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EXTINÇÃO DA OBRIGAÇÃO
CASO FORTUITO
Sumário
O caso fortuito é, no âmbito da responsabilidade contratual, uma causa de extinção da obrigação por impossibilidade objectiva, ou seja, por causa não imputável ao devedor (artigo 790º/CC).
Define-se como o evento proveniente de acção humana, imprevisível e inevitável, que impede o cumprimento de uma obrigação.
Só é imprevisível um acontecimento cuja probabilidade de ocorrência foge à capacidade de percepção do homem sendo que, por isso mesmo lhe é impossível evitar as consequências.
(Sumário elaborado pela relatora)
Texto Integral
Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:
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I–Relatório:
GORT, titular do NIF 5.......8, com sede na Avª. ....., ..... C_____, RGO, ....-...- C_____, foi condenada no âmbito dos autos de contra-ordenação que correram os seus termos na Capitania do Porto C_____ sob o n° 070......-1../2..., por decisão de 7/10/2019, proferida o Capitão do Porto C____, pela prática de um contraordenação prevista e punida pelas disposições conjugadas do artigo 8.°, al. d), da Lei n.° 44/2004, de 19/08, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo DL n.° 100/2005, de 23/06, e dos artigos 3.°/1, al. c),e 7.° do DL n.° 96.°-A/2006, de 2/06,em uma coima de € 250,00 .
Inconformada com tal decisão, a arguida impugnou-a judicialmente, tendo sido mantida a decisão recorrida.
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A arguida recorreu, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem: «1.a)- A recorrente nunca teve qualquer controle, e muito menos dirigiu ou coordenou quais os efectivos de nadadores-salvadores que eram, a cada passo, disponibilizados para a sua concessão balnear, uma vez que essa decisão era tomada pela Associação Praia V_____, entidade que foi mandatada para o efeito pela recorrente em conjunto com os demais concessionários, sendo essa mesma entidade que geria a distribuição desses efectivos nas 12 concessões balneares existentes na Praia C_____. 2.a)- O que se passou foi que o nadador salvador escalado para assegurar a assistência balnear na concessão da recorrente faltou, situação que foi imediatamente detectada e prontamente resolvida pela PRAIA V_____com a respectiva substituição por outro nadador salvador, o que sucedeu no espaço temporal de cerca de uma hora. 3.a)- Tratou-se pois de um caso fortuito que não é imputável à recorrente e que foi pronta e diligentemente resolvido pela PRAIA V_____. 4.a)- A infracção em apreço não resultou de qualquer conduta negligente da PRAIA V_____ e por consequência não pode ser naturalmente imputada à recorrente, enquanto mandante, a título de negligência. 5.a)- Em suma, a contraordenação pela qual a recorrente foi condenada não lhe é imputável nem a título de dolo, nem a título de mera culpa, o que implica a sua sumária absolvição atento o disposto no art.° 8.° do RGCO. 6.a)- Termos em que a douta sentença recorrida fez errada apreciação dos factos e igualmente errada interpretação e aplicação do Direito, maxime do art.° 8.° do RGCO, norma legal que assim se mostra violada. Nestes termos, nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de V.Exas., Venerandos Desembargadores, deve o presente recurso deve ser julgado procedente, revogando-se a douta sentença recorrida e proferindo-se em sua substituição decisão que absolva a arguida ora recorrente. ».
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Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações nos seguintes termos: «I.–A decisão administrativa e a douta sentença recorrida efectuaram um exame crítico às provas apresentadas, sendo que quer a motivação de facto, quer a motivação de direito foram plenamente respeitadas. II.–Nestes termos, e contrariamente ao alegado pela recorrente, observaram, integralmente, o alegado nos art.° 379°, n.°1, al. a) e 374°, n.°2, do CPP e art.°58°, n.°1, al. b) e c) do RGCO, pelo que não se poderá falar em erro, nem em nulidade. III.–Sendo que, quer a motivação de facto, quer a motivação de direito foram plenamente respeitadas, e valorados na decisão. IV.–Haverá de concluir-se não assistir razão à recorrente.
V.–Pelo exposto, o recurso deverá ser considerado improcedente, na medida em que, a sentença recorrida não merece qualquer censura, pois bem ajuizou a prova produzida em audiência, fez uma correcta e adequada ponderação dos factores de determinação da medida concreta da pena e não padece de qualquer vício. VI.– E, como tal, não foi violada a norma prevista no art.°8° do RGCO.».
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Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto acompanhou a contra-motivação.
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II–Questões a decidir:
Do artº 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso ([1]), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso ([2]).
A questão colocada pela recorrente é saber se o incumprimento da obrigação se deveu a caso fortuito.
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III–Fundamentação de facto:
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes os factos: 1.–No dia 19 de Setembro de 2016, pelas 09:10 horas, na Praia C______ - C______, na Zona de ..... ..... concessionada à arguida, não se encontrou qualquer nadador salvador no período compreendido entre as 09:00 horas e as 10:20 horas, conforme estipulado pelo Plano Integrado de Assistência a Banhistas, para aquela concessão balnear. 2.–A arguida sabia que a ausência de nadador salvador na zona que lhe estava concessionada, no período temporal em apreço, era contrária à lei e que deveria ter diligenciado no sentido de se assegurar que tal não sucederia. 3.–A arguida acreditou que a zona de apoio não ficaria desprovida de nadador salvador. 4.–A arguida não praticou nos últimos cinco anos qualquer contra-ordenação de natureza similar àquela que lhe foi imputada na decisão recorrida. 5.–A arguida explora equipamento com funções de apoio de praia e uma concessão balnear na Praia C_____. 6.–Todos os concessionários da praia C_____ são associados da “Praia V_____ - Assoc... Conc... A... Praia C______”. 7.–Assim, todos os concessionários mandataram a “Praia V_____” para tratar de todos os assuntos relativos ao Plano Integrado de Salvamento (PIS) para a praia C_____, durante a época balnear 2016. 8.–É também da exclusiva responsabilidade da "Praia V_____" a elaboração do PIS, a sua proposta, coordenação e distribuição dos meios nele previstos durante a época balnear em colaboração com a Associação de Nadadores Salvadores. 9.–A arguida não teve controle, nem dirigiu/coordenou os efectivos disponibilizados para a sua concessão balnear.
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Não há factos não provados:
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IV–Fundamentação probatória:
O Tribunal a quo justificou a aquisição probatória nos seguintes termos: «O Tribunal formou a sua convicção com base no conjunto da prova produzida e examinada no âmbito dos presentes autos, apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (artigo 127.° do Código de Processo Penal, aplicável por remissão do artigo 41.°, n.° 1, do DL n.° 433/82, de 27.10, na sua actual redacção - doravante RGCO). Os factos que se julgaram provados quanto ao comportamento objectivo da arguida, resultam da apreciação, crítica e conjunta, da posição que a própria assumiu (não contestando a ausência, nas data e hora indicada no respectivo auto de notícia, do nadador salvador ao serviço do apoio balnear que lhe está concessionado), dos documentos de fls. 12v/16 (que atestam: a localização da zona de apoio balnear concessionada à arguida), dos documentos juntos de fls. 24/30 (que comprovam ter a arguida contratado com a “Praia V_____ -Assoc... Conc... A... Praia C_____” e a Associação de Nadadores Salvadores a resolução dos assuntos relativos ao Plano Integrado de Salvamento para a praia C______, durante a época balnear 2016) e do auto de notícia junto a fls. 3. Como se sabe, da conjugação do que se dispõe nos artigos 243°, 99.° e 169.° do Código de Processo Penal e 363.° e 371°, n° 1, do Código Civil, resulta clara a qualificação do auto de noticia como um documento autêntico, configurando-se, assim, como um instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os actos processuais a cuja documentação a lei obrigar e aos quais tiver assistido quem o redige, permitindo que se considerem provados os factos materiais constantes daquele documento enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa. Como salienta Paulo Pinto de Albuquerque, o auto de notícia vale como documento autêntico quando levantado por autoridade judiciária, órgão de policia criminal ou outra entidade policial que presenciou o crime, fazendo prova dos factos materiais nele constantes, podendo até esse auto fundamentar a sentença, mesmo que o seu autor tenha falecido antes da audiência (in “Comentário do Código de Processo Penal”, pág. 642). Entendimento partilhado pelos Conselheiros Leal Henriques e Simas Santos (in “Código de Processo Penal Anotado”, II volume, pág. 16), que referem que os autos de notícia desde que obedeçam às prescrições legais gozam da força probatória que é conferida aos documentos autênticos e autenticados, isto é fazem prova plena dos factos que documentam, enquanto a sua autenticidade ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa. O mesmo sentido interpretativo tem sido seguido, sem divergências, pela jurisprudência dos nossos Tribunais superiores (vide, por todos, acórdão do Tribunal da Relação de 31.10.2017, acessível in www.dgsi.pt). Na situação dos autos, o auto de notícia descreve o que o autuante, que o subscreve (agente da Polícia Marítima em exercício de funções), percepcionou directamente, descrevendo, com o necessário pormenor, a situação que aqui (e na decisão impugnada) se considerou provada. Por outro lado, a veracidade daquele relato (corroborado por outro agente da Polícia Marítima que o acompanhava), documentado em auto de notícia, não foi minimamente colocada em causa pela arguida (que não o impugnou), nenhuma razão de facto existindo para fundar um eventual erro de percepção por parte do agente autuante. Os factos julgados provados e referentes essencialmente ao conhecimento da arguida sobre a proibição do seu comportamento e à forma deliberada como se conformou com a verificação do evento legalmente proibido e punido, sustenta-se na apreciação, crítica e conjunta, da sua comprovada conduta, na medida em que, de acordo com as mais elementares regras de experiência comum, não poderia a arguida deixar de conhecer a proibição do seu comportamento (concessionária - beneficiária - da zona balnear, não pode alegar o desconhecimento das obrigações que lhe advieram dessa qualidade que assumiu deliberadamente - sendo uma destas obrigações a de disponibilizar, para assistência a banhistas da praia C_____S_____A_____, dois nadadores salvadores -, sendo ainda certo que a legislação sobre os condicionalismos e obrigatoriedades inerentes às licenças de concessão ZAB está, há muito, devidamente assimilada pelos concessionários, os quais são expressamente informados das obrigações a que a arguida se encontra vinculada, em termos de vigilância e socorro, na área que lhe foi atribuída), vindo a conformar-se com a verificação do resultado proibido que não podia deixar de prever (a harmonização as exigências de segurança nas zonas de apoio balnear com os interesses económicos dos titulares de licenças de exploração de zonas balneares é uma questão que se vem arrastando ao longo dos anos; sem se escamotear as eventuais dificuldades que podem ser sentidas no cumprimento das obrigações de vigilância balnear pelos concessionários, mormente quanto a assegurar a presença do número necessário de nadadores salvadores nas zonas concessionadas, a verdade é que tais obrigações são assumidas pelos concessionários quando solicitam a atribuição ou renovação da concessão, sabendo também que todos os anos recorrentemente são assinalados pela autoridade marítima diversos incumprimentos das mesmas que redundam na aplicação de sanções de natureza contra-ordenacional; cientes de tais obrigações e dos seus repetidos incumprimentos, pelas mais variadas causas, cabe aos concessionários diligenciar no sentido da não verificação de tais incumprimentos, acautelando todas a não verificação das causas que lhes podem dar origem; no caso vertente, a arguida, não ignorando a normal ocorrência de falhas, ainda assim, conscientemente não definiu um plano alternativo para tais falhas, razão pela qual necessariamente previu a situação ocorrida - consubstanciada na falta ao serviço do profissional em causa - e conformou-se com a possibilidade de poder não ter um nadador salvador na sua concessão durante o período referido, como sucedeu). Pouco contribuíram os depoimentos prestados por JM (que integra a associação de nadadores salvadores a quem a arguida e as demais concessionárias da praia C_____ confiaram o cumprimento do PIS - denominada “Brav.....”, limitando-se a relatar que no período temporal em apreço o nadador salvador escalado para a ZAB da concessão da arguida não compareceu) e de PV (que se limitou a comprovar que o PIS referente à praia C______ é executado pela Brav....., parceira da Praia V_____.
Foi ainda tido em conta o registo de infrações da arguida junto a fls. 61.».
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V–Fundamentos de direito:
O recurso da arguida funda-se no seu entendimento de que sendo a falta do nadador salvador um caso fortuito, ela não lhe é imputável como mandante porque nem é imputável à PRAIA V_____, atentos os factos referidos em 6 e 7.
A questão colocada é manifestamente improcedente porque a falta do nadador não constitui um caso fortuito e cabe à recorrente, por força das obrigações inerentes pela concessão da exploração, a criação de condições para que semelhante omissão nunca ocorra.
O caso fortuito é, no âmbito da responsabilidade contratual, uma causa de extinção da obrigação por impossibilidade objectiva, ou seja, por causa não imputável ao devedor (artigo 790º/CC).
Define-se como o evento proveniente de acção humana, imprevisível e inevitável, que impede o cumprimento de uma obrigação. Só é imprevisível um acontecimento cuja probabilidade de ocorrência e foge à capacidade de percepção do homem sendo que, por isso mesmo lhe é impossível evitar as consequências.
A tónica do instituto do caso fortuito assenta na ideia de imprevisibilidade: o facto não se pode prever, mas seria evitável se se tivesse previsto. Só é imprevisível o que não possa de modo équo ser exigido ao devedor.
A noção de impossibilidade é dada por Baptista Machado, Revista Legislativa de Jurisprudência, página 206: «é aquela que resulta de uma perturbação de programa contratual que atinge directamente, ou a capacidade de prestar do devedor, ou o objecto da prestação em si mesmo ou o processo de prestação, isto é, a actividade ou conduta do devedor que permitiria satisfazer o interesse de credor e cumprir a obrigação».
No caso, não há nada de imprevisível na falta de um trabalhador ou prestador de serviço. A entidade obrigada à manutenção de um serviço em situação de permanência, como aquele que aqui está em causa, obriga-se igualmente à estruturação da actividade de modo a que esse serviço não seja interrompido. Esta obrigação atinge a recorrente como qualquer outro serviço com idênticas características. O tráfego aéreo não pode parar porque faltou um controlador escalado. Estão em causa actividades de enorme responsabilidade porque visam a tutela do direito à saúde e, em última análise, à vida, dos utentes.
Não havendo caso fortuito mas pura e simplesmente o incumprimento de uma obrigação que a recorrente assumiu. O incumprimento em causa preenche o tipo legal da contra-ordenação pela qual a recorrente foi condenada, pelo que resta a manutenção da decisão recorrida.
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VI–Decisão:
Acorda-se, pois, negando provimento ao recurso, em manter a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça de 2 ucs.
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Texto processado e integralmente revisto pela relatora.
Lisboa, 13/ 05/2020 Maria da Graça dos Santos Silva A. Augusto Lourenço
______________________________________________________ [1] Cf. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», III, 2ª edição, 2000, pág. 335, e Acs. do S.T.J. de 13/5/1998, em B.M.J. 477-º 263; de 25/6/1998,em B.M.J. 478º-242 e de 3/2/1999, em B.M.J. 477º-271. [2] Cf. Artºs 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do CPP e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995.