MEDIDA DE COACÇÃO
CONTRADITÓRIO
ELEMENTOS A COMUNICAR PELO JIC
ACESSO AOS AUTOS
Sumário

O exercício efectivo do contraditório que precede a decisão de aplicação da prisão preventiva encontrar-se-á acautelado através do conhecimento pela defesa dos elementos dos autos que permitam verificar se existem, materialmente, os pressupostos legais, gerais e específicos, delineados pelo legislador como justificando em concreto a aplicação de tal medida de coacção.

Os elementos relevantes para o exercício do contraditório, neste contexto, são aqueles que se mostrarem evidenciados no requerimento apresentado pelo Ministério Público e nos deveres de informação do JIC, tal como regulados nos arts. 141º e 194º do CPP, de cujo elenco também fazem parte as menções acerca da matéria probatória recolhida, até ao momento da audição do arguido.

Em virtude da relação de especialidade que existe entre as regras do art. 89º nºs 1 e 2 e as que se encontram insertas nos arts. 141º nº 4 al. e) e no art. 194º nº 6 al. b) do CPP, esses deveres de informação cumprem-se com a mera enunciação dos vários meios de prova que sustentam a indiciação do arguido, não impondo a concessão da possibilidade de consulta nem a explicitação por parte do Juiz de Instrução do seu teor e sem que tal constitua qualquer violação do processo justo equitativo, nem das garantias de defesa do arguido, nem do seu direito ao contraditório.

Texto Integral

Acordam os Juízes, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–RELATÓRIO


Por decisão proferida em 28 de Abril de 2023, no processo de inquérito nº 196/23.3JAPDL do Juízo de Instrução Criminal de Ponta Delgada, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, o Mmº Juiz de Instrução Criminal indeferiu o requerimento apresentado nesse mesmo dia, no qual o arguido GM requereu o levantamento do segredo de justiça em relação a todos os meios de prova indicados pelo Mº. Pº. no requerimento de apresentação do arguido a Primeiro Interrogatório Judicial de Arguido Detido e a possibilidade de os consultar.

Por decisão proferida na mesma data e no mesmo processo, o Mmo. JIC determinou a aplicação da prisão preventiva ao arguido GM, por se mostrar fortemente indiciado o crime de tráfico de substâncias estupefacientes e com fundamento na existência dos perigos de fuga e de continuação da actividade criminosa.

O arguido GM interpôs recurso destas duas decisões, tendo, para o efeito, formulado as seguintes conclusões:
1.-Vem o arguido recorrer perante Vossas Excelências, porquanto entende que não haviam razões concretas para ter sido indeferida a consulta da globalidade do acervo probatório, nos termos do artigo 194°, n.° 8, do Código de Processo Penal, sendo tal despacho nulo e, por consequência encontrava-se limitado ao Tribunal a quo aplicar medida de coação mais gravosa que o Termo de Identidade e Residência, assente naqueles elementos de prova, cujo teor persiste totalmente desconhecido do arguido, padecendo esta Decisão - a que encerrou o interrogatório - também do vicio de nulidade, mas, por violação do artigo 194°, n.° 7, do Código de Processo Penal.
2.-Desde logo, o Despacho de indeferimento da consulta da prova carece de cabal fundamentação porque apresenta-se marginal a uma ponderação cuidada dos valores em colisão e das necessidades cautelares que a investigação reclama.
3.-Tal e qual defende a doutrina, jurisprudência e até o nosso Tribunal Constitucional, para ser afastado o direito do arguido consultar os elementos de prova, terá de ser feita uma ponderação rigorosa e concreta entre o direito do arguido a exercer um contraditório e defesa cabal e digna e as repercussões que isso poderá acarretar para a investigação ou para a vida e integridade física de terceiros.
4.-Ao Senhor Juiz de Instrução cabia explicar pormenorizadamente, as concretas e individuais razões pelas quais, no seu entendimento, preferia coartar o direito de construir uma defesa completa, em detrimento da prossecução dos interesses da investigação. Porque razão e de que forma a consulta de cada um dos elementos de prova descritos, colocaria em causa a descoberta da verdade ou causaria perigo para a vida, integridade física ou psíquica de terceiros. Porém, in casu, este exercício ficou por ser realizado: no nosso caso foi feita uma consideração generalista e abstracta, portanto, por atacado de todos os elementos de prova, como se fossem um conjunto que, sob este ponto de vista, não fosse formado por elementos com informação com individualidade própria.
5.-Ora, é sobejamente claro que a fundamentação que o Tribunal a quo assenta para limitar de forma tão intensa e profunda o direito de defesa, prende-se apenas e só com o facto do processo se encontrar em segredo de justiça, abstendo-se de realizar qualquer ponderação criteriosa dos interesses em conflito.
6.-A invocação do segredo de justiça, sem quaisquer elementos objetivos e concretos configura uma autêntica derrogação do direito de defesa do arguido, colocando-o numa posição de absoluta incapacidade e impossibilidade de reação, de braços atados e de olhos tapados.
7.-Pelo que, o Despacho proferido pelo Tribunal a quo, carece de uma fundamentação detalhada, clara e concreta acerca das razoes pelas quais impendia a necessidade de se constranger o direito de defesa do arguido em prol dos interesses da investigação, pelo que, viola claramente o disposto no artigo 97°, n.° 5 e 194°, n.° 8 e 6°, al. b) do Código de Processo Penal, bem como viola os direitos constitucionalmente consagrados ao arguido, nomeadamente os artigos 20°, n.° 4, e 32°, n.°s 1, 5 e 7 da Constituição da Republica Portuguesa, padecendo a decisão de nulidade.
8.-Contudo, admitindo por mera cautela e dever de patrocínio que a fundamentação apresentada pelo Tribunal a quo é considerada bastante, parece-nos, no entanto, que tal fundamentação requer ser confrontada com a factualidade dos autos, pois, no nosso modesto entender, as situações excecionais que poderão limitar o direito de consulta e defesa do arguido, jamais se poderão considerar verificadas no caso em concreto.
9.-Antes de mais, somos a salientar que, a prova essencial para suportar a indiciação do arguido (se nela se contiver o que se diz conter! Somos obrigados a acreditar nos que nos dizem sem o podermos confirmar!) já tinha sido recolhida, nomeadamente com as declarações da arguida, com a vigilância realizada no dia 12 de fevereiro de 2023, autos de apreensão e testes rápidos e ainda com a realização de buscas e tomada de declarações pelas testemunhas
10.-Para além disso, por mera cautela e dever de patrocínio, poderá sempre dizer-se que a consulta afetaria a investigação e descoberta da verdade, na medida em que, o conhecimento por parte do arguido das provas, poderia constranger terceiros ou ainda afetar a identificação e interceção de outros sujeitos ligados à atividade de tráfico de estupefacientes.
11.-Porém, como se vislumbra ao longo das motivações, nem todas as provas apresentadas têm capacidade para influenciar a investigação e a descoberta da verdade nesse conspecto, pois, uns correspondem a informação já dada pelos próprios autos na matéria de facto indiciariamente imputada e, portanto, já conhecida pelo arguido, outros correspondem a dados relativos ao arguido que obviamente, a existirem e a serem verdadeiros, numa perspectiva puramente lógica, terão que ser do seu conhecimento.
12.-Havendo conversações entre o arguido e a arguida, o mesmo configurando como interlocutor, já detém conhecimento a priori do seu teor, pelo que a sua ocultação nos presentes autos tem um efeito totalmente inútil na proteção da investigação, descoberta da verdade e da vida.
13.-Assim, ainda que abstratamente possam haver provas que sendo dadas ao conhecimento do arguido possam colocar a investigação e descoberta da verdade em causa, - o que admitimos apenas por mera cautela e dever de patrocínio - a verdade é que concretamente as provas aqui recolhidas, nomeadamente, diligencias, procedimentos, apreensões em casa do arguido, entre outros, são incapazes de afetar e/ou manipular a investigação e por em grave perigo a descoberta da verdade.
14.-Ainda que exista, no limite, perigo para a investigação e para a descoberta da verdade, no caso em concreto esse perigo nunca será grave, tal e qual exige a al. b) do n.° 6 do artigo 194° do Código de Processo Penal, pelo que jamais justificaria a denegação de um dos direitos mais essenciais à defesa do arguido - a consulta dos elementos de prova.
15.-No que toca à existência de perigo para a vida, integridade física e/ou psíquica quer da vítima ou terceiros, como se sabe, o arguido foi colega de liceu da arguida - conforma consta do ponto C) da matéria de facto indiciariamente imputada - e sabe onde ela mora, tal como sabe onde mora a família da mesma, pelo que conhecia e conhece perfeitamente a arguida.
16.-Igualmente, desde o dia 12 de fevereiro de 2023 - dia em que foi tentada a detenção do arguido com a controlada entrega da mala pela arguida ao arguido - que este sabe, por se evidenciar obvio, que a mesma o identificou, porem, desde esse dia até a sua detenção, o arguido em nenhuma ocasião atentou contra a vida da mesma, ameaçou- a ou encetou tentativas de ofensas à integridade física, injurias ou difamação; aliás, sequer tentou, direta ou por intermédio de outrem, contacta-la.
17.-Pelo que, oportunidade não faltou para que o arguido, caso assim pretendesse e disso sentisse necessidade, procurasse ou mandasse procurar a arguida denunciante. Contudo, os autos mostram à saciedade que não foi, nem é, essa a intenção do arguido.
18.-Em relação a possibilidade de perigo de vida para terceiros, esta estaria sempre acautelada com a ocultação das suas identidades durante a consulta dos elementos de prova, devendo, como acima expusemos, ser feita uma seleção apenas dos elementos de prova que ao arguido, aqui recorrente, dissessem respeito. Pelo que, qualquer perigo para a sua vida ou integridade física estaria acautelado com tal triagem.
19.-Pelo que, parece-nos que, também não resulta, concretamente, qualquer perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime, que justificasse a derrogação do direito de consulta ao arguido.
20.-Assim, da factualidade recolhida não se extraem razões capazes de preencher as exceções legalmente determinada para que ao arguido lhe seja limitado o seu direito de defesa, na vertente do direito à consulta dos elementos de prova que sustentam os factos indiciariamente imputados, pelo que, por violação dos artigos 194°, n.° 8 e n.° 6, al. b) do Código de Processo Penal, o Despacho que indeferiu a consulta dos elementos prova padece de nulidade.
Assim considerando,
21.-Da análise conjugada dos artigos 194°, n.°7 e n.° 4 e artigo 141°, n.° 4 do Código de Processo Penal, parece-nos que, encontrar-se-á vedado ao Juiz de Instrução aplicar medida de coação mais gravosa que o TIR, sempre que os elementos de prova que sustentam os factos indiciariamente imputados não lhe tenham sido comunicados durante a sua audição, isto é, sem apresentar em que elementos se suporta a promoção do Ministério Publico.
22.-Contudo, em conformidade com o disposto nos artigos 20°, n.° 4, e 32°, n.°s 1, 5 e 7 da Constituição da República Portuguesa, parece-nos que a interpretação a ser dada à expressão comunicação/comunicar, a que se referem os artigos 141°, n.° 4 e 194°, n.° 7 do Código de Processo Penal, deverá assentar numa interpretação menos restrita do sentido da palavra, afastando-se de uma interpretação literal da mesma e aproximando-se do seu elemento histórico e sistemático.
23.-Pois, contrariamente, seria totalmente contraditório e incompreensível que a falta de comunicação dos elementos de prova, - no sentido estrito da palavra - fora das situações enunciadas na al. e) do n.° 4 do artigo 141° do Código de Processo Penal, culminasse na nulidade do Despacho de aplicação da medida de coação mais gravosa que o TIR e a proibição de consulta desses mesmos elementos, na mesmíssima situação, não atribuísse àquela decisão final o vicio da nulidade.
24.-Porque comunicar não se bastará nem preencherá com a simples anunciação; Porque uma comunicação cabal - isto é, em toda a sua extensão e amplitude - terá de assentar, no conhecimento do teor de cada um dos elementos que compõem aquele leque probatório apresentado para sustentar a indiciação do arguido, e esse pleno conhecimentos, admitimos que poderá advir através da sua mera explicação pelo Juiz de Instrução ou eficaz e absolutamente através da sua consulta.
25.-E, portanto, para alem de simplesmente comunicar ao arguido a existência de elementos de prova, ter-lhe-ia de ter sido, pelo menos, explicado concreta e individualmente o seu conteúdo pelo Juiz de Instrução.
26.-O arguido não sabe em que medida é cada um dos elementos de prova poderá - e se poderá sequer - contribuir para a sua indiciação. O arguido não sabe se tais elementos de prova foram obtidos de forma legal, porquanto ao arguido não lhe foram nem permitidos consultar despachos e procedimentos adotados. O arguido não tem como saber se efetivamente aqueles elementos de prova dizem a si respeito. O arguido jamais poderá explicar alguma informação erroneamente interpretada, porque dela não tem conhecido. O arguido não se pode defender!
27.-Os direitos e garantias de defesa do arguido foram injustificadamente violados, o que jamais será de admitir.
28.-Pelo que, salvo Douto suprimento de Vossas Excelências, parece-nos que, não assentando a decisão de indeferimento de consulta dos elementos de prova em nenhuma das exceções que a lei vem permitir, mormente - perigo grave para a investigação, para a descoberta da verdade e/ou perigo de vida, ofensas à integridade física ou psíquica - pelo motivos já supra apresentados, parece-nos que encontrava-se vedado ao Tribunal a quo sustentar a aplicação da medida de coação de prisão preventiva naqueles elementos de prova, devendo, assim, considerar-se nulo tal Despacho, por violação do n.° 7 do artigo 194° do Código de Processo Penal.
29.-Alias é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 20°, n.° 4, e 32°, n.°s 1, 5 e 7 da Constituição da Republica Portuguesa, a interpretação dos artigos 194°, n.° 7 e n.° 6, al. b) e artigo 141°, n.° 4, al. e) do Código de Processo Penal, segundo a qual, para efeitos de aplicação de medida de coação mais gravosa que o TIR, a aceção das palavras comunicar/comunicação limitar-se-á no seu elemento literal, isto é, bastará a mera enunciação do leque probatório existente para sustentar a indiciação do arguido, não incluindo, assim, a devida consulta ou explicitação por parte do Juiz de Instrução do seu teor.
30.-É, ainda, inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 20°, n.° 4, e 32°, n.°s 1, 5 e 7 da Constituição da Republica Portuguesa, a interpretação dos artigos 194°, n.° 7 e n.° 6, al. b) do Código de Processo Penal, segundo a qual, para efeitos de aplicação de medida de coação mais gravosa que o TIR, a expressão sem prejuízo do disposto na al. b) do n.° 6 do artigo 194°, não permite ao Julgador, verificadas aquelas situações, não comunicar ou permitir a consulta dos elementos de prova e ainda assim, proferir Despacho de aplicação de medida de coação assente nos mesmos.

Por tudo quanto expusemos, pedimos a Vossas Excelências, Venerandos Senhores Juízes Desembargadores deste Tribunal da Relação de Lisboa, se dignem dar provimento ao presente recurso e consequentemente:
i.) Declarem a nulidade do Despacho que indeferiu a consulta dos elementos de prova ao arguido, por violação do disposto no artigo 194°, n.° 8 do Código de Processo Penal;
ii.) Declarem a nulidade do Despacho que aplicou a medida de coacção de prisão preventiva, por violação do disposto no artigo 194°, n.° 7 do Código de Processo Penal; e
iii.) Julguem inconstitucional:
a.- Por violação do disposto nos artigos 20°, n.° 4, e 32°, n.°s 1, 5 e 7 da Constituição da Republica Portuguesa, a interpretação dos artigos 194°, n.° 7 e n.° 6, al. b) e artigo 141°, n.° 4, al. e) do Código de Processo Penal, segundo a qual, para efeitos de aplicação de medida de coação mais gravosa que o TIR, a aceção das palavras comunicar/comunicação limitar-se-á no seu elemento literal, isto é, bastará a mera enunciação do leque probatório existente para sustentar a indiciação do arguido, não incluindo, assim, a devida consulta ou explicitação por parte do Juiz de Instrução do seu teor; e
b.- por violação do disposto nos artigos 20°, n.° 4, e 32°, n.°s 1, 5 e 7 da Constituição da Republica Portuguesa, a interpretação dos artigos 194°, n.° 7 e n.° 6, al. b) do Código de Processo Penal, segundo a qual, para efeitos de aplicação de medida de coação mais gravosa que o TIR, a expressão sem prejuízo do disposto na al. b) do n.° 6 do artigo 194°, não permite ao Julgador, verificadas aquelas situações, não comunicar ou permitir a consulta dos elementos de prova e ainda assim, proferir Despacho de aplicação de medida de coação assente nos mesmos.

Admitido o recurso, o Mº. Pº. apresentou resposta, com as seguintes conclusões:
1.- Pugna o arguido pela nulidade da decisão do Mmo. J.I.C., por ter negado a consulta dos autos, em segredo de justiça, ao recorrente, pondo o recorrente também em crise a medida de coacção de prisão preventiva aplicada, por o ter sido na sequência daquela nulidade.
2.- O Tribunal a quo teve pela frente um arguido que foi o mentor de uma deslocação da co-arguida SC de Portugal continental para S. Miguel, Açores, transportando, a 12 de Fevereiro de 2023, cerca de 18 quilos de canabis-resina; arguida que só acedeu ao transporte depois de insistência do recorrente, que a levou a aceder ao transporte de droga.
3.-Foi determinada a aplicação do segredo de justiça, com concordância do Juiz de Instrução Criminal, ante a dificuldade de investigação do crime de tráfico de estupefacientes.
4.-O recorrente fugiu ao controle policial desde 13 de Fevereiro de 2023 a final de Abril de 2023, sendo sujeito a l.° interrogatório judicial depois de apresentados factos circunstanciados e prova pelo Ministério Público; indiciando-se seriamente a final a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, pp no art. 21.°, n. 1, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, e ordenada a prisão preventiva.
5.-Os factos que foram apresentados pelo Ministério Público foram claros e sustentados em prova descrita na promoção de 28 de Abril de 2023 para l.° interrogatório judicial de fls. 714 a 719, que foram transmitidos ao arguido, sob reserva do segredo de justiça quanto ao conteúdo dos mesmos, tanto mais considerado o crime em investigação e a relação de domínio já indiciada; por outro lado, estando a investigação em curso, e dada a interligação das provas apresentadas que, a ser conhecido o respectivo conteúdo pelo arguido, iriam perturbar a investigação subsequente, bem andou o Mmo. JIC. ao negar ao recorrente a consulta do conteúdo da prova enunciada na promoção, indeferindo o levantamento do segredo de justiça por despacho irrecorrível.
6.-Por isso, ao recorrente foram descritos os factos imputados, de forma circunstanciada, e apresentados os elementos de prova, sendo vedado ao arguido apenas o conteúdo dos mesmos, com base no segredo de justiça, com base no perigo grave para o desenrolar da investigação.
7.-O silêncio do arguido foi uma opção tomada por este não com base em falta de factos claros e provas apontadas, mas por estratégia de defesa, não havendo que tomar em linha de conta qualquer invalidade que implicasse a impossibilidade de aplicação de qualquer medida de coacção que não o termo de identidade e residência, como pretende o recorrente.
8.-O quadro que o Mmo. JIC. teve pela frente foi a traficância do recorrente, que manipulou a arguida SC para a mesma actividade, e que levou ambos à prática de um crime de tráfico de estupefacientes, pp no art. 21.°, n. 1, do DL 15/93, de 22 de Janeiro.
9.-O Tribunal a quo considerou que o Direito Penal protege bens jurídicos, que a saúde pública é um bem jurídico primordial, e que no caso a ultima ratio das medidas de coacção tinha de ser aplicada, sopesadas as exigências cautelares para afastar o perigo de continuação da actividade criminosa, sendo certo que a medida de coacção de prisão preventiva era a adequada no caso, tendo a liberdade do indivíduo de ceder em face da segurança da sociedade, que é posta em causa com o crime grave indiciado e com a possibilidade de o mesmo ser repetido pelo recorrente.
10.-Foram assim acertados o despacho do Mmo. JIC. que vedou, por despacho irrecorrível, a consulta sem reserva dos autos em segredo de justiça e de elementos de prova indicados na promoção para l.° interrogatório judicial, por constatar o perigo para a investigação e a necessidade de aplicação de medida de coacção grave, e a decisão de aplicar a medida de coacção de prisão preventiva, por se perspectivar a provável continuação da actividade criminosa e a possibilidade de condenação do arguido em pena de prisão efectiva; pelo que a decisão recorrida não foi abusiva nem desfasada da prova, antes considerou com clareza que inexistia qualquer invalidade e que o crime em causa era grave, impondo as exigências cautelares a aplicação ao recorrente da medida de coacção de prisão preventiva.
11.-Resulta por isso do exposto que o Tribunal a quo não subavaliou a aplicação dos artigos que o recorrente pretende como violados, e que a medida de coacção de prisão preventiva é adequada e a proporcional, a fim de assegurar as exigências cautelares que o comportamento criminoso, e com risco de continuação por banda do ora recorrente impõe.
12.-Ora entende-se que a decisão recorrida não violou as disposições invocadas pelo recorrente, ao sobrepor o segredo de justiça ao interesse do arguido em obstar à investigação futura com o conhecimento do conteúdo dos elementos de prova indicados; e foi considerado o interesse colectivo da segurança da colectividade, que ficou protegida, ao bem individual/aplicação de medida de coacção grave ao arguido, pois só assim ficou dirimido o conflito resultante dos riscos criados pela actividade criminosa.
Ou seja, o Mmo. Juiz de Instrução Criminal, inexistindo os vícios processuais pretendidos pelo recorrente, subsumiu a realidade (exigências cautelares) ao direito (medidas de coacção), afastando a possibilidade de aplicação de outras medidas de coacção e maximalizou, justamente, o princípio do direito à segurança dos cidadãos, sem qualquer violação de princípios ou normas.

Remetido o processo a este Tribunal da Relação, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, o Exmo. Sr. Procurador da República limitou-se a colocar visto.

Colhidos os vistos legais e realizada a conferência prevista no art. 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre decidir.

II–FUNDAMENTAÇÃO
 
2.1.-DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E IDENTIFICAÇÃO DAS QUESTÕES A DECIDIR:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de  apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410º nº 2 do mesmo diploma, quando a decisão recorrida seja uma sentença ou um acórdão;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
De acordo com este iter sequencial, no confronto com as conclusões, as questões a apreciar, no presente recurso, são:
Saber se a decisão de indeferimento de consulta pelo arguido dos elementos de prova apresentados pelo Mº. Pº. aquando do primeiro interrogatório judicial de arguido detido é nula, por falta de fundamentação e por violação do disposto no art. 194º nºs 7 e 8, em virtude de não se verificar nenhuma das excepções em que assenta o segredo de justiça;
Se o despacho que aplicou a medida de coacção de prisão preventiva é nulo por falta de fundamentação, em violação do disposto no artigo 97° n° 5 e 194° n°s 8 e 6° al. b) do Código de Processo Penal;
Se devem ser julgadas inconstitucionais:
a.- Por violação do disposto nos artigos 20°, n.° 4, e 32°, n.°s 1, 5 e 7 da Constituição da Republica Portuguesa, a interpretação dos artigos 194°, n.° 7 e n.° 6, al. b) e artigo 141°, n.° 4, al. e) do Código de Processo Penal, segundo a qual, para efeitos de aplicação de medida de coação mais gravosa que o TIR, a aceção das palavras comunicar/comunicação limitar-se-á no seu elemento literal, isto é, bastará a mera enunciação do leque probatório existente para sustentar a indiciação do arguido, não incluindo, assim, a devida consulta ou explicitação por parte do Juiz de Instrução do seu teor; e
b.- por violação do disposto nos artigos 20°, n.° 4, e 32°, n.°s 1, 5 e 7 da Constituição da Republica Portuguesa, a interpretação dos artigos 194°, n.° 7 e n.° 6, al. b) do Código de Processo Penal, segundo a qual, para efeitos de aplicação de medida de coação mais gravosa que o TIR, a expressão sem prejuízo do disposto na al. b) do n.° 6 do artigo 194°, não permite ao Julgador, verificadas aquelas situações, não comunicar ou permitir a consulta dos elementos de prova e ainda assim, proferir Despacho de aplicação de medida de coação assente nos mesmos.

2.2.–FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Para a apreciação do mérito do recurso, importa considerar a seguinte factualidade:
Este inquérito nº 196/23.3JAPDL iniciou-se com a detenção da arguida SC, no dia  13 de Fevereiro de 2023, pelas 01:10 horas, após apreensão, no aeroporto de Ponta Delgada, de 184 placas de canabis-resina, vulgo haxixe, com o peso de 18.365 gramas, que a mesma transportava numa mala, em voo TP1865 proveniente de Lisboa, mala essa destinada a ser entregue ao arguido GM, que a aguardava na Rua ..... ....., n.º..., em Ponta Delgada, e que fugiu ao detectar a presença da polícia (participação com a referência Citius 5031529);
Assim e por se mostrar indiciada a prática pelo referido GM dos crimes de tráfico estupefacientes, agravado, p. e p. pelo art. 21.º, n. 1, e 24.º, al. c), do DL 15/93, de 22 de Janeiro, e do crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 28.º, n. 2, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, o Mº. Pº. ordenou a realização de revista e busca, nos termos dos arts. 174.º, n. 1, e n.º 2, 175.º e 176.º, todos do Código de Processo Penal, ao denunciado GM – que será constituído arguido - e a veículos de sua propriedade ou por si usados ou conduzidos pelo mesmo ou à sua ordem (despacho do Mº. Pº. de 13.02.2023, com a referência Citius 54703897);
Nesse mesmo dia, o Mº. Pº. decidiu o seguinte (transcrição parcial):
Contra a arguida SC e o denunciado GM militam indícios da prática de um crime de tráfico estupefacientes, agravado, pp no art. 21.º, n. 1, e 24.º, al. c), do DL 15/93, de 22 de Janeiro, e de um crime de adesão a associação criminosa, previsto e punido pelo art. 28.º, n. 2, do mesmo diploma.
A arguida e o denunciado tiveram um modus operandi dissimulado, fazendo tráfico de estupefacientes com contacto cuidadoso com os outros traficantes de produtos estupefacientes, e o denunciado ia receber dezenas de placas de canabis-resina, não fora a intervenção policial.
Há a realizar diversas diligências, para descortinar o paradeiro do denunciado GM e tentar descobrir o fornecedor do produto estupefaciente em Portugal continental.
As diligências a realizar ganham com a aplicação do segredo de justiça, a fim de evitar que a arguida, o denunciado ou terceiros tenham acesso ao inquérito com o conhecimento dos passos do Ministério Público / Órgãos de Polícia Criminal; o que se determina, nos termos do art. 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Ao Mmo. J.I.C., para validação, nos termos da parte final do n.º 3 do art. 86.º do Código de Processo Penal (referência Citius 54706048);
Por despacho proferido em 13 de Fevereiro de 2023, a Mma. JIC proferiu a seguinte decisão (transcrição parcial):
Considerando a natureza e gravidade do crime em investigação – tráfico de estupefacientes, agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n. 1, e 24.º, al. c), do DL 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-C, e de um crime de adesão a associação criminosa, p. e p.e pelo artigo 28.º, n. 2, do mesmo diploma legal, entendemos que é de toda a conveniência que o inquérito se mantenha sob segredo de justiça, tal como determinado pelo Ministério Público, pelo que valido essa decisão (Referência Citius 54709105);
Em Primeiro Interrogatório de Arguido Detido realizado em 28 de Abril de 2023, foi imposta ao arguido GM, a medida de coacção de prisão preventiva, com fundamento na existência de fortes indícios da prática, pelo mesmo, de um crime de tráfico de substâncias estupefacientes, p. e p. pelo arts 21º  do D.L. 15/93 de 22.01, bem assim, na existência de perigo de fuga e de continuação da actividade criminosa (Auto de Primeiro Interrogatório Judicial de Arguido Detido com a referência Citius 55143813, no processo principal);
Os factos indiciados são os seguintes:
A)O arguido GM, de natural de Cabo Verde e da mesma nacionalidade, sem residência certa em Portugal por força do tráfico de estupefacientes a que se dedica, integra-se num grupo criminoso com outros indivíduos com ligações a Cabo Verde, que se dedica ao tráfico de canabis-resina, designadamente, entre Portugal continental e S. Miguel, pelo menos desde o início de 2022 a Abril de 2023.
B)Para não serem apanhados em flagrante delito de tráfico de estupefacientes, o arguido e os outros elementos abordavam raparigas também naturais de Cabo Verde às quais propunham o transporte de malas com quilos de canabis-resina, vulgo haxixe, em viagens aéreas de Lisboa para S. Miguel, com contrapartidas económicas de receberem cerca de mil euros por cada viagem, e sendo os bilhetes de avião e despesas de alojamento custeadas pelo grupo criminoso.
C)Assim o arguido GM, tendo sido colega de liceu, na zona de Lisboa, da ora arguida SC, quando a encontrou, no início de 2022, numa festa, logo idealizou usá-la para o transporte de malas com haxixe, pelo que lhe começou a telefonar para a convencer a fazer a viagem.
D)Como a arguida SC mostrasse receio em fazer a viagem, o arguido GM propôs-lhe fazer uma viagem de avião de Lisboa para Ponta Delgada, sem qualquer mala com droga, para conhecer o percurso e contactar com outro elemento do grupo, que estava em Ponta Delgada e que lhe ia explicar o que tinha de fazer.
E)A arguida SC aceitou, e cerca de 20 de Junho de 2022 o arguido GM levou a arguida para o aeroporto de Lisboa, e a arguida viajou de Lisboa para Ponta Delgada, sem qualquer custo para a arguida; em Ponta Delgada foi contactada pelo indivíduo conhecido do arguido GM, que este dizia que queria ser tratado apenas como "tio”, sem outro nome, o qual lhe explicou que só tinha de trazer a mala, ficar uma noite em Ponta Delgada em qualquer residencial e no dia seguinte voltava, na posse de mil euros; este "tio” deu-lhe o bilhete de regresso, via telemóvel, pela aplicação “Signal”, e a arguida SC regressou a Lisboa.
F)O arguido GM continuou a insistir com a arguida para esta fazer a viagem já transportando droga, mas como a arguida se negasse o arguido GM disse para ela falar com amigas, para o mesmo efeito; e assim conseguiu raparigas de Cabo Verde que aceitaram transportar droga para o grupo, entre Lisboa e S. Miguel.
G)Como a ora arguida teve conhecimento de tal situação, contactou as suas conhecidas para pararem com aquela actividade, por ser perigoso, o que chegou aos ouvidos do grupo; e assim em Outubro de 2022 a arguida, quando chegava a casa, de madrugada, foi agredida por um estranho, que a socou na boca, partindo-lhe um dente, indo-se embora sem mais, ou seja sem qualquer intuito de roubo ou outro; o que deixou a arguida atemorizada.
H)O arguido GM continuou a telefonar para a arguida SC, designadamente pelo telemóvel 93......., para a usar como correio de droga para S. Miguel, e esta teve receio do que lhe sucederia se negasse, pelo que aceitou; o arguido GM informou então que no dia 12 de Fevereiro de 2023, ao fim da tarde, ia uma rapariga à casa da arguida, para a levar ao aeroporto de Lisboa, com uma mala; o arguido enviou o bilhete de avião à arguida pela aplicação Signal, pelo telemóvel 93…..
I)A arguida foi então transportada pela desconhecida, num veículo ligeiro de passageiros, até ao aeroporto; a rapariga acompanhou-a até ao check-in sempre a transportar uma mala de porão, e foi a mesma que a colocou no tapete para aferir o peso; após o que acompanhou a arguida até à porta de embarque. Entretanto a arguida tinha recebido uma mensagem do arguido GM, pelo telemóvel 93…, a informar que a morada para a entrega da mala era na Rua …., em Ponta Delgada.
J)A arguida viajou assim de Lisboa para Ponta Delgada, no dia 12 de Fevereiro de 2023, com a mala de porão que o arguido GM lhe mandou entregar, mas chegada a Ponta Delgada, pelas 23:40 horas, estava em curso uma ação de fiscalização e prevenção no Aeroporto João Paulo II pela Polícia Judiciária de Ponta Delgada, que visionava os passageiros junto à recolha das bagagens de porão do voo TP1865, proveniente do Aeroporto Humberto Delgado - Lisboa.
K)A arguida chamou a atenção pela sua postura inquieta, pelas 23h50 daquele dia, junto ao tapete de recolha de bagagem; quando levantou a mala de porão que o arguido GM lhe fez entregar, uma mala de cor castanha, tipo troley, foi abordada pela polícia.
L)Foi então realizada uma revista à referida bagagem de porão, tendo-se detectado e apreendido oito embalagens envoltas em plástico de cor preta contendo no seu interior 184 placas de canabis-resina, vulgo haxixe, com o peso total de 18.365 gramas.
M)Foram ainda apreendidos à arguida: um IPhone da marca Apple, modelo “XR”, contendo no seu interior um cartão SIM, bem como foram apreendidos uma etiqueta correspondente ao voo TP1865, com o registo n° …., respeitante ao passageiro …., destino LIS / PDL, ticket; uma mala, tipo trólei, da marca “Suitcase”, de cor acastanhada; uma camisola da marca “Quechua”, cor de rosa; uma meias-calças, cor rosa claro; duas capas/mantas de cor preta.
N)A arguida acompanhou a polícia ao local de entrega do produto estupefaciente, na Rua …. , em Ponta Delgada, não sabendo que o arguido GM estava em Ponta Delgada, pelo que lhe ligou a dizer que já estava na rua indicada, com a mala, e que tinha dificuldade em encontrar a casa.
O)O arguido surgiu então, surpreendentemente, naquela rua …, tendo saído para fora de casa e dirigiu-se para a arguida SC, para a ajudar com a mala; mas quando lhe pegou e verificou que estava leve, não tendo o peso do haxixe, logo fugiu, a correr, para parte incerta, apesar das ordens de paragem dos polícias que estavam a vigiar o local.
P)Aquele domicílio do arguido GM foi alvo de busca, tendo sido apreendidas 356,60 gramas de produto estupefaciente MDMA e 1810 euros em dinheiro derivado do tráfico de estupefacientes, para além de documentos comprovativos da sua residência ocasional no local, designadamente um contrato de arrendamento; mas o arguido manteve-se escondido em locais incertos de S. Miguel, até que foi localizado na Canada …. , em S. Roque, Ponta Delgada.
Q)Esta nova residência do arguido GM foi alvo de busca, sendo encontrado e apreendido: em revista ao arguido, um telemóvel da marca Samsung, modelo Galaxy A04s, de cor preta, contendo inserido um cartão SIM da operadora Vodafone; na busca, um telemóvel da marca Apple, modelo iPhone 12, de cor azul, com o qual o arguido contactava a arguida SC; um cartão SIM da operadora NOS, que se encontrava no interior do telemóvel da marca Apple atrás referido; um telemóvel da marca Nokia, modelo 105, de cor cinzenta, e respetiva caixa de origem; outro cartão SIM da operadora Vodafone, que se encontrava no interior do telemóvel da marca Nokia atrás referido; uma caixa de cartão correspondente a um telemóvel da marca Samsung Galaxy A04S; uma embalagem de papel da operadora Vodafone; uma embalagem de papel da operadora NOS, correspondente ao cartão SIM com o número 93…; uma embalagem de papel da operadora Vodafone, correspondente ao cartão SIM com o número 91…; e 965 euros em notas, provenientes do negócio de tráfico de estupefacientes.
R)O denunciado GM actuou voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei penal, sabendo as qualidades estupefacientes das drogas que fez transitar, com intuito de obter elevado lucro, pela arguida e por outrem, através de grupo organizado para a prática concertada de crimes de tráfico de estupefacientes, previsto e punido no art. 21.°, n. 1, do DL 15/93, drogas que o arguido ia receber para outra traficância posterior; mais conhecia as qualidades estupefacientes da substância que detinha no seu domicílio da Rua …., em Ponta Delgada.
Com base bestes factos, foi considerada indiciada a prática pelo arguido GM de um crime de tráfico estupefacientes, p. e p. no art. 21° nº 1 do DL 15/93, de 22 de Janeiro (Auto de Primeiro Interrogatório Judicial de Arguido Detido com a referência Citius 55143813, no processo principal);
Os meios de prova em que se alicerçou o juízo indiciário tendo por objecto os referidos factos e cuja natureza foi dada a conhecer ao arguido, aquando da realização do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, foram os seguintes:
Auto de notícia e de detenção de fls. 2 a 7
Termo de abertura de bagagem de fls. 8
Auto de diligência policial de fls. 9 a 14;
Ficha de registo automóvel de fls. 15;
Identificação do arguido na carta de condução, fls. 16;
Auto de pesagem e despistagem de fls. 18;
Auto de revista e apreensão de fls. 19 a 20;
Talão de registo de bagagem, fls. 21;
Termo de consentimento para visualização de telemóvel de fls. 22;
Dados extraídos do telemóvel da arguida, fls. 23 a 27;
Exame da bagagem de fls. 33 a 51;
Apreensão de produto estupefaciente MDMA, e 1840 euros em dinheiro, na casa habitada pelo arguido no centro de Ponta Delgada;
Declarações da arguida SC no 1.° interrogatório judicial;
Auto de busca e apreensão na casa da Rua …. em Ponta Delgada, fls. 152/61;
Auto de pesagem e despistagem de fls. 162;
Fotografia do produto estupefaciente encontrado nesta casa do arguido, fls. 163;
Inquirição de fls. 164/6;
Interrogatório de fls. 210 a 213;
Exame do telemóvel da arguida, fls. 210 a 220;
Reserva do bilhete de avião da arguida, fls. 221, com referência ao arguido GM; Informação do SEF quanto às moradas do arguido GM, fls. 234 /5;
Auto de revista e apreensão ao arguido GM, fls. 668;
Auto de busca e apreensão ao domicílio do arguido na Canada …., 796, S. Roque, Ponta Delgada, fls. 669/72.
SA, inspector da Polícia Judiciária de Ponta Delgada, id. a fls. 02.
BS, inspector da Polícia Judiciária de Ponta Delgada, id. a fls. 09;
MR, Inspector da Polícia Judiciária de Ponta Delgada, id. a fls. 660 (Auto de Primeiro Interrogatório Judicial de Arguido Detido com a referência Citius 55143813, no processo principal);
No decurso do mesmo primeiro interrogatório judicial, o Ilustre Defensor do arguido requereu, além do mais, o levantamento do segredo de justiça quanto a todos os meios de prova indicados pelo Ministério Público, e possibilidade de os consultar, incluindo o auto de busca domiciliária na residência na Canada …., São Roque, Ponta Delgada (Auto de Primeiro Interrogatório Judicial de Arguido Detido com a referência Citius 55143813, no processo principal);
Tal pretensão foi parcialmente indeferida nos seguintes termos:
O despacho é no sentido de à primeira questão suscitada, que de certa forma entronca na segunda, mas foi adiantado pela defesa, numa presunção de que a busca teria sido efetuada em período noturno, a presunção decorre da sistematização e da contextualização dos factos, embora neles não se refira se foi em período noturno ou em período diurno, certo é que, tendo em conta a posição do Ministério Público quanto à segunda questão nada obsta à comunicação deste dado de facto, a busca foi realizada no dia 15 de fevereiro, às 09:30 horas, conforme consta expressamente do auto de busca e apreensão a fls. 152 e seguintes, no dia 15.02.2023, com início às 09:30 e com hora de fim às 10:30, portanto não se verificam, não se coloca os pressupostos de facto e a questão de direito que foi ora sinalizada pelo arguido e que determinaria, na sua perspetiva qualquer vício processual por falta de verificação deste pressuposto de facto. A questão está assente. Quanto à segunda questão, o Ministério Público, que é o dominus do processo, requereu a sujeição do processo a segredo de justiça, o que foi deferido na altura, e esse segredo de justiça mantém-se. O arguido pretende o levantamento do segredo de justiça relativamente aos elementos do processo que foram elencados no despacho, no requerimento do Ministério Público e que já foram comunicados ao arguido, tendo o Ministério Público oposto. Determina o art.° 86°, 5 que em situações de requerimento e de não aceitação por parte do Ministério Público que os autos são remetidos ao juiz de instrução para decisão por despacho irrecorrível. Ora esta remessa dos autos, esta tabela está pensada para efeitos do processo correr no inquérito e portanto daí a remessa, falar em remessa. Nesta situação não há lugar a remessa porque o processo já está aqui no juízo de instrução criminal por referência à aplicação de eventual medida de coação para além do TIR já prestado no âmbito do interrogatório judicial, portanto, tem que ser interpretado no sentido de ser a decisão do juiz de instrução criminal, nesta sede, que está sendo convocada. E, neste caso, acompanho o entendimento do Ministério Público relativamente aos fundamentos aduzidos acrescentando ainda que os elementos do processo, que constam de forma clara e discriminada do requerimento, o próprio art.° 141°, n.° 4., al. e) permite que não haja a comunicação destes elementos nas situações ali previstas e o Ministério Público nada se referiu a esse respeito, portanto, logo aqui não houve qualquer restrição na questão da comunicação dos elementos que estão ali elencados, relativamente ao conteúdo dos mesmo isso sim prendem-se com os atos processuais que os mesmos espelham e portanto, estando processo sujeito a segredo de justiça e sendo esta uma dimensão importante no sentido do segredo de justiça interno relativamente aquilo que consubstancia esses elementos então, nesse caso, portanto, acompanho o entendimento e determino que os autos se mantenham sujeitos a segredo de justiça não havendo lugar a tal comunicação. Exceção feita, ao auto de busca e apreensão relativamente ao que o Ministério Público, neste particular, e atentos os fundamentos invocados pela defesa considerou determinar só nesta parte que seja excecionado o segredo de justiça e portanto, quanto a isso, nada obsta e estamos a referir ao auto de busca e apreensão de fls. 669 e 670 e portanto, nesta parte e apenas nesta parte...
- Sr. Procurador, ….: “Apenas na parte inicial Mmo. Juiz para comprovar o consentimento (impercetível) que o Sr. Dr. está a por em causa (impercetível)".
- Ilustre mandatário do arguido, Sr. Dr. ….: “ ponho em causa que haja consentimento. ”
- Mmo. Juiz de Instrução, Sr. Dr. …: “ A regularidade do consentimento.”
- Ilustre mandatário do arguido, Sr. Dr. …: “Eu queria avaliar...”
- Mmo. Juiz de Instrução, Sr. Dr. ….: “Sr. procurador é aqui, será?”
- Sr. Procurador, Sr. Dr. …..: (impercetível)
- Mmo. Juiz de Instrução, Sr. Dr. …: “e a menção de que (impercetível) a obtenção do consentimento que se iniciou ... portanto... Sr. Dr. se me permite para ser mais fácil porque ... portanto no despacho faça menção de que o que consta de fls. 669 e 670 relativamente à assinatura do arguido e dos senhores inspetores, portanto linhas 1, 2, 3, 4, 5, 6, as últimas 6 linhas, e fls. 669, portanto,. assinatura do arguido e dos senhores inspetores no final do auto e fls. 669 até indicado. Pronto Sr. Dr. é isto.”
- Ilustre mandatário do arguido, Sr. Dr. ….: “O que é que eu posso dizer Sr Dr. ? Esta ou a outra parte?”
- Mmo. Juiz de Instrução, Sr. Dr. ….: “Até aqui e a assinatura do arguido...”
(impercetível)
- Ilustre mandatário do arguido, Sr. Dr. …: Dr. eu vou ao ponto de dizer eu já vi o quê, eu queria perceber se tinha sido manuscrito tal como indicia que foi escrito antes da busca começar ou se teria sido datilografado o que seria impossível. Já percebi, já percebi Sr Dr."
- Mmo. Juiz de Instrução, Sr. Dr. ….: “Muito bem.”
- Ilustre mandatário do arguido, Sr. Dr. …..: “ Obrigada.”
- Mmo. Juiz de Instrução, Sr. Dr. ….: “Muito bem. Sr. Dr. Na sequência desta consulta há algo que queira...? Nada”. Muito bem resolvidas estas questões, Sr. GM se não me falha a memória, Sr GM pode então colocar-se de pé novamente... (Auto de Primeiro Interrogatório Judicial de Arguido Detido com a referência Citius 55143813, no processo principal e auto de transcrição com a referência Citius 55682134);

A decisão proferida no primeiro interrogatório judicial de arguido detido que impôs a medida de coacção de prisão preventiva ao arguido recorrente tem o seguinte teor (transcrição):
I.–Quanto à detenção do arguido, foi a mesma levada a efeito fora de flagrante delito por determinação do Ministério Público, que invocou o perigo de fuga e o perigo de continuação da atividade criminosa, estando o despacho devidamente fundamentado (fls. 586), e consentindo o indicado crime de tráfico de estupefacientes a prisão preventiva, conforme é pressuposto daquela decisão [art.° 202°/ 1/ a) e c) com reporte ao art. 1°/ m), ambos do Código de Processo Penal (CPP)]. Pelo exposto, nos termos e ao abrigo do disposto nos arts. 254°/ 1/ a) e 2, 257°/ 1/ b), com referência ao art. 204°/ a) e c), todos do CPP, e tendo sido respeitado o prazo de apresentação a interrogatório judicial a que alude a primeira indicada disposição legal, valido a detenção.
II.–Relativamente aos factos, tenho por indiciada toda a factualidade narrada pelo Ministério Público no requerimento que antecede, que aqui tenho por reproduzida, atenta a solidez dos elementos do processo também indicados e devidamente comunicados ao arguido (elementos este nos quais - e somente nos quais -assenta a presente decisão, em estrita obediência e sem que, por isso, haja violação, do disposto no art. 194°/ 7, por referência ao art. 141°/ 4/ e), ambos do CPP, ainda que, por força do segredo de justiça, o concreto conteúdo de tais elementos não tenha sido disponibilizado ao arguido, para consulta, conforme o despacho proferido nesta diligencia), para os quais remeto, salientando, sobretudo mas não exclusivamente, a objetividade decorrente dos (ali elencados) dados extraídos do telemóvel da arguida, do documento de reserva da passagem aérea feita com os dados do arguido, do comportamento deste quando do encontro com aquela (presenciado pelo OPC) e subsequente fuga, das substâncias e valores que, nessa ocasião, detinha na sua então residência, e do período de tempo decorrido até à sua detenção noutro local no dia de anteontem. Dúvidas não restam, pois, ainda que indiciariamente como é próprio desta fase do processo, de todo o descrito envolvimento do arguido no transporte da substância estupefaciente adquirida à arguida e, bem assim, da natureza e quantidade daquelas que guardava na sua residência. Trata-se de forte (fortíssima) indiciação. De contrário, considero que a indiciação da remanescente factualidade atinente à inserção/ adesão em/ a grupo criminoso (ainda que esteja integrado numa rede) não se me afigura forte (ou, pelo menos, com o mesmo grau de força que, normativamente, possa determinar a forte indiciação), por que assente, apenas, nas declarações da arguida e, por presunção, naqueloutros aludidos factos (e elementos), aliado ao montante em numerário e aos vários telemóveis que também detinha quando da detenção (não se alcançando qual a razão no contexto da declarada ocupação de distribuição alimentar), desarrimado de qualquer outro elemento direcionado ao alegado grupo criminoso (no meu entendimento e atento o principio da legalidade, a “colaboração” com a organização ou associação criminosas prevista na norma incriminadora referenciada pelo Ministério Público terá de ser outra que não meramente coincidente com a prática dos factos integradores do tráfico de estupefacientes que, assim mesmo, é pressuposto da intenção de tal organização/ associação). Tenho assim por fortemente indiciado, apenas, o crime de crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21°/ 1 do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de janeiro (Lei da Droga), no que concerne à qualificação jurídica dos factos. Não considero indiciado por ora, a correspondente gravação a que alude a al. c) do art. 24° do mesmo DL, por ausência de factos que possam permitir a conclusão de que o arguido “obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória” (de resto, factualmente não quantificada).
III.–Quanto às necessidades cautelares que se fazem sentir, tenho por verificado, em primeira linha, o objetivo, sério e evidente concreto da continuação da atividade criminosa concernente à traficância, resultante diretamente da gravidade dos factos, quer vista pela perspetiva da moldura abstrata do crime desta natureza (trata-se de um ilícito que se inscreve no conceito normativo jurídico-processual de criminalidade altamente organizada), quer pela da sua concretude e do seu contexto, espelhado nos factos, numa atividade continuada e, recentemente, assumindo o arguido, intensa, arrojada e conluiadamente com a arguida, a atividade - ao que tudo indica numa posição do "tabuleiro”, se não superior, pelo menos idêntica, à posição do "correio de droga" -, no trânsito, transporte e perspetivada entrega e/ ou negociação de produtos estupefacientes nesta comunidade insular e geograficamente circunscrita, com fortíssima incidência do fenómeno, não podendo aquele deixar de conhecer os contornos e a dimensão do seu papel na cadeia e o respetivo efeito disseminador a jusante, refletindo objetivamente o maior desvalor da respetiva ação pela afetação mais intensa e grave da saúde de um elevado número de potenciais adquirentes, assinalando, por isso, elevados graus de culpa e de ilicitude dentro das hipóteses cogitáveis previstas pela norma incriminadora do art. 21°/ 1 da cit. Lei da Droga. Acresce a detenção de 356,60 gramas de MDMA, numa atividade paralela àqueloutra envolvendo a arguida. Num tal quadro, é de prever que virá a ser aplicada ao arguido uma pena de prisão efetiva em sede de julgamento (mesmo desconhecendo, de momento se terá, ou não, antecedentes criminais, posto que não localizo nos autos o certificado do registo criminal), Ademais, também acompanho o entendimento do Ministério Público no sentido do elevado perigo de fuga, aliás, já assinalado na circunstância descrita no ponto O) e de aquele ter sido localizado, quase mês e meio depois, noutra residência e em poder de dinheiro e de vários meios de comunicação. Num tal quadro de fortíssimas exigências cautelares, e tendo presente a elevada gravidade dos factos e a pena prognosticável, considero que, na linha do promovido, apenas a medida de coação de prisão preventiva se mostra capaz de assegurar as fortíssimas exigências cautelares, em obediência ao princípio da subsidiariedade consagrado pelo art. 193°/ 2 do CPP e por que absolutamente necessária, adequada e proporcional, em detrimento de qualquer outra, ainda que detentiva da liberdade em sentido estrito de obrigação de permanência na habitação, ainda que sujeita a meios técnicos de controlo à distância, pois a atividade, com os apontados contornos, é suscetível de continuar a ser desenvolvida em casa, local, aliás, onde tinha o centro de operações na recolha da mala da arguida e na detenção de MDMA, sendo certo que não se coadunaria minimamente com o perigo de fuga, sendo-lhe fácil a mobilidade, pois, nesse cenário, poderia desautorizadamente ausentar-se do local e voltar a ludibriar as autoridades nacionais, ao que acresce poder regressar à terra natal de Cabo Verde.
IV.–Em face do exposto, nos termos e ao abrigo do disposto nos arts. 191°/ 1, 193°/ 1, 2 e 3, 194°/ 1, 4, 6 e 7, 202°/ 1/ a) e c) por referência ao art. 1°/ m), e 204°/ a) e c), todos do CPP, determino que o arguido GM aguarde os ulteriores termos do processo sujeito à seguinte medida de coação, para além do TIR. já prestado: prisão preventiva.
Comunique ao Tribunal de Execução de Penas.
Passe os mandados de condução ao Estabelecimento Prisional Regional de Ponta Delgada. Cumpra o disposto no art. 194°/ 10 do CPP.
Atualize a lista de presos deste Juízo e alarme o reexame dos pressupostos da medida de coação privativa da liberdade.
Oportunamente devolva os autos ao DIAP.
Notifique (Auto de Primeiro Interrogatório Judicial de Arguido Detido com a referência Citius 55143813, no processo principal).

3.–APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO

Nas conclusões segunda a sétima do recurso, o recorrente acusa a decisão de indeferimento da consulta dos meios probatórios carreados aos autos, no momento da realização do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, de falta de fundamentação, ao não ponderar a colisão entre o seu direito de construir uma defesa completa e a prossecução dos interesses da investigação.
Tal despacho, constituindo um acto decisório do juiz, tem necessariamente de ser fundamentado, o que significa que nele devem ser especificados os motivos de facto e de direito determinantes da decisão de indeferimento da pretensão formulada pelo arguido, por forma a permitir a sua impugnação e o controle jurisdicional da sua legalidade pela instância de recurso, tal como decorre do disposto no artigo 97º nº 1 al. b) e nº 5 do Código de Processo Penal e do art. 205º da CRP.
Porém, como em matéria de nulidades, o sistema processual penal estabelece entre outros princípios, o da legalidade, enunciado no nº 1 do art. 118º e dele resulta que a violação ou a inobservância das disposições da lei de processo penal só determina a nulidade, quando esta for expressamente cominada na lei, exemplificando o art. 119º algumas nulidades insanáveis e exemplificando o art. 120º as que são sanáveis, assim como o princípio da irregularidade de todos os restantes actos praticados contra a lei, tal falta de fundamentação só como irregularidade poderia ser qualificada, na medida em que em nenhuma das normas que integram o CPP lhe está cominada a sanção da nulidade.
E, a existir, já estaria sanada.
Isto, porque, tendo o despacho por ela eventualmente afectado sido proferido em diligência processual à qual o arguido assistiu, para poder operar os seus efeitos e ser agora conhecida e apreciada em sede de recurso, deveria ter sido arguida até ao final do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, de acordo com o preceituado no art. 123º nº 1 do CPP.
Como tal não aconteceu, improcede esta parte do recurso.
Em todo o caso, sempre se dirá que o despacho tem fundamentação: o motivo do indeferimento da consulta pelo arguido de todos os meios de prova em que se alicerçou o juízo de indiciação foi o facto de o processo se encontrar em regime de segredo de justiça, nos termos do art. 86º nº 3 do CPP, conforme despachos do Mº. Pº e do JIC de 13 de Fevereiro de 2023, com as referências Citius 54706048 e 54709105.
Não existe, pois, qualquer nulidade ou irregularidade por falta de fundamentação.
O outro argumento em que o recorrente alicerça a nulidade deste despacho, é a violação do disposto no artigo 194° n° 8 do Código de Processo Penal.
Nos termos desta disposição legal, o arguido e o seu defensor podem consultar os elementos do processo determinantes da aplicação da medida de coação ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, durante o interrogatório judicial e no prazo previsto para a interposição de recurso.
Esta é uma regra geral, que sofre, porém, uma excepção: a que consta da previsão da al. b) do nº 6 do mesmo art. 194º do CPP.
Nos termos deste nº 6 al. b) do art. 194º, a enunciação dos elementos probatórios do processo que indiciam os factos imputados deve integrar a fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, é imperativa e é condição essencial da validade e eficácia de tal decisão, mas apenas se a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, não impossibilitar a descoberta da verdade ou não criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime.
Em linha de coerência com este regime, também o art. 141º do CPP que rege sobre o iter sequencial dos actos e formalidades a praticar e a observar no primeiro interrogatório judicial de arguido detido e dos requisitos de forma e de conteúdo do auto correspondente, estabelece, no seu nº 1 e no seu nº 4 als. a) a e), os deveres de informação circunstanciada ao arguido acerca dos motivos da detenção, dos factos que lhe são concretamente imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, modo e lugar e dos elementos probatórios constantes do processo que indiciam os factos imputados, que o JIC tem de cumprir.
Todavia, tal como o art. 194º nº 6 al. b), aquele art. 141º nº 4 al. e) condiciona a possibilidade de comunicação dos resultados obtidos com as diligências de investigação à inexistência de risco para a obtenção e conservação dos meios de prova, bem como à ausência de obstáculos à descoberta da verdade, ou de perigos para a vida, a integridade física ou psíquica ou para a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime, que possam resultar dessa comunicação, «ficando todas as informações, à excepção das previstas na alínea a), a constar do auto de interrogatório».
Ora, estas normas dos arts. 194º nº 6 al. b) e 141º nº 4 al. e) do CPP contêm uma regulamentação específica em matéria de aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial e materializam a necessidade de balanceamento entre os fins de natureza e ordem pública inerentes à realização da justiça penal e à procura da verdade material e as garantias do processo justo e equitativo, com especial enfoque para as garantias de defesa do arguido, mais especificamente, o direito ao contraditório, assim como os tais direitos fundamentais de carácter individual destinados a assegurar a liberdade, a privacidade e segurança de todos os intervenientes no processo.
Isto, num contexto histórico e legislativo em que a natureza secreta do processo penal durante a fase do inquérito era o regime regra, o que aconteceu até à entrada em vigor da Lei 48/2007 de 29 de Agosto, só após se tendo convertido em excepção, para o CPP (embora para a Constituição continue a ser a regra, como parece resultar dos termos do artigo 32º nº 5 da CRP, ao prever que só há contraditório no julgamento e nos actos instrutórios que a lei determinar. «(…) Isto é, segundo a Constituição em vigor, a lei não tem que determinar os actos instrutórios que não estão subordinados ao princípio do contraditório (e a publicidade interna), mas antes o inverso», no que parece ser a consagração do segredo interno na fase preparatória do processo, como regra, sendo a  publicidade interna a determinar pela lei, a excepção - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à Luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª ed., Lisboa, 2011, p. 262). 
O princípio do secretismo do inquérito então vigente postulava a constatação de que uma proibição genérica e absoluta de acesso aos autos, sempre e em quaisquer circunstâncias, envolveria a violação dos princípios do contraditório e do acesso aos tribunais, não se garantindo ao réu todas as garantias de defesa reconhecidas quer pelo artigo 6.º da CEDH (cfr. acórdãos Lamy v. Bélgica, de 30 de Março de 1989, série A, nº 151, pp. 16-17, § 29, et Nikolova v. Bulgária [GC], nº 31195/96, § 58, CEDH 1999‑II, Imbrioscia v. Suiça, de 24 de Novembro de 1993, Série A, nº 275, p. 13, § 36 e os acórdãos dos casos Lietzow v. Alemanha, Garcia Alva v. Alemanha e Schöps v. Alemanha, todos de 13 de Fevereiro de 2001, in www.echr.coe.int), quer pelo artigo 32º nºs 1 e 5 da Constituição Portuguesa (Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 121/97 e 416/2003  in http://www.tribunalconstitcional.pt), concretamente, na dimensão que assume no processo penal, tanto para a acusação como para a defesa, quanto à possibilidade de tomar conhecimento dos argumentos de facto e de direito aduzidos e dos meios de prova produzidos ou apresentados pela outra parte e aos poderes processuais de os discutir e rebater, com outros argumentos e com outros meios de prova.
«Relativamente aos actos jurisdicionais atinentes à aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial importa que sejam públicos e que o arguido tenha efectivamente meios de se defender, o que passa pelo conhecimento das provas contra ele carreadas», na medida em que «uma medida de coacção representa sempre a restrição da liberdade do arguido e por isso só na impossibilidade ou em circunstâncias verdadeiramente excepcionais deve ser aplicada sem que antes se tenha dado a possibilidade ao arguido de se defender, ilidindo ou enfraquecendo a prova dos pressupostos que a podem legitimar», tratando de uma limitação do direito do arguido à informação atentatória dos direitos de defesa consagrados no art. 32º nº 1 da Constituição (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III vol., 2.ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 101 e II volume da mesma obra, edição de 1993, pág. 223. No mesmo sentido, Menezes, Leitão, O segredo de justiça em processo penal, Estudos Comemorativos do 150.º Aniversário do Tribunal da Boa-Hora, Ministério da Justiça, Lisboa, 1995, págs. 228-229 e Assunção Esteves, A jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa ao segredo de justiça, em O Processo Penal em Revisão – Comunicações, Universidade Autónoma de Lisboa, Lisboa, 1998, págs. 123-131).
Ainda assim, «não se trata de afirmar o acesso irrestrito do arguido a todo o inquérito, mas apenas aos específicos elementos probatórios que foram determinantes para a imputação dos factos, para a ordem de detenção e para a proposta de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva. Ora, relativamente a estes específicos elementos de prova é constitucionalmente intolerável, como se decidiu no Acórdão n.º 121/97, que se considere sempre e em quaisquer circunstâncias interdito esse acesso, com alegação de potencial prejuízo para a investigação, protegida pelo segredo de justiça, sem que se proceda, em concreto, a uma análise do conteúdo desses elementos de prova e à ponderação, também em concreto, entre, por um lado, o prejuízo que a sua revelação possa causar à investigação e, por outro lado, o prejuízo que a sua ocultação possa causar à defesa do arguido (…).
«(…) Tendo a protecção do segredo de justiça a mesma intensidade na fase de interrogatório do arguido e na fase de recurso do decretamento da prisão preventiva, a admissibilidade do seu afastamento quando tal for necessário para assegurar o direito de defesa do arguido deve valer nas duas fases. Não faria, de facto, sentido que se reconhecesse o direito do arguido de acesso a elementos probatórios necessários para interpor recurso visando corrigir eventual erro da decisão que decretou a prisão preventiva e não se lhe facultasse esse acesso num momento em que poderia evitar o cometimento desse erro, argumentando junto do juiz de instrução, no decurso do seu interrogatório, no sentido da inconsistência das provas que fundamentam a imputação dos crimes» (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 416/2003  in http://www.tribunalconstitcional.pt).
Por isso, foram julgadas inconstitucionais «as normas conjugadas dos arts. 86º, nº 1, e 89º, nº 2, do Código de Processo Penal, na interpretação delas feita pela decisão recorrida, segundo a qual o juiz de instrução não pode autorizar, em caso algum e fora das situações tipificadas nesta última norma, o advogado do arguido a consultar o processo na fase de inquérito para poder impugnar a medida de coacção de prisão preventiva que foi aplicada ao arguido, por violação das disposições conjugadas dos arts. 20º, nº1, e 32º, nºs. 1 e 5, da Constituição» (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 121/97, in http://www.tribunalconstitcional.pt).
Por isso foi também julgada inconstitucional, por violação dos artigos 28.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP, a norma do n.º 4 do artigo 141.º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que, no decurso do interrogatório de arguido detido, a “exposição dos factos que lhe são imputados” pode ser feita sem comunicação ao arguido dos elementos de prova que sustentam aquelas imputações e sem a apreciação em concreto da existência de inconveniente grave naquela concretização e na comunicação dos específicos elementos probatórios em que se sustentam as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram os factos que integram a prática dos crimes imputados (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 416/2003 in http://www.tribunalconstitcional.pt).
Vigorando no presente, a regra da publicidade do inquérito, a interpretação que pode e deve retirar-se, quer do teor literal das normas contidas no art. 141º nº 4 al. e) e no art. 194º nº 6 al. b), quer da unidade do sistema, nos termos do art. 9º do CC, a partir das circunstâncias em que a lei foi elaborada e das condições específicas do tempo em que é aplicada, é a de que, o carácter predominantemente secreto da fase do inquérito não deverá constituir um obstáculo intransponível ao acesso pelo arguido aos elementos de prova sempre que tal acesso se mostre necessário para a eficácia da defesa dos seus direitos nessa fase, designadamente para contraditar – e, sendo caso, impugnar – a necessidade da aplicação de medidas de coacção, nomeadamente a sujeição a prisão preventiva.
Em contrapartida, mesmo nos inquéritos públicos se, em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido ou noutro tipo de audição prévia do arguido para efeitos de aplicação de medida de coacção ou de garantia patrimonial, feita a análise do conteúdo de cada um dos elementos de prova já disponíveis no processo em que se fundamenta a indiciação dos crimes em investigação e face à ponderação, também em concreto, entre o prejuízo que a sua revelação possa causar à investigação e o prejuízo que a sua ocultação possa causar à defesa do arguido, as garantias de defesa do arguido podem ceder perante o interesse da investigação, se se verificarem riscos de comprometimento desta, ou de criação de entraves à descoberta da verdade ou os perigos para a vida, a integridade física ou psíquica ou para a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime.
Trata-se, pois, de uma regulamentação específica, expressamente pensada para os actos processuais que envolvem a aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial, com ou sem segredo de justiça decretado, mas com suficiente flexibilidade para se harmonizar com ele e garantir o tal equilíbrio entre os diversos interesses em potencial confronto.
 Ora, lendo o auto de primeiro interrogatório judicial de arguido detido realizado no âmbito deste processo em 28 de Abril de 2023, nem sequer se vislumbra que tenha sido omitida a enunciação dos meios de prova e de obtenção de prova que serviram de fundamento aos indícios factuais dos crimes imputados ao arguido recorrente.
Muito pelo contrário, eles surgem enumerados logo a seguir à descrição do acervo factual indiciado, à sua qualificação jurídica como crime de tráfico de estupefacientes.
Com efeito, está expressamente exarado no auto de primeiro interrogatório judicial de arguido detido que as provas que servem de fundamento à indiciação do arguido pelo crime de tráfico de estupefacientes, com base nos factos ali também descritos são: Auto de notícia e de detenção de fls. 2 a 7; Termo de abertura de bagagem de fls. 8; Auto de diligência policial de fls. 9 a 14; Ficha de registo automóvel de fls. 15; Identificação do arguido na carta de condução, fls. 16; Auto de pesagem e despistagem de fls. 18; Auto de revista e apreensão de fls. 19 a 20; Talão de registo de bagagem, fls. 21; Termo de consentimento para visualização de telemóvel de fls. 22; Dados extraídos do telemóvel da arguida, fls. 23 a 27; Exame da bagagem de fls. 33 a 51; Apreensão de produto estupefaciente MDMA, e 1840 euros em dinheiro, na casa habitada pelo arguido no centro de Ponta Delgada; Declarações da arguida SC no 1.° interrogatório judicial; Auto de busca e apreensão na casa da Rua …., em Ponta Delgada, fls. 152/61; Auto de pesagem e despistagem de fls. 162; Fotografia do produto estupefaciente encontrado nesta casa do arguido, fls. 163; Inquirição de fls. 164/6; Interrogatório de fls. 210 a 213; Exame do telemóvel da arguida, fls. 210 a 220; Reserva do bilhete de avião da arguida, fls. 221, com referência ao arguido GM; Informação do SEF quanto às moradas do arguido GM, fls. 234 /5; Auto de revista e apreensão ao arguido GM, fls. 668; Auto de busca e apreensão ao domicílio do arguido na Canada …..  S. Roque, Ponta Delgada, fls. 669/72, e os depoimentos das testemunhas SA, inspector da Polícia Judiciária de Ponta Delgada, id. a fls. 02, BS, inspector da Polícia Judiciária de Ponta Delgada, id. a fls. 09 e MR, Inspector da Polícia Judiciária de Ponta Delgada, id. a fls. 660
Nem sequer é verdadeira a afirmação feita no recurso de que a prisão preventiva foi aplicada com base em indícios assentes em elementos de prova, cujo teor persiste totalmente desconhecido do arguido.
O arguido esteve presente aquando da realização da busca à sua própria residência e teve acesso, facultado pelo JIC, através do seu Defensor, ao conteúdo do auto respectivo, tal como das apreensões e correspondentes autos que, nessa sequência, foram levadas a cabo, de resto, como também está documentado no auto de primeiro interrogatório judicial de arguido detido.
E estes, em bom rigor, serão determinantes da sua detenção e subsequente constituição como arguido, embora não tenha sido só neles que se alicerçou a imputação do crime de tráfico de substâncias estupefacientes, como facilmente se intuí da enumeração desses meios de prova e da leitura das circunstâncias de facto descritas no auto de interrogatório judicial de 28 de Abril de 2023.
No que concerne a todos os restantes elementos probatórios acima enumerados cujo conteúdo foi interditado ao arguido no despacho recorrido, a questão é, por conseguinte, a de saber como interpretar o termo «enunciação dos elementos do processo» de que fala o citado art. 194º nº 6 al. b) do CPP.
«Enunciação» não é o mesmo que «reprodução» integral ou parcial do conteúdo dos meios de prova ou de obtenção de prova de que emergem os indícios dos crimes em investigação, já que a primeira se circunscreve à identificação das espécies de provas produzidas – buscas, apreensões, escutas, reconhecimentos pessoais, prova por documentos, por testemunhas ou por declarações – no processo em concreto e a segunda implica dar a conhecer ao arguido toda a informação obtida através de cada um desses meios de prova ou de obtenção de prova.
Se a mera informação e enunciação dos elementos do processo indiciadores dos factos imputados pode não dar origem a qualquer perigo para a eficácia da investigação, para a descoberta da verdade ou para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos intervenientes processuais ou das vítimas do crime, o mesmo pode já não acontecer, se for facultado ao arguido a consulta e, portanto, o conhecimento do conteúdo desses elementos.
Nesse caso, o juiz de instrução não deve autorizar a consulta desses elementos probatórios, mesmo que os tenha comunicado ao arguido.
«Será ainda compatível com o novo regime legal a decisão do juiz de instrução que, no decurso do interrogatório ou posteriormente no prazo para a interposição do recurso e com fundamento em algum dos perigos elencados na alínea b) do art. 194.º-4 [actualmente, 6], nega ao arguido o acesso aos autos por ele requerido para consulta dos elementos do processo determinantes da aplicação da medida de coacção, apesar de antes, na inquirição ou no despacho de aplicação da medida, lhe ter enunciado esses elementos» (Nuno Brandão, Revista do CEJ, 1º Semestre 2008, nº 9 (Especial), Jornadas sobre a revisão do Código de Processo Penal, pág. 87 e ss.).
Com efeito, nos inquéritos que se encontrem em segredo de justiça, o regime especial de consulta dos elementos do processo previsto no nº 8 do art. 194º do C. Processo Penal não está sujeito à disciplina prevista no art. 89º nº 1 e 2 do mesmo código.
De acordo com o disposto no art. 194º nº 8 do CPP, o juiz de instrução pode não autorizar a consulta, no prazo para a interposição do recurso da decisão que aplicou a prisão preventiva, de certos elementos do processo determinantes da aplicação da medida, mesmo que os tenha feito constar da enunciação que integra a fundamentação do despacho, quando entenda estar verificado algum dos perigos previstos na alínea b) do nº 6 do mesmo artigo (Ac. da Relação de Coimbra de 05.02.2014, proc. 174/13.0GAVZL-A.C2, Ac. da Relação de Porto de 14.05.2014, proc. 422/14.0JAPRT-B.P1 e Decisão Sumária da Relação de Lisboa de 24.10.2018, proc. 324/14.0TELSB-BS.L1-3, in http://www.dgsi.pt).
Pelas mesmas razões e face a regra semelhante inserta no art. 141º nº 4 al. e) do CPP, o JIC não está obrigado a informar o arguido do conteúdo integral de todos e cada um dos meios de prova, nem a permitir-lhe o acesso a tais conteúdos se tal comunicação puser «em causa a investigação, não dificultar a descoberta da verdade nem criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime».
Foi precisamente o que aconteceu, no caso vertente: o Mmo. Juiz de Instrução Criminal seleccionou de entre as provas já coligidas, aquelas que lhe pareceu que poderiam ser mostradas sem risco de prejuízos para a eficácia da investigação.
Além disso, o arguido foi expressamente informado de todas as concretas provas até então produzidas, sendo possível através da enunciação que consta do auto de interrogatório realizado no dia 28 de Abril de 2023 perceber com toda a clareza que espécies de meios de prova e de meios de obtenção de prova foram os fundamentos dos indícios.
Por conseguinte, também não existe a nulidade invocada com fundamento da violação do disposto no art. 194º nº 8 do CPP.
Em todo o caso, sempre se acrescentará que as exigências contidas nas conclusões 22 a 25 do recurso, especialmente nesta última, de que «para além de simplesmente comunicar ao arguido a existência de elementos de prova, ter-lhe-ia de ter sido, pelo menos, explicado concreta e individualmente o seu conteúdo pelo Juiz de Instrução», é completamente irrealista e inexequível.
Desde logo, porque ultrapassaria largamente o âmbito dos deveres de informação impostos ao JIC pelos arts. 194º nºs 7 e 8 e 141º nº 4 do CPP, até mesmo quando a comunicação deva ser feita sem as restrições previstas nos arts. 194º nº al. 6 al b) e 141º nº 4 al. e) do CPP, sob pena de reduzir o JIC à condição de leitor interminável de autos de inquirição, de apreensão, de busca, de documentos, relatórios periciais, etc., impondo-lhe uma sucessão de actos inúteis e ilícitos, nos termos do art. 130º do CPC ex vi do art. 4º do CPP, que além de proibidos, tornariam excessiva e irrazoavelmente morosa uma diligência judicial que é urgente e que deve, pelo menos, ter início no prazo máximo de 48 horas, após a detenção e de preferência, nesse mesmo período temporal, finalizar com a situação jurídico-processual do arguido definida, quanto à situação em que ficará a aguardar os ulteriores termos do processo, dada a premência em impedir a concretização dos perigos previstos no art. 204° do CPP, no caso das medidas de coacção, com excepção do TIR, e em impedir a dissipação de bens, quando esteja em causa a aplicação de medidas de garantia patrimonial.
A reivindicação contida naquela conclusão 25 quanto ao modo como deve ser cumprido o dever de comunicação ao arguido pelo JIC em matéria de elementos de prova inviabilizaria o princípio da celeridade processual que é também umas das vertentes do processo justo e equitativo, como se o exercício do direito ao contraditório fosse um direito absoluto, ademais, numa fase do processo em que o que predomina é o princípio da investigação, de resto, como espelhado no próprio art. 32º nº 5 da CRP ao estabelecer a estrutura acusatória do processo penal e ao restringir o princípio do contraditório, quando em fases processuais que não a da discussão e julgamento da causa (na qual, efectivamente, se assume como primordial) «aos actos instrutórios que a lei determinar».
Quanto aos argumentos expendidos nas conclusões 8 a 21 do recurso, para concluir que «da factualidade recolhida não se extraem razões capazes de preencher as excepções legalmente determinadas para que ao arguido lhe seja limitado o seu direito de defesa, na vertente do direito à consulta dos elementos de prova que sustentam os factos indiciariamente imputados, pelo que, por violação dos artigos 194° n° 8 e n° 6 al. b) do Código de Processo Penal, o despacho que indeferiu a consulta dos elementos prova padece de nulidade», trata-se de meras afirmações especulativas, conjecturas e proclamações que, por muito pertinentes que possam ser à vontade que o arguido tem de ver e saber de toda a informação que consta daqueles meios de prova, não muda em nada a constatação de que o despacho que indeferiu o seu pedido de consulta integral dos meios de prova não violou qualquer dispositivo legal, portanto, não é nulo, até porque enumerou os concretos meios de prova já disponíveis, em que se fundamentou o juízo de indiciação formulado pelo JIC.
Diga-se, de resto, que foi no segredo de justiça que o despacho recorrido que indeferiu a consulta de todos os meios de prova, com excepção dos autos de busca domiciliária e apreensão, se fundamentou para justificar a tomada de posição do Mmo. JIC.  
No caso vertente, o Mº. Pº. decidiu, em 13 de Fevereiro de 2023, nos termos previstos no art. 86º nº 3 do CPP, decretar o segredo de justiça, porque «a arguida e o denunciado tiveram um modus operandi dissimulado, fazendo tráfico de estupefacientes com contacto cuidadoso com os outros traficantes de produtos estupefacientes, e o denunciado ia receber dezenas de placas de canabis-resina, não fora a intervenção policial.
«Há a realizar diversas diligências, para descortinar o paradeiro do denunciado GM e tentar descobrir o fornecedor do produto estupefaciente em Portugal continental». 
Esta decisão foi validada pelo Mmo. JIC, por despacho proferido no mesmo dia, conforme referências Citius 54706048 e 54709105. 
Como é sabido, a decisão de validação por parte do JIC do segredo de justiça decretado pelo Mº. Pº. não a converte num acto decisório do JIC, nem retira ao Mº. Pº. a autoria dessa decisão, na sua condição de titular da acção penal e de Magistratura que tem o domínio e a estratégia da investigação, limitando-se a intervenção do JIC, nessa validação, ao controle jurisdicional da decisão, de harmonia com o sistema garantístico do processo penal, em que o JIC deve assumir-se como um Juiz dos direitos, liberdades e garantias.
E numa fase tão inicial da investigação como aquela que estava em curso, aquando da prolação da decisão recorrida, é incontornável o peso que a natureza dos crimes a investigar e os seus concretos modos de execução têm de ter numa tal decisão, segundo as informações já obtidas e as que se antevê que falta obter e se afiguram essenciais.
É preciso não esquecer que o crime de tráfico de estupefacientes corresponde ao conceito de «criminalidade altamente organizada» a que se refere a al. m) do art. 1º do CPP, relativamente ao qual o segredo de justiça é, em regra, o regime que melhor permite preservar a eficácia da investigação e a segurança das pessoas, em virtude de, em função das especificidades da sua consumação, a revelação da investigação por crimes de tal natureza estar associada a uma probabilidade real de manipulação da prova ou mesmo da obstrução à acção dos órgãos de polícia criminal e bem assim à criação de perigo para a vida, integridade física ou psíquica ou para a liberdade dos participantes processuais, através de ameaças e diversas outras formas de intimidação ou de manipulação das testemunhas do crime.
Este é o crime que foi imputado ao arguido, naquele primeiro interrogatório judicial de arguido detido, pelo que, tendo em atenção o que a experiência comum revela acerca das teias de cumplicidades e encobrimentos que se estabelecem entre os agentes dos crimes de tráfico de estupefacientes, a fase ainda muito inicial e incipiente da investigação, a própria circunstância invocada pelo arguido de que conhece a coarguida desde a adolescência de ambos, também ilustrada nos factos indiciados em C), a circunstância de cerca de dois meses antes da data em que o arguido recorrente foi detido, ter sido decretado pelo Mº. Pº. e validado pelo JIC a submissão do presente inquérito ao regime do segredo de justiça, a necessidade de obter mais informações que podem implicar outras pessoas, impõe-se concluir pelo acerto da decisão proferida em 28 de Abril de 2023 que indeferiu a consulta pelo arguido dos meios de prova enumerados no auto de interrogatório judicial de arguido detido.
Na conclusão 28, o arguido veio suscitar a nulidade do despacho que aplicou a prisão preventiva, com fundamento na inobservância do disposto no art. 194º nº 7 do CPP.
De harmonia com os direitos que integram o estatuto de arguido de estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito e de ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte, previstos no art. 61º nº 1 als. a) e b) do CPP, os quais são, por seu turno, uma emanação do princípio do contraditório, na vertente do «direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência executiva no desenvolvimento do processo» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, 1993, Coimbra, p. 206).
Ora, o arguido detido que não deva ser julgado de imediato, deverá ser interrogado pelo juiz de instrução, no prazo máximo de 48 horas após a detenção.
Se no acto do primeiro interrogatório resultar a necessidade de aplicar medidas de coacção, designadamente a prisão preventiva, devem estas ser imediatamente impostas, após decisão nesse sentido, conforme imposto pelo artigo 194º nº 4 do CPP.
Sobre a tramitação do primeiro interrogatório judicial de arguido detido rege o artigo 141º do CPP.
Nos termos deste art. 141º, o juiz de instrução, para além do dever de informar o detido dos seus direitos, deve dar-lhe conhecimento dos motivos da detenção; dos factos que lhe são concretamente imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo; dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser em causa a investigação, não dificultar a descoberta da verdade nem criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime, devendo todas essas informações ficar a constar do auto de interrogatório.
Por seu turno, o Ministério Público e o defensor podem suscitar pedidos de esclarecimento sobre as respostas dadas pelo arguido e podem ainda requerer ao juiz que formule as perguntas que entendam relevantes para a descoberta da verdade [nºs 4, alíneas a) a d), e 6].
No que se refere à aplicação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial, com excepção do termo de identidade e residência, o CPP estabelece de forma minuciosa, que tal aplicação é sempre precedida de audição do arguido, podendo ter lugar no acto do primeiro interrogatório judicial.
O despacho que aplica aquelas medidas tem de ser fundamentado, sob pena de nulidade, com a descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que for possível, as circunstâncias de tempo, lugar e modo; com a enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade, ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime; com a referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os indicados no artigo 193.º, destinados a dar cumprimento às exigências de necessidade, adequação e proporcionalidade de cada uma das medidas, e os indicados no artigo 204.º, que se referem aos pressupostos de fuga ou perigo de fuga; ao perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ao perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
Acresce que não podem ser considerados para a aplicação da medida quaisquer factos ou elementos do processo que não tenham sido comunicados ao arguido durante a audição, com ressalva dos perigos acima enunciados. E mais: o arguido e seu defensor podem consultar os elementos do processo determinantes da aplicação da medida durante o interrogatório judicial e no prazo previsto para a interposição do recurso, segundo as disposições legais contidas no art. 194º nºs 3, 4, alíneas a) a d), 5 e 6.
E o nº 7 do citado art. 194º do CPP, ainda e sempre, em concretização do contraditório e das garantias de defesa proíbe a aplicação ao arguido de medida de coação ou de garantia patrimonial diversa do termo de identidade e residência, com fundamento em quaisquer factos ou elementos do processo que não lhe tenham sido comunicados durante a audição a que se refere o nº 4, o que bem se compreende, dado o impacto que a aplicação de medidas de coacção diversas do TIR, têm ou podem ter na liberdade individual do arguido, especialmente, tratando-se de prisão preventiva, reivindicando, por isso mesmo, uma intensificação das garantias de defesa e do exercício do contraditório numa fase do processo que, por assim dizer, não é o ambiente natural dessas garantias, posto que é na fase da discussão e julgamento da causa que o contraditório assume o seu máximo expoente, de resto como expressamente assumido no próprio texto do art. 32º nº 5 da Constituição e concretizado no art. 327º do CPP.
O recorrente coloca o enfoque desta proibição contida no art. 194º nº 7, na inobservância dos deveres de comunicação sobre o conteúdo dos meios de prova em que assentou o juízo acerca dos indícios factuais do crime imputado, o que vale por dizer, que esta nulidade tinha como antecedente lógico ou pressuposto a nulidade da decisão que interditou ao arguido a consulta dos meios de prova enumerados no auto de primeiro interrogatório judicial realizado em 28 de Abril de 2023.
Como se referiu, merece total concordância a decisão que indeferiu a consulta generalizada e irrestrita do processo ao arguido, por se verificarem, em face da natureza do crime indiciado, das vicissitudes concretas da sua execução e da fase em que a investigação se encontra, um risco sério de compromisso da investigação e de risco para a liberdade e segurança de pessoas que possam vir a ser testemunhas.
Ademais, foi feita a enumeração dos meios de prova, com referências concretas que permitem inclusive, identificar as testemunhas já inquiridas e perceber, em linhas gerais que actividade probatória foi desenvolvida e respectivos resultados em termos de espécies de provas obtidas, cumpre as exigências de comunicação feitas nos arts. 141º nºs 1 e 4 e no art. 194º nº 7 do CPP.
Por conseguinte, não pode sequer dizer-se, ao contrário do que o recorrente pretende, que a decisão que lhe aplicou a prisão preventiva assentou em factos ou em elementos probatórios que não foram previamente comunicados ao arguido.
Logo, não foi cometida nulidade alguma.
Improcede, pois, o recurso, também nesta parte. 
Resta assim apreciar as inconstitucionalidades invocadas.
Segundo o que consta das conclusões 29 e 30, essas inconstitucionalidades, são as seguintes:
Por violação do disposto nos artigos 20°, n.° 4, e 32°, n.°s 1, 5 e 7 da Constituição da República Portuguesa, a interpretação dos artigos 194°, n.° 7 e n.° 6, al. b) e artigo 141°, n.° 4, al. e) do Código de Processo Penal,  segundo a qual, para efeitos de aplicação de medida de coação mais gravosa que o TIR, a aceção das palavras comunicar/comunicação limitar-se-á no seu elemento literal, isto é, bastará a mera enunciação do leque probatório existente para sustentar a indiciação do arguido, não incluindo, assim, a devida consulta ou explicitação por parte do Juiz de Instrução do seu teor.
Por violação do disposto nos artigos 20° n° 4, e 32°, n.°s 1, 5 e 7 da Constituição da Republica Portuguesa, a interpretação dos artigos 194°, n.° 7 e n.° 6, al. b) do Código de Processo Penal, segundo a qual, para efeitos de aplicação de medida de coação mais gravosa que o TIR, a expressão sem prejuízo do disposto na al. b) do n.° 6 do artigo 194°, não permite ao Julgador, verificadas aquelas situações, não comunicar ou permitir a consulta dos elementos de prova e ainda assim, proferir despacho de aplicação de medida de coação assente nos mesmos.
O art. 32º nº 7 da CRP refere-se aos poderes de intervenção no processo penal reconhecidos ao ofendido, pelo que não tem qualquer pertinência para o desfecho do presente recurso.
No termos do art. 20º nº 4 da CRP, todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo. 
A garantia constitucional do acesso a um processo justo e equitativo densifica-se em várias regras de que se destacam o direito à igualdade de armas e de tratamento, no processo, sendo proibidas todas as diferenças de tratamento arbitrárias; a proibição da indefesa e o direito ao contraditório, traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e direito, oferecer provas, controlar a admissibilidade e a produção das provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras e, em geral, em condições de igualdade e ao longo de todo o processo, influenciarem as decisões a proferir, quanto aos factos e quanto à aplicação do direito, por forma a que nenhuma decisão seja tomada pelo tribunal sem prévia possibilidade de os intervenientes no processo a discutirem, contestarem e valorarem, o direito a prazos razoáveis de acção e de recurso, sendo proibidos os prazos de caducidade demasiado exíguos; o direito à fundamentação das decisões; o direito à decisão em prazo razoável; o direito de conhecimento dos dados do processo; o direito à prova e o direito a um processo orientado para a prossecução da justiça material (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, pág. 415 e 416, do vol. I, da 4.ª edição, da Coimbra Editora. No mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa, «A jurisprudência constitucional portuguesa e o direito processual civil», XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra Editora, 2008, p. 72; Guilherme Fonseca, «A defesa dos direitos - princípio geral da tutela jurisdicional dos direitos fundamentais», Boletim do Ministério da Justiça, n.º 344, 1985, p. 38; Lopes do Rego, «Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil», Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, 2003, p. 835 e Lopes do Rego, «Acesso ao direito e aos tribunais», Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Aequitas, 1993, p. 44; id., «O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil», Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol. i, pp. 745 e 747; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 353/2008, 301/2009, 286/2011, 350/2012, 90/2013, 778/2014, 510/2015, 193/2016, 251/2017 e 675/2018, in https://www.tribunalconstitucional.pt).
«Não é inteiramente líquido o âmbito normativo-constitucional do principio do contraditório. Relativamente aos destinatários, ele significa: (a) dever e direito de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão; (b) direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afetados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efetiva no desenvolvimento do processo; (c) em particular, direito do arguido de intervir no processo, e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe designadamente que ele seja o último a intervir no processo; d) proibição por crime diferente do da acusação, sem o arguido ter podido contraditar os respetivos fundamentos» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao citado artigo 32.º Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, pp. 522-523).
Toda a análise sobre as inconstitucionalidades invocadas pelo recorrente abstrai ou pretende alhear-se de uma circunstância fundamental: a de que, independentemente, de as normas contidas nos arts. 141º e 194º do CPP instituírem regras especiais, entre outras, em matéria de deveres de informação e de oportunidades de defesa e de contraditório, há todo um contexto de sujeição do processo ao regime do segredo de justiça que não pode nem dever ser ignorado.
A propósito do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, o art. 20º nº 3 da Constituição da República Portuguesa estabelece que é a lei que define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.
O segredo de justiça tutela vários bens jurídicos:
De forma mais directa, interesses de natureza e ordem pública como é o caso da eficácia e da integridade da investigação criminal e do exercício da ação penal, no âmbito da função do Estado de garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios processuais penais próprios do Estado de direito democrático (presunção de inocência do arguido, garantia dos direitos de defesa do arguido, princípio do inquisitório ou da investigação criminal, respeito pelos direitos de terceiro, verdade material, celeridade processual, embora não vigore apenas na jurisdição penal);
De forma mais indirecta, os direitos individuais à segurança e liberdade individual, à honra, ao bom-nome e à reserva da vida privada e familiar, não só do arguido, mas também das vítimas e até das próprias testemunhas.
O «(…) segredo de justiça não tem apenas em vista o processo penal e, nele, a proteção da eficácia da investigação e da honra do arguido. A questão da proteção do segredo de justiça assume alcance mais vasto, tutelando outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, como a reserva da vida privada e familiar (…). Sem dúvida que o artigo 20º, nº3, constitui credencial constitucional suficiente para introdução de limitações ou restrições a outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, como seja a liberdade de expressão e informação. Mas para além disto, cabe ao legislador concretizar o âmbito e os limites do segredo de justiça, através de uma ponderação sujeita ao controlo da constitucionalidade – dos vários direitos e interesses dignos de tutela e, potencialmente conflituantes. Concretamente no âmbito particularmente sensível do processo penal, não pode a lei ignorar as garantias de defesa do arguido e a efetividade do direito de recorrer das medidas privativas da liberdade» (Jorge Miranda Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, pág. 204 e 205).
«Ao constitucionalizar o segredo de justiça, a Constituição ergue-o à qualidade de bem constitucional, o qual poderá justificar o balanceamento com outros bens ou direitos ou, até, a restrição dos mesmos (investigações jornalísticas de crimes, publicidade do processo, direito ao conhecimento do processo por parte de interessados), mas não deve servir para contradizer o exercício dos direitos de defesa (cfr. Acórdão do TC nº 121/97)». J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª Edição, Coimbra Editora, pág. 414).
Poderá, assim, afirmar-se que os interesses protegidos pelo segredo de justiça da incluem a proteção da investigação (tutela jurisdicional efectiva e prossecução de justiça); as garantias de defesa do arguido (tutela jurisdicional efectiva e dignidade da pessoa humana); a presunção de inocência (dignidade da pessoa humana); a protecção dos interesses do ofendido (tutela jurisdicional efectiva); a reserva da vida privada (dignidade da pessoa humana); a proteção de testemunhas (dignidade da pessoa humana, tutela jurisdicional efetiva e reserva da vida privada) (Inês Ferreira Leite, «Segredo ou Publicidade? A tentação de Kafka na Investigação Criminal Portuguesa», RMP, nº 124, Ano 31, Out-Dez 2012, 24 e sgs.).
O «segredo de justiça é uma medida necessária numa sociedade democrática para proteger o direito à honra e à presunção de inocência dos investigados, manter a autoridade e a imparcialidade das autoridades judiciárias e permitir uma perseguição eficiente do crime exatamente neste sentido, o recente acórdão do TEDH no caso Tourancheau et July v. França, na sequência da prevalência do segredo de justiça sobre a liberdade de imprensa afirmada no princípio sexto da recomendação (2003) 13 do Comité de Ministros de Conselho de Europa)» (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4ª Edição, Universidade Católica Editora, pág. 254).
«Na (…) temática do segredo de justiça em processo penal, confluem finalidades irremediavelmente conflituantes que o legislador deve procurar harmonizar, na medida do possível, através duma compressão dos direitos em conflito, proporcionalmente distribuída.
«De um lado, alinham-se a garantia de uma investigação da notícia do crime que não corra o risco de ser perturbada, ou mesmo irremediavelmente prejudicada, por fatores anómalos, como forma de realização da justiça e da descoberta da verdade material; a proteção da presunção de inocência do arguido, que é também uma forma de lhe garantir o direito ao bom nome e reputação; a segurança e tranquilidade das vítimas, testemunhas e seus familiares, expostas a retaliações e ameaças; e ainda a proteção da reserva da vida privada de todos aqueles que são mencionados no processo.
«Do outro lado, avultam a necessidade de transparência do exercício do poder judicial, como característica essencial de um Estado democrático, que permita o seu controlo popular e garanta a sua independência e imparcialidade; o direito de defesa do arguido, cujo exercício efetivo exige o conhecimento do processo; o direito de acesso à informação contida nos autos pelos cidadãos em geral e pela comunicação social; e ainda o direito de informar da comunicação social, enquanto liberdade de expressão qualificada.
«Tendo em consideração as consequências resultantes da sujeição de um processo penal ao regime do segredo de justiça acima descritas, a sua determinação com fundamento em que o conhecimento das diligências de investigação pelo suspeito ou por terceiros coloca em causa os interesses da investigação, nomeadamente a definição da responsabilidade criminal, o apuramento dos fatos e a obtenção de provas, implica afetações negativas do direito de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição), do direito de acesso à informação dos cidadãos (artigo 37.º, n.º 1, da Constituição), do direito de acesso às fontes pelos jornalistas (artigo 38.º, n.º 2, b), da Constituição) e da liberdade de expressão, na dimensão da liberdade de imprensa (artigos 37.º, n.º 1, e 38.º, n.º 2, alínea a), da Constituição) (vide, sobre a afetação destes direitos pelo regime do segredo de justiça, Paulo Dá Mesquita, em “O segredo do inquérito penal – uma leitura jurídico constitucional”, separata do vol. XIV, tomo 2, de “Direito e Justiça”)» (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 653/2022, in http://www.tribunalconstitucional.pt).
A qualificação do segredo de justiça como um «bem constitucionalmente protegido acarreta, por um lado, uma limitação da margem de livre conformação do legislador ordinário, que deixa de poder suprimir tal segredo e fica vinculado a dar lhe um mínimo de efetividade/operatividade. Por outro lado, os potenciais conflitos do segredo de justiça com outros bens constitucionais dever-se-ão resolver, não sacrificando o primeiro aos últimos, mas obtendo a máxima harmonização prática possível entre eles» (Nuno Piçarra, O Inquérito Parlamentar e os seus Modelos Constitucionais, Coimbra, 2004, p. 689).
O equilíbrio entre a salvaguarda dos direitos individuais à reserva da intimidade da vida privada e familiar e a necessidade de descobrir a verdade material e realizar de forma eficaz a justiça penal, para poder legitimar a proibição de acesso a certos elementos do processo terá de ser encontrado sob o crivo do princípio constitucional da proporcionalidade, nos termos do art. 18º nº 2 da CRP, como sempre acontece quando se trata da introduzir restrições a direitos fundamentais.
Não obstante a panóplia de bens jurídicos que tutela e a sua estreita conexão com princípios constitucionais e com direitos, liberdades e garantias, comuns a todos os cidadãos e ainda com as garantias de defesa consagradas em processo penal e outros princípios processuais penais de consagração constitucional, a regra é, depois da revisão do CPP de 2007, a da publicidade do processo, sendo o segredo de justiça a excepção.
Com efeito, o art. 86º do CPP, anuncia no seu nº 1 que o processo penal é público sob pena de nulidade, regulando nos números seguintes as condições em que o processo poderá ser secreto.
Por isso, o segredo de justiça só é admissível nas seguintes situações:
Quando o arguido, o assistente ou o ofendido requererem ao Juiz de Instrução a sujeição do inquérito ao segredo de justiça, por entenderem que a publicidade prejudica os seus direitos, segundo a previsão do nº 2 e o Juiz de Instrução, ouvido o Ministério Público, assim o decidir, por despacho irrecorrível;
Quando, nos termos do nº 3, o Ministério Público, entendendo que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, determina a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, e o Juiz de Instrução, no prazo máximo de 72 horas, valida a decisão do Ministério Público (nº 3 do art. 86º), que foi o que aconteceu, no presente processo, no dia 13 de Fevereiro de 2023.
Esteja ou não esteja decretado o segredo de justiça, por força do regime previsto no art. 89º nºs 1 e 2 do CPP, que regulamenta o acesso aos autos na fase de inquérito, é permitido ao arguido, ao assistente, ao ofendido, ao lesado e ao responsável civil consultar o processo ou elementos deles constantes, bem como obter extractos, cópias e certidões, mediante requerimento nesse sentido.
Porém, estando o processo em segredo de justiça, o Ministério Público pode opor-se a essa consulta, «por considerar, fundadamente, que pode prejudicar a investigação ou os direitos dos participantes processuais ou das vítimas», caso em que o requerimento é presente ao juiz, que decide por despacho irrecorrível.
Ao dispor no art. 20º nº 3 que a lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça, a Constituição atribuiu ao legislador ordinário competências para definir os diversos conteúdos do segredo de justiça e para regular os termos e condições em que a protecção do segredo de justiça deve ser assegurada.
A única exigência do legislador constitucional é a de que o regime jurídico do segredo de justiça garanta uma protecção adequada, o que envolve a constatação de que o segredo de justiça não é um valor em si mesmo, logo, não pode ser desligado da sua vocação funcional e também não poderá ser imposto, se não for apto a prosseguir as finalidades para que está concebido.
Por conseguinte, nem o segredo de justiça é um direito absoluto, nem o interesse do arguido no acesso total e irrestrito ao processo e à prova para ele carreada, na sua fase preliminar de investigação, pode ser legalmente admitido, se a concretização do seu direito de defesa tiver de ser feita à custa da perda da eficácia da investigação, colocando em crise a descoberta da verdade material ou os interesses pessoais dignos de tutela referentes aos arguidos, suspeitos, testemunhas, vítimas, que são visados pelo segredo de justiça.
É, em última instância, o princípio da proporcionalidade (desdobrado nos três sub-princípios: «princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos.» - Ac. do TC nº 634/93, em http://www.tribunalconstitucional.pt), que há-de esclarecer sobre se, em caso de conflito, o esforço de concordância prática será conseguido com a imposição de restrições ao segredo de justiça, instituindo momentos processuais de não segredo durante o inquérito, ou com uma maior compressão das garantias de defesa do arguido, no exercício do direito ao contraditório e no que se refere ao tratamento processual igualitário ou equiparado àquele que é reconhecido pelo CPP ao Mº. Pº.
Só uma limitação excessiva que realmente obstaculize ou condicione de forma importante as possibilidades de defesa e de contraditório ao arguido conduzirá a resultados contrários à Constituição.
«(…) A necessidade de uma condução eficaz dos inquéritos penais (…) pode implicar que uma parte das informações recolhidas durante essas investigações devam ser mantidas secretas a fim de impedir os suspeitos de alterar as provas e de prejudicar a boa administração da justiça. No entanto, este objectivo legítimo não deve ser perseguido à custa de restrições importantes infligidas aos direitos da defesa. Consequentemente, as informações essenciais para apreciar a legalidade da detenção de uma pessoa devem ser postas à disposição do advogado do suspeito de modo adequado à situação» (Ac. do TC nº 416/2003, in http://www.tribunalconstitucional.pt).
O período de vigência do segredo de justiça, quando decretado tem uma duração máxima que não pode perdurar além da duração do inquérito.
A determinação de aplicação do segredo de justiça pelo Ministério Público, nos termos do nº 3 do art. 86 º, tem prazos máximos de duração que coincidem com os prazos de duração do inquérito previstos no art. 276º, do mesmo modo que o pedido de prorrogação do segredo de justiça também não deverá ser feito, para durar após o prazo de duração máxima do inquérito.
Tal como resulta da previsão contida no art. 89º nº 6 do CPP, o segredo de justiça pode ser prorrogado por um período máximo de três meses além do prazo máximo de duração do inquérito previsto no art. 276º, mas não mais que três meses, independentemente do crime, a menos que se trate de um dos tipos de criminalidade previstos na alínea i) a m) do art. 1º.
O mesmo art. 89º nº 6 do CPP, prevê a possibilidade de duas prorrogações do período de vigência do segredo, extraordinárias e cumulativas: uma por 3 meses, a pedido do MP e aplicável em qualquer processo; outra, aplicável em processos em que se investigue alguma da criminalidade a que se referem as alíneas i) a m) do art. 1º do CPP, que já não sujeita ao limite máximo de três meses, nem a qualquer outro prazo pré-estabelecido na lei.
«A parte final do art. 89.º, n.º 6 do CPP, que permite a prorrogação do adiamento do acesso aos autos quando estiver em causa a criminalidade prevista nas alíneas i) a m) do art.º 1.º, deve ser interpretada no sentido de que o prazo de prorrogação do adiamento não é um prazo fixo de três meses, mas antes o prazo que, no caso concreto, se mostre objetivamente indispensável à conclusão da investigação» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2010, Diário da República, 1.ª série, N.º 94 de 14 de Maio de 2010, p. 1657).
Se tal se verificar, o segredo de justiça poderá ser prolongado pelo tempo objetivamente indispensável à conclusão da investigação, prorrogação esta que, no entanto não pode, nem deve ser por tempo indeterminado, por imposição dos princípios da celeridade processual e da tutela jurisdicional efectiva embora, no que se refere aos crimes das espécies previstas naquele art. 1º als. i) a m), já não se aplique necessariamente o limite de três meses.
Em qualquer das hipóteses, sendo ordenada por decisão judicial a sujeição do processo a segredo de justiça, esta decisão, se não vier a ser alterada, determina que o segredo se aplica ao processo até ao termo do prazo de duração máxima do inquérito, mas não pode ir além dele.
«O segredo de justiça passou a existir como excepção casuística, devendo ser determinado, caso a caso, pelo Ministério Público, no interesse da investigação e (ou) dos direitos dos participantes processuais, mas carecendo, mesmo assim, tal decisão do único titular do inquérito de validação por parte do juiz de instrução.
«O juiz de instrução, por seu turno, também passou a poder determiná-lo, por despacho irrecorrível, a requerimento do arguido (mas não só deste; agora, também do assistente e do ofendido), depois de ouvido o Ministério Público.
«No caso de o segredo de justiça ser determinado por decisão do Ministério Público, validada pelo juiz de instrução, aquele passou a poder levantar o segredo a todo o tempo, oficiosamente ou a requerimento dos participantes processuais indicados. Porém, neste último caso, se o Ministério Público estiver em desacordo, intervém o juiz de instrução, que decide, por despacho irrecorrível.
«O segredo de justiça é limitado à fase de inquérito, cessando com o encerramento deste e não tem que coincidir, como se extrai do já exposto, com a sua duração.
«Quanto à instrução, esta passou a ser sempre pública, independentemente do sujeito processual requerente e da vontade dele. Ou seja, o segredo de justiça, a existir, fica confinado à fase de inquérito, segundo um mecanismo complicado em que entram os interesses conflituantes dos sujeitos processuais, cuja divergência é dirimida, em último termo, pelo juiz de instrução, que passa a ser elemento decisivo da sua determinação em concreto.» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2010, Diário da República, 1.ª série, N.º 94 de 14 de Maio de 2010, p. 1657).
Findos os prazos de duração máxima do inquérito, o arguido pode consultar todos os elementos de processo que se encontre em segredo de justiça.
Além desta limitação temporal por referência a uma específica fase processual, existem vários momentos processuais importantes em que o segredo pode não vigorar, designadamente:
O previsto no art. 86º nº 4 do CPP, em que o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido, determine o seu levantamento, o que pode acontecer em qualquer momento do decurso do inquérito;
A situação a que se refere o nº 5 do mesmo art. 86º do CPP, no caso de o arguido, o assistente ou o ofendido requererem o levantamento do segredo de justiça, mas o Ministério Público não o determinar, caso em que o processo será presente ao JIC para decisão e este pode fazê-lo cessar, sendo tal despacho irrecorrível;
Estão previstas várias derrogações ao secretismo das peças de um processo em segredo de justiça, na medida em que o art. 86º nºs 9 a 13 do CPP, permite que certas informações sejam prestadas, mesmo em caso de sujeição do processo a segredo de justiça: para esclarecimento da verdade (alínea a) do n.º 9 do artigo 86.º do CPP); quando se mostrem indispensáveis ao exercício de direitos pelos interessados (alínea b)); com o fim de juntar certidões de conteúdo de acto ou de documento a outro processo de  natureza criminal ou para instruir processo disciplinar de natureza pública, e ainda para dedução de pedido de indemnização civil de uma forma geral (nº 11) e, em especial, em processo respeitante a acidente provocado por veículo de circulação terrestre (nº 12); com o fim de prestar esclarecimentos públicos, necessários ao restabelecimento da verdade e desde que não prejudiquem a investigação, neste caso a pedido de pessoas publicamente postas em causa ou para garantir a segurança de pessoas e bens ou a tranquilidade pública (n.º 13, alíneas a) e b)).
Acresce que a regra é de que, mesmo em caso de processo sujeito a segredo de justiça, o arguido, pode, mediante requerimento, consultar o processo ou elementos dele constantes, obter, em formato de papel ou digital, os correspondentes extractos, cópias ou certidões e aceder ou obter cópia das gravações áudio ou audiovisual de todas as declarações prestadas, a não ser que o Ministério Público se oponha, fundamentadamente, invocando prejuízo para a investigação ou para os direitos dos participantes processuais ou das vítimas e, nesse caso, a decisão caberá ao JIC, tal como previsto no art. 89º nºs 1 e 2 do CPP.
A fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à exceção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade a descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo e a enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime (artigo 194º nº 6, alínea b), do CPP).
Não podem ser considerados para fundamentar a aplicação ao arguido de medida de coação ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, quaisquer factos ou elementos do processo que lhe não tenham sido comunicados durante a sua audição (artigo 194º nº 7 do CPP de harmonia com a jurisprudência constitucional exarada nos Acórdãos nºs 121/97, 416/2003 e 607/2003).
Do mesmo modo, o art. 141º nº 4 alínea e) do CPP, impõe que, no primeiro interrogatório judicial, o juiz informe o arguido dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser em causa a investigação, não dificultar a descoberta da verdade nem criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime.
Todos estes normativos representam a concretização da acção modeladora acometida ao legislador ordinário por imposição constitucional de prever e regular o segredo de justiça e as condições da sua aplicação.
Trata-se, é certo, de um regime mais limitado do que a simples e total publicidade interna, mas a sujeição do processo a segredo de justiça não acarreta, necessariamente, a imediata, automática e total opacidade do processo para o arguido.
No despacho que determinou a sujeição do arguido a prisão preventiva o Mmo. Juiz de instrução enunciou na fundamentação quer as circunstâncias de tempo, modo e lugar potencialmente integradoras do crime de tráfico de substâncias estupefacientes indiciariamente imputado ao arguido, exarou a qualificação jurídica dos factos, enumerou os concretos meios de prova em que assentou o seu juízo indiciário, explicou porque é que, quanto àqueles cuja consulta do conteúdo indeferiu, tomava essa decisão, invocando a circunstância de se encontrarem cobertos pelo segredo de justiça e a existência de risco de perda de provas a obter e de eficácia da investigação ainda por realizar, face à natureza do crime indiciado e a outras circunstâncias já conhecidas quanto à intervenção de cada um dos arguidos já como tal constituídos nas actividades de tráfico, analisou os perigos de fuga e de continuação da actividade criminosa com referência aos indícios recolhidos e explicou porque é que os mesmos se mostravam verificados, no caso, tendo ainda formulado os juízos de necessidade, adequação e proporcionalidade para concluir que a prisão preventiva é a única medida de coacção apta à prossecução das exigências cautelares do presente processo.  
Ora, a comunicação dos factos prevista nos artigos 141º nº 4 e 194º nº 7 do CPP aquando do primeiro interrogatório judicial, deve ser feita com a concretização necessária a que o visado compreenda quais são os comportamentos materiais que lhe são imputados, a sua qualificação jurídico-penal, para efeitos de verificação dos pressupostos específicos de aplicabilidade de determinada medida de coacção, em que factos concretos se traduzem algum ou todos os perigos descritos no art. 204º do CPP e porque é que a medida de coacção escolhida é, no entendimento do JIC, aquela que é necessária, adequada e proporcional às exigências cautelares do processo, em ordem a garantir a normalidade do desenvolvimento do processo penal, quanto a efeitos, como sejam o da descoberta da verdade, logo, da aquisição e integridade das provas, de assegurar a presença do arguido, seja nas diligências probatórias (art. 61º nº 3 al. d) do CPP), seja na audiência de discussão e julgamento (artigo 332º do CPP), de criação das condições adequadas à exequibilidade da decisão final do processo, especialmente, se envolver a condenação em pena de prisão efectiva, assim como alguns tipos de sanções acessórias.
Estando em causa a aplicação de uma medida de coacção, aplicada numa fase preliminar de investigação criminal, como aquela em que o presente processo se encontra, as oportunidades de defesa e o cabal exercício do contraditório têm por objecto primacialmente os factos indiciários e os perigos previstos no art. 204º do CPP.
É certo que os elementos probatórios são necessários à indiciação do crime que constituirá o pressuposto específico da aplicabilidade da prisão preventiva, nos termos do art. 202º do CPP.
Mas além de constituir uma inevitabilidade a cessação do segredo de justiça uma vez findo o inquérito, sendo possível, após este, a análise irrestrita dos meios de prova, a própria indiciação pode ser rebatida e impugnada, sem essa análise e, em todo o caso, se sempre que estiver em causa a aplicação da prisão preventiva, fosse de afastar o segredo de justiça, como pretende o recorrente, tal redundaria num sacrifício intolerável dos valores visados proteger pelo segredo de justiça para os colocar ao serviço das garantias de defesa do arguido, como se estas correspondessem a direitos absolutos, o que nem tem respaldo no próprio art. 32º nº 5 da CRP, nem corresponde à intenção do legislador ordinário, plasmada na manutenção das restrições à comunicação e ao acesso aos elementos de prova, uma vez verificado o circunstancialismo previsto nos arts. 194º nº 6 al. b) e no art. 141º nº 4 al. e) do CPP, que foram mantidas, mesmo depois de o segredo de justiça na fase do inquérito se ter transmutado de regra em excepção, com a entrada em vigor da Lei 48/2007 de 29 de Agosto.   
Assim, o exercício efectivo do contraditório que precede a decisão de aplicação da prisão preventiva encontrar-se-á acautelado através do conhecimento pela defesa dos elementos dos autos que permitam verificar se existem, materialmente, os pressupostos legais, gerais e específicos, delineados pelo legislador como justificando em concreto a aplicação de tal medida de coacção.
Os elementos relevantes para o exercício do contraditório, neste contexto, são aqueles que se mostrarem evidenciados no requerimento apresentado pelo Ministério Público e nos deveres de informação do JIC, tal como regulados nos arts. 141º e 194º do CPP, de cujo elenco também fazem parte as menções acerca da matéria probatória recolhida, até ao momento da audição do arguido.
Pelas razões já apontadas, mormente, a relação de especialidade que existe entre as regras do art. 89º nºs 1 e 2 e as que se encontram insertas nos arts. 141º nº 4 al. e) e no art. 194º nº 6 al. b) do CPP, esses deveres de informação bastam-se com a mera enumeração dos meios de prova, se for caso de dar primazia aos valores do segredo de justiça, face ao concreto risco de perda de integridade da prova ou de compromisso para a verdade material ou para a liberdade, privacidade e segurança dos sujeitos processuais.
Esse secretismo quanto ao conteúdo dos meios de prova é compatível com a sua enumeração prévia e ainda cumpre as exigências do contraditório e das garantias de defesa, porque mantém intacta a oportunidade do arguido de influenciar, em seu benefício, a tomada de decisão que lhe respeita, através da possibilidade de esgrimir, em tempo oportuno, argumentos juridicamente sustentados, dirigidos a convencer a instância decisória do fundamento de medidas favoráveis ou da falta de fundamento de medidas desfavoráveis, assim como a impugnação da decisão em sede de recurso, pelo que o direito do arguido ao contraditório não resulta substancialmente afetado pela limitação do acesso irrestrito aos elementos probatórios adquiridos para o processo.
Em contrapartida, a satisfação da pretensão do recorrente de consulta ilimitada de toda a informação contida nos meios de prova já existentes no processo poderia comprometer, em absoluto, o interesse público e comunitário na preservação do segredo de justiça, colocando em crise ou até inviabilizando diligências de investigação em curso ou a desenvolver, comprometendo a descoberta da verdade material e, com ela, a realização da justiça.
Por conseguinte, não pode dizer-se que exista uma compressão constitucionalmente censurável do direito ao contraditório.
Ademais as conclusões do recurso centram-se unicamente na posição do arguido, sem que este tenha desenvolvido o menor esforço argumentativo de balanceamento com os interesses que justificam a existência de segredo de justiça, ao qual nem sequer fez a menor alusão.
Não ocorre, pois, violação das garantias do arguido, sejam as gerais previstas no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, seja especificamente a garantia de contraditório do n.º 5 do mesmo artigo, ela própria expressamente balizada por referência à audiência de julgamento e aos actos instrutórios que a lei determinar, precisamente tendo em vista a harmonização com os interesses da investigação dos factos que constituem crime.
Por fim, a tese preconizada neste recurso pelo arguido, além de fazer tábua rasa do segredo de justiça decretado e, portanto, destituí-lo de qualquer efeito útil, conduziria a uma interpretação do art. 89º nº 6 do CPP contrária à Constituição, precisamente, por referência aos limites imposto pelos arts. 141º nº 4 al. e) e 194º nº 6 al. b) do CPP, que estabelecem que a fundamentação do despacho que aplicar medidas de coacção só deve enunciar os elementos probatórios que alicerçam o juízo de indiciação dos factos, dando-os a conhecer ao arguido, se não puser gravemente em causa a investigação, se não impossibilitar a descoberta da verdade ou a sua revelação não criar perigo para a vida, integridade física ou psíquica ou para a liberdade dos participantes processuais ou vítimas do crime.
Com efeito, o Tribunal Constitucional já julgou «inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do artigo 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, segundo a qual é permitida e não pode ser recusada ao arguido, antes do encerramento do inquérito a que foi aplicado o segredo de justiça, a consulta irrestrita de todos os elementos do processo, neles incluindo dados relativos à reserva da vida privada de outras pessoas, (…), sem que tenha sido concluída a sua análise em termos de poder ser apreciado o seu relevo e utilização como prova, ou, pelo contrário, a sua destruição ou devolução, nos termos do n.º 7 do artigo 86.º do Código de Processo Penal» (Ac. do TC nº 428/2008 de 12 de Agosto de 2008, in http://www.tribunalconstitucional.pt).
Daí que a interpretação dos artigos 194° n° 8 e n° 6 al. b) 141° n° 4 al. e) do Código de Processo Penal, no sentido de o dever de comunicação se cumprir com a mera enunciação dos vários meios de prova que sustentam a indiciação do arguido, não impondo a concessão da possibilidade de consulta nem a explicitação por parte do Juiz de Instrução do seu teor, não constitua qualquer violação do processo justo equitativo, nem das garantias de defesa do arguido, nem do seu direito ao contraditório.
O mesmo tem de concluir-se da interpretação dos artigos 194° n° 7 e n° 6 al. b) do Código de Processo Penal, segundo a qual, para efeitos de aplicação de medida de coacção mais gravosa que o TIR, a expressão sem prejuízo do disposto na al. b) do n° 6 do artigo 194°, permite ao JIC, uma vez verificado o circunstancialismo ali previsto, a prolação da decisão sem comunicar nem permitir a consulta dos elementos probatórios que fundamentam os indícios.
Ambas as interpretações estão legitimadas pelos valores tutelados pelo segredo de justiça.
Assim sendo, o recurso improcede, na totalidade.


III–DECISÃO

Termos em que decidem, neste Tribunal da Relação de Lisboa:
Em negar provimento ao recurso, confirmando, na íntegra, a decisão recorrida.
Custas pelo arguido, que se fixam em 4 UCs – art. 513º do CPP.
Notifique.
*

Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelas Mma. Juízas Adjuntas.


Tribunal da Relação de Lisboa, 27 de Setembro de 2023

                                  
Cristina Almeida e Sousa
-Relatora -

Maria da Conceição Miranda
- Primeira Adjunta -
                                              
Maria Margarida Almeida
- Segunda Adjunta -