidos nos autos sejam declarados perdidos a favor do Estado.
Em caso de concordância, promovo que a sobredita arma seja entregue à P.S.P. que deverá providenciar pelo destino a dar-lhe, nos termos do artigo 78.º da Lei n.º 5/2006.» (referência Citius 55118753);
Foi então proferida a decisão recorrida com o seguinte teor:
No âmbito dos presentes autos foi apreendida ao Arguido HM uma arma de fogo, e respectivo livrete, melhor descritos a fls. 39-42 e 106-107, objectos esses aos quais ainda não foi dado destino.
O Digno Ministério Público pronunciou-se acerca do destino a dar a tais objectos, promovendo que os mesmos sejam declarados perdidos a favor do Estado e entregues à P.S.P., que deverá providenciar pelo destino a dar-lhe (nos termos do artigo 78.º da Lei n.º 5/2006), atendendo aos indícios factuais reunidos nos autos, dos quais resulta que, ainda que a aludida arma de fogo não tenha sido utlizada directamente pelo arguido contra a vítima, a verdade é que aquele proferiu expressão de teor intimidatório onde invocava a utilização de uma caçadeira para retirar a vida a esta, pelo que tal facto se torna suficiente para, atentas as características do objecto em causa, ser o mesmo considerado, irrecusavelmente, instrumento objectivamente perigoso.
Cumprindo apreciar e decidir, importa começar por relembrar que, no âmbito dos presentes autos, foi deduzida acusação contra o sobredito Arguido (Ref. Citius n.º 53531633), no âmbito da qual foram ao mesmo imputados, ente outros, os seguintes factos:
“1. No dia 15 de Janeiro de 2022, pelas 21h00, o arguido HM (doravante HM) deslocou-se até ao estabelecimento comercial denominado “…”, sito na …. e, quando aí chegou, aproximou-se de NF e de MA e proferiu a seguinte expressão: “não atendes o telemóvel, nojenta de merda, nojenta do caralho, como é que emprestas uma coisa que também é minha, pedes-me ajuda quando precisas e ligas para mim a qualquer hora e não telefonas para me dizeres que emprestaste o carro”.
2. Acto contínuo, e porque NF não reagiu àquela interpelação, HM disse: “a tua mulher foi morta à catana, essa cabra que está aí vai ser à caçadeira e a outra é a seguir”.
(…)
4. Ao agir da forma supra descrita, HM sabia que atormentava o equilíbrio psico-emocional de NF, que a ofendia na sua honra e consideração ao lhe chamar “nojenta de merda, nojenta do caralho, és uma velhaca”, que limitava a sua liberdade quando proferiu a expressão “essa cabra que está aí vai ser à caçadeira”, fazendo com que receasse pela sua segurança pessoal perante a possibilidade de que pudesse vir a concretizar o intento que anunciava, que abalava o seu amor próprio e a sua dignidade, ou seja, sabia que lhe provocava grande sofrimento psíquico, o que quis e logrou alcançar.
5. O arguido HM agiu livre, deliberada e conscientemente e, não obstante ter o perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida e criminalmente punida, não se absteve de a concretizar.” – sublinhados nossos.
Neste seguimento, foi requerida abertura de instrução e proferida decisão instrutória de pronúncia do arguido, pelos factos acima descritos (não obstante a decisão de suspensão provisória do processo), entendendo-se que “(…) de toda a prova carreada para os autos em sede de inquérito resultam suficientemente indiciados todos os factos descritos na acusação pública apresentada pelo Ministério Público, (…).
Atenta a matéria de facto suficientemente indicada e, por outro lado, o enquadramento do tipo criminal cuja prática é imputada ao Arguido, resulta assim fortemente indiciado o cometimento dos factos que são subsumíveis ao tipo criminal imputado, na medida em que o mesmo não só proferiu expressões injuriosas dirigidas à ofendida, como subsistem indícios suficientes de que o mesmo também proferiu expressões indubitavelmente reconduzíveis a ameaça contra a sua vida.”
Ora, tal como decidido no âmbito do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 04 de Novembro de 2015, que se acompanha, “I - São requisitos legais da declaração de perda:
- Que os objectos tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico ou; que tenham sido o produto isto é, o efeito do facto ilícito típico;
- A perigosidade dos objectos.
II- A perda de instrumentos e produtos não depende, como supra se referiu, da verificação de um crime, bastando-se com a existência de um facto ilícito típico, havendo a ela lugar, mesmo que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto.
III- É pois admissível que o arquivamento de um inquérito, na sequência do decurso do prazo fixado para a suspensão provisória do processo, possa dar lugar à declaração de perdimento de objectos apreendidos, como também pode o mesmo suceder em caso de despacho de não pronúncia e mesmo, de sentença absolutória. (…)” (sublinhado nosso) - relatado pelo Exmo. Sr. Juiz Desembargador, Dr. Vasques Osório, processo n.º 10/14.0GBGVA.C1, disponível em www.dgsi.pt.
Nesta medida, a perda a favor do Estado dos instrumentos do crime assenta em exigências, quer individuais, quer colectivas, de segurança e de perigosidade dos objectos apreendidos, no sentido, eminentemente objectivo, de aferição da natureza dos mesmos e das circunstâncias de que, da sua detenção ou utilização, venham, ou possam vir, a ser atingidos a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou de serem utilizados para a prática de factos ilícitos típicos, sendo a finalidade do mesmo instituto jurídico exclusivamente preventiva, e não independente da culpa do agente, bastando, como no caso dos autos, suficientes indícios de ter o arguido praticado factos preenchedores do tipo objectivo e subjectivo do crime de violência doméstica, e, ainda, propor-se a atentar contra a vida da vítima usando, para o efeito, uma arma de fogo, designadamente da mesma categoria da apreendida nos autos.
Em face do exposto, e acolhendo integralmente a posição adoptada pelo Digno Ministério Público, declaram-se perdidos a favor do Estado a arma de fogo e respectivo livrete (melhor descritos a fls. 39-42 e 106-107), apreendidos ao Arguido HM, por tal objecto (a arma de fogo) ter sido destinado a servir para a prática de um facto ilícito típico (ameaça contra vida a vítima), considerando a factualidade indiciada nos autos, e ainda por, atenta à sua natureza e as circunstâncias em que foi aprendido, constituir perigo sério para as exigências de segurança das pessoas e da ordem pública, bem como por oferecer sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, conforme determina o n.º 1 do art.º 109.º do Código Penal.
Ademais, determina-se ainda que os supra aludidos objectos sejam entregues à P.S.P. de Vila do Porto, que deverá promover pelo destino o a dar-lhes, nos termos do artigo 78.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro. (decisão com a referência Citius 55123272).
2.3.–APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
O recorrente pretende que a sentença é o único momento processual em que pode ser declarada a perda a favor do Estado dos instrumentos e objectos do crime, ou numa interpretação extensiva do conceito de sentença, o momento em que seja proferida decisão que ponha termo à causa, para retirar a consequência de que a única solução jurídica possível teria sido, no caso vertente, o cumprimento do preceituado no art. 186º nº 2 do CPP, não sendo já possível declarar a perda, sob pena de violação do caso julgado e da criação de um efeito surpresa da decisão que declarasse a perda depois da sentença, o que traduz «uma flagrante deslealdade processual e uma manifesta violação das garantias de defesa do recurso» (Ac. da Relação de Évora de 12.04.2016, proc. 1072/11.8GTABF-B.E1. No mesmo sentido, Ac. da Relação do Porto de 26.05.2021, proc. 970/18.2JAPRT-C.P1
Prosseguindo nesta linha de argumentação, o recorrente concluiu que a decisão recorrida é nula porque, tendo decretado a perda a favor do Estado da arma e do livrete apreendidos em despacho posterior à decisão que determinou o arquivamento do processo, é uma decisão ilegal.
Começa por se dizer que o presente recurso merece provimento, embora por fundamentos diversos dos invocados pelo recorrente.
O art. 374º do CPP, sob a epígrafe «requisitos da sentença», impõe no n.º 3, al c), do Cód. Proc. Penal, que o dispositivo contenha a «indicação do destino a dar a animais, coisas ou objetos relacionados com o crime, com expressa menção das disposições legais aplicadas (…)».
Por seu turno, o art. 186º, sob a epígrafe «restituição de animais, coisas e objetos apreendidos», no seu n.º 2, do Cód. Proc. Penal, estabelece que «logo que transitar em julgado a sentença, os animais as coisas ou os objetos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado», prevendo, no seu n.º 5, uma excepção a este princípio, para o arresto preventivo dos bens, decretado nos termos do art. 228º do mesmo diploma legal.
Não merece, pois, dúvida ou controvérsia que o momento processual correcto para declarar a perda de objectos que se subsumam à previsão do art. 109º do CP é o da prolação da sentença, ou do acórdão, ou em situações como a que se verificou no presente processo, de aplicação da suspensão provisória do processo, no momento da decisão que ponha termo à causa. Mas pode não ser o único, desde logo, quando o processo finda antes mesmo de chegar à fase de discussão e julgamento da causa.
«Requisitos ou pressupostos legais da perda de instrumentos e produtos são, por um lado, o da utilização dos instrumentos numa actividade criminosa, não sendo necessário que o crime se tenha consumado ou seja imputável ao arguido e, por outro, a perigosidade dos objectos ou instrumentos, atenta a sua natureza intrínseca, isto é, a sua específica e conatural utilidade social, se mostrem especialmente vocacionados para a prática criminosa.
«E, verificados tais pressupostos, tal declaração, necessariamente jurisdicional, terá lugar no momento correcto, a saber, por regra, a sentença.
«Porém, se o processo termina não logrando alcançar aquela fase - de julgamento - e se queda pelo arquivamento do inquérito - cfr. artigo 277º, do Código de Processo Penal -, como no caso em apreço, é em tal despacho, que caberá promover a declaração de perda dos instrumentos ou objectos apreendidos à ordem do processo, declaração da competência exclusiva do juiz de instrução - cfr. artigo 268º, nº 1, alínea e), do citado diploma -, que apreciando e conhecendo da verificação dos aludidos pressupostos ou requisitos da perda dos objectos ou instrumentos a afirmará, sendo caso» (Ac. da Relação de Évora de 21.06.2022, proc. 900/20.1GCFAR-A.E1, in http://www.dgsi.pt).
O que também não oferece qualquer dúvida é que a circunstância de, na sentença, no acórdão, ou na decisão de outra natureza que ponha termo ao processo, não ter sido tomada qualquer posição em matérias que envolvam a aplicação do art. 109º do CPP, não excluí a possibilidade de serem tomadas posteriormente decisões sobre o destino a dar aos objectos que tenham sido utilizados ou pretendidos utilizar na prática de factos típicos e ilícitos ou que dela provenham.
A declaração de perda dos objectos a que se refere o art. 109º do CP assume natureza jurisdicional e exige a intervenção do juiz de instrução criminal, ou do juiz do julgamento, porquanto determina a extinção do direito de propriedade do respectivo proprietário desses bens.
Porém, essa decisão pode ser proferida a todo o tempo, quer antes, quer depois do julgamento, quer antes, quer depois da prolação da sentença e sem que a sua omissão nesta envolva qualquer nulidade.
Em primeiro lugar, porque o regime geral das nulidades em processo penal obedece a três princípios essenciais: o da legalidade, enunciado no nº 1 do art. 118º, do qual resulta que a violação ou a inobservância das disposições da lei de processo penal só determina a nulidade, quando esta for expressamente cominada na lei, exemplificando o art. 119º algumas nulidades insanáveis e exemplificando o art. 120º as que são sanáveis; o princípio da irregularidade de todos os restantes actos praticados contra a lei e um terceiro, que consiste na autonomização das proibições de prova, às quais foi fixado um regime jurídico próprio.
Ora a ausência de tomada de posição pelo Tribunal sobre o destino a dar aos bens relacionados com a prática do crime, à luz seja do art. 109º do CP, seja do art. 186º do CPP não se enquadra em qualquer das previsões contidas nos citados arts. 119º e 120º do CPP.
Em segundo lugar, porque no elenco das nulidades da sentença segundo a enumeração taxativa contida no art. 379º nº 1, só são geradoras deste vício, a omissão das menções referidas no nº 2, e na alínea b) do nº 3, do art. 374º, a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, fora dos casos previstos nos arts. 358º e 359º e a ausência de tomada de posição sobre questões que o Tribunal devesse apreciar ou quando o Tribunal conheça de questões de que não podia conhecer.
Ora, o destino a dar aos objectos a que seja aplicável o disposto no art. 109º do CP não é propriamente uma questão a decidir porque não integra o objecto do processo, «já está para além da solução da concreta questão que é submetida ao tribunal. Tal como a remessa de boletins ao registo criminal, por exemplo. Tais requisitos devem integrar a decisão (…) mas rigorosamente não fazem parte do objecto do processo.» (Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 13.10.2011, no processo n.º 141/06.0JALRA.C1.S1. No mesmo sentido, Acs. da Relação do Porto de 11.01.2012, proc. 323/09.3GACNF e de 13.9.2017, proc. 837/15.6GBAGD-B, Ac. da Relação de Coimbra de 16.02.2022 proc. 72/08.0TAMMV-B.C1 in http://www.dgsi.pt).
Tomando como referência e lugar paralelo o que sucede com a apreensão de bens que, de resto, na esmagadora maioria dos processos, é antecedente cronológico da perda clássica, e é aliás também um meio de conservação à ordem do processo até à decisão final dos bens que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, não há um momento processual específico para decidir sobre a sua cessação, antes a mesma poderá ocorrer a todo o tempo.
«De acordo com o disposto no artigo 186º, nº 1, do CPP, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, logo que se tornar desnecessário manter a sua apreensão. A apreensão tem, por isso, como regra base o princípio da necessidade. Logo que o mesmo cesse, impõe-se observar a restituição do objecto apreendido» (Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2008, a fls. 374).
«Os objectos apreendidos devem ser restituídos aos respectivos proprietários ou possuidores quando se verificar que os pressupostos da apreensão se não mantêm, sejam os objectos propriedade do arguido ou de terceiras pessoas» (Paulo Albuquerque, in Comentário do Código Penal, p. 504).
Mantendo-se a sua qualificação de ilícitos, de manter-se-á também a sua apreensão. Mas se for logo que seja constatada a sua natureza não ilícita, não integrando ou constituindo objecto de qualquer crime, logo se imporá a sua imediata restituição a quem de direito.
Ou seja, do crivo da decisão instrutória, só será de manter apreendidos os objectos considerados ilícitos, cujos factos só serão definitivamente apreciados e julgados na sentença. É quanto a estes objectos que a sentença terá que se pronunciar:
- Declará-los perdidos a favor do Estado, se for caso disso, nos termos dos artigos 109º a 111º do CP.
- Ordenar a sua restituição, no caso contrário.
É o que diz exactamente o nº 2, do artigo 186º, do Código de Processo Penal.
Assim, é lícito concluir que a omissão de pronúncia do acórdão condenatório sobre o destino a dar aos objectos apreendidos não forma caso julgado.
Do mesmo modo, não opera o esgotamento do poder jurisdicional, nos termos dos arts. 613º e 614º do CPC ex vi do art. 4º do CPP e do art. 380º do CPP, porque do que se trata é da omissão na prolação de uma decisão, sem que o tribunal tenha chegado a apreciar o seu mérito.
E assim é tanto no caso dos objectos deverem ser declarados perdidos a favor do Estado como no caso de deverem ser devolvidos a quem for o seu proprietário, pelo que, «nada referindo a sentença a tal propósito, pode o juiz, posteriormente, decidir sobre essa matéria» (Ac. da Relação do Porto de 11.01.2012, proc. 323/09.3GACNF in http://www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Acs. da Relação de Lisboa de 28.09.1988, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 379, página 625 e de 10.01.1995, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano 1995, Tomo l, página 147, de 11.07.2013, proc. 5855/09.0TDLSB.L1-3).
«I– O facto de o tribunal não se ter pronunciado na sentença sobre o destino a dar às armas e munições apreendidas nos autos, desse modo incumprindo o disposto no art. 374º, nº3, al. c), do CPP, não gera nulidade, mas tão só mera irregularidade, a qual, por não afetar a decisão do objeto do processo, não determina a invalidade da sentença.
«II– Por outro lado, aquela omissão de pronúncia não forma caso julgado, porquanto o tribunal não chegou a apreciar o mérito da questão, não se mostrando, dessarte, perante o silêncio, esgotado o seu poder jurisdicional, continuando o processo a reclamar, com caráter de imprescindibilidade, um ato decisório que dê destino aos objetos apreendidos.
«III– O sobredito entendimento conforma-se com o preceituado no art. 186º, nº2, do CPP, quando interpretado este no sentido de a sua aplicação de pressupor que tenha sido dado cumprimento ao disposto no art. 374º, nº2, al. c) do mesmo diploma legal, ou seja, que tenha ocorrido anteriormente uma decisão judicial a dar destino aos objetos.
«IV– Por conseguinte, a decisão de declarar perdidos a favor do Estado os objetos apreendidos ou de ordenar a sua restituição a quem de direito pode ser proferida mesmo após o trânsito em julgado da sentença onde deveria ser tomada, e sem que tal implique qualquer postergamento de direitos constitucionais e/ou processuais dos visados» (Ac. da Relação de Guimarães de 19.10.2021, proc. 395/15.1GAVLP.G1, in http://www.dgsi.pt).
A não ser assim, ter-se-ia de ficcionar que a transposição do momento da prolação da sentença, alteraria a natureza jurídica dos «instrumenta e producta sceleris» e, portanto, bens intrinsecamente perigosos na acepção relevante para serem declarados perdidos a favor do Estado, nos termos do art. 109º do CP, só porque não foi proferida qualquer decisão sobre eles, teria o condão de transformar a sua natureza jurídica, convertendo-os em bens lícitos, sendo a sua restituição feita contra os interesses de natureza e ordem pública que a perda clássica visa salvaguardar, ou, ao contrário, o próprio Estado se apropriaria de bens pertencentes ao arguido ou a terceiros, não obstante não serem perigosos, de forma ilegítima e contrária ao princípio da tipicidade das restrições ao direito de propriedade consagrado no art. 62º da CRP e nos arts. 1305º e 1306º do CC.
Em qualquer das hipóteses, os resultados seriam absurdos, injustos e contrários à constituição e à lei.
Em conclusão, apesar de o limite temporal e processual da declaração de perda de bens a favor do Estado ser, por via de regra, a sentença ou o acórdão, considerando a importância dos interesses que visa assegurar – a manutenção da ordem pública e da segurança comunitária ou a prevenção do risco do cometimento de outros crimes, no caso da perda; o respeito pelo direito de propriedade privada, no caso da restituição dos bens apreendidos – a decisão pode e deve ser tomada em momento posterior, desde que seja proferida por um Juiz e garantida a sua impugnação por via de recurso, aos sujeitos processuais visados e a quem a mesma possa prejudicar.
Essa garantia de sindicância de uma decisão assim tomada em duplo grau de jurisdição decorre, de resto, da circunstância de não se tratar de um despacho de mero expediente e do preceituado nos arts. 399º e 400º do CPP.
O art. 109º do Código Penal contém as regras gerais em matéria de perda clássica dos bens e produtos do crime («instrumenta e producta sceleris»).
São requisitos essenciais da perda:
A prática de um comportamento anti-jurídico, sendo suficiente a sua tentativa;
Que tenham sido usados realmente utilizados na execução do tipo legal de ilícito ou estivessem a tal destinados, no caso dos instrumentos;
Que resultem da prática criminosa, no caso dos objectos;
A perigosidade de uns e de outros, aferida pelo risco de ocorrência de novas infracções ou pela sua aptidão ou vocação para colocarem em crise a segurança das pessoas e a moral e ordem públicas (a «segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos», nos termos do nº 1), avaliada pela sua natureza intrínseca, pela sua função útil normal, ou pelas circunstâncias do caso.
Assim, enquanto os instrumentos são causa do crime, os objectos do crime são seu efeito.
Como o fundamento da perda regulada no artigo 109º do CP radica nas exigências, individuais e colectivas de segurança e nos riscos específicos e perigosidade do próprio objecto, que não na perigosidade do agente do facto ilícito e nem na culpa deste ou de terceiro (cfr. art. 111º do CP), a perda de instrumentos e objectos do crime não pode ser considerada uma medida de segurança, porque não se baseia na perigosidade do agente e também não pode ser qualificada como pena acessória, porque não tem qualquer relação com a culpa do agente, não sendo, pois, nem um efeito da pena, nem da condenação, já que prescinde quer da consumação do facto típico e ilícito, quer da imputabilidade do seu autor e até do conhecimento acerca da identidade deste, como resulta da expressão «ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto» inserta no art. 109º nº 2 do CP.
A declaração de perda a favor do Estado guarda, no entanto, uma grande similitude com as medidas de segurança, constituindo uma medida sancionatória de cariz confiscatório (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, pág. 315, em anotação ao art. 111.°. No mesmo sentido, Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, Aequitas-Editorial Notícias, 1993, p. 638).
«Porque a perda não possui qualquer ligação com a culpa do agente pelo ilícito-típico perpetrado: podendo o instituto intervir mesmo relativamente a inimputáveis, por um lado, e podendo ele intervir, por outro lado, mesmo que nenhuma pessoa determinada possa ser perseguida ou condenada, torna-se patente que a – eventual – culpa do agente não constitui sequer limite da intervenção da providência.» (Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Aequitas-Editorial Notícias, 1993, p. 627)
O regime geral da perda previsto no art. 109º do CP coexiste com outros regimes jurídicos previstos para determinadas categorias de factos ilícitos típicos ou para bens específicos, muitos deles contidos em legislação extravagante, penal e contra-ordenacional e que mantêm com o primeiro uma relação de especialidade, podendo acontecer «que estas disposições avulsas modifiquem ou mesmo contrariem o instituto geral, seja no que toca ao regime, seja mesmo no que toca às finalidades político-criminais e, consequentemente, à natureza jurídica do instituto.» (Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Aequitas-Editorial Notícias, 1993, p. 617).
Como qualquer providência sancionatória, e na medida em que envolve a restrição ou perda de um direito individual fundamental, como é o caso do direito de propriedade, a perda de objectos e instrumentos do crime tem de ter suporte em juízos de adequação, necessidade e proporcionalidade, nos termos do art. 18º nº 2 da CRP, por referência ao seu desiderato que consiste na tal salvaguarda da segurança comunitária, da ordem pública e da prevenção do risco de repetição criminosa.
No caso vertente, nem a arma apreendida é proibida, dada a sua espécie e características – trata-se de uma arma de fogo uma espingarda de caça de marca FABARM , modelo com N° 2023698, com dois canos justapostos, de 71 cm de cano e 112 cm de comprimento total, com coronha em madeira, de calibre 12 permitida, por ser uma arma da classe D, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 2º nº 1 al. ar), 3º nºs 1 e 6 al. a) e 8º Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro - nem a sua detenção pelo arguido é ilegal, pois que como avulta do auto de apreensão de fls. 39 e do auto de exame de fls. 40, o arguido é detentor de licença de uso e porte daquela arma, a qual foi devidamente licenciada pela DN/PSP e está manifestada em seu nome, não se vislumbrando que, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar em que os factos descritos na decisão instrutória de pronúncia de 1. a 5., foram praticados a arma tenha sequer sido usada ou mostrada à ofendida.
Embora correspondendo a anúncios feitos pelo arguido de que iria atentar contra a vida desta e com menções ao uso de uma caçadeira, toda a conduta potencialmente integradora do assim qualificado crime de violência doméstica, por via desta forma de intimidação, não ultrapassou o patamar das ameaças exclusivamente verbais.
A titularidade do direito de propriedade e detenção da espingarda caçadeira que veio a ser apreendida, conforme auto de apreensão de fls. e os anúncios feitos pelo arguido é meramente coincidente com a ameaça verbalizada e circunstancial.
É preciso sublinhar que a perda de bens a favor do Estado, à luz do art. 109º do CP, não prescinde de uma conexão directa com o facto típico e ilícito: ou é seu instrumento, ou é seu produto, o que tem de ser aferido em concreto, através da análise das circunstâncias de cada caso.
Com efeito, é imperioso, antes de mais, que o objecto tenha sido determinante na execução e depois que pela sua conatural função económica ou utilidade normal seja perigoso.
Assinale-se ainda que a perigosidade não pode ser aferida no campo da mera abstracção, ou a partir de constatações vagas e genéricas, nem não pode presumir-se, sob pena de violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da presunção de inocência.
Pretender estabelecer entre o comportamento típico e ilícito do arguido e a perda da arma de que é proprietário uma relação de causa e efeito, sem real uso da mesma e sem o apuramento de qualquer facto apto a ilustrar a pretensão do arguido de a utilizar, naquele momento e lugar, é levar longe demais o instituto da perda, transpondo-o para fora dos limites legais em que o mesmo é admissível.
Se nem a natureza da arma (de defesa) nem as circunstâncias do caso permitem afirmar que põe em perigo a segurança das pessoas ou oferece sério risco de ser utilizada para o cometimento de novos ilícitos, não pode ser declarada a sua perda.
E é precisamente isto que acontece no caso vertente.
A decisão recorrida não se encontra sustentada em factos objectivos, concretos que integrem sequer o uso ou a essencialidade para a execução do crime de violência doméstica por que o arguido foi pronunciado, da espingarda caçadeira apreendida, muito menos, a perigosidade intrínseca do objecto ou a existência de risco da sua utilização para a prática de novos crimes, segundo as circunstâncias referentes à execução do crime indiciado, ou as que envolveram a sua consumação e por isso é que não pode manter-se.
O recurso procede, pois.
III–DECISÃO
Termos em que decidem, neste Tribunal da Relação de Lisboa:
Em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que determine a restituição ao arguido da arma e documentos à mesma referentes e apreendidos a fls. 39 do processo.
Sem Custas.
Notifique.
*
Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Meritíssimos Juízes Adjuntos.
Tribunal da Relação de Lisboa, 11 de Outubro de 2023
Cristina Almeida e Sousa
Relatora Rosa Vasconcelos
Primeira Adjunta Maria Margarida Almeida
Segunda Adjunta