CRIME DE VIOLAÇÃO DE NORMAS RELATIVAS A FICHEIROS
IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL
DOLO
ERRO SOBRE A PROIBIÇÃO
Sumário


1. O tipo subjectivo de ilícito - crime de violação de normas relativas a ficheiros e impressos agravado, previsto e punido pelo artigo 43.º, n.º 1 da Lei n.º 37/2015, na data dos factos por referência ao artigo 43.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, da Lei n.º 67/98 (actualmente, por referência ao artigo 46.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 58/2019) – configura-o como um crime essencialmente doloso: exige-se o conhecimento e vontade por parte do agente do desvio ou utilização de dados pessoais de forma incompatível com a finalidade de recolha.
2. Este tipo legal de crime revela ainda uma intencionalidade específica que deve presidir à actuação do agente, que é um plus ao dolo genérico referido.
3. A função da exigência penal do conhecimento do facto, em sede do elemento subjectivo, prende-se com a necessidade de o agente conhecer tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito.
4. Quando o agente desconhece a proibição legal devido a uma falta de informação ou de esclarecimento deverá ser punido a título de negligência se, podendo e devendo fazê-lo, se desleixou na recolha da informação. Se o conhecimento da proibição legal for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, o erro sobre proibições legais exclui o dolo.
5. O art.º 16.º, n.º 1, do Cód. Penal, aplica-se às normas com ténue relevância axiológica da conduta. Assim, quando o agente desconhece a proibição legal devido a uma falta de informação ou de esclarecimento deverá ser punido a título de negligência se, podendo e devendo fazê-lo, se desleixou na recolha da informação. Se o conhecimento da proibição legal for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, o erro sobre proibições legais exclui o dolo.
6. É extensível o regime ao erro sobre a existência de uma situação de justificação, conforme dispõe o art.º 16.º, n.º 2, do Código Penal. O dolo do tipo apenas inclui a representação do facto criminoso e os pressupostos fácticos das causas de justificação.
7. O art.º 17.º, do Código Penal, relativo ao erro sobre a ilicitude, proclama que a deficiente consciência ética do agente não permite apreender os valores jurídicos-penais e orientar-se para a observância do direito, excepto se essa deficiência derivar de uma personalidade indiferente ou de uma atitude contrária aos valores, pelo que a culpa do agente, para além de dolosa, é censurável.
8. Tal regime incide sobre a censurabilidade da falta de consciência de ilicitude restrita aos crimes proibidos em si, os chamados crimes naturais, em que a carga axiológica da tipificação é sua característica. Trata-se dos crimes naturais, contra bens jurídicos eminentemente pessoais, crimes em si (mala in se), como seja a maioria dos crimes previstos no Código Penal
9. Nas hipóteses a que se refere o art.º 16º nº 1, a ignorância da proibição será não um problema de [falta] de consciência ética do agente [como sucede nos casos de erro sobre a proibição a que se refere o art.º 17º do Cód. Penal], mas sim um problema de conhecimento, pelo que excluirá o dolo. Isto é, contrariamente ao que se verifica relativamente à consciência da ilicitude (art.º 17º do Cód. Penal), a qual se presume face à verificação do dolo, o nosso Código Penal trata as proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da licitude do facto, (art.º 16.º, n.º 1, 2ª parte do Cód. Penal) como se fossem elementos de facto ou de direito do tipo de crime, uma vez que o seu conhecimento, que não se presume, é indispensável para que possa imputar-se o facto objectivo típico ao agente, a título de dolo.
10. Sempre que a falta de conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito ocorre erro que excluirá o dolo ao nível do tipo; contrariamente, há erro que funda o dolo da culpa sempre que, detendo um conhecimento razoavelmente indispensável àquela orientação, actua num estado de erro sobre o carácter ilícito do facto, relevando uma falta de sintonia com a ordem jurídica de valores.
11. O arguido ao utilizar o certificado de registo criminal de terceiro sem a respectiva autorização agiu consciente que aquele documento representa uma expressão negativa da privacidade daquela pessoa (os seus antecedentes criminais) e contra quem foi usado. Neste quadro, o arguido tinha conhecimento da natureza dos dados, da sua utilização restrita e a consciência que atentava os padrões normativos. A consciência ética do arguido não enferma de um qualquer vício ou deficiência que o impossibilite de alcançar a ilicitude da conduta e facto, nos termos do art.º 17.º do Cód. Penal, pelo que não se pode dar acolhimento a um qualquer erro de ignorância e/ou existência de desconhecimento da ilicitude da conduta que afasta a culpa, ou seja, o arguido teve conhecimento e vontade de violar a norma e todos os seus pressupostos fácticos e verifica-se no caso em concreto uma conduta dolosa e culposa.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I.
No processo comum n.º 1044/18.1T9EVR do Juízo Local Criminal ..., Comarca ..., o arguido AA foi pronunciado como autor material de um crime de violação de normas relativas a ficheiros e impressos agravado, previsto e punido pelo artigo 43.º, n.º 1 da Lei n.º 37/2015, na data dos factos por referência ao artigo 43.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, da Lei n.º 67/98 (actualmente, por referência ao artigo 46.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 58/2019).
Pelo assistente BB foi deduzida acusação particular, tendo aderido integralmente ao teor da acusação pública.
Pelo assistente BB foi, ainda, deduzido pedido de indemnização civil contra o arguido, cujo teor se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais, peticionando, em síntese, a condenação do arguido no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de €2000,00 acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos a partir da notificação do pedido e até efectivo e integral pagamento.
Submetido a julgamento e realizada a audiência, foi proferida sentença em que foi decidido, na parte que ora releva:
a. Absolver o arguido AA, da prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de violação de normas relativas a ficheiros e impressos agravado, previsto e punido pelo artigo 43.º, n.º 1 da Lei n.º 37/2015, na data dos factos por referência ao artigo 43.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, da Lei n.º 67/98;
b. Julgar totalmente improcedente por não provado o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente BB e, em consequência, absolver o arguido CC dos pedidos deduzidos;”

Desta decisão absolutória vieram interpor recurso, com os fundamentos constantes da respectiva motivação que aqui se dá por reproduzida e as seguintes conclusões:
A. O M.º P:º:
“1.º- Nos presentes autos de processo comum perante o Tribunal Singular, o arguido AA foi acusado e, posteriormente, pronunciado pela prática de factos suscetíveis de configurar a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de violação de normas relativas a ficheiros e impressos agravado, previsto e punido pelo artigo 43.º, n.º 1 da Lei n.º 37/2015, na data dos factos por referência ao artigo 43.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, da Lei n.º 67/98 (atualmente por referência ao artigo 46.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 58/2019).
2.º- Realizada Audiência de Julgamento foi julgada improcedente por não provada a acusação pública, e decidido absolver o arguido, porquanto o Tribunal a quo considerou que resultaram não provados os seguintes factos:
“(…)
B. Que o arguido soubesse que o aludido certificado de registo criminal tivesse sido
emitido com a finalidade exclusiva de instruir o processo n.º 10/15.....
C. Que o arguido soubesse que não podia utilizar o certificado de registo criminal
para finalidade diversa.
D. Que os dados referidos em 11), no aludido contexto, apresentassem natureza
reservada.
E. Que o arguido tenha agido sabendo que a sua conduta era proibida e punida por
lei.”.
3.º- Pelo que o presente recurso versa sobre a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do CPP.
4.º- O Ministério Público pugna pela reapreciação de prova e que seja dada como provada a factualidade constante dos pontos B- a E- da factualidade não provada.
5.º- O Tribunal a quo incorreu em erro manifesto na apreciação da prova, em especial a prova documental constante da certidão de fls. 18 a 66 e as declarações de arguido prestadas em Audiência de Julgamento, que não devem merecer a credibilidade conferida na sentença recorrida.
6.º- Com efeito, aquela factualidade resulta da análise crítica das seguintes declarações do arguido (cuja reapreciação se requer):
(declarações de arguido – sessão de 23.11.2022, constante do Citius Media Studio):
entre 05:40 a 07:07; entre 07:40 a 08:08; a 10:05: entre 15:11 a 15:27; entre 15:55 a 16:40; minuto 24:00, sendo todas as transcrições feitas na motivação deste recurso e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
7.º- Em suma, o próprio arguido admite que não se tratou de uma junção irrefletida, que ponderou inclusivamente questões de natureza mais privada e que pretendia usar o CRC como forma de descredibilizar o assistente, mostrando que apresentava uma “pulsão persecutória (…) relativamente a um conjunto de pessoas, várias pessoas, da universidade.”
8.º- Contudo, o arguido tinha conhecimento que os factos relacionados com a inscrição não estavam relacionados com a universidade ... ou qualquer pessoa ligada à Universidade.
9.º- É manifesto que o CRC não pode ser usado para aquela finalidade. Não está prevista aquela finalidade no artigo 8.º da Lei n.º 37/2015, de 05 de maio, de apreciar a credibilidade de um assistente.
10.º- Acresce que aquela informação estava vertida na sentença que o arguido também juntou em anexo ao RAI, ainda que não tivesse transitado em julgado, pelo que o arguido não precisava de usar o CRC para levar ao conhecimento do Tribunal aquele conteúdo.
11.º- Assim, requer-se que seja reapreciado o conteúdo da certidão constante de fls. 18 a 66, em especial na parte em que consta o RAI (fls. 20 a 24-v), a sentença do processo 10/15.... (fls. 25 a 50) e a cópia do CRC utilizada pelo arguido (fls. 51 a 52).
12.º- Pelo exposto, pugnamos por decisão que julgue verificados todos os elementos do dolo, no seu elemento intelectual e no seu elemento volitivo, concluindo ainda que o arguido atuou com consciência da ilicitude.
13.º- Caso o Tribunal ad quem mantenha credibilidade parcial à versão do arguido, ainda assim pugnamos que deve ser dada como provada aquela factualidade na modalidade de dolo eventual, concluindo que o arguido admitiu que aquela utilização era ilícita e que estava a ser desviada da finalidade legítima e que se conformou com aquela possibilidade, ao mesmo tempo que atuou com a intenção especifica prevista na norma incriminadora.
14.º- Para além disso, importa referir que não existe suporte probatório e legal para dar comprovado “D. Que os dados referidos em 11), no aludido contexto, apresentassem natureza reservada.”
15.º- O entendimento seguido na Douta Sentença recorrida significa esvaziar a norma incriminadora de qualquer conteúdo.
16.º- Na verdade, as leituras de sentença e acórdão são públicas, mesmo nos processos que possam ter havido produção de prova com exclusão da publicidade.
17.º- Desta forma, sendo as condenações dadas a conhecer em ato público e/ou em decisões que podem ser consultadas (no caso de condenação em sanção em processo especial sumaríssimo), seguindo o raciocínio vertido na Douta Sentença recorrida nunca haveria proteção para os dados constantes do certificado de registo criminal por serem públicos e/ou acessíveis ao público em geral.
18.º- Em consequência, deverá ser revogada a douta sentença e condenado o arguido pela prática do crime pelo qual vinha acusado e pronunciado, dando como provados todos os factos constantes da pronúncia e sendo o arguido condenado numa pena de multa.
19.º - Sem prescindir, caso o Tribunal Superior conclua que devem ser dados como provados todos os factos, com exceção “Que o arguido tenha agido sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.”, será de ponderar e aplicar o regime previsto no artigo 17.º do Código Penal.
20.º- Considerando a qualidade em que atuou o arguido, ter atuado de forma livre, voluntária e consciente, ter agido com reflexão prévia sobre a utilização ou não daquele documento e ter confirmado que a informação podia ser transmitida e dada a conhecer sem usar o CRC, deve o erro ser julgado censurável, aplicando uma pena de multa especialmente atenuada mediante aplicação do regime previsto no n.º 2 daquele artigo 17.º do Código Penal.
21.º- Violou o Tribunal a quo o disposto nos artigos 127.º do Código de Processo Penal, 17.º do Código de Processo Penal, e 227.º do Código Penal, e os artigos 8.º e 43.º, n.º 1 da Lei n.º 37/2015, na data dos factos por referência ao artigo 43.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, da Lei n.º 67/98.”

B. O assistente BB:
“A) Pelas razões de facto e de Direito a propósito invocadas, entende o Recorrente dever ser reconhecida a imputação incriminatória ao arguido, designadamente que o mesmo praticou, em autoria material, os factos de que vem acusado e pelos quais foi judicialmente pronunciado;
B) Devendo ser reconhecido que o arguido praticou um ato voluntário, ilícito e doloso, incorrendo na previsão do art.43.º, n.º 1, al. c) da LPDP, que pune a utilização de dados pessoais de forma incompatível com a finalidade determinante da recolha, incriminando-se “o uso de dados pessoais para fins diferentes daqueles que se propôs prosseguir quem procedeu à sua obtenção e organização;
C) Devendo ainda ser reconhecido erro de julgamento e erro na apreciação da prova, dado que a prova produzida em audiência de julgamento corrobora a intencionalidade do arguido, no sentido de descredibilizar a intervenção processual do Assistente, resultando a sua humilhação e amesquinhamento, com as consequentes sequelas médicas, documentalmente comprovadas nos autos;
D) Devendo ser retirada a plena credibilidade do depoimento do arguido no concernente à ausência de dolo na respetiva atuação e ainda ao respetivo desconhecimento da Lei, bem como ao seu desconhecimento sobre o caráter reservado e confidencial das informações constantes do documento por si apresentado no Proc. n.º 310/17....;
E) Devendo ser proferida decisão que, dando provimento ao recurso ora interposto, condene o arguido nos termos da respetiva acusação, bem como o responsabilize civilmente, arbitrando a respetiva indemnização pelos danos morais provocados ao Assistente, devendo considerar-se a existência do nexo de causalidade entre o facto ilícito e os danos sofridos pelo recorrente.
F) Devendo a douta sentença ser objeto de revogação e/ou anulação, admitindo-se a alteração da matéria de facto no sentido acima referenciado ou produção de nova prova;”



O M.º P.º respondeu a este recurso, concluindo:
“1.º - Nos presentes autos de processo comum perante o Tribunal Singular, o arguido AA foi acusado e, posteriormente, pronunciado pela prática de factos suscetíveis de configurar a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de violação de normas relativas a ficheiros e impressos agravado, previsto e punido pelo artigo 43.º, n.º 1 da Lei n.º 37/2015, na data dos factos por referência ao artigo 43.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, da Lei n.º 67/98 (atualmente por referência ao artigo 46.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 58/2019).
2.º- Realizada Audiência de Julgamento foi julgada improcedente por não provada a acusação pública, e decidido absolver o arguido, porquanto o Tribunal a quo considerou que resultaram não provados os seguintes factos:
A. Que ao actuar nos termos descritos, o arguido tenha pretendido atingir o bom
nome, honra e consideração do assistente BB.
B. Que o arguido soubesse que o aludido certificado de registo criminal tivesse sido
emitido com a finalidade exclusiva de instruir o processo n.º 10/15.....
C. Que o arguido soubesse que não podia utilizar o certificado de registo criminal
para finalidade diversa.
D. Que os dados referidos em 11), no aludido contexto, apresentassem natureza
reservada.
E. Que o arguido tenha agido sabendo que a sua conduta era proibida e punida por
lei.”.
3.º- O assistente “Recorrente considera ter ocorrido erro de julgamento na decisão final produzida, desde logo, não só por considerar incorretamente julgada a matéria de facto considerada provada pelo douto Tribunal “a quo”, como por se considerar ter ocorrido erro na apreciação das provas e na interpretação da norma incriminatória, para além de não terem sido devidamente apreciados e valorados todos os elementos de prova, impugnando-se, assim, para todos os efeitos legais, a matéria de facto considerada provada na douta sentença recorrida(…)”.
4.º- O Ministério Público interpôs recurso da Sentença proferida, conforme referência ...40 (recurso interposto em 26.01.2023).
5.º- O Ministério Público pugna pela reapreciação de prova e que seja dada como provada a factualidade constante dos pontos B- a E- da factualidade não provada, mediante reapreciação da prova elencada no recurso referido em 4.º- das conclusões.
6.º- Para que haja reapreciação da prova em sede de recurso não é suficiente ao recorrente demostrar a sua discordância sobre os motivos pelos quais não concorda com a decisão, pugnando por um entendimento diverso na apreciação da prova. É necessário especificar os elementos de prova concretos que devem ser reapreciados, incluindo as concretas passagens que devem ser reanalisadas da prova gravada.
7.º- Desta forma, embora não se mostre cumprido esse ónus no recurso do assistente de forma a permitir uma reapreciação da prova pelo Tribunal, pugnamos por uma Decisão Superior nos termos do recurso interposto pelo Ministério Público nos presentes autos (referência ...40, recurso interposto em 26.01.2023).”

O arguido veio também apresentar resposta, a ambos os recursos, formulando as seguintes conclusões nessa resposta:
“A. Na presente resposta o arguido pronuncia-se sobre os recursos interpostos pelo assistente e pelo MPº.
B. O recurso do assistente não cumpre a lei processual penal no que concerne à impugnação da matéria de facto, nomeadamente o disposto no n.º 3 do artigo 412.º do CPP.
C. Pelo que deve o recurso ser considerado não motivado.
D. Ainda assim, no que tange ao conteúdo das alegações do assistente sobre a impugnação da matéria de facto não deverão merecer qualquer acolhimento, porquanto não contrariam, minimamente, o juízo produzido pelo Tribunal a quo na conjugação que fez das declarações do arguido com os documentos juntos aos autos e que foram expressamente identificados na motivação.
E. Quanto à impugnação do assistente sobre a matéria de direito, sobressai da mesma o incumprimento do ónus processual imposto pelo artigo 412.º, n.º 2, do CPP.
F. Não se invocando uma única norma cuja violação pudesse sustentar o recurso nesta matéria.
G. Ainda assim, toma-se por oportuno salientar que a sentença recorrida aplicou justamente os artigos 14.º e 16.º do Código Penal ao absolver o arguido por considerar o não preenchimento do tipo subjetivo de ilícito, por se tratar de um crime doloso a cuja tipologia acresce a existência da intenção específica de utilização de dados em desvio teleológico.
H. Tendo ficado provado que assim não sucedeu.
I. O MP delimita o seu recurso quanto à matéria de facto.
J. E quanto a esta impugnação considera-se oportuno concluir que o MP omitiu nas suas alegações partes relevantes das declarações do arguido e da conjugação das mesmas com a prova documental, nas quais se baseou a motivação da sentença.
K. A propósito das declarações do arguido ficou registado na gravação da audiência de julgamento que:
- (5 m e 43 s) - Olhando para a sentença que foi proferida no processo 10/2015 que mencionava, mencionava não, transcrevia os antecedentes criminais do arguido e identificando uma conexão lógica entre os dois processos, quando fiz a transcrição dos antecedentes criminais no requerimento de abertura de instrução, achei que poderia juntar o documento que estava disponível no processo e que o conteúdo correspondia a um excerto da sentença (...) O processo não tinha restrições de acesso de qualquer índole, o processo 10/20... próprio documento estava inserido nesse processo sequencialmente, pela data em que foi disponibilizado no processo, estava livremente acessível a qualquer dos sujeitos processuais que tivessem acesso à plataforma Citius, E, portanto, achei que por haver uma decorrência de um processo para o outro, não estaria a cometer nenhum ilícito, nem tive, obviamente, qualquer intenção de usar indevidamente dados pessoais sensíveis do então arguido (.. tentei ser o mais objetivo relativamente ao conteúdo da sentença e do certificado de registo criminal e não terei feito, do que me recordo, quaisquer considerações
- (9 m e 13 s) - Não tive essa ideia, Portanto* não concebi que estava a praticar um ilícito voluntariamente, requeri no mesmo processo que nessa fase estava, salvo erro, em tramitação o Tribunal da Relação de Évora, que fosse emitida certidão desse mesmo documento — certificado de registo criminal — para o poder utilizar fora desse processo, designadamente, na instrução da minha defesa perante a Ordem dos Advogados porque o ora assistente também apresentou participação contra mim na Ordem dos Advogados: e, portanto, assim que me apercebi que poderia, e foi assim, foi nessa altura, quando recebi notificação do processo da Ordem dos Advogados; imediatamente requeri essa certidão no processo relativamente à cópia do certificado de registo criminal... certidão essa que foi depois deferida. Portanto, juntei ao processo, a este processo crime o deferimento, já não sei se foi o Tribunal da Relação de Évora, ou se foi já aqui no Juízo Local Criminal, mas houve um deferimento...
(1 m e 3 s): Foi. E também, se me permite acrescentar, agi apenas motivado, peço desculpa, motivado pela necessidade de provar factos no dito processo que era uma sequência lógica e de alguma forma fiquei... Não tinha a consciência dessa ilicitude. De alguma forma fiquei, não vou dizer descansado. Achei que era um procedimento normal e um processo normal de um requerimento de abertura de instrução igual a tantos outros que já apresentei, quando foi proferido despacho pela Juíza de Instrução Criminal aceitando, portanto, os documentos que juntei, incluindo, portanto, essa cópia do certificado de registo criminal e o processo de instrução criminal decorreu também, na minha perspetiva, com normalidade e foi concluído com despacho de não pronúncia... Só depois com as reações do ora assistente junto da Ordem dos Advogados e do OIAP de ... me apercebi então e fui estudar em que é que poderia ter errado...
(16 m e 09 s): Sinceramente achei que além da sentença, para reforço da convicção do carater probatório seria oportuno juntar o certificado, até porque o texto do certificado não tinha, pelo menos na leitura que dele fiz, qualquer restrição de uso explícita de dizer que não pode utilizado para além deste processo; isso não vi lá escrito.
(16 m e 54 s): Eu não tive consciência, como referi há pouco, não tive consciência de que estaria a cometer um ilícito criminal... de comprovar o que estava na sentença através do documento em que a sentença se baseava, na minha cabeça atuei digamos quase numa lógica probatória e sequencial; existia uma parte da sentença que coincidia com o que estava no certificado e achei que pelo facto de a sentença ser pública e o processo ser público e o certificado e a sentença estarem ambos no mesmo processo e deste processo ser uma decorrência lógica do outro que não estaria a lesar nenhum direito, nenhum bem jurídico do assistente ou de ordem pública.
(16 m e 54 9): Verifiquei, verifiquei posteriormente que o que está lá escrito é para fins de instrução criminal. Poderá ser confrontado o documento. É o que tem escrito. Não vi que tivesse escrito outra menção restritiva e porque se tivesse isso escrito eu também não...
(18 m e 48 s): Eu creio que no campo em que diz os fins a que se destina não diz o número do processo, mas é uma questão de ver, de confirmar o teor do documento [foi exibido o documento ao arguido], Portanto, fim a que se destina — instrução do processo criminal. Na linha abaixo tem o número do processo, efetivamente. Não interpretei aqui que estivesse... Ou seja, o número do processo percebo que é o processo à ordem do qual o documento foi emitido, mas dentro da mesma jurisdição e percebendo a decorrência entre os processos, a relação de conexão que havia de um para o outro não achei que fosse um crime confirmar a sentença com este documento que tinha conteúdos iguais...
(22 m e 43 s): Como referi, não visualizei, ou não tive a perceção de que pudesse estar a cometer um crime, que houvesse uma incriminação específica quanto a isto e há uma ponderação que fiz: também se refere na contestação que tive o cuidado de ser o mais parcimonioso possível na referência a essa matéria; basicamente creio que transcrevi o que estava também na sentença, embora suportado originariamente no que estava no conteúdo do certificado; haveria, ou poderia, e ponderei isso, haveria muito mais a dizer sobre os factos subjacentes, factos que são na minha perspetiva públicos e notórios, os factos subjacentes ao certificado do registo criminal em fontes abertas e optei por não o referir, não fiz qualquer menção ou juízo de valor sobre esse assunto; ou seja, tentei dentro daquilo que me pareceu adequado ao cumprimento do mandato e achei adequado contextualizar de algum modo a relação que existia entre, à data, arguida... tentei ser o mais minimalista e respeitar outros aspetos da vida do assistente,
(26 m e 47 s): Não quis utilizar o certificado de registo criminal para um fim outro que pudesse causar qualquer lesão ou perturbação à vida do assistente; portanto, achei que enquanto advogado nos dois processos e havendo nítidas ligações entre ambos e havendo já a abordagem desse documento no outro processo e também enquanto advogado embora com alguma latitude sobre o que é que um advogado pode e não pode fazer no âmbito da defesa, naturalmente que tem limites, mas não achei que estivesse, pelos motivos que expus — a coincidência da sentença e do teor do certificado — a exorbitar, a ultrapassar, o limite da atuação que também a incumbência de advogado me impõe.
L. Estas declarações surgem corroboradas pelo teor dos documentos:
- Certidão do processo n.º 310/17...., a fls. 355-376 (despacho de admissão de requerimento de abertura de instrução, despacho de 7/9/2018, e acta de leitura de decisão instrutória);
- Cópia de requerimento de abertura de instrução e respectivos anexos — processo 310/17.... -p a fls. 476 ss.
- Certidão com código mo ..., a fls. 428 ss e 1090
- Requerimento para emissão de certidão, de 8/06/2019, a fls. 430 ss.
- Cópia de despacho de 25/06/2018 (proc. 310/17...., a fls. 1086-1088;
- Cópia de requerimento de certidão de 08/06/2019, a fls. 1089;
- Certificado do registo criminal a fls. 1111.
M. De nenhum destes elementos resulta que o arguido tivesse a efetiva consciência de uma actuação ilícita, ou vontade de infringir ainda que por mera eventualidade, decorrendo a sua intervenção nos estritos limites da actuação e representação judiciária em dois processos relacionados.
N. Acresce que o Tribunal a Quo explicitou que a sua apreensão do sentido das declarações do arguido se baseou, também, no modo como o relato do arguido foi prestado, a fluência do discurso, a (in)existência de inflexões na voz, os elementos sublinhados no relato e, até, características de personalidade que se revelem permitindo intuir, ou não, a existência de intenções,
O. E dessa ponderação resultou que o Tribunal a quo explicitou que o objetivo prosseguido pelo arguido não foi a prática do crime pelo qual é acusado, como não visou lesar o bom nome, honra e consideração do assistente,
P. Como bem referiu a sentença, não foi produzida qualquer prova que permitisse concluir que o arguido tivesse agido na posse do conhecimento que aquele certificado de registo criminal apenas poderia ser utilizado no processo aposto na folha de rosto e que, por estar a dar entrada deste no processo n.º 310/17...., se encontrava a utilizar o certificado de registo criminal para finalidade diversa,
Q. É comum ao arguido e aos meritíssimos juízes dos processos n.º 310/17 e n.º 10/15 o entendimento de que para efeitos probatórios em processos correlacionados a utilização do CRC do arguido não configuraria um crime por inexistência da intenção de utilizar de modo desviante dados sensíveis do assistente,
R. Por outro lado, a convicção da licitude do arguido na sua conduta também foi confirmada pelo tribunal, pelo facto de o CRC ter sido transcrito na sentença do processo à ordem do qual foi emitido, documento que é público por natureza.”

Neste Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta teve vista nos autos, elaborando parecer em que manifesta somente que os recursos se mostram interpostos e motivados, por quem tem legitimidade e interesse em agir.
Foi dado cumprimento ao artigo 417.º n.º 2 do C.P.Penal, não tendo sido oferecida resposta ao parecer.

II.
Colhidos os vistos legais, procedeu-se a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

QUESTÃO PRÉVIA:
Analisadas as conclusões apresentadas pelo recorrente assistente, constatamos que o mesmo suscita as seguintes:
1. Erro de julgamento por considerar como incorretamente julgada a matéria de facto considerada não provada sob os n.ºs A a E
2. Se o arguido deve ser condenado pelo crime de que se encontrava pronunciado;
3. Se o arguido deve ser condenado no pagamento da indemnização requerida pelo assistente.
Fazendo uma comparação com as formuladas pelo M.º P.º e que mais abaixo elencamos, verificamos que a única parte que se mostra especificamente suscitada pelo recorrente assistente, no sentido de só a ele dizer respeito, se mostra dirigida à pretensão de ser dado provimento ao pedido de indemnização civil por si formulado e o arguido deve ser condenado no pagamento da indemnização requerida pelo assistente (questão 3).
Consultado o pedido de indemnização formulado nos autos e tal como se mostra referido no relatório supra bem como no relatório da sentença recorrida, o pedido formulado é “a condenação do arguido no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de €2000,00 acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos a partir da notificação do pedido e até efectivo e integral pagamento”.
Face ao montante do pedido – 2.000,00 euros -, visto o disposto nos art.ºs 44.º n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) [Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30 000,00 e a dos tribunais de primeira instância é de (euro) 5 000,00.] e 400º n.º 2 CPP [Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.], a sentença recorrida não admite recurso no tocante ao pedido de indemnização civil.
Em consequência, rejeita-se o recurso do assistente, nessa parte.

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, as quais, conforme jurisprudência constante e pacífica, delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271), as questões suscitadas são:
Pelo M.º P.º :
1. Impugnação da matéria de facto não provada sob as alíneas B a E;
2. Se o arguido se constituiu autor material do crime por que se encontrava pronunciado;
Pelo assistente:
1. Erro de julgamento por considerar como incorretamente julgada a matéria de facto considerada não provada sob os n.ºs A a E;
2. Se o arguido deve ser condenado pelo crime de que se encontrava pronunciado;

Da sentença recorrida consta, na parte ora relevante:
“FACTOS PROVADOS
Com interesse para a decisão da causa, resultaram do julgamento da causa provados os seguintes factos:
1. O arguido AA exerce a profissão de advogado, encontrando-se inscrito na Ordem dos Advogados com a cédula profissional n.º ....
2. O arguido exerceu o mandato forense no âmbito do processo comum singular n.º 10/15...., a correr termos no Juízo Local Criminal ... – Juiz ..., na sequência de poderes que lhe foram conferidos por administrador da universidade ....
3. No referido processo comum singular n.º 10/15...., o assistente BB assumiu a qualidade processual de arguido.
4. No dia 15/11/2017 foi emitido e junto ao processo comum singular n.º 10/15.... o certificado de registo criminal do ora assistente BB, onde constava uma inscrição, tendo em vista instruir o referido processo, uma vez que BB assumia a qualidade de arguido nesse processo.
5. Em data não apurada mas colocada no tempo entre 15/11/2017 e 30/04/2018, o arguido acedeu à plataforma informática dos Tribunais Citius e acedeu ao conteúdo do processo comum singular n.º 10/15.....
6. Após, o arguido acedeu ao certificado de registo criminal do assistente BB, que estava associado electronicamente ao referido processo, e imprimiu o referido certificado de registo criminal, com o objectivo de usar esse documento no âmbito do inquérito n.º 310/17...., o qual corria termos na ... Secção do DIAP ....
7. No inquérito n.º 310/17...., o assistente BB assumia a qualidade de assistente, ao passo que DD assumia a qualidade de arguida e tinha como advogado constituído o arguido.
8. No dia 30/04/2018, em representação de DD, o arguido requereu a abertura de instrução no referido inquérito n.º 310/17...., tendo, para o efeito, elaborado requerimento, sendo que um dos documentos que juntou com esse requerimento foi uma cópia do documento referido em 4).
9. O certificado de registo criminal do assistente BB foi emitido em .../.../2017 com a finalidade exclusiva de instruir o processo criminal n.º 10/15...., onde este assumia a qualidade de arguido.
10. O arguido sabia que o certificado de registo criminal havia sido emitido com a finalidade de instruir o processo comum singular n.º 10/15.....
11. Não obstante esse conhecimento, quis utilizar o certificado de registo criminal no requerimento de abertura de instrução que dirigiu ao inquérito n.º 310/17.... que corria termos na ... Secção do DIAP ..., o que concretizou, apesar de saber que se tratava de documento que continha informação e dados pessoais do assistente BB.
12. O arguido quis divulgar o conteúdo inscrito no certificado de registo criminal de BB em autos de processo onde este era assistente e que diziam respeito a factos estranhos ao conteúdo daquele certificado de registo criminal.
13. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente.
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Resultaram demonstrados os seguintes factos referentes ao pedido de indemnização civil:
14. O assistente exerce funções como professor universitário e investigador, sendo reconhecido pelos seus pares.
15. O assistente sentiu-se pessoalmente humilhado.
16. Após conhecimento do referido em 8), o assistente sentiu-se triste e afectado na sua capacidade de trabalhar.
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Resultaram provados os seguintes factos a respeito da situação pessoal e económica do arguido:
17. O arguido não tem condenações averbadas no certificado de registo criminal.
18. Exerce como profissional liberal a actividade de advogado, auferindo mensalmente e em média a quantidade líquida de €3000,00.
19. Reside com a cônjuge em imóvel do qual é proprietário, liquidando mensalmente o valor de €175,00 a título de condomínio.
20. Tem uma filha com 14 anos de idade, a qual reside consigo em regime de residência alternada, relativamente à qual despende mensalmente a quantia de €700,00 para pagamento da instituição de ensino.
21. Despende mensalmente a quantia de €250,00 pela locação de veículo automóvel ligeiro de passageiros.
22. Despende mensalmente e em média a quantia de €600,00 para pagamento de contribuições para a Caixa de Previdência de Advogados e Solicitadores.
23. Despende mensalmente, ainda, cerca de €50,00 para seguro de saúde e a quantia de €400,00 para comparticipação de despesas de escritório.
24. Encontra-se ainda registado como proprietário de uma moradia.
25. É licenciado em Direito e mestre em gestão, sendo pós-graduado em direito das sociedades comerciais.
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Resultaram ainda provados os seguintes factos emergentes da defesa:
26. Em 25/06/2018, foi proferido despacho pelo Senhor Juiz de Direito do Juízo de ... no processo n.º 310/17...., com o seguinte teor: “Admito a junção aos autos dos documentos de fls. 427 a 466 – arts. 291.º, n.º 1 e 291.º, n.º 1, ambos do Cód. de Proc. Penal”.
27. Em 08/06/2019, o arguido apresentou junto do processo n.º 10/15.... do Juízo Local Criminal ... – J..., requerimento de certidão de peças do processo, com o seguinte teor: “A certidão deste documento destina-se a provar a sua existência neste processo crime, bem como o modo como o requerente/signatário/mandatário do assistente tomou conhecimento do mesmo. A prova será produzida em processo disciplinar originado por participação do arguido à Ordem dos Advogados”, mais se identificando um documento de 15/11/2017, designado certificado de registo criminal, com a referência n.º ...90.
28. Em 12/06/2019 foi emitida pelo processo n.º 10/15.... certidão com o código de acesso ..., com o seguinte teor: “certifica que neste juízo correm termos os autos acima identificados e que os atos processuais que fazem parte integrante desta certidão, certificado de registo criminal do arguido, emitido pelo Sistema de Informação de Identificação Criminal e junto aos autos em 15/11/2017, com a referência ...90, estão conformes aos correspondentes dados da tramitação do processo. A peça processual ora certificada consta dos autos em formato digital e em papel, a fls. 523-525 do 2.º volume dos autos”, integrando a certidão a cópia do documento referido em 4).
29. No processo n.º 10/15.... foi proferida, pelo Juízo Local Criminal ... – J..., sentença em 7/02/2018, a qual consta o seguinte teor: “(…) Da matéria de facto provada: (…) Das condições pessoais do arguido (…) 55. Foi condenado por sentença proferida em 21.11.204 [2014], transitada em julgado em 16.09.2015 no âmbito do processo comum perante o Tribunal Colectivo número 1102/07.... do Juízo Central Criminal ... – Juiz ... do Tribunal Judicial da Comarca ... pela prática, em 01.06.2008, de quatro crimes de injúria, de dois crimes de denúncia caluniosa, de quatro crimes de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, de três crimes de dano simples, de três crimes de difamação, de cinco crimes de ameaça, de um crime de furto simples, de um crime de coacção agravada e de um crime de gravações e fotografias ilícitas, na pena única de quatro anos de prisão suspensa na sua execução por igual período (…)”.
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3.1.2. FACTOS NÃO PROVADOS
Resultaram não provados os seguintes factos:
A. Que ao actuar nos termos descritos, o arguido tenha pretendido atingir o bom nome, honra e consideração do assistente BB.
B. Que o arguido soubesse que o aludido certificado de registo criminal tivesse sido emitido com a finalidade exclusiva de instruir o processo n.º 10/15.....
C. Que o arguido soubesse que não podia utilizar o certificado de registo criminal para finalidade diversa.
D. Que os dados referidos em 11), no aludido contexto, apresentassem natureza reservada.
E. Que o arguido tenha agido sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
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Com interesse para a decisão da causa, não ficou por provar qualquer facto que, considerado o teor da acusação deduzida contra o arguido que se considerasse pertinente para aferir da responsabilidade criminal relativamente à prática dos crimes de que vem acusado.
O Tribunal promoveu, ainda, ao expurgo dos elementos meramente conclusivos, repetidos ou sem substrato fático relevante para a boa instrução da causa, bem como aqueles que por imperativo legal, não se pode prevalecer.
É o caso da locução “o certificado de registo criminal não podia ser usado para outra finalidade, nem podia ser utilizado noutro processo, salvo autorização do titular da informação ou decisão de autoridade judiciária competente”, plasmada na acusação, a qual verte conteúdo de natureza, simultaneamente, normativa e conclusiva, não sendo, por isso, factualidade em sentido técnico-jurídico, impondo-se, por isso, o seu expurgo.
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3.2. MOTIVAÇÃO
A convicção do Tribunal em relação à factualidade acima descrita e considerada como provada e não provada resulta da análise conjugada e crítica do conjunto da prova emergente da instrução e discussão da causa, ponderada à luz das regras da experiência comum e valorada de acordo com a livre convicção do julgador, nos termos previstos do art. 127.º do Código de Processo Penal, salvo quando a lei atribui força probatória diversa a outro meio de prova.
Deste modo, considerando que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de factos e de direito da decisão para que, deste modo, seja possível verificar as razões que conduziram à formulação do juízo – art. 97.º, n.º5 do Código de Processo Penal e art. 205.º, n.º1 da Constituição -, consigna-se que o Tribunal fundou a convicção expressada na presente sentença na apreciação crítica da prova produzida na audiência de discussão e julgamento, designadamente nas declarações prestadas pela arguido AA, nas declarações prestada pelo assistente BB, bem como nos depoimentos prestados pelas testemunhas EE, FF, GG, DD, HH e II, as quais foram criticamente conjugados com a seguinte prova de natureza documental:
a) Participação criminal datada de 10/08/2018, a fls. 4-7-v;
b) Mensagem de correio electrónico de 16/02/2017, a fls. 9-v;
c) Declaração médica de 01/08/2018, a fls. 10;
d) Certidão do processo n.º 310/17...., a fls. 19-66 (requerimento de abertura de instrução e documentação anexa);
e) Cópia de requerimento apresentado no processo n.º 310/17...., em 10/07/2018, a fls. 86-88;
f) Guia de tratamento para o utente, de 27/09/2018, 11/10/2018, 23/10/2018, a fls. 88-91;
g) Cópia de acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido no processo n.º 10/15...., de 05/02/2019, a fls. 212-258, 431-475;
h) Cópia de acta de leitura de decisão instrutória do processo n.º 310/17...., a fls. 259-267, 418-426 e 1061-1077;
i) Comprovativo de requerimento para emissão de certidão electrónica, de 25/10/2018, a fls. 268:
j) Decisão do Conselho de Deontologia de Lisboa da Ordem dos Advogados no procedimento n.º ...17..., a fls. 270-272, 415-417 e 836-840;
k) Certidão do processo n.º 310/17...., a fls. 355-376 (despacho de admissão de requerimento de abertura de instrução, despacho de 7/9/2018, e acta de leitura de decisão instrutória);
l) Certidão do processo n.º 10/15...., a fls. 382-386 (procuração forense, requerimento de certidão de 8/06/2019, certidão, de 12/06/2019;
m) Informação do processo n.º 10/15...., a fls. 389-390;
n) Cópia de requerimento de abertura de instrução e respectivos anexos – processo n.º 310/17.... -, a fls. 476 ss.
o) Certidão com código n.º ..., a fls. 428 ss e 1090 ss;
p) Requerimento para emissão de certidão, de 8/06/2019, a fls. 430 ss.
q) Cópia parcial de revista National Geographic Portugal de Janeiro de 2011, a fls. 549-551;
r) Cópia de sentença e acórdão do processo n.º 10/15...., a fls. 841-978;
s) Cópia de requerimento de abertura de instrução no processo n.º 310/17...., e respectivos documentos, a fls. 979-1060;
t) Cópia de despacho de 25/06/2018 (proc. 310/17...., a fls. 1086-1088;
u) Cópia de requerimento de certidão de 08/06/2019, a fls. 1089;
v) Certificado de registo criminal., a fls. 1111.
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A convicção do Tribunal resultou, em especial, das declarações prestadas pelo arguido a respeito da sua situação pessoal e económica, o que não foi infirmado por qualquer outro elemento probatório, tendo merecido a atribuição de credibilidade nesse particular.
A respeito da factualidade constante dos autos, assumiu o arguido, em síntese, a prática da factualidade de natureza objectiva imputada, contextualizando os actos que praticou no âmbito do patrocínio forense, negando ainda o conhecimento do carácter ilícito da conduta.
Em concreto, assumiu o arguido dedicar-se à advocacia há vários anos (ainda que sem especial foco no direito penal), encontrando-se inscrito na Ordem dos Advogados, tendo exercido, em concreto, o mandato forense em dois processos, o n.º 10/15.... onde assegurou o patrocínio de HH, e no n.º 310/17...., onde representou DD, contextualizando que, em ambos os processos, o ora assistente BB assumia intervenção processual, razão pela qual, na sua perspectiva, o mesmo manifestava uma pulsão persecutória (em concreto, contra várias pessoas da universidade ...), razão pela qual, no citado processo n.º 310/17...., com o objectivo de sustentar o requerimento de abertura de instrução, transcreveu os antecedentes criminais do agora assistente e procedeu à junção do certificado de registo criminal oriundo do processo n.º 10/15.... e da sentença proferida neste processo (ainda não transitada em julgado), o que fez sabendo que o documento estava inserido no processo judicial de acesso livre, nunca tendo tido a intenção de proceder ao seu uso indevido, não tendo concebido que estivesse a praticar um qualquer ilícito.
Questionado a respeito das motivações, declarou que actuou do modo descrito para demonstrar o teor do documento, na sequência do que alegava, tendo considerado um procedimento normal, frisando, ainda, que a junção do documento foi admitida nos autos pelo juiz de instrução criminal.
Narrou, ainda, que em momento posterior, requereu uma certidão no processo n.º 310/17.... que abrangesse o certificado de registo criminal, tendo sido concedida e emitida a certidão.
Instado, esclareceu que, na sua perspectiva, existia uma identidade factual entre os processos n.º 10/15.... e 310/17.... (na medida em que o segundo processo teria origem em declarações prestadas por DD no processo n.º 10/15....) mas não quanto ao processo de 2009, constante no certificado de registo criminal, do qual apenas tomou conhecimento no âmbito do processo n.º 10/15..... Declarou, por fim, não lograria obter qualquer vantagem na utilização do certificado de registo criminal na medida em que os elementos plasmados neste se encontravam reproduzidos na sentença proferida no processo n.º 10/15.....
Declarou ainda que desconhece os efeitos produzidos no assistente dos actos que praticou, designadamente na sua capacidade de ganho.
O assistente BB prestou declarações, tendo explicitado que o arguido foi advogado de DD no processo havido contra esta, tendo sido imediatamente identificado pelo seu advogado à época (JJ), a natureza ilícita do comportamento do arguido, tendo sido extraída certidão e apresentada a respectiva queixa, na medida em que nunca houvera autorizado a utilização do certificado de registo criminal, explicando que os seus dados se encontram plasmados no certificado de registo criminal. Narrou que interpretou a junção do aludido documento (bem como da sentença condenatória em primeira instância, proferida no processo n.º 10/15...., a qual ainda não era definitiva, tendo sido modificada pelo Tribunal da Relação) como um meio de descredibilizar a sua queixa.
Instado, esclareceu que o teor do certificado de registo criminal corresponde à verdade.
Perguntado a respeito dos efeitos provocados na sua vida profissional, explicou que sentiu a situação como inadmissível e um abuso, tendo ficado em baixo e sentindo-se ofendido na honra e bom nome, tendo o psiquiatra que o acompanha reforçado a medicação, tendo ainda interrompido trabalhos que tinha em curso durante uma semana ou duas.
Nega que tenha um comportamento conflituoso, explicando que houvera ocorrido um mal-entendido com a universidade ... a respeito da utilização de verbas, explicando que não tem nada contra ninguém daquela instituição.
EE, pai do assistente, declarou que acompanha a vida do filho, explicando que este houvera tido um desentendimento com HH, o qual originou igualmente um processo judicial com DD, no âmbito do qual foi dado entrada de um Certificado de registo criminal do assistente com a intenção de denegrir a imagem deste, o que o prejudicou pessoalmente, tendo tido acompanhamento médico, permanecendo medicado, não conseguindo trabalhar, ainda que narre também que o seu filho beneficia de acompanhamento psicológico há vários anos, encontrando-se actualmente de baixa.
FF, fisioterapeuta e amiga do assistente, narrou que entre Setembro e Outubro de 2018 o assistente se encontra muito em baixo, tendo-lhe sido ministrada medicação “forte”(sic), que acaba por descrever como antidepressivos e ansiolíticos, uma vez que se sentia lesado num assunto relacionado com umas verbas que a universidade ... não desbloqueava (o que sabe porque lhe foi comunicado pelo assistente), tendo, nessa sequência, procurado denegrir a imagem do assistente, explicando que, nessa sequência, o assistente deixou de conseguir trabalhar.
GG, professora de ensino superior aposentada e farmacêutica, descreveu o assistente como um investigador internacionalmente conhecido, negando identificar-lhe um comportamento conflituoso.
Narrando manter um contacto à distância com o assistente (ainda que com maior proximidade no verão), narrou, ainda que não contextualize no tempo, que o assistente se mostrava muito ansioso (sendo que a ansiedade, que já existia previamente, se encontrava anteriormente controlada), o que se agravou com a apresentação de um certificado de registo criminal fora do contexto, tendo aquele tido necessidade de efectuar a toma suplementar de medicação, o que afectou igualmente a sua capacidade de trabalhar, tendo identificado um trabalho que seria para ser publicado em 2018 e que apenas o foi em 2020.
DD, técnica superior da Fundação para a ..., narrou ter sido processada pelo assistente relativamente a uma série de altercações ocorridas quando exercia funções como directora dos serviços administrativos, narrando ainda que o arguido assumiu a sua defesa.
HH, gestor de empresas e, anteriormente administrador da universidade ... durante 9 anos, narrou que o arguido foi seu advogado e, ainda, que mantém uma relação de inimizade com o assistente (tendo sido condenado por factos praticados sobre a sua pessoa).
II, advogado e colega do arguido durante cerca de 7 anos, narrou ter conhecimento da matéria em discussão nos autos, explicando que considerou necessária a apresentação do certificado de registo criminal pelo arguido no referido processo para sustentar a referida posição processual, narrando ainda ter sido, também, pessoalmente alvo de um procedimento disciplinar na Ordem dos Advogados, ainda que não consiga precisar a origem do impulso.
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Aqui chegados e vista a prova produzida, mormente as certidões que enformam os autos, bem como as declarações prestadas nos autos pelo arguido (as quais foram dignas de credibilidade nesse particular, na medida em que se mostram objectivamente corroboradas pela demais prova produzida), inexistem dúvidas que o arguido exerce a profissão de advogado e, nesse âmbito, exerceu o patrocínio forense de HH (então administrador da universidade ...) e DD, respectivamente, nos processos n.º 10/15.... e 310/17...., onde o ora assistente BB assumiu, respectivamente, a qualidade processual de arguido e assistente, resultando ainda incontrovertido, também, a partir dos citados meios probatórios, que no referido circunstancialismo de tempo e em representação de DD, o arguido apresentou no processo requerimento de abertura da fase de instrução no processo n.º 310/17...., o qual fez acompanhar, entre o mais, com o certificado de registo criminal do assistente BB.
Sendo claros, os elementos objectivos da acusação deduzida apresentam-se devidamente demonstrados, tendo em consideração os meios de prova produzidos (como se disse, as declarações do arguido bem como o teor das certidões dos autos, que adiante melhor se identificarão).
Restaria, contudo, a apreciação das intenções e conhecimentos do arguido aquando da prática dos factos, bem como os alegados efeitos que a sua conduta terá produzido no assistente.
Nesse particular e contrariamente à prova produzida, não ficou o Tribunal convencido, a partir da prova produzida, que o arguido tenha actuado, por um lado, com o propósito de atingir o bom nome, honra e consideração do assistente.
Ainda que tal elemento seja absolutamente irrelevante para o preenchimento do tipo de ilícito (podendo, eventualmente, consubstanciar uma circunstância agravante da conduta), analisada objectivamente a prova produzida, não resultou demonstrado, para além de qualquer dúvida razoável, que o arguido tenha querido amesquinhar ou apoucar o assistente.
É pacífico – até porque resulta dos elementos documentais constantes dos autos, mormente o teor do requerimento de abertura de instrução e da decisão instrutória proferida no processo n.º 310/17.... -, que a junção do aludido requerimento surge contextualizado no impulso da fase processual facultativa de instrução, referente à acusação particular deduzida pelo assistente BB contra DD (parcialmente acompanhada pelo Ministério Público), a qual imputava àquela a prática de um crime de difamação.
A fase de instrução, conforme é sabido, destina-se à comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito, em ordem em submeter, ou não, a causa a julgamento (artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal), razão pela qual se impõe ao Tribunal verificar se, nos autos, foram recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ao arguido.
Para realizar esse juízo, impõe-se ao Juízo de Instrução Criminal que faça, como faz todo e qualquer Tribunal, a apreciação crítica dos elementos probatórios constantes dos autos, devendo colher os factos provados e não provado (no caso, suficiente ou insuficientemente indiciados) e, fundadamente, explanar as razões que determinaram o Tribunal a considerar demonstrados certos factos e não demonstrados outros.
É esse o modelo ocidental de resolução de litígios, constitucional e legalmente estabelecido na comunidade tendo em consideração a submissão da querela a um terceiro imparcial que, por não ter assistido ou verificado pessoalmente os factos (porque já ocorreram e não se encontrava presente), deve fazer o esforço de, com base dos meios de prova trazidos a juízo, reconstruir a realidade ocorrida para que, com base na verdade processualmente obtida, logre resolver o pleito.
Feita esta contextualização, impõe-se assentar que na sua actividade os tribunais decidem, igualmente, com base em juízos de normalidade e de razoabilidade, dedicando grande parte da sua energia a atribuir (ou não) credibilidade ou verosimilhança aos meios de prova que lhe são apresentados numa determinada situação.
Neste contexto (em que a decisão judicial a adoptar depende da atribuição de credibilidade probatória, a qual, dado o princípio da livre convicção do julgador, poderá encontrar eco em múltiplas variáveis – designadamente o modo como o relato foi prestado, a fluência do discurso, a existência de inflexões na voz, os elementos sublinhados no relato e, até, características de personalidade que se revelem, permitindo intuir a existência de intenções) intelige-se que o arguido, em representação de DD, tenha procurado colocar em crise as declarações do agora assistente BB enquanto meio de prova, procurando contextualizar a acusação particular deduzida pelo mesmo que, na sua perspectiva, consubstanciava um “contexto de litigância frequente, de índole criminal, protagonizada pelo assistente”, arguindo, para o efeito o juízo (então provisório) produzido no processo n.º 10/15.... e, nesse segmento, a condenação anterior do arguido pela prática de crimes de injúria e difamação, procedendo à junção do certificado de registo criminal obtido a partir do processo n.º10/15.....
Ora, o contexto da alegação encontra-se devidamente contextualizada, em sede judicial, local apropriado para decisão sobre os respectivos aspectos, sendo ainda de salientar que a falta de alegação dos mencionados aspectos, considerados pelo arguido como relevantes em sede de defesa, determinaria a sua definitiva desconsideração naquele circunstancialismo de tempo.
Dito isto e tendo presente a economia e a tramitação da acção judicial, compreende-se o objectivo prosseguido pelo arguido com a apresentação do certificado de registo criminal, o que não permite, contudo, que se extraia daquela actuação a intenção de lesar o bom nome, honra e consideração do assistente.
Neste particular, clarifique-se que nem tudo o que é sentido como ofensivo por uma concreta pessoa, seja ou não a destinatária do acto comunicacional, permite identificar a existência de uma intenção lesiva.
Ademais, a circunstância de exibir um determinado certificado de registo criminal (no caso, do assistente, onde, à data, se encontrava averbada aquela condenação) sempre consubstanciaria, nesse caso, uma tentativa impossível de lesão do bom nome, honra e consideração do assistente BB na medida em que o seu teor, conforme o próprio assumiu em juízo, corresponde à verdade, ou seja, a referida condenação ocorreu, não correspondendo, por isso, a uma qualquer afectação do bom nome, honra ou consideração do assistente.
Ao assistente BB, enquanto ser humano, é devido idêntico respeito pela sua dignidade, a qual é inerente à sua condição de pessoa independentemente da comunidade ter considerado (ou não) que o mesmo praticou factos juridicamente qualificados como crime. Contudo, daí não se poderá retirar a existência de um qualquer direito a não ser confrontado com aquela concreta realidade pela circunstância da mesma ser (ou não) valorada negativamente pela comunidade.
Julgar-se válida a aludida leitura do mundo determinaria a completa destruição do direito à liberdade de expressão, constitucionalmente consagrado e com assento na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (enquanto repositório da casa comum da moderna civilização), na medida em que qualquer conteúdo verbal poderá, em tese, gerar sentimentos de repulsa face ao conteúdo, por mais verídico que aquele seja.
Ao que ficou dito acresce, ainda, o relato do próprio arguido, o qual refuta a existência de qualquer intenção nefasta ou de amesquinhamento do assistente, procurando assegurar exclusivamente aquela que, no concreto contexto, considerou ser a melhor defesa da sua constituinte, razão pela qual ponderados os factos objectivamente demonstrados, não é passível de ser inequivocamente extraída aquela intenção ofensiva do bom nome, honra e consideração do assistente dos factos.
De igual modo, não resultou demonstrado que o arguido tenha actuado sabendo o documento em crise tinha sido emitido com a finalidade exclusiva de instruir o processo n.º 10/15.... e que, por isso, não poderia utilizar o certificado com finalidade diversa.
Tal ilação parte da presunção (errada) que o arguido, sendo advogado e confrontado com o teor do documento, conhece integralmente o ordenamento jurídico vigente, em todas as suas manifestações normativas.
Visto o certificado de registo criminal em crise, deste resulta deste a indicação do nome, naturalidade, data de nascimento, nacionalidade, número de identificação civil, resultando ainda do boletim n.º1 a filiação, o sexo, estado civil, a residência, bem como, por extracto, o teor da decisão condenatória proferida pelo Juízo Central Criminal ... – J..., com a indicação do número de processo, data da decisão, de trânsito em julgado e de emissão do boletim.
Resulta também demonstrado, a partir do referido documento, que o mesmo foi emitido destinado a um fim concreto, “instrução procedimento criminal”, sendo, ainda, identificado o número de processo (10/15....), resultando ainda do rodapé do aludido documento que “este certificado é válido por três meses a contar da data de emissão e apenas para o fim acima mencionado”.
É certo que o arguido, sendo licenciado em ciências jurídicas, apresenta especiais competências para compreender, interpretar e determinar-se de acordo com o Direito vigente, impondo-se o ónus de actuar com especial cautela normativa dada, desde logo, a actividade privada de interesse público prosseguida aquando da prática do acto (a advocacia).
Contudo, salvo no que tange à indicação do número de processo (sendo duvidoso se a indicação do número de processo consubstancia uma vinculação de finalidade, o que poderia determinar que, se absurdo, os autos fossem renumerados, tal determinaria a invalidade do emprego do documento), os actos objectivos praticados pelo arguido inscrevem-se no sentido útil das palavras plasmadas no certificado de registo criminal, na medida em que o arguido o utilizou exclusivamente para essa finalidade, instruir (na acepção “fornecer ou obter informações ou esclarecimentos”) um processo de natureza criminal, no caso, o processo n.º 310/17.....
A demonstração da aludida factualidade dependeria da produção de prova, para além de qualquer dúvida razoável, que permitisse concluir que o arguido tivesse agido na posse do conhecimento que aquele certificado de registo criminal apenas poderia ser utilizado no processo aposto na folha de rosto e que, por estar a dar entrada deste no processo n.º 310/17...., se encontrava a utilizar o certificado de registo criminal para finalidade diversa.
Ora, vista a prova, é audaciosa a conclusão vertida pelo Ministério Público no despacho de acusação tendo em consideração, desde logo, que apresentado o documento perante o competente juiz de instrução criminal em processo de natureza diversa, não ofereceu qualquer dúvida (pelo menos, vertida no despacho tabular de recebimento) a respeito da admissibilidade da utilização do meio de prova, nem tampouco tendo em consideração o teor da promoção de 13/02/2020, proferida no processo n.º 10/15.... (a fls. 386) pela qual o Ministério Público promoveu a satisfação do pedido de emissão de certidão requerida pelo arguido e da qual consta, exactamente, o sobredito certificado de registo criminal.
Ora, vistos os aludidos meios de prova, se no que respeita ao arguido sempre se poderia suscitar a eventual aceitação do ilícito com o escopo de obter um benefício processual para a sua constituinte através da utilização (alegadamente ilegítima de um documento), o posicionamento, perante realidades semelhantes, de dois magistrados (um, no processo n.º 10/15...., outro, no processo n.º 310/17....), licenciados em Direito como o arguido (o que decorre de imperativo legal), suscita as mais sérias dúvidas a respeito do conhecimento generalizado da alegada norma proibitiva, mesmo entre círculo dotados de especiais conhecimentos técnicos e, também, exercício de profissões forenses.
Dito isto e tendo em consideração o apurado, as declarações do arguido a respeito do desconhecimento de tais factos não se apresentam exageradas, sendo, na verdade, acreditadas pelo teor dos próprios autos, tendo em consideração o posicionamento apresentado por licenciados em Direito a quem, após terem sido expostos àquele documento, não se suscitaram dúvidas acerca da irregularidade da utilização do documento em meio exterior ao processo para o qual foram emitidos, razão pela qual se julgou não demonstrado que o arguido soubesse que a utilização do certificado de registo criminal estivesse restringida ao processo n.º 10/15.... e que, por isso, não o poderia utilizar em meio distinto, bem tampouco que ao actuar nos termos descritos, praticasse uma conduta proibida e punida por lei.
Igual conclusão se impõe a respeito do imputado conhecimento ao arguido da natureza reservada dos dados constantes no certificado de registo criminal, realidade para o qual o mesmo, aliás, apresenta uma justificação convincente. Por definição, sendo a justiça exercida em nome do povo, esse exercício de poder derivado deve público e transparente, permitindo assim o escrutínio por parte daqueles que queiram assistir a diligências judiciais (especialmente em fase de julgamento) ou, até, proceder à consulta dos autos (artigo 90.º do Código de Processo Penal).
Ora, a introdução de um determinado documento em processo de natureza pública implica, necessariamente, a sua divulgação a todos os intervenientes processuais bem como, atenta a tendencial publicidade dos autos, a todos aqueles que contactem com os autos em fase de julgamento. Saliente-se, aliás, que a presença dos certificados de registo criminal em fase de julgamento consubstancia um elemento documental obrigatório – artigo 274.º do Código de Processo Penal.
Por conseguinte, torna-se incompaginável equacionar, a partir dos factos objectivos, que, tendo um determinado documento assumido natureza pública por imperativo legal (tendo, no caso, sido vertido na respectiva sentença e acórdão proferidos no processo n.º 10/15.... o teor do certificado de registo, sendo igualmente a sentença pública por definição), mantenha a sua natureza reservada, apresentando-se, assim, uma efectiva antilogia dos próprios termos, não resultando, por isso demonstrada a alegada natureza reservada dos dados plasmados no certificado de registo criminal.
***
Assim, atenta a apreciação crítica da prova realizada, a factualidade provada e não provada resultou dos seguintes elementos:
O facto 1) resultou demonstrado a partir da conjugação das declarações do arguido, do assistente BB, II, HH e DD, comunicação da Ordem dos Advogados (fls. 414), procuração forense de fls. 383 e requerimento de emissão de certidão, a fls. 384, do qual resulta a identificação como advogado bem como o endereço de correio electrónico concedido pela Ordem dos Advogados aqueles que nesta se encontrem inscritos (conforme resulta das regras de experiência comum).
O facto 2) resultou demonstrado a partir das declarações prestadas pelo arguido bem como pela testemunha HH (à data, administrador da universidade ...), sendo ainda corroborado pelo teor da certidão de fls. 382-386.
O facto 3) resulta demonstrado a partir, entre o mais, do teor da sentença e acórdão proferido no processo n.º 10/15...., entre o mais, a fls. 841-978, sendo qual qualidade processual assumida nesses autos, ainda, pelo assistente BB nas declarações prestadas em juízo.
O facto 4) resulta da conjugação do teor da certidão de fls. 385, conjugada ainda com a cópia do Certificado de registo criminal de fls. 51-52, resultando ainda das regras de experiência comum (em função do exercício de funções forenses) que os certificados de registo criminal obtidos através de meios automáticos (mormente através do sistema Citius) se mostram devidamente certificados com a data do seu pedido, a qual corresponde à da emissão, constando daquele o dia 15/11/2017 como dia de emissão.
Os factos 5) e 6) e 8) resultam demonstrados a partir da conjugação das declarações do arguido com o teor da certidão do processo n.º 310/17.... (fls. 19-66), a saber, assumiu o arguido que procedeu à retirada do Certificado de registo criminal a partir do sistema Citius, a partir do processo n.º 10/15.... e procedeu à sua entrega no processo 310/17.... na data certificada pela respectiva certidão emitida pelo processo (com data de entrada no DIAP, com carimbo aposto a 30/04/2018). A assunção do patrocínio de DD resulta das declarações desta e do arguido, bem como do teor do requerimento de abertura de instrução e decisão instrutória produzida nos autos.
O facto 7) resulta demonstrado a partir das uniformes declarações do arguido e do assistente, bem como de DD e, igualmente, do teor da certidão emitida pelo processo n.º 310/17.... (fls. 355-376), resultando, em concreto, as posições processuais assumidas da respectiva acta de leitura de decisão instrutória e decisão instrutória constante dos autos.
Os factos 9) e 10) resultam demonstrado a partir do teor do certificado de registo criminal a fls. 51-52, sendo a qualidade de arguido do aqui assistente BB nesse processo atestada pelo teor da sentença e acórdão proferido nesse processo n.º 10/15...., bem como das declarações do arguido quanto à finalidade do certificado de registo criminal.
Os factos 11) a 13) resultam demonstrados a partir das declarações prestadas pelo arguido, o qual assumiu que actuou de modo livre e voluntário, no exercício do patrocínio forense de DD, sabendo que o Certificado de registo criminal houvera sido adicionado no processo n.º 10/15.... com a finalidade de o instruir, decidiu instruir o processo n.º 310/17.... com este, sabendo que o mesmo continua informações referentes à pessoa do assistente BB, pretendendo levar o conteúdo daquele certificado de registo criminal ao conhecimento do respectivo juiz de instrução do processo n.º 310/17.... (divulgando, através desse meio, o conteúdo do certificado de registo criminal). Resultou ainda demonstrado, das próprias declarações do arguido, que a condenação averbada no Certificado de registo criminal nada tinha que ver com o teor dos aludidos processos n.º 10/15.... ou 310/17.....
O facto 14) resultou demonstrado a partir da conjugação das declarações do assistente, valoradas nesse particular, bem como do relato de trazido por GG, sendo ainda valorado o teor da reprodução parcial de artigo a fls. 549-551.
Os factos 15) e 16) resultaram demonstrados a partir das declarações do assistente, merecedoras de credibilidade nesse particular, encontrando ainda respaldo no relato de FF e GG na medida em que confirmaram (ainda que a primeira com escasso detalhe) os sentimentos partilhados por aquele; foi ainda valorado o teor da declaração médica a fls. 10 e respectivas guias de tratamento a fls. 88-91. Salienta-se, contudo, que resulta demonstrado que, pelo menos desde 10/07/2018, o assistente BB tinha conhecimento dos factos praticados pelo arguido. Nesta sede, salienta-se que não foi atribuída particular credibilidade ao depoimento de EE, pai do arguido, tendo em consideração o carácter empenhado do relato, ao longo do qual não mostrou evidenciar deter qualquer razão de ciência directa daquilo que ia narrando (remetendo para aquilo que o assistente lhe houvera transmitido), tendo ficado ainda evidenciada a existência discrepâncias evidentes no relato que lhe retiram valia probatória (salienta-se, designadamente, que a testemunha mencionou que o assistente não era capaz de trabalhar até à presente data, encontrando-se de baixa médica, quando o assistente houvera narrado que actualmente se encontra estável e em licença sabática).
O facto 17) resulta do teor do certificado de registo criminal.
Os factos 18) a 25) resultaram demonstrados a partir das declarações prestadas pelo arguido, tendo merecido, nesse particular, credibilidade, na medida em que o relato não foi infirmado por qualquer prova produzida em sentido diverso, sendo de sublinhar o modo objectivo e detalhado do relato.
O facto 26) resulta demonstrado o teor da certidão do processo n.º 310/17...., a fls. 355-376.
Os factos 27) e 28) resultam demonstrados a partir do teor da certidão do processo n.º 10/15...., a fls. 384-386.
O facto 29) resulta do teor da sentença proferida no processo n.º 10/15...., a fls. 841-978, consubstanciando o facto provado reprodução do seu teor.
Os factos A) a E) resultaram não provados pelas razões anteriormente enunciadas e que aqui se dão por reproduzidas, sublinhando-se sinteticamente que não foi produzida qualquer prova que permitisse, para além de qualquer dúvida, demonstrar que o arguido pretendesse apoucar o assistente BB, afectando-o no seu bom nome, honra e consideração (o que seria, aliás, insusceptível de conseguir por aquele meio). Acresce ao que ficou dito que não ficou demonstrado, para além de qualquer dúvida razoável, que o arguido tivesse actuado conhecedor da alocação exclusiva do certificado de registo criminal ao processo judicial em causa (não sendo evidente, do teor do documento, que a identificação do processo adere à finalidade de instrução criminal, finalidade essa prosseguida pelo arguido com o requerimento apresentado), que soubesse que não o poderia utilizar (sendo tal conclusão decorrência da falta de conhecimento do carácter exclusivo do certificado de registo criminal ao processo n.º 10/15....). A natureza reservada dos dados resulta infirmada pela circunstância de se encontrarem plasmados em processo de natureza pública e, ainda, parcialmente reproduzidos em sentença e acórdão de natureza pública.
Não resultou ainda demonstrado que o arguido tenha actuado conhecedor do carácter proibido e punido da sua conduta na medida em que, tendo em consideração as suas declarações, estas se mostram de acordo com as regras de experiência comum uma vez que, pese embora este seja advogado e lhe seja exigido um especial cuidado na determinação normativa das suas acções, existem sérias dúvidas a respeito do conhecimento da aludida norma, tendo em consideração, desde logo, a promoção do digno procurador da República (fls. 386, processo n.º 10/15....) e o despacho do Exmo. Senhor Juiz de Instrução Criminal (processo n.º 310/17...., a fls. 355-376), da qual resulta demonstrada que a utilização exoprocessual do certificado de registo criminal destinado ao processo n.º 10/15.... bem como a obtenção de certidão do certificado de registo criminal não suscitou particulares dúvidas de conformidade à lei, extraindo-se de tais factos, à luz das regras de normalidade, a inexistência de conhecimento generalizado, mesmo entre meios particularmente instruídos, do carácter eventualmente ilícito e punível de tal acto.


Apreciando:
1. Recurso do M.º P.º:
Impugnação da matéria de facto não provada sob as alíneas B a E:
Manifesta-se o recorrente M.º P.º contra a opção seguida na sentença recorrida quando se deu como não provados os factos mencionados sob os pontos B [Que o arguido soubesse que o aludido certificado de registo criminal tivesse sido emitido com a finalidade exclusiva de instruir o processo n.º 10/15.....], C [ Que o arguido soubesse que não podia utilizar o certificado de registo criminal para finalidade diversa.], D [Que os dados referidos em 11), no aludido contexto, apresentassem natureza reservada.] e E [Que o arguido tenha agido sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei] argumentando que, tendo por base as declarações de arguido prestadas na sessão de 23.11.2022 e que identifica temporalmente nessa mesma gravação, aquele certificado de registo criminal (CRC) foi usado em processo em que a pessoa identificada no CRC assumia a posição de assistente, nunca tendo assumido a qualidade de arguido, inexistia qualquer conexão entre o processo que deu origem a uma inscrição no CRC e os referidos processos 10/15.... e 310/17...., a inscrição existente dizia respeito a factos que não tinham qualquer conexão aos demais intervenientes processuais (com exceção do assistente BB) ou a assuntos da universidade ....
Trata-se de uma impugnação factual feita ao abrigo do disposto no art.º 412º n.º 3 CPP com reapreciação da prova que se mostra indicada pelo recorrente, nos termos que acima já delimitámos e que se pode traduzir na chamada impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º 3, 4 e 6, do mesmo diploma, na qual se impõe sejam respeitados os três requisitos que a a lei processual impõe: i) a especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados; ii) a especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida e iii) a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P. e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do C.P.P.) - o que se mostra observado no caso por parte do recorrente.
É manifesto que assiste inteira razão ao recorrente, desde logo porquanto as explicações e justificações que o arguido dá nas declarações postas em destaque pelo recorrente nas alegações de recurso não podiam merecer a credibilidade que o tribunal lhes concedeu na motivação onde desenvolve a formação da sua convicção, mormente no segmento em que se afirma: “A demonstração da aludida factualidade dependeria da produção de prova, para além de qualquer dúvida razoável, que permitisse concluir que o arguido tivesse agido na posse do conhecimento que aquele certificado de registo criminal apenas poderia ser utilizado no processo aposto na folha de rosto e que, por estar a dar entrada deste no processo n.º 310/17...., se encontrava a utilizar o certificado de registo criminal para finalidade diversa.
Ora, vista a prova, é audaciosa a conclusão vertida pelo Ministério Público no despacho de acusação tendo em consideração, desde logo, que apresentado o documento perante o competente juiz de instrução criminal em processo de natureza diversa, não ofereceu qualquer dúvida (pelo menos, vertida no despacho tabular de recebimento) a respeito da admissibilidade da utilização do meio de prova, nem tampouco tendo em consideração o teor da promoção de 13/02/2020, proferida no processo n.º 10/15.... (a fls. 386) pela qual o Ministério Público promoveu a satisfação do pedido de emissão de certidão requerida pelo arguido e da qual consta, exactamente, o sobredito certificado de registo criminal.” .
A primeira nota que se impõe fazer por relação a esta argumentação diz respeito à apontada necessidade de prova que permitisse concluir que o arguido tivesse agido na posse do conhecimento que aquele certificado de registo criminal apenas poderia ser utilizado no processo aposto na folha de rosto. Dizemos isto na medida em que inexiste necessidade de qualquer prova daquele concreto conhecimento na medida em que, não só o documento em si estava inserido no processado do referido procedimento criminal - 10/15.... – dizendo o mesmo especificamente a finalidade para que foi emitido – ser junto ao P.º acima identificado para o qual e onde havia sido solicitada a sua emissão por parte do respetivo titular. Depois, não pode ser atendida qualquer justificação por parte do arguido dada no sentido de ignorar o que legalmente se mostra estabelecido na Lei n.º 67/98 (à data dos factos, vigente na redacção estabelecida pela Lei n.º 103/2015), mormente o disposto no seu art.º 6.º, nem mesmo sob a capa da defesa do seu cliente, conhecimento aquele que se mostra exigível ao arguido atenta a qualidade de advogado.
Acresce que o argumento esgrimido pelo recorrido nas suas declarações da ligação entre os processos – 10/15 e 310/17 – não se pode ter como integral por relação a todas as inserções mantidas no certificado de registo criminal, mas que, mesmo que tal se verificasse, o “desvio” da finalidade do certificado em questão não se mostrava minimamente beliscado nem a respectiva utilização se mostrava, por esse motivo, legalmente acobertada pelo que não podemos acompanhar a sentença quando afirma na motivação que “Tal ilação parte da presunção (errada) que o arguido, sendo advogado e confrontado com o teor do documento, conhece integralmente o ordenamento jurídico vigente, em todas as suas manifestações normativas.” O que se mostra contraditório com a menção posterior nessa mesma motivação que “Resulta também demonstrado, a partir do referido documento, que o mesmo foi emitido destinado a um fim concreto, “instrução procedimento criminal”, sendo, ainda, identificado o número de processo (10/15....), resultando ainda do rodapé do aludido documento que “este certificado é válido por três meses a contar da data de emissão e apenas para o fim acima mencionado”, (sublinhado nosso) o que nos parece ter sido desprezado pelo tribunal.
Dizemos mesmo que, valendo-nos da asserção desenvolvida na motivação da decisão do tribunal de que “a introdução de um determinado documento em processo de natureza pública implica, necessariamente, a sua divulgação a todos os intervenientes processuais bem como, atenta a tendencial publicidade dos autos, a todos aqueles que contactem com os autos em fase de julgamento. Saliente-se, aliás, que a presença dos certificados de registo criminal em fase de julgamento consubstancia um elemento documental obrigatório – artigo 274.º do Código de Processo Penal.
Por conseguinte, torna-se incompaginável equacionar, a partir dos factos objectivos, que, tendo um determinado documento assumido natureza pública por imperativo legal (tendo, no caso, sido vertido na respectiva sentença e acórdão proferidos no processo n.º 10/15.... o teor do certificado de registo, sendo igualmente a sentença pública por definição), mantenha a sua natureza reservada, apresentando-se, assim, uma efectiva antilogia dos próprios termos, não resultando, por isso demonstrada a alegada natureza reservada dos dados plasmados no certificado de registo criminal.” , o Mmo. Juiz incorreu em clara confusão entre “acesso e conhecimento”, de um lado, e “divulgação e utilização” por outro.
Independentemente da especificidade de nos encontrarmos perante dados pessoais muito particulares e com uma muito especifica finalidade, como resulta dos dipositivos legais que se mostram analisados na sentença e que aqui não importa relembrar, para demonstração do que acima desenvolvemos basta-nos fazer apelo ao regime de acesso aos autos que se mostra estabelecido no art.º 89º CPP que apenas permite a consulta ou a obtenção, em formato de papel ou digital de elementos dele constantes, dos correspondentes extratos, cópias ou certidões.
Por outro lado, os argumentos esgrimidos pelo recorrido arguido de que obteve uma certidão da sentença proferida no indicado P.º 10/15 e do certificado que dele constava e que, posteriormente, veio a juntar ao P.º 310/17, apenas demonstram que, afinal, o arguido estava ciente de que não podia fazer a impressão desse documento através do acesso ao citius e proceder à junção desta aos autos indicados. Nem mesmo a admissão desses documentos através de despacho do Mmo. JIC – facto provado 26 - determina ou acarreta qualquer “legalização” dessa obtenção, nos moldes que se mostram dados como objectivamente provados nos factos 5 e 6.
A argumentação da relação entre o processo à ordem do qual o certificado foi emitido e o processo no qual o mesmo foi junto como prova não colhe. Essa relação não significa minimamente a existência de legitimidade ou de motivo para violar as normas erigidas para proteger dados pessoais, nomeadamente, as referentes aos antecedentes criminais.
Apesar de não o referir no requerimento em que a junção do CRC em questão se mostra solicitada, apenas o sendo referido em sede de alegação de recurso, a pulsão persecutória do assistente do processo no qual foi junto o certificado de registo criminal seria de todo irrelevante para a decisão sobre a existência de indícios criminais. Tal irrelevância ficou consignada na decisão instrutória.
Não obstante, o despacho proferido sobre tal documento que consta de fls. 356 a 376 e a ponderação do documento em causa no processo n.º 310/17.... apenas poderiam servir para, quando muito, fixar em concreto a medida da pena do arguido.
Nessa conformidade mostram-se inócuos para legitimar ou desculpar a conduta adoptada.
Acresce que, apesar da respectiva junção se verificar na prossecução da defesa do seu cliente, o exercício dessa defesa não pode ser feito de um modo irrestrito, antes se impondo o cabal cumprimento, tal como sucede com a acusação, de regras especificas quanto aos meios de prova e respectivos requisitos/formalismos de obtenção, não sendo claramente a facilidade de acesso do processo e ao documento um deles ou que o legitimaria a fazê-lo.
Ao nível da intencionalidade do acto, dúvidas inexistem de que o mesmo revestiu tais contornos à luz das declarações do arguido. Mais concretamente, tal como o mesmo admitiu nas declarações trazidas a este recurso por parte do recorrente M.º P.º, o arguido actuou propositadamente com o objetivo de usar esse documento no âmbito do inquérito 310/17.... que corria termos na ... Secção do DIAP ....
Nessa medida, o arguido actuou com o propósito claro de usar informação que apenas poderia estar na disponibilidade do respectivo titular, o aqui assistente BB, ou da autoridade judiciária. Nem outra conclusão se poderia obter pois inexiste qualquer pedido formal no processo a solicitar a entrega de cópia do certificado de registo criminal.
O documento em causa, como se disse e em face do regime previsto na Lei n.º 37/2015, tem natureza necessariamente reservada, especificamente para o processo onde foi determinada a sua emissão e onde foi junto.
Mesmo as explicações avançadas pelo recorrido arguido no sentido de que não agiu com o conhecimento de que a sua conduta era proibida, mas antes procedeu processualmente com a convicção que poderia instruir um requerimento de abertura de instrução com um documento disponível noutro processo correlacionado e que não continha uma inequívoca restrição de utilização, parece inculcar a ideia de que teria agido em situação de estado de ignorância ou erro sobre a ilicitude.
Relativamente ao tipo subjectivo de ilícito, este é um crime essencialmente doloso; exige-se o conhecimento e vontade por parte do agente do desvio ou utilização de dados pessoais de forma incompatível com a finalidade de recolha. Este tipo legal de crime revela ainda uma intencionalidade específica que deve presidir à actuação do agente, que é um plus ao dolo genérico referido. O art.º 14.º do Cód. Penal define as três formas que pode assumir o elemento volitivo do dolo do tipo. Trata-se da conceitualização do dolo como conhecimento e vontade de cometimento do tipo criminal. Como escreve Figueiredo Dias, “a necessidade, para que o dolo do tipo se afirme, que o agente conheça, saiba e represente correctamente ou tenha consciência (consciência psicológica ou consciência intencional) das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objectivo” (cfr. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A doutrina geral do Crime, p. 334). ----
A função da exigência penal do conhecimento do facto, em sede do elemento subjectivo, prende-se com a necessidade de o agente conhecer tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito. “O conhecimento da realização do tipo objectivo do ilícito constitui supedâneo indispensável para que nele se possa ancorar uma culposa dolosa e a punição do agente a esse título. Com a consequência de que sempre que o agente não represente, ou represente erradamente, um qualquer dos elementos do tipo de ilícito objectivo, o dolo terá, desde logo ser negado. (…) Fala-se a este princípio do princípio da congruência entre o tipo objectivo e o tipo subjectivo de ilícito doloso” (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit. p. 335).
"À afirmação do dolo é necessário o conhecimento dos elementos normativos do tipo (rectius, o conhecimento das características do comportamento concreto correspondentes ao elemento normativo do tipo) na precisa medida em que tal conhecimento seja indispensável à correcta orientação do agente para o problema da ilicitude do facto como um todo", in Figueiredo Dias, O problema da falta de consciência da ilicitude, p. 471.
É necessária a apreensão do sentido ou significado correspondente, no essencial e segundo o nível próprio de representações do agente, ao resultado daquela subsunção, ou mais, exactamente da valoração respectiva (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit. 336). Configura o limiar mínimo do dolo intelectual, para afirmação do dolo do tipo, o conhecimento dos pressupostos materiais de valoração.
No direito penal português actual existem duas espécies de erro jurídico-penalmente relevantes, com duas formas de relevância e diferentes efeitos sobre a responsabilidade do agente: uma exclui o dolo, ficando ressalvada a negligência nos termos gerais (art.º 16.º, do CP); a outra, exclui a culpa, se for não censurável, constituindo causa de exclusão da culpa, mantendo-se a punição a título de dolo se for censurável, embora com pena especialmente atenuada (art.º 17.º, do CP).
O erro sobre a factualidade típica inclui a falta de representação dos elementos do tipo e a representação errada dos elementos do tipo (por todos, Pinto De Albuquerque, Comentário ao Código Penal, Universidade Católica Editora, p. 97). A exclusão do dolo não afasta a possibilidade punição da conduta a título de negligência, quando se verifiquem os pressupostos do tipo negligente (art.º 16.º, n.º 3).
A delimitação do objecto do dolo é importante para a delimitação do erro relevante, pois o agente só está numa possível situação de erro do art.º 16., n.º 1, primeira e segunda proposições, se a sua ignorância ou errada representação incidir sobre os elementos que são objecto do elemento intelectual do dolo (cf. KK, in Regime Legal do Erro e Normas Penais em Branco, p. 18).
O art.º 16.º, n.º 1, do Cód. Penal, aplica-se às normas com ténue relevância axiológica da conduta. Assim, quando o agente desconhece a proibição legal devido a uma falta de informação ou de esclarecimento deverá ser punido a título de negligência se, podendo e devendo fazê-lo, se desleixou na recolha da informação. Se o conhecimento da proibição legal for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, o erro sobre proibições legais exclui o dolo.
É extensível o regime ao erro sobre a existência de uma situação de justificação, conforme dispõe o art.º 16.º, n.º 2, do Código Penal. O dolo do tipo apenas inclui a representação do facto criminoso e os pressupostos fácticos das causas de justificação.
O art.º 17.º, do Código Penal, relativo ao erro sobre a ilicitude, proclama que a deficiente consciência ética do agente não permite apreender os valores jurídicos-penais e orientar-se para a observância do direito, excepto se essa deficiência derivar de uma personalidade indiferente ou de uma atitude contrária aos valores, pelo que a culpa do agente, para além de dolosa, é censurável.
Relativamente ao critério de distinção entre o erro que exclui o dolo e a falta de consciência da ilicitude, Figueiredo Dias, in “O problema da Consciência da Ilicitude”, pág. 484, e in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A doutrina geral do Crime, adianta que sempre que a falta de conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito ocorre erro que excluirá o dolo ao nível do tipo; contrariamente, há erro que funda o dolo da culpa sempre que, detendo um conhecimento razoavelmente indispensável àquela orientação, actua num estado de erro sobre o carácter ilícito do facto, relevando uma falta de sintonia com a ordem jurídica de valores.
O insigne autor entende “no primeiro caso, estamos perante uma deficiência da consciência psicológica, imputável a uma falta de informação ou de esclarecimento e que por isso, quando censurável, releva uma atitude interna de descuido ou de leviandade perante o dever-ser jurídico penal e conforma paradigmaticamente o tipo específico de culpa negligente. Diferentemente, no segundo caso estamos perante uma deficiência da própria consciência ética do agente, que lhe não permite apreender correctamente os valores jurídicos penais e que por isso, quando censurável, releva uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever ser jurídico-penal e conforma paradigmaticamente o tipo específico de culpa dolosa.” (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A doutrina geral do Crime, p. 505).
O erro sobre a ilicitude verifica-se quando o agente não conhece a norma de proibição que respeita ao facto, ou, conhecendo-a, tem-na por não válida, ou, em consequência de uma interpretação incorrecta, representa defeituosamente o seu âmbito de validade, considerando, em consequência disso, o seu comportamento como juridicamente admissível. (cfr. Teresa Serra, Problemática do Erro sobre a Ilicitude, 1991, 67).
O regime do erro surge já não como uma decorrência da exigência de responsabilidade subjectiva, em sentido estrito, mas sim como um corolário dos pressupostos político-jurídicos da relação entre o Estado e o cidadão quanto ao conhecimento das normas penais e aos pressupostos da pena estatal.
Em sentido amplo refere-se, por vezes, que o regime da consciência da ilicitude é ainda uma decorrência do princípio da culpa. A culpa por ser um ser livre. Trata-se da culpa material, não da forma directa ao ilícito típico praticado, mas à condução da vida, à formação e preparação do carácter ou da personalidade do agente, que está na base do facto (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit. p. 236-237).
A discussão dogmática da relevância do erro sobre a ilicitude, sob a égide da teoria limitada da culpa, o erro sobre a ilicitude excludente da culpa e não do dolo ou a falta de consciência da ilicitude pode-se colocar ao nível da acção, da existência de um dever de garante de omissão, sobre a existência ou limites de causa de justificação ou exculpação, sobre os elementos normativos do tipo e, finalmente, sobre a validade de uma norma.
A determinação dos limites da consciência da licitude suscita, todavia, a problemática no que tange, nomeadamente, à equivalência da ilicitude à imoralidade da acção para a sua concretização prática; à natureza do desvalor jurídico, de Direito ou de ilícito Penal, sendo que Figueiredo Dias, entende que o ilícito penal é portador de uma diferença qualitativa que o singulariza face às demais manifestações de ilicitude (cf. Figueiredo Dias, ob. cit. págs. 508 e 510); a consciência do ilícito em concreto e não da ilicitude em abstracto como a ausência do princípio, da norma legal ou da proibição positivada, ou o problema da relevância da consciência eventual do ilícito (o agente julga conta com a permissão mas não reputa improvável a proibição).
O iter consequente será o de discriminar os requisitos de ordem prática sobre os quais se concretizará a possibilidade de uma falta da consciência do ilícito como causa de exclusão da culpa, isto é, o quando, onde e como da não censurabilidade do erro.
O regime do art.º 17.º incide sobre a censurabilidade da falta de consciência de ilicitude restrita aos crimes proibidos em si, os chamados crimes naturais, em que a carga axiológica da tipificação é sua característica. Trata-se dos crimes naturais, contra bens jurídicos eminentemente pessoais, crimes em si (mala in se), como seja a maioria dos crimes previstos no Código Penal (neste sentido cf. António Veloso, Erro em direito penal, pág.23).
Nas hipóteses a que se refere o art.º 16º nº 1, a ignorância da proibição será não um problema de [falta] de consciência ética do agente [como sucede nos casos de erro sobre a proibição a que se refere o art.º 17º do Cód. Penal], mas sim um problema de conhecimento, pelo que excluirá o dolo. Isto é, contrariamente ao que se verifica relativamente à consciência da ilicitude (art.º 17º do Cód. Penal), a qual se presume face à verificação do dolo, o nosso Código Penal trata as proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da licitude do facto, (art.º 16.º, n.º 1, 2ª parte do Cód. Penal) como se fossem elementos de facto ou de direito do tipo de crime, uma vez que o seu conhecimento, que não se presume, é indispensável para que possa imputar-se o facto objectivo típico ao agente, a título de dolo. (cf. Ac. do TRE, de 20-01-2011, R. João Latas, disponível em www.dgsi.pt).
Nesta sede, recorde-se a Figueiredo Dias que entende “a falta de consciência do ilícito não censurável só pode em principio verificar-se em situações em que a questão da ilicitude concreta (seja quando se considera a valoração da situação em si mesma, seja quando ela se conexiona com a complexidade ou novidade da situação) se revele discutível e controvertida. (…) Só quando assim sucede, com efeito, é que a solução dada pelo agente à questão da ilicitude do facto pode ainda corresponder a um ponto de vista de valor juridicamente reconhecido (…)” (ob. cit. p. 588).
Em génese, a questão da falta de consciência da ilicitude apenas se colocará nos crimes proibidos por si em que os valores axiológicos tutelados pela incriminação sejam susceptíveis de sindicância pelo agente com vista a adoptar, com falta ou em erro de consciência, uma valoração que desconsidere outros valores juridicamente reconhecidos. Trata-se de uma censura da falta ou sucessão de faltas cometidas ao longo da vida que levam o agente, aquando do facto, a não ser capaz de apreender a sua ilicitude, na perspectiva jurídico-material de culpa pelo facto. A culpa pelo dever de ter formado a sua personalidade para o direito, para uma actuação em conformidade com o direito (cf. Rui Patrício, Perigo, erro e culpa – Reimpressão da Edição “Erro sobre regras legais, regulamentares ou técnicas nos crimes de perigo comum no actual direito português, AAFDL, 2011, p. 143)”.
Mostra-se que a argumentação produzida nesta matéria por parte do arguido/recorrido e a decisão tida pelo tribunal não podem subsistir porquanto mostra-se indubitável o dolo do tipo e culpa e que o arguido conhecia as características do objecto da sua acção (certificado de registo criminal) que obteve e usou sem autorização.
Na realidade, deve-se exigir a esse profissional que actuou no contexto de profissional forense formado e licenciado em direito, não deixe de reconhecer a privacidade da informação contida no certificado de registo criminal e dos condicionalismos na aquisição e utilização de tais documento nem o poderia ignorar face ao que se mostra inserido na sua página de rosto quando se especifica a finalidade da respectiva emissão.
Assim, o arguido ao obter e juntar o documento num outro processo conhecia e quis preencher a previsão penal ora imputada que, para tanto, extraiu de um processo sem a autorização da respectiva autoridade judiciária.
O arguido ao utilizar o certificado de registo criminal de terceiro sem a respectiva autorização agiu consciente que aquele documento representa uma expressão negativa da privacidade daquela pessoa (os seus antecedentes criminais) e contra quem foi usado. Neste quadro, o arguido tinha conhecimento da natureza dos dados, da sua utilização restrita e a consciência que atentava os padrões normativos. A consciência ética do arguido não enferma de um qualquer vício ou deficiência que o impossibilite de alcançar a ilicitude da conduta e facto, nos termos do art.º 17.º do Cód. Penal.
Em face da articulação entre o art.º 16.º e o art.º 17.º, ambos do Código Penal, sob o crivo dos contornos apresentados pelo presente caso, não se pode dar acolhimento a um qualquer erro de ignorância e/ou existência de desconhecimento da ilicitude da conduta que afasta a culpa. ----
Ante o exposto, este Tribunal conclui que o arguido teve conhecimento e vontade de violar a norma e todos os seus pressupostos fácticos e verifica-se no caso em concreto uma conduta dolosa e culposa.
Tudo visto, merece acolhimento a impugnação dos factos não provados suscitada pelo recorrente M.º P.º, impondo-se em consequência dar como provados os seguintes factos:
O arguido sabia que o aludido certificado de registo criminal foi emitido com a finalidade exclusiva de instruir o processo n.º 10/15.....
O arguido sabia que não podia utilizar o certificado de registo criminal para finalidade diversa.
Os dados referidos em 11), no aludido contexto, apresentam natureza reservada.
Que o arguido agiu sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

2. Se o arguido se constituiu autor material do crime por que se encontrava pronunciado:
Alterada a matéria de facto provada nos termos que acabámos de referir, importa proceder, para delucidação da questão agora em apreço, ao enquadramento jurídico desses mesmos factos, dirigindo-o directamente ao crime de que se encontrava pronunciado o arguidoe de que veio a ser absolvido.
Com interesse para esta subsunção, valemo-nos da considerações, porque relevantes, desenvolvidas na sentença recorrida acerca do tipo legal do crime de um crime de violação de normas relativas a ficheiros e impressos agravado, previsto e punido pelo artigo 43.º, n.º 1 da Lei n.º 37/2015, na data dos factos por referência ao artigo 43.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, da Lei n.º 67/98 (actualmente por referência ao artigo 46.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 58/2019).
“A Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio (doravante designada por LIC), veio estabelecer, em observância do ordenamento jurídico comunitário, os princípios gerais que regem a organização e o funcionamento da identificação criminal, actividade de natureza pública que tem como desiderato a recolha, tratamento e a conservação de extractos de decisões judiciais e dos demais elementos a elas respeitantes sujeitos a inscrição no registo criminal e no registo de contumazes, promovendo a identificação dos titulares dessa informação, a fim de permitir o conhecimento dos antecedentes criminais das pessoas condenadas e das decisões de contumácia vigentes.
Para o efeito, atribui o regime jurídico a competência para realização de aludida actividade pública aos serviços de identificação criminal (artigo 3.º, n.º1 da LIC), determinando a organização do registo criminal mediante constituição “em ficheiro central informatizado, constituído por elementos de identificação dos arguidos, comunicados pelos tribunais e pelas demais entidades remetentes da informação ou recolhidos pelos serviços de identificação criminal, e por extractos das decisões criminais sujeitas a inscrição no registo criminal àqueles respeitantes” (artigo 5.º, n.º1 da LIC), sendo considerados como elementos de identificação de condenados pessoas singulares “nome, sexo, filiação, naturalidade, data de nascimento, nacionalidade, estado civil, residência, número de identificação civil ou, na sua falta, do passaporte ou de outro documento de identificação idóneo e, quando se trate de decisão condenatória, estando presente o arguido no julgamento, as suas impressões digitais e assinatura” (artigo 5.º, n.º2, al. a) da LIC), sendo sujeitas a registo por extracto, entre outras, as decisões que apliquem penas e medidas de segurança (artigo 6.º e 7.ºda LIC).
Pese a finalidade do sistema de identificação criminal se centre na publicidade da situação jurídico-penal dos cidadãos e pessoas colectivas, o acesso à aludida informação, consubstanciada através da emissão do certificado de registo criminal (artigo 9.º, n.º1 da LIC) encontra-se relativamente limitado, sendo exclusivamente permitida a consulta da informação de registo criminal ao titular da informação, bem como a entidades e/ou autoridades públicas no exercício das respectivas funções, no estrito âmbito da respectiva actuação (artigo 8.º, n.º1 e 2 da LIC).
Tendo em consideração a natureza dos dados, é atribuída ao director-geral da Direcção Geral da Administração da Justiça a responsabilidade pelas bases de dados de identificação criminal (artigo 38.º, n.º 1 da LIC).
O aludido diploma é, paralelamente, densificado pelo Decreto-Lei n.º 171/2015, de 25 de Agosto, o qual regulamenta e desenvolve o sistema de identificação criminal (doravante designado por RLIC).
Neste diploma, clarifica-se que o sistema de informação de identificação criminal (SICRIM) consubstancia o ficheiro central informatizado que reúne a informação relativa aos registos a cargo dos serviços de identificação criminal (artigo 2.º, n.º 1 do RLIC), sendo organizado um registo onomástico único por cada cidadão ou pessoa colectiva, comum a todos os registos que existam no sistema relativamente ao mesmo titular, no qual são registados os elementos de identificação comunicados pelos tribunais e pelas demais entidades remetentes da informação ou recolhidos pelos serviços de identificação criminal.
Feito o aludido enquadramento normativo, estabelece o artigo 43.º, n.º 1 da LIC, na sua redacção originária, que “a violação das normas relativas a ficheiros informatizados de identificação criminal ou de contumazes é punida nos termos do disposto na secção III do capítulo VI da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro”.
A aludida norma corresponde, ipsis verbis, ao disposto no artigo 21.º, n.º 1 da Lei n.º 57/98, de 11 de Agosto, na redacção estabelecida pela Lei n.º 114/2009, a qual vigorou até ser sido revogado pela LIC.
Em anotação à citada norma da Lei n.º 57/98, salientava PAULO DÁ MESQUITA In: PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE/JOSÉ BRANCO (coord.), Comentário das leis penais extravagantes, I, UCP Ed., 183 ss. que o aludido normativo não cumpria qualquer outra função que ultrapassasse o carácter meramente informativo porquanto remete, em bloco, para o disposto na secção III do capítulo VI da Lei n.º 67/98, que estabelecia a Lei da protecção de dados pessoais (doravante, LPDP).
Identificava o aludido autor, todavia, como bens jurídicos protegidos, a legalidade da administração e o sigilo das bases de dados de identificação criminal, não abrangendo, apenas, a violação do dever dos funcionários, mas também o segredo das informações cujo acesso, divulgação ou utilização indevidos colide com as finalidades legais.
Prosseguindo o iter normativo, a aludida remissão para a secção III do capítulo VI da Lei n.º 67/98 (à data dos factos, vigente na redacção estabelecida pela Lei n.º 103/2015), prevê, nos artigos 43.º a 47.º, sete tipificações penais, a saber, não cumprimento de obrigações relativas a protecção de dados, acesso indevido, viciação ou destruição de dados pessoais, inserção de dados falsos, desobediência qualificada e violação do dever de sigilo.
Com relevo para o caso, estabelece o artigo 43.º, n.º1 e 2 da LPDP que “é punido com prisão até um ano ou multa até 120 dias quem intencionalmente: a) omitir a notificação ou o pedido de autorização a que se referem os artigos 27.º e 28.º; b) fornecer falsas informações na notificação ou nos pedidos de autorização para o tratamento de dados pessoais ou neste proceder a modificações não consentidas pelo instrumento de legalização; c) desviar ou utilizar dados pessoais, de forma incompatível com a finalidade determinante da recolha ou com o instrumento de legalização; d) promover ou efectuar uma interconexão ilegal de dados pessoais; e) depois de ultrapassado o prazo que lhes tiver sido fixado pela CNPD para cumprimento das obrigações previstas na presente lei ou em outra legislação de protecção de dados, as não cumprir; f) depois de notificado pela CNPD para o não fazer, mantiver o acesso a redes abertas de transmissão de dados a responsáveis pelo tratamento de dados pessoais que não cumpram as disposições da lei”, sendo agravadas as penas para o dobro nos seus limites mínimos e máximos quando se tratar de tratamentos de dados sensíveis, prevendo o artigo 8.º da LPDP que “a criação e a manutenção de registos centrais relativos a pessoas suspeitas de actividades ilícitas, infracções penais, contra-ordenações e decisões que apliquem penas, medidas de segurança, coimas e sanções acessórias só podem ser mantidas por serviços públicos com competência específica prevista na respectiva lei de organização e funcionamento, observando normas procedimentais e de protecção de dados previstas em diploma legal, com prévio parecer da CNPD”, só sendo possível o tratamento de dados quando seja necessário à execução de finalidades legítimas do seu responsável, desde que não prevaleçam os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados.
Conforme ensina PEDRO VERDELHO In: PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE/JOSÉ BRANCO (coord.), Comentário das leis penais extravagantes, I, UCP Ed., 439 ss., “na generalidade, as alíneas do tipo de crime (…) podem ser praticadas por aqueles que procedem ao tratamento de dados pessoais, ou têm acesso aos mesmos no decurso desse tratamento e, por alguma das formas previstas naquelas alíneas, violam as regras que regem esse tratamento de dados ou as suas obrigações, decorrentes desse tratamento de dados perante a Comissão Nacional de Tratamento de Dados”.
Aproximando-se do caso, o disposto no artigo 43.º, n.º 1, al. c) da LPDP pune a utilização de dados pessoais de forma incompatível com a finalidade determinante da recolha, incriminando-se “o uso de dados pessoais para fins [diferentes] daqueles que se propôs prosseguir quem procedeu à sua obtenção e organização. Aflora aqui o estruturante princípio da finalidade, um dos fundamentais princípios do tratamento de dados pessoais (…), o qual supõe que os dados sejam recolhidos apenas para prosseguirem finalidades determinadas, não podendo ser tratados de forma incompatível com essas finalidades”.
Aqui chegados, impõe-se recordar que, nos termos do artigo 3.º, al. a), b) e f) da LPDP, se define, respectivamente, como:
- dados pessoais “qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável ('titular dos dados'); é considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social;
- tratamento de dados pessoais “qualquer operação ou conjunto de operações sobre dados pessoais, efectuadas com ou sem meios automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a comunicação por transmissão, por difusão ou por qualquer outra forma de colocação à disposição, com comparação ou interconexão, bem como o bloqueio, apagamento ou destruição”; e
- terceiro, “a pessoa singular ou colectiva, a autoridade pública, o serviço ou qualquer outro organismo que, não sendo o titular dos dados, o responsável pelo tratamento, o subcontratante ou outra pessoa sob autoridade directa do responsável pelo tratamento ou do subcontratante, esteja habilitado a tratar os dados”.
Conforme prevista o artigo 6.º da LPDP, “o tratamento de dados pessoais só pode ser efectuado se o seu titular tiver dado de forma inequívoca o seu consentimento ou se o tratamento for necessário para: a) execução de contrato ou contratos em que o titular dos dados seja parte ou de diligências prévias à formação do contrato ou declaração da vontade negocial efectuadas a seu pedido; b) cumprimento de obrigação legal a que o responsável pelo tratamento esteja sujeito; c) protecção de interesses vitais do titular dos dados, se este estiver física ou legalmente incapaz de dar o seu consentimento; d) execução de uma missão de interesse público ou no exercício de autoridade pública em que esteja investido o responsável pelo tratamento ou um terceiro a quem os dados sejam comunicados; e) prossecução de interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou de terceiro a quem os dados sejam comunicados, desde que não devam prevalecer os interesses ou os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados”.
Recorde-se o enquadramento normativo propiciado pelo artigo 35.º da Constituição da República Portuguesa, designadamente pelo n.º 3, o qual estabelece que “é proibido o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos excepcionais previstos na lei”.
Deste modo, tendo em consideração os elementos do ilícito penal, consubstanciam elementos integradores do tipo:
a) O acto de desviar ou utilizar dados pessoais;
b) Através da violação das normas relativas a ficheiros informatizados de identificação criminal;
c) A utilização ou desvio de forma incompatível com a finalidade determinante da recolha ou com o instrumento de legalização;
d) A intenção de desviar ou utilizar dados pessoas de forma incompatível com a finalidade determinante da recolha.
No plano do tipo subjectivo de ilícito, trata-se de um crime doloso, em qualquer uma das suas modalidades, à qual acresce, ainda, a existência da aludida intenção específica de utilização de dados em desvio teleológico
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Com eventual relevância, tendo em consideração a sucessão de leis no tempo, impõe-se ainda aludir ao seguinte:
a) Em função da alteração introduzida na Lei n.º 37/2015 (LIC) pela Lei n.º 14/2022 (vigente a partir de 31/10/2022), passou o artigo 43.º, n.º 1 a estabelecer que “a violação das normas relativas a ficheiros informatizados de identificação criminal ou de contumazes é punida nos termos do disposto: a) no capítulo vii da Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto; ou b) nos capítulos vii e viii da Lei n.º 59/2019, de 8 de agosto, quando esteja em causa o tratamento de dados pessoais para efeitos de prevenção, detecção, investigação ou repressão de infracções penais ou de execução de sanções penais, incluindo a salvaguarda e a prevenção de ameaças à segurança pública”;
b) Em função da revogação da Lei n.º67/98 (LPDP) e consequente aprovação da Lei n.º58/2019, vigente a partir de 09/08/2019, estabelece o artigo 46.º, n.º1 e 2 do citado diploma que “quem utilizar dados pessoais de forma incompatível com a finalidade determinante da recolha é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”, sendo a pena “agravada para o dobro nos seus limites quando se tratar dos dados pessoais a que se referem os artigos 9.º e 10.º do RGPD”, aprovado pelo Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, inscrevendo-se no último normativo o “tratamento de dados pessoais relacionados com condenações penais e infracções ou com medidas de segurança conexas”.
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Iniciando a análise pela aplicação do Direito no tempo, recorde-se que, nos termos do artigo 2.º, n.º 1 do Código Penal, “as penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem”, razão pela qual se mostra juridicamente relevante o direito vigente no momento da incriminação.
Excepciona-se, todavia, o referido comando normativo quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, caso em que “é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior” – artigo 2.º, n.º4 do Código Penal.
No caso, o tipo incriminador vigente no momento da prática dos factos encontra-se ancorado no artigo 43.º, n.º 1 da Lei n.º 37/2015, na redacção originária, por referência ao artigo 43.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, da Lei n.º 67/98.
Ora, pese embora na situação dos autos seja irrelevante a alteração normativa implementada no artigo 43.º, n.º1 da Lei n.º 37/2015 (que mantém a técnica remissiva, desta feita para a Lei n.º 58/2019), a verdade é que visto o artigo 46.º, n.º1 da Lei n.º 58/2019, o preenchimento da norma se mostra menos restritivo em comparação ao disposto no artigo 43.º, n.º1 da Lei n.º 67/98, na redacção estabelecida pela Lei n.º 103/2015, na medida em que a omissão, no tipo de ilícito, da intencionalidade a respeito da conduta determina um manifesto alargamento do tipo de ilícito, com a eliminação de um pressuposto específico da incriminação, razão pela qual, pela sua menor exigência no preenchimento do tipo, considera-se o artigo 46.º, n.º 1 da Lei n.º 59/2019 objectivamente menos favorável para o arguido, razão pela qual se mostra inaplicável no caso por intermédio do artigo 2.º, n.ºs 1 e 4 do Código Penal.
Dito isto e revertendo ao caso, inexistem dúvidas que o arguido, através da sua actuação, proveu à utilização do certificado de registo criminal do assistente BB, o qual consubstancia, nos termos da lei, um ficheiro informatizado de identificação criminal tendo em consideração o disposto na Lei n.º 37/2015 e do Decreto-Lei n.º 171/2015 a respeito da constituição do sistema de identificação criminal, mormente através da criação de um registo onomástico quanto a cada pessoa singular e colectiva que seja objecto de decisões transitadas em julgado que determinem a inscrição em sede de registo criminal.
Resultou ainda demonstrado que, ao actuar nos termos descritos, o arguido proveu ao tratamento de dados pessoais (nos termos previstos no artigo 3.º, al. a) e b) da LPDP, na medida em que realizou uma operação de utilização e, ainda, os elementos em causa se qualificam como dados pessoais, na respectiva alusão normativa).
Da factualidade demonstrada resulta evidenciado que o arguido actuou nos termos descritos, no exercício da qualidade de advogado, tendo o aludido certificado de registo criminal sido empregue como documento coadjuvante do requerimento de abertura de instrução apresentado em representação de DD.”
Passando ao aspecto divergente das considerações desenvolvida na sentença recorrida, em resultado da alteração/aditamento aos factos provados nos moldes acima descritos, concluímos que o arguido teve conhecimento e vontade de violar a norma e todos os seus pressupostos fácticos e verifica-se no caso em concreto uma conduta dolosa e culposa.
Inexiste qualquer factualidade que permita sustentar a existência de causas de justificação e/exculpação.
Assim, encontram-se preenchidos os elementos constitutivos do crime de violação de normas relativas a ficheiros e impressos agravado p. e p. pelo artigo 43.º, n.º 1, da Lei n.º 37/2015, de 05 de maio, na data dos factos por referência ao artigo 43.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, da Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, com pena de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias.
Estabelecida a responsabilidade penal do arguido/recorrido pelo ilícito criminal acima identificado, porque os autos dispõem de todos os elementos para tal, impõe-se, face ao AFJ 4/2016, in DR, 1.ª série, n.º 36, de 22 de Fevereiro de 2016 [Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.], passar a determinar a medida concreta da pena.
A tarefa de escolha e determinação da medida da pena envolve diversos tipos de operações, começando por se determinar a moldura penal abstracta e, em seguida, dentro dela, a medida concreta da pena que vai aplicar, para depois escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida.
Mas, no caso, perante a previsão abstracta de uma pena compósita alternativa (de prisão ou multa), deve-se proceder a uma escolha prévia da pena, dando preferência à multa sempre que formule um juízo positivo sobre a sua adequação e suficiência face às finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial de socialização, preterindo-a, a favor da prisão, na hipótese inversa.
É o que decorre da regra de escolha da pena prevista no artigo 70º do Código Penal, o qual consagra o princípio da preferência pela pena não privativa de liberdade sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
O artigo 40º do nosso Código Penal, a propósito das finalidades das penas e medidas de segurança, estabelece que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração na sociedade” (n.º 1), e que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (n.º 2).
Essas finalidades reconduzem-se à protecção de bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade.
A protecção dos bens jurídicos consubstancia-se na denominada prevenção geral, ou seja, na utilização da pena como instrumento para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração), atendendo-se sobretudo ao sentimento que o crime causa na comunidade, tendo em conta diversos índices, como a frequência e o espaço em que o mesmo ocorre e o alarme que está a provocar na comunidade. Já a prevenção geral negativa ou de intimidação da generalidade apenas pode surgir como um efeito lateral da necessidade de tutela dos bens jurídicos.
Por seu turno, a reintegração do agente na sociedade, ou seja, o seu retorno ao tecido social lesado, reporta-se à chamada prevenção especial, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de actuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que, no futuro, ele cometa novos crimes, pretendendo-se obter a ressocialização do delinquente (prevenção especial positiva) e a dissuasão da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa), atendendo-se a diversas variáveis como por exemplo a conduta, a idade, a vida familiar e profissional e os antecedentes do agente - Figueiredo Dias, In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas - Editorial Notícias, pág. 331/333.
Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 5ª edição actualizada, Universidade Católica Portuguesa, pág. 400, refere que «a escolha das penas é determinada apenas por considerações de natureza preventiva, uma vez que as “finalidades da punição” são exclusivamente preventivas (…). O tribunal deve, pois, ponderar, apenas as necessidades de prevenção geral e especial que o caso concreto suscite (…). A articulação entre estas necessidades deve ser feita do seguinte modo: em princípio, o tribunal deve optar pela pena alternativa ou de substituição mais conforme com as necessidades de prevenção especial de socialização, salvo se as necessidades de prevenção geral (rectius, a defesa da ordem jurídica) impuserem a aplicação da pena de prisão (…). Esta regra vale quer para a escolha entre penas alternativas quer para a escolha de penas substitutivas».
É, pois, ponto assente que a escolha entre a pena de prisão e a pena alternativa de multa ou a substituição daquela por qualquer das penas de substituição depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial, sendo, pois, o único critério a atender o da prevenção.
Mostra-se pacifico que neste caso as exigências de prevenção geral não são elevadas (o modo de cometimento do crime mostra-se restringido pela acessibilidade do arguido ao sistema Citius). E no âmbito das necessidades de prevenção especial, o arguido não tem antecedentes criminais e das suas condições pessoais não emerge nenhum facto desabonatório ou comprometedor do sucesso da pena não detentiva, tendo em vista as finalidades da punição.
Assim, manifestamos a nossa opção por pena não privativa de liberdade.
Passando à operação de determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites da lei estipulados para a pena de multa aplicável ao caso como acima já se disse, aquela é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art.ºs 71º, n.º 1 e 40º, n.º 2, do CP).
E, na determinação concreta da medida da pena, como impõe o art.º 71º, n.º 2, do CP, o tribunal tem de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do agente ou contra ele, designadamente as que a título exemplificativo estão enumeradas naquele preceito. Por outro lado, a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art.º 40º, n.º 1, do CP).
Conforme salienta o Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Ed. Notícias, pág., 241-244, a propósito do critério da prevenção geral positiva, «A necessidade de tutela dos bens jurídicos – cuja medida óptima, relembre-se, não tem de coincidir sempre com a medida culpa – não é dada como um ponto exacto da pena, mas como uma espécie de «moldura de prevenção»; a moldura cujo máximo é constituído pelo ponto mais alto consentido pela culpa do caso e cujo mínimo resulta do «quantum» da pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias. É esta medida mínima da moldura de prevenção que merece o nome de defesa do ordenamento jurídico. Uma tal medida em nada pode ser influenciada por considerações seja de culpa, seja de prevenção especial. Decisivo só pode ser o quantum da pena indispensável para se não ponham irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais».
E, relativamente ao critério da prevenção especial, escreve o ilustre mestre, «Dentro da «moldura de prevenção« acabada de referir actuam irrestritamente as finalidades de prevenção especial. Isto significa que devem aqui ser valorados todos os factores de medida da pena relevantes para qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza, seja a função primordial de socialização, seja qualquer uma das funções subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização. (...).
A medida das necessidades de socialização do agente é pois em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial para efeito de medida da pena».
Conforme salienta o Ac. do STJ de 11MAI2000, in CJ Acs. do STJ, de 2000, Tomo II, pág. 188., “A função primordial da pena consiste na protecção de bens jurídicos, ou seja, consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos, sem prejuízo da prevenção especial positiva, sempre com o limite imposto pelo princípio da culpa – nulla poena sine culpa.
E, citando o Ac. do STJ de 01MAR2000, in Proc. nº 53/200 – 3ª Secção, afirma-se no citado aresto, «A culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define em concreto, o seu limite mínimo absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. A prevenção especial positiva, porém, subordinada que está à finalidade principal de protecção dos bens jurídicos, já não tem virtualidade para determinar o limite mínimo; este, logicamente, não pode ser outro que não o mínimo de pena que, em concreto, ainda realiza, eficazmente, aquela protecção».
Devendo proporcionar ao condenado a possibilidade de optar por comportamentos alternativos ao criminal, a pena tem de responder, sempre positivamente, às exigências de prevenção geral de integração.
Continuando a citar, o mesmo Ac. do STJ de 01MAR2000, «Se, por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que – dentro, claro está, da moldura legal – a moldura da pena aplicável ao caso concreto (‘moldura de prevenção’) há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social».
Tendo por escopo as considerações tecidas, entendemos como relevantes para a determinação da pena a culpa do arguido tida como algo elevada, porque animada de dolo directo.
Por outro lado, não deixaremos de ter como influenciadora da medida da pena as razões que determinaram a conduta do arguido – no exercício da defesa do cliente -, a personalidade do arguido revelada na conduta que aponta para pouca sensibilização para a necessidade de observância de limites no respeito de normas que protegem direitos de terceiros, mesmo que para a defesa do seu cliente, as condições pessoais do arguido a nível da inserção profissional, familiar e social – tudo resultante do que se mostra fixado nos factos provados 17 a 25.
Situando-se a sua culpa num patamar elevado a sua pena deverá, proporcionalmente, situar-se ligeiramente acima do ponto médio moldura, ou seja, em 140 dias.
No que concerne ao quantitativo diário, temos de ponderar que o arguido é advogado, auferindo mensalmente a quantia de € 3.000, vivendo em casa própria.
Apresenta como despesas que poderemos categorizar como fixas um montante total de cerca de € 2.100.
No apuramento da taxa diária deve-se atender igualmente que a multa é uma verdadeira reacção criminal de índole económica, não sendo nem um crédito jurídico-público a favor do Estado, sendo, por isso, insusceptível de compensação ou de transmissão contratual ou sucessória, face à sua natureza estritamente pessoal, nem um laxante com repercussões económicas, pelo que a sua aplicação deve ser submetida a critérios de igualdade de sacrifícios e ónus, originando uma agravação da situação económica do condenado.
No que concerne aos encargos e perante o mesmo princípio da igualdade de ónus e sacrifícios, deverá fazer-se uma avaliação diferenciada dos mesmos, distinguindo-se aqueles que revelam custos indispensáveis para a sustentação do condenado e dos seus familiares dependentes, os quais devem ser deduzidos no rendimento, daqueles que revelam alguma prodigalidade ou luxúria e que não devem beneficiar da mesma ponderação dedutiva, antes pelo contrário.
Tudo isto leva a que se reservem os quantitativos mínimos para aquelas pessoas que vivem abaixo ou no limiar da subsistência, designadamente por carência de rendimentos próprios ou de quaisquer outros, escalonando-se a partir daí todos os demais.
Ora, se para quem não tem proventos ou rendimentos para que possa beneficiar do rendimento social de inserção é proporcional uma taxa diária a partir dos € 5, em relação ao arguido, que tem um rendimento mensal que ronda os € 3.000, ainda que ilíquido, essa taxa não pode ser inferior à taxa diária de € 15, pelo que se condena o arguido, como autor material de um crime de violação de normas relativas a ficheiros e impressos agravado, previsto e punido pelo artigo 43.º, n.º 1 da Lei n.º 37/2015, na data dos factos por referência ao artigo 43.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, da Lei n.º 67/98, na pena de 140 (cento e quarenta dias) de multa à taxa diária de € 15 (quinze euros), o que perfaz a multa global de € 2.100,00 (dois mil e cem euros).

Passando a apreciar o recurso interposto pelo assistente na parte não rejeitada:
Erro de julgamento por considerar como incorretamente julgada a matéria de facto considerada não provada sob os n.ºs A a E:
O recorrente assistente manifesta a sua discordância da sentença quanto aos factos que foram tidos como não provados, manifestando quanto à fundamentação produzida pelo tribunal nesse aspecto uma série de apreciações sem, contudo, as reconduzir a uma impugnação factual nos termos do art.º 412º n.ºs 3 e 4 CPP – a designada impugnação ampla da matéria de facto –, o que se surpreende com a ausência de referência e observância dos requisitos a que aludem as alíneas b) e c) do n.º 3 daquele preceito, ou a uma impugnação por via dos vícios da decisão referidos no n.º 2 do art.º 410 CPP.
Se bem que, por relação aos factos não provados B a E, o desiderato perseguido pelo assistente se mostra já atingido mediante o provimento dado ao recurso interposto pelo M.º P.º, na parte tocante ao facto não provado A [Que ao actuar nos termos descritos, o arguido tenha pretendido atingir o bom nome, honra e consideração do assistente BB.] que manifestamente teria repercussões na viabilidade do pedido de indemnização civil formulado pelo assistente e por relação ao qual se decidiu da respectiva rejeição por inadmissibilidade, impor-se-ia que o recurso do assistente manifestasse - não propriamente as razões da sua discordância como faz, manifestando somente uma apreciação pessoal da prova produzida e para além de uma valoração respeitadora do princípio da livre apreciação da prova a que se refere ao art.º 127º CPP - quais as provas que impõem uma decisão diversa da tida pelo tribunal quanto a esse concreto facto.
Nem sequer de erro notório na apreciação da prova, que não invoca em concreto, mas que poderia ser apreciado de um modo oficioso por este tribunal, se poderia afirmar sermos confrontados se pensarmos que, primeiramente, o CRC é um documento autêntico e, segundo, o seu conteúdo mostra-se conforme a realidade, não encerrando qualquer falsidade ou desconformidade.
Assim sendo, a pretensão de ver consignado nos factos provados o que se mostra inserido no facto não provado A não pode ser atendida por este tribunal.

Se o arguido deve ser condenado pelo crime de que se encontrava pronunciado:
Face ao que se mostra decidido quanto ao recurso interposto pelo M.º P.º, a questão suscitada mostra-se já apreciada, em sentido favorável, pelo que, por inutilidade, nada há a acrescentar.

III.
Tudo visto e ponderado, decide-se:
1. Rejeitar o recurso interposto pelo assistente BB na parte relativa às pretensões de ver alterada a matéria de facto não provada e de condenação no pedido de indemnização civil por si formulado:
2. Dar provimento ao recurso interposto pelo M.º P.º e, em consequência:
a) Alterar a matéria de facto provada, aditando à mesma os factos não provados elencados sob as letras ... a ..., nos termos acima descritos;
b) Condenar o arguido AA, como autor material do crime de violação de normas relativas a ficheiros e impressos agravado, previsto e punido pelo artigo 43.º, n.º 1 da Lei n.º 37/2015, na data dos factos por referência ao artigo 43.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, da Lei n.º 67/98, na pena de 140 (cento e quarenta dias) de multa à taxa diária de € 15 (quinze euros), o que perfaz a multa global de € 2.100,00 (dois mil e cem euros).
Não são devidas custas por parte do assistente, uma vez que não decaiu na totalidade do recurso.
Custas a cargo do arguido, por força da condenação agora decretada, nos termos do art.º 513º n.º 1 CPP e tabela III anexa ao RCP.
Feito e revisto pelo 1º signatário.
Évora, 26 de Setembro de 2023.
João Carrola
Renato Barroso
Maria Beatriz Borges