CONTRATO DE MÚTUO
PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
PRESTAÇÕES PERIÓDICAS
PERDA DO BENEFÍCIO DO PRAZO
LIBERDADE CONTRATUAL
INTERPELAÇÃO
JUROS DE MORA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário


I - Tem sido entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência que apenas as questões em sentido técnico, ou seja, aquelas que integram o thema decidendum, constituem verdadeiras questões que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa, sob pena de a decisão enfermar da nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC.
II - O art. 781.º do CC apenas atribui ao credor o poder de exigir o cumprimento da obrigação -ainda que essa exigência, nos termos do acordo das partes, apenas pudesse ser feita mais tarde -, não colocando automática e imediatamente, independentemente da respetiva interpelação, o devedor numa situação de incumprimento.
III - Contudo, revestindo-se o preceito do art. 781.º do CC de natureza supletiva, à luz do princípio da autonomia negocial as partes podem afastar a disciplina nele consagrada, acordando, designadamente, o vencimento automático das prestações vincendas sem necessidade, para tal efeito, de interpelação do devedor.
IV - No caso dos autos, o credor dirigiu aos devedores interpelações destinadas a fazer cessar a mora e não a resolver o contrato ou a provocar o vencimento antecipado das prestações vincendas.
V - A exequente/embargada tem direito ao recebimento do capital em dívida à data do incumprimento de cada um dos contratos de mútuo, tanto por força do art. 781.º do CC como das cláusulas contratuais acordadas, como pediu na execução, mas os juros moratórios só são devidos a partir da data da propositura da execução, pois é nesta altura que manifesta pretender exercer o seu direito à perceção de tais quantias e se inicia a mora dos executados/embargantes quanto à dívida do capital antecipadamente vencido.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,


I – Relatório

1. AA e BB deduziram embargos à execução que lhes foi movida por Union de Créditos Imobiliários, S.A. – Estabelecimento Financeiro de Crédito Soc., pedindo a extinção da execução. Alegam, em síntese, a inexequibilidade do título, a falta de interpelação e de resolução dos contratos de mútuo em causa.

2. Invocaram ainda que há pagamentos parciais que não foram tidos em conta pela Exequente e que os valores devidos não estão especificados.

3. Admitidos liminarmente os embargos, a Exequente/Embargada, devidamente notificada, apresentou contestação, refutando o alegado pelos Executados.

4. Foi proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio e indicados os temas da prova.

5. Realizada a audiência final, foi proferida sentença que julgou improcedentes os embargos.

6. Inconformados, os Embargantes/Executados AA e BB interpuseram recurso de apelação, pedindo a revogação da sentença recorrida e a procedência dos embargos.

7. A Recorrida Union de Créditos Imobiliários, S.A. – Estabelecimento Financeiro de Crédito Soc. apresentou contra-alegações, sustentando a improcedência do recurso e a confirmação da sentença.

8. Por acórdão de 30 de junho de 2022, o Tribunal da Relação de Évora decidiu o seguinte:

Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, declarar inexigível a obrigação exequenda relativa aos juros de mora pedidos até à data da instauração da execução, os quais só são devidos desde 16 de Outubro de 2020, mantendo-se a sentença quanto ao mais decidido.

Custas da oposição e do recurso pela Exequente e Executados, na proporção do respectivo decaimento.

9. Não conformados, os Executados/Embargantes AA e BB interpuseram recurso de revista, apresentando as seguintes Conclusões:

1. Mal andou o douto Acórdão da Relação de ÉVORA, que com todo o respeito que é merecido, negou provimento à apelação dos executados, mantendo a sentença em 1º instância quanto à existência de titulo executivo e condições de exigibilidade.

2. Não se resignam os recorrentes com tal entendimento, desde logo, porquanto entenderem que a decisão sob revista é nula por omissão de pronuncia, tendo a Relação deixado efetivamente de se pronunciar sobre questões que devia ter apreciado.

3. Pressupõe este vicio a não apreciação de questões jurídicas de que o tribunal devia conhecer e o tribunal deve conhecer as questões que são submetidas á sua apreciação ou decisão, balizadas pelos pedidos formulados em conformidade com as causas de pedir invocadas e cujo conhecimento não haja ficado preterido por prejudicialidade.

4. No caso concreto, o Acórdão recorrido não apreciou as conclusões nºs 11, 14 ,16,18 a 24 e 29, nem sobre estas emitiu qualquer juízo, devendo assim ser considerado nulo por omissão de pronuncia, o que se requer.

5. Sem conceder, o fulcro essencial da pretensão recursória dos executados reside no facto de entenderem a necessidade de interpelações admonitórias, o que no caso não existiram, não se verificando as condições de exequibilidade dos títulos dados á execução, não existindo, consequentemente titulo exequível.

6. Entendem os recorrentes que tal divida é inexigível, por não ter ocorrido a interpelação do devedor, donde não haver titulo exequível dado á execução.

7. Apesar do artigo 781º do CC dizer que “ se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas”, a verdade é que apesar de aquela disposição legal descrever a situação como de vencimento antecipado, prevê-se ali antes, a perda de beneficio do prazo por parte do devedor e assim, se o credor não exigir as prestações restantes, o devedor, não fica logo constituído em mora pela totalidade da obrigação, pois tem de ser interpelado para tal.

8. O que significa que, sempre o credor tem de manifestar vontade em se aproveitar daquele beneficio, até porque vencimento imediato, traduz-se, neste caso, em exigibilidade imediata.

9. Colocando-se a questão de o contrato prever, na clausula 11.1 dos contratos de mutuo em causa que a “UCI, poderá, independentemente de interpelação, considerar vencido o empréstimo e exigir o pagamento da totalidade do montante em divida, no caso de os mutuários não pagarem qualquer uma das prestações de juros ou de capital acordados no presente contrato”, tal significará que o vencimento de todas as prestações decorre do incumprimento de alguma das prestações e a embargada pode exigir o pagamento de toda a divida, sem que esta careça de interpelar os devedores?

10. Na modesta opinião dos embargantes, o sentido da clausula contratual em nada diverge do que ressalta da interpretação dominante do artigo 781º do CC. (o sentido da expressão vencido o empréstimo não é o de afastamento do regime regra do artigo 805º, nº 1, do CC)

11. Pelo que, estando em causa a possibilidade de exigibilidade antecipada e não a de vencimento antecipado, não equivalendo o vencimento imediato a vencimento automático de todas as prestações posteriores às que não foram realizadas, mas tão só, a imediata exigibilidade destas, não fica o credor dispensado de interpelar o devedor se quiser que responda pelas prestações vincendas posteriores à vencida que não foi cumprida.

12. Daí, não ser suficiente, a interpelação feita aos devedores pese embora a teor da clausula inserta no contrato de mutuo: ao invés de interpelarem para o cumprimento das prestações vencidas, teriam de interpelar também para o cumprimento e/ou vencimento das prestações vincendas, atenta a ausência de automatismo no vencimento antecipado.

13. Tal atitude é claramente abusiva e agressiva para com o património dos executados.

14. Donde, a conclusão da inexigibilidade da quantia exequenda tal como vem peticionada, não se verificando as condições de exequibilidade dos títulos dados à execução.

Nestes termos e dos demais de direito que Vªs EXªs suprirão:

Deve ser dado integral provimento ao recurso, determinando-se a nulidade por omissão de pronúncia do Acórdão sob recurso, ou caso assim não entendam V. EXAS, revogado aquele e consequentemente determinada a extinção da instancia executiva, por manifesta inexistência de condições de exequibilidade dos títulos dados à execução.

Assim se fazendo Justiça.”

10. A Recorrida Union de Créditos Imobiliários, S.A. – Estabelecimento Financeiro de Crédito Soc. apresentou contra-alegações com as seguintes Conclusões:

1. Nos termos do n.º 1 artigo 672.º do Código de Processo Civil, onde se prevê os casos em que a revista é, excepcionalmente, admissível e ainda de acordo com o n.º 2 do mesmo artigo “O requerente deve indicar, na sua alegação, sob pena de rejeição” com base em que fundamento interpõe a revista.

2. Nenhuma das situações elencadas corresponde ao caso dos autos, pelo que o recurso deve ser rejeitado por inadmissível.

3. De todo o modo, quanto à substância, os Executados vêm colocar em causa as interpelações que lhes foram feitas, com vista a desencadear o vencimento da dívida, pois entendem não ser “suficiente”.

4. Os executados não questionaram que deixaram de cumprir as prestações, respectivamente em 02/12/2016 e em 03/05/2017 para cada um dos contratos.

5. O artigo 781º do C. Civil estabelece que se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, como é o caso, a falta de realização atempada de uma delas importa o vencimento (exigibilidade) de todas.

6. Além disso, o contrato de mútuo em causa prevê que “a UCI poderá, independentemente de interpelação, considerar vencido o empréstimo e exigir o pagamento da totalidade do montante em dívida, no caso de os mutuários não pagarem qualquer uma das prestações de juros ou de capital acordadas no pressente contrato” (sublinhado nosso).

7. Como se diz no Acórdão, esta cláusula é de conteúdo idêntico ao previsto no artigo 781º do Código Civil, excepto na parte em que permite que os efeitos da norma operem sem necessidade de interpelação, ou seja, face a esta cláusula contratual a exequente podia exercer esse direito sem notificar os executados dessa sua pretensão.

8. Nesta medida, tem a exequente direito ao recebimento do capital em dívida à data do incumprimento de cada um dos contratos, por via da aplicação do artigo 781 do Código Civil e de norma contratual idêntica.

9. Pelo que o recurso interposto é, pois, completamente infundado.

Termos em que deve ser negado provimento ao presente Recurso, mantendo-se o Acórdão recorrido, com o que se fará inteira e sã JUSTIÇA!

11. Em conferência, por acórdão de 24 de novembro de 2022, o Tribunal da Relação de Évora decidiu o seguinte:

Nestes termos e com tais fundamentos, acordam em Conferência os juízes deste Tribunal da Relação em julgar não verificada a nulidade imputada ao acórdão.

Notifique e conclua ao relator.

II – Questões a decidir

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da Recorrente (arts. 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2 e 639.º, n.os 1 e 2, do CPC), não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, n.º 2, in fine, do CPC). Estão, pois, em causa, as questões de saber se o acórdão recorrido padece de nulidade por omissão de pronúncia, de um lado e, de outro, se é necessária a interpelação admonitória para o vencimento antecipado das prestações em dívida.

III – Fundamentação

A. De Facto

Foram dados como provados os seguintes factos:

1. Serve de título executivo a escritura pública, outorgada a 31 de Maio de 2007, celebrada entre exequente e executados, pela qual o primeiro emprestou aos segundos a quantia de €177.000,00, a ser reembolsado em 420 prestações mensais e sucessivas, de capital e juros.

2. Serve ainda de título executivo a escritura pública, outorgada a 31 de Maio de 2007, celebrada entre exequente e executados, pela qual o primeiro emprestou aos segundos a quantia de €177.000,00, a ser reembolsado em 420 prestações mensais e sucessivas, de capital e juros.

3. Do requerimento executivo consta: «Valor Líquido: 332 158,25 €

Valor dependente de simples cálculo aritmético: 12 223,93 €

Valor NÃO dependente de simples cálculo aritmético: 0,00 € Total: 344 382,18 €

QUANTO AO PRIMEIRO EMPRÉSTIMO CAPITAL DE €145.631,77

VALOR DEPENDENTE DO SIMPLES CÁLCULO ARITMÉTICO:

- JUROS DE MORA CONTADOS ENTRE 02.12.2016 E 02.10.2020 - €4.182,16 - COMISSÕES - €1.240,44

- IMPOSTO DE SELO SOBRE AS COMISSÕES - €15,97.

A ESTA QUANTIA ACRESCEM OS JUROS VINCENDOS CONTADOS DESDE 02.10.2020 ATÉ INTEGRAL PAGAMENTO, À TAXA DE 4,607%. QUANTO AO SEGUNDO EMPRÉSTIMO

CAPITAL DE €186.526,48

VALOR DEPENDENTE DO SIMPLES CÁLCULO ARITMÉTICO:

- JUROS DE MORA CONTADOS ENTRE 03.05.2017 E 02.10.2020 - €5.286,52 - IMPOSTO DE SELO SOBRE OS JUROS - €188,12

- COMISSÕES - €1.288,73

- IMPOSTO DE SELO SOBRE AS COMISSÕES - €21,99.

A ESTA QUANTIA ACRESCEM OS JUROS VINCENDOS CONTADOS DESDE 02.10.2020 ATÉ INTEGRAL PAGAMENTO, À TAXA DE 4,607%.»

4. Por cartas datadas de 15 de Janeiro de 2020, recebidas pelos embargantes, o exequente exigiu os montantes em dívida respeitantes aos contratos referidos nos pontos anteriores, no prazo de 30 dias, sendo que «Na eventualidade do pagamento não ser realizado no prazo máximo concedido, será accionada a respectiva acção judicial, que levará à execução de bens ou direitos até ao montante em dívida, bem como ao pagamento das despesas judiciais e extra-judiciais com o processo e respectivos juros de mora.»”

B) De Direito

Nulidade ou não do acórdão recorrido por omissão de pronúncia

1. Os Recorrentes/Executados/Embargantes AA e BB alegam que o acórdão recorrido se encontra ferido de nulidade por omissão de pronúncia, dizendo este “não apreciou as conclusões n.º 11, 14, 16, 18 a 24 e 29, nem sobre as mesmas emitiu qualquer juízo”.

2. A Recorrida Union de Créditos Imobiliários, S.A. – Estabelecimento Financeiro de Crédito Soc. respondeu ao recurso, concluindo ser o mesmo infundado.

3. De acordo com o art. 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC, a sentença é nula, quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.

4. O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceto aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras (art. 608.º, n.º 2, do CPC).

5. A decisão padece, pois, do vício da nulidade quando o juiz deixar de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar.

6. Tem sido entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência que apenas as questões em sentido técnico, i.e., aquelas que integram o thema decidendum, constituem verdadeiras questões que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa, sob pena de a decisão enfermar da nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC.

7. As questões submetidas à apreciação do Tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.

8. Coisa diferente são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões no sentido do art. 615.º, n.º 1, do CPC. Daí que, se na apreciação de qualquer questão submetida ao seu conhecimento, o julgador não se pronunciar sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não fira de nulidade a respetiva decisão por falta de pronúncia.

9. Tal como refere o Tribunal a quo, a matéria mencionada pelos Recorrentes diz respeito à resolução do contrato e à necessidade de interpelação admonitória, para que a Exequente, perante a mora do devedor, possa exigir o pagamento integral da dívida, entendendo os Recorrentes que a comunicação efetuada por aquela não se traduz numa verdadeira e própria interpelação admonitória.

10. Importava, assim, apurar se estavam verificadas as condições de exequibilidade dos títulos dados à execução, questão que foi apreciada no acórdão recorrido. De acordo com a respetiva fundamentação, o acórdão recorrido decidiu pela inexigibilidade dos juros vencidos pedidos pela Exequente referentes ao período anterior a 16 de outubro de 2020.

11. In casu, o que se verifica é a discordância dos Recorrentes/Embargantes com a decisão do Tribunal da Relação de Évora, por terem entendimento diverso, mas isso nada tem a ver com a nulidade da mesma.

12. Assim, não se verificando a nulidade imputada pelos Recorrentes/Embargantes ao acórdão recorrido, improcede, nesta parte, o recurso por si interposto.

(Des)necessidade de interpelação admonitória

1. As obrigações que visam simultaneamente amortizar e remunerar o capital - obrigações híbridas ou mistas – geram algumas dificuldades na determinação do regime jurídico aplicável às perturbações contratuais. É que não são nem obrigações de reembolso de capital e nem obrigações de pagamento de juros. São obrigações unitárias – e não autónomas -, ainda que se destinem a cumprir uma dupla função: restituição e remuneração do capital mutuado1.

2. Com efeito, no caso de as partes acordarem o reembolso fracionado do capital, esta obrigação é cumprida através de várias prestações, sem que se dissolva a unidade da obrigação do mutuário, que não é incompatível com o fracionamento ou repartição da obrigação em diversas prestações. O tempo não apresenta aqui qualquer dimensão constitutiva, respeitando apenas à execução da prestação e, por isso, limitando-se a fixar o momento em que a prestação deve ser realizada. Neste moldes, segundo a doutrina dominante, o incumprimento de uma das prestações em que a obrigação de reembolso é dividida ou repartida preenche a facti-species do art. 781.º , ainda que o incumprimento se reporte a uma prestação com função simultaneamente amortizadora e remuneratória do capital, ou seja, a obrigações com um componente de restituição do capital e outro de pagamento de juros2.

3. De acordo com o disposto no art. 781.º do CC, “se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas”.

4. A determinação do sentido e do alcance com que o texto do art. 781.º deve valer tem sido, efetivamente, objeto de querela doutrinal e jurisprudencial. Em causa está a questão de saber se este preceito estabelece o vencimento das prestações futuras da dívida incumprida ou, diversamente, se apenas atribui ao credor o poder de as exigir antes do momento estipulado para a sua exigibilidade, provocando o seu vencimento antecipado. Para alguns, com base em argumentos de natureza gramatical e histórica, o incumprimento de uma prestação de uma obrigação fracionada constitui automaticamente o devedor em mora quando à realização das prestações futuras3. Para outros, não atribuindo valor determinante aos referidos argumentos, o incumprimento de uma prestação, em lugar de operar automaticamente o vencimento antecipado das restantes prestações, permite ao credor decidir sobre esse vencimento. Este sentido encontra-se, de resto, em harmonia com a ideia fundamental de que os efeitos que a ordem jurídica estabelece em vista da proteção de um sujeito devem ficar na sua disponibilidade, dependendo, por isso, da sua vontade. Com efeito, o credor pode não querer o benefício do vencimento antecipado com que a lei o contempla. Atendendo ao princípio da autodeterminação dos sujeitos, deve entender-se o preceito do art. 781.º como atribuindo ao credor o poder de provocar o vencimento da obrigação e não como produzindo ope legis esse vencimento, independentemente de uma decisão sua4. Assim, o incumprimento de uma prestação de uma dívida pagável em prestações acarreta apenas a exigibilidade antecipada das restantes prestações e não o seu vencimento automático. É, por isso, necessário que o credor interpele o devedor para que se produza o vencimento de todas as prestações e, deste modo, exigir antecipadamente o pagamento das restantes prestações. Reitere-se: o art. 781.º apenas atribui ao credor o poder de exigir o cumprimento da obrigação - ainda que essa exigência, nos termos do acordo das partes, apenas pudesse ser feita mais tarde –, não colocando automática e imediatamente, independentemente da respetiva interpelação, o devedor numa situação de incumprimento5.

5. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça6 tem sufragado a última tese, sustentando que o vencimento imediato de todas as prestações, nos termos do art. 781.º, do CC, pressupõe a interpelação do devedor.

6. Parece ser este o sentido da norma do art 781.º do CC que se deve eleger. Com efeito, “tem como objectivo esta disposição proteger o credor que, em consequência da falta de pagamento de uma das prestações, deixou de confiar na pessoa do devedor. Concede-lhe o benefício de não se sujeitar aos prazos previstos no contrato, podendo exigir a totalidade das prestações, mas não o dispensa da interpelação do devedor para que a mora se verifique. O "vencimento automático" teria como consequência o direito a juros sobre a totalidade das prestações desde a data em que uma delas deixou de ser paga, o que se afigura manifestamente excessivo7.

7. Contudo, revestindo-se o preceito do art. 781.º do CC de natureza supletiva, à luz do princípio da autonomia privada e da liberdade contratual, as partes podem afastar a disciplina nele consagrada, acordando, designadamente, o vencimento automático das prestações vincendas, sem necessidade, para tal efeito, de interpelação do devedor. Compulsada a matéria de facto dada como provada pelas instâncias, verifica-se que se encontra provada a existência de acordo das partes sobre um regime diverso do que resulta do art. 781.º do CC.

8. Note-se, todavia, que não é pacífica a aplicação do art. 781.º do CC – exigibilidade antecipada – à obrigação de reembolso do capital que recai sobre o mutuário, tal como ela é, via de regra, estabelecida pelas partes no mútuo bancário. As obrigações híbridas ou mistas em apreço – que não se limitam a reembolsar fracionadamente o capital mutuado, visando também remunerar a disponibilização do capital - não se subsumem à hipótese do art. 781.º, que apenas comtempla prestações fracionadas ou repartidas. Contudo, mesmo que se aceitasse essa suscetibilidade de exigibilidade antecipada da obrigação de reembolso, no caso do incumprimento de obrigações simultaneamente amortizadoras do capital, mediante a aplicação por analogia desse preceito, na medida em que esse incumprimento correspondesse à não realização de uma prestação do reembolso do capital, apenas se verificaria a exigibilidade do valor total do capital mutuado em dívida. Tal como as obrigações de juros não estão abrangidas pela facti-species do art. 781.º, os componentes de juro destas obrigações híbridas ou mistas não são igualmente compreendidos pelo mesmo. Portanto, da aplicação por analogia do art. 781.º às obrigações híbridas ou mistas em apreço resultaria, como consequência do incumprimento de uma prestação que visasse parcialmente a amortização do capital mutuado, o “vencimento antecipado” das restantes parcelas do capital8.

9. No caso sub judice, importa referir que os Executados/Embargantes não colocaram em causa o facto de haverem deixado de cumprir as prestações a que estavam adstritos: do primeiro contrato, a 2 de dezembro de 2016; e , do segundo, a 3 de maio de 2017.

10. Assim como também não o fizeram quanto ao facto de, ao tempo das interpelações de 15 de janeiro de 2020, referidas sob o n.º 4 dos factos provados, se encontrarem em dívida os valores nelas indicados, como correspondentes ao “total do valor em mora”, àquela data, que englobava a amortização do capital, os juros remuneratórios, os juros de mora e as comissões bancárias: no valor de € 10.903,16 do empréstimo n.º 38011356 e no montante de € 13.287,34 do empréstimo n.º 38011357. Nos referidos documentos indicou-se a data do início do incumprimento de cada um dos contratos, interpelando-se os devedores para o respetivo cumprimento, com a concessão de um prazo de 30 dias, e estabeleceu-se a cominação de ser “accionada a respectiva acção judicial” (cf. docs. de fls. 15 e 16 e n.º 4 dos factos provados).

11. Na execução, conforme os factos provados, a Exequente/Embargada pretende obter o pagamento do capital em dívida à data do incumprimento de cada um dos contratos de mútuo, acrescido dos juros moratórios desde aquela data, como especifica no requerimento executivo, onde também refere que a falta de pagamento das prestações determinou o vencimento imediato de toda a dívida de capital, nos termos dos contratos e da lei.

12. Em causa estão, pois, contratos de mútuo reembolsáveis (quanto ao capital) e pagáveis (quanto aos juros) em prestações, em que ocorreu o incumprimento do plano de pagamentos acordado e a que, consequentemente, se se aplica a norma do art. 781.º do CC (dívida liquidável em prestações) – diretamente ou por analogia.

13. Conforme o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/04/2021 (proc. n.º 723/18.8T8OVR-A.P1.S1), “Apesar da redacção equívoca do referido artigo 781.º, a mesma deve ser interpretada no sentido de que o vencimento antecipado das demais prestações, tendo por causa a falta de pagamento de uma delas, não ocorre automaticamente, sendo apenas concedida ao credor a faculdade de exigir, antecipadamente, o cumprimento de todas as prestações.”

14. No caso em apreço, as interpelações efetuadas pela Exequente/Embargada, a que se reporta o n.º 4 dos factos provados, não consubstanciam interpelações admonitórias em sentido próprio, não importando, por conseguinte, a falta de pagamento das quantias reclamadas, no prazo fixado, a resolução dos contratos. Também não se traduzem em interpelações destinadas a ter como efeito o vencimento antecipado das prestações vincendas, nos termos previstos no art. 781.º do CC ou das cláusulas contratuais acordadas pelas partes.

15. Na verdade, resulta claramente do respetivo teor que as mencionadas interpelações se destinavam a fazer cessar a mora e não a resolver os contrato ou a provocar o vencimento antecipado das prestações vincendas. Efetivamente, o que ali se pede, como facilmente se retira dos valores referidos em comparação com o montante peticionado na execução, referente a cada um dos contratos, é o pagamento das prestações em dívida à data da interpelação, acrescidas de juros moratórios e demais acréscimos legais.

16. E da comunicação de que a falta de pagamento dos montantes em dívida implicaria o acionamento do respetivo mecanismo judicial não resulta necessariamente uma pretensão resolutória dos contratos ou de exigibilidade das prestações vincendas, porquanto a Exequente/Embargada não estava obrigada a assim proceder, podendo simplesmente exigir o pagamento das prestações em dívida e das que se fossem vencendo.

17. Porém, conforme referido supra, a aplicação do art. 781.º do CC a estas prestações, no caso dos autos, não se afigura determinante, uma vez que as partes estipularam, nos contratos de mútuo, a consequência para a falta de pagamento das prestações que se fossem vencendo. Conforme referido supra, a norma do art. 781.º reveste-se de natureza supletiva e, por isso, é suscetível de ser afastadas pela vontade das partes.

18. Na verdade, de acordo com a cláusula 11.1 dos contratos de mútuo, “A UCI poderá, independentemente de interpelação, considerar vencido o empréstimo e exigir o pagamento da totalidade do montante em dívida, no caso de os mutuários não pagarem qualquer uma das prestações de juros ou de capital acordadas no pressente contrato”.

19. Esta cláusula é de conteúdo idêntico ao previsto no art. 781º do CC, exceto na parte em que permite que os efeitos da norma operem sem necessidade de interpelação.

20. Porém, perante essa cláusula, o vencimento da totalidade da dívida, em consequência do não pagamento de qualquer prestação, também não é automático, pois o tempo verbal utilizado (“poderá”) – futuro indicativo - continua a sugerir que se trata de uma faculdade concedida ao credor, que poderá dela fazer uso ou não.

21. Perante tal cláusula contratual, competia à Exequente/Embargada, se assim o entendesse, fazer uso dessa faculdade sem notificar os Executados/Embargantes dessa sua pretensão.

22. Contudo, a Exequente/Embargada adotou comportamento que demonstra que à data denominada “interpelação admonitória” referida sob o n.º 4 dos factos provados, a 15 de janeiro de 2020, ainda não tinha exercido essa sua faculdade. Com efeito, se assim não fosse, não teria notificado os Executados/Embargantes para porem termo à mora, devendo antes comunicar-lhes o vencimento antecipado das prestações e exigir o pagamento da totalidade da dívida de capital e juros moratórios, o que não fez.

23. Mas esta situação apenas releva para efeitos de contagem dos juros moratórios. Assim, a Exequente/Embargada tem direito ao recebimento do capital em dívida à data do incumprimento de cada um dos contratos, tanto por força do art. 781.º do CC como das referidas cláusulas contratuais, como pediu na execução, mas os juros moratórios só são devidos a partir da data da propositura da execução, a 16 de outubro de 2020. Efetivamente, é nesta altura que a Exequente/Embargada manifesta pretender exercer o seu direito à perceção de tais quantias e se inicia a mora dos Executados/Embargantes quanto ao capital antecipadamente vencido.

24. Deste modo, a Exequente tem título para exigir o pagamento do montante de capital em dívida à data do incumprimento de cada um dos empréstimos, e legais acréscimos, mas os juros moratórios só são exigíveis a partir de 16 de outubro de 2020, data da propositura da ação executiva.

25. Assim, improcede, também nesta parte, o recurso de revista.

IV – Decisão

Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto por AA e BB, confirmando-se o acórdão do Tribunal da Relação de Évora.

Custas pelos Recorrentes/Executados/Embargantes.

Lisboa, 28 de Fevereiro de 2023


Maria João Vaz Tomé (Relatora)

António Magalhães

Jorge Dias

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1. Cf. Miguel Brito Bastos, O mútuo bancário, Coimbra, Coimbra Editora, 2015, pp.186-188.↩︎

2. Cf. Miguel Brito Bastos, O mútuo bancário, Coimbra, Coimbra Editora, 2015, p.204.↩︎

3. Cf. Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, Almedina, Coimbra, 1997, pp.270-271.↩︎

4. Cf. Bruno Ferreira, Contratos de crédito bancário e exigibilidade antecipada, Coimbra, Almedina, 2011, pp.186 e ss; João de Matos Antunes Varela, Direito das Obrigações em Geral, II, Coimbra, Almedina, 2005, pp.52-53; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, II, Coimbra, Almedina, 2006, p.164;Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, 2007, pp.1018-1020; Miguel Brito Bastos, O mútuo bancário – Ensaio sobre a estrutura sinalagmática do contrato de mútuo, Coimbra, Coimbra Editora, 2015, p. 209; Nuno Manuel Pinto de Oliveira, Princípios de direito dos contratos, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pp.391 e ss..↩︎

5. Cf. Miguel Brito Bastos, O mútuo bancário – Ensaio sobre a estrutura sinalagmática do contrato de mútuo, Coimbra, Coimbra Editora, 2015, p. 210.↩︎

6. Cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de maio de 2017 (Olindo Geraldes), Proc. n.º 1244/15.6T8AGH-A.L1.S2; de 11 de julho 2019 (Ilídio Sacarrão Martins), Proc. n.º 6496/16.1T8GMR-A.G1.S1 (segundo o qual o vencimento das prestações referido no art. 781.º do CC traduz-se num benefício concedido por lei ao credor que, querendo beneficiar dele, deverá manifestar a sua vontade nesse sentido, interpelando o devedor para cumprir imediatamente a totalidade da obrigação); de 15 de março de 2005 (Moitinho de Almeida), Proc. n.º 282/05; e de 17 de janeiro de 2006 (Azevedo Ramos), Proc. n.º 3869/05 (defendendo-se que o vencimento imediato das prestações cujo prazo ainda se não vencera constitui um benefício que a lei concede (mas não impõe) ao credor, pelo que não prescinde da interpelação do devedor. A interpelação do devedor para que cumpra imediatamente toda a obrigação, realizando todas as restantes prestações, constitui a manifestação de vontade do credor em aproveitar o benefício que a lei lhe atribui).↩︎

7. Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de março de 2005 (Moitinho de Almeida), Proc. n.º 282/05.↩︎

8. Pode, contudo, dizer-se que esta construção se afigura incompatível – tal como a exigibilidade antecipada da obrigação de reembolso como consequência do incumprimento de uma prestação puramente amortizadora – com o sinalagma existente entre a obrigação de pagamento de juros e a disponibilização do capital. Com efeito, o art. 781.º consagra um mecanismo que apenas respeita à obrigação objeto de incumprimento, deixando incólume o direito do mutuante aos juros. A extinção da obrigação de pagamento de juros remuneratórios da futura disponibilização do capital não pode ser considerada como um dado adquirido, pois tem de encontrar fundamento em qualquer critério normativo, que não se descortina facilmente e que não é, normalmente, indicado. Pode, por isso, dizer-se que o respeito pelo sinalagma justifica a inaplicabilidade do regime de exigibilidade antecipada ao mútuo oneroso. Propõe-se, assim, a redução teleológica do art. 781.º, de modo a não compreender o incumprimento de obrigações fracionadas cujo vencimento antecipado – provocado como que potestativamente pelo credor- quebre a relação de sinalagmaticidade estipuladas pelas partes, permitindo ao mutuante beneficiar do pagamento dos juros sem que seja privado do capital pelo correspondente período de tempo. Daí que a tutela do credor, permitindo a recuperação do capital mutuado em virtude do incumprimento de uma prestação do reembolso, resida antes num outro mecanismo, suscetível de fazer cessar cessar tanto a disponibilização do capital, como a respetiva remuneração: a resolução (art. 1150.º do CC). Cf. Miguel Brito Bastos, O mútuo bancário, Coimbra, Coimbra Editora, 2015, pp.206, 210-211.↩︎