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PROVEITO COMUM DO CASAL
PRESUNÇÃO
ILISÃO DA PRESUNÇÃO
DÍVIDA COMERCIAL
Sumário
I - O proveito comum do casal é um conceito jurídico-factual que permite a ilisão de que o acto comercial foi celebrado, do ponto de vista do comerciante, visando o sustento ou enriquecimento da união conjugal. II - Esta basta-se com a comprovação que o marido comerciante, neste caso, nunca sustentou o casal, que o casamento cessou em data anterior ao incumprimento da obrigação, e que por isso o acto comercial não visou qualquer proveito comum. III - Em caso de dúvida deve interpretar-se o regime de dívidas por actos comerciais de acordo com as actuais realidades sociológicas nos termos dos quais existe uma autonomia e independência económica real ou crescente entre os cônjuges.
“A...,Lda”, instaurou a presente acção declarativa de processo comum contra AA, e BB, pedindo a condenação dos Réus a pagarem-lhe solidariamente a quantia de €27.952,59, acrescida de juros moratórios vincendos à taxa supletiva legal, sobre a quantia de €20.698,00 até efectivo e integral pagamento.
Alega para o efeito que no âmbito da sua actividade comercial prestou ao Réu AA, a solicitação deste e para o exercício da sua actividade, serviços de lacagem e fornecimento de material, tendo emitido as respectivas facturas, permanecendo em dívida a quantia de €20.687,00. Nessa sequência, o Réu emitiu e assinou para pagamento do valor em dívidas um cheque e três letras de câmbio, as quais não foram pagas nas datas dos respectivos vencimentos.
Acresce que, à data, os Réus eram casados entre si, no regime da comunhão geral de bens, pelo que tendo a dívida sido contraída pelo Réu marido no exercício da sua actividade de comerciante a responsabilidade dela decorrente é comunicável ao respectivo cônjuge, nos termos do preceituado nos artigos 15.º do Código Comercial e 1691.º, n.º 1, al. d) do Código Civil, sendo, portanto, solidariamente responsável pelo pagamento do peticionado montante em dívida.
Regularmente citados, ambos os Réus ofereceram contestação, em separado. Na sua contestação, a Ré BB invocou, desde logo, a existência do abuso do direito por terem decorrido quase vinte anos entre a data dos factos relacionados com a alegada dívida e a presente acção.
Refere ainda, que o casal passou desde 2001 a fazer vidas distintas e atenta a total falta de qualquer contributo para as despesas do casal instaurou a acção de divórcio no Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira em 23 de Setembro de 2003, cujo processo correu termos pelo 3.º Juízo, com o n.º 6985/03.8TBVFR, tendo o divórcio do casal sido decretado por sentença de 9 de Junho de 2005.
Mais alude que foi movida pela aqui Autora execução apenas contra o co-Réu AA, tendo a ora Ré sido citada, nos termos do então artigo 825.º do CPC, e requerido inventário para separação de bens, sem que a ali exequente – ora Autora – houvesse invocado a comunicabilidade da dívida por ter sido contraída em proveito comum do casal. Tendo sido proferida sentença homologatória da partilha, a execução prosseguiu quanto aos bens adjudicados ao ex-cônjuge marido, vindo a ser declarada deserta e extinta a instância por falta de impulso processual
Nesta conformidade, excepciona o uso ilegítimo e abusivo do processo e a existência de caso julgado. Invoca o abuso do direito e a alega que o co-Réu nunca contribui com rendimentos do seu trabalho para fazer face às despesas do casal, concluindo, assim, pela sua absolvição do pedido e pela condenação da Autora como litigante de má-fé.
Por sua vez, o Réu AA defendeu que ocorre a excepção do caso julgado uma vez que deu à execução os mesmos títulos executivos que a Autora invoca para intentar a presente acção declarativa, tendo, por falta de impulso processual, deixado extinguir a acção executiva, aceitando as decisões anteriormente proferidas em sede de execução, quanto ao seu objecto, causa de pedir e relação jurídica entre os mesmos sujeitos.
Conclui, deste modo, pela sua absolvição do pedido.
Foi saneado o processo e após instrução realizou-se a audiência final e foi proferida sentença, que decidiu: Condena o Réu AA a pagar à Autora a quantia global de €24.815,33, e absolve a ré do pedido contra si formulado.
Inconformada com esta veio a autora interpor recurso o qual foi admitido como de apelação (art. 644.º, n.º 1, al. a) do Novo Código de Processo Civil), com subida nos próprios autos (art. 645.º, n.º 1, al. a) do Novo Código de Processo Civil) e efeito meramente devolutivo (art. 647.º, n.º 1, do Novo Código de Processo Civil).
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2. Conclusões
1- A sentença recorrida ao dar como provado, como ilidida por parte da Ré BB, presunção de proveito comum – violou os artigos 342 nº 2 , 344 e 1691º, nº1, alínea d) do Código Civil e artigo 571 nº 2 do CPC.
2- Conforme sentença recorrida, a dívida em causa nos autos foi contraída pelo Réu marido, comerciante, no exercício da sua actividade comercial, não tendo a Ré BB logrado, nessa parte, afastar tal presunção do artigo 1691 nº 1. Al. do Código Civil, contudo interpretou incorretamente o disposto no e 1691º, nº1, alínea d) do Código Civil, porquanto não foi ilidida a presunção de proveito comum.
3- É um ónus da Ré BB alegar e provar – artigo 342º, nº 2 , 344 do Código Civil – e 571 nº 2 do CPC que a dívida não fora contraída em proveito comum do casal, ou seja não resultou provado que, os rendimentos auferidos pelo R. marido no exercício da sua actividade profissional/comercial não revertiam a favor do casal, sendo sobre esta Ré que recaem as consequências da falta ou insuficiência de prova.
4- Considerando que foi o regime de comunhão geral de bens que vigorou entre os Réus (facto provado nº 7) e considerando que efectivamente relevante, é a dissolução do casamento e a dissolução das relações patrimoniais aferida pela data do divorcio, o qual foi decretado por sentença de 9 de Junho de 2005.(facto provado nº 9), pelo que, apenas e apos o transito em julgado posterior a esta data, se extinguem as relações patrimoniais entre os Réus, nos termos do disposto no artigo 1789 do Código Civil, conclui-se que, as dividas refentes ás datas dos títulos de divida no caso dos autos, dizem respeito ao ano de 2002 e 2003, 1 cheque e 2 letras (facto provado nº 13), foram contraídas na vigência do casamento entre os Réus.
5- Para se verificar o proveito comum não é necessário que o mesmo seja afectado para o sustento do agregado familiar do cônjuge comerciante, nem é prova suficiente provar, que era com a actividade de comercialização de bolos e produtos de pastelaria da Ré fazia face às despesas do agregado familiar conforme a sentenças recorrida refere ser suficiente, através dos factos provados n(s): 32 e 33.
6- Assim como, fundamentar a sentença, conforme no facto provado nº 34, que “Da actividade do Réu AA, aludida em 2., nunca foi destinado qualquer montante para fazer acorrer e fazer face aos encargos e despesas do casal” facto que por si , não é bastante, para, sem mais, se aferir que não houve proveito comum, ou seja este facto, não configura por si a ausência de proveito comum.
7- Considerando que, existe proveito comum do casal, quando a dívida é contraída, tendo em vista um interesse de ambos os cônjuges ou do agregado familiar neste sentido a doutrina relevante de Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. IV, 2.ª Edição Revista, atualizada, pág. 331 Pereira Coelho, Curso de Direito da Família, Lições ao curso de 1977/78, Coimbra, 1977, a pág.s 348 e 349.
8- Conclui-se que para efeito da existência de proveito comum, relevante é a intenção com que a dívida é assumida: Se no interesse comum de ambos os cônjuges e da família, é exigível ficarem provados factos dos quais fosse susceptível aferir que o fim visado ao contrair a dívida não foi o proveito comum do casal. , mais precisamente, que as responsabilidades derivadas da relação comercial com a Autora, , não tivessem como objectivo potenciar a obtenção de rendimentos para o casal dos Réus, em virtude de tal relação comercial, que no caso dos autos não ficou provado.(vide neste sentido Ac RP de 18/12/2018 – Processo nº 161/14.1TTVLG.P1- in www.dgsi.pt)
9- Assim sendo, não é relevante aqui por si só, que ao tempo da contração da dívida em causa nos autos (2002 e 2003), o casal dos Réus não vivesse dos rendimentos proporcionados pela actividade comercial do negocio do Réu marido porquanto, não foi alegado, nem provado, que o exercício da actividade comercial pelo Reu marido (quer no que respeita às relações com os fornecedores, clientela e trabalhadores) , se não destinasse à Re mulher, BB e agregado familiar.
10- Por outro lado, considerando que, a autora A..., Ldª em 29.10.2004 foi ao processo nº 785/2002 do 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, onde foi requerida a separação de bens ao abrigo do então artigo 825º do CPC, deduzir Reclamação de Créditos- facto provado nº 22;
11- Considerando que, esta reclamação de créditos, tem origem no processo1685/03.1TBVFR do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de V.N. de Gaia, onde se penhoraram de dois imóveis inscritos na matriz rústica sob os artigos ...69 e ...68 ambos da freguesia ..., concelho de V.N.de Gaia e descritos na 2ª Conservatória do Registo Predial de V. N. de Gaia sob os nºs ...93 e ...93- facto provado nº 14;
12- Considerando que, no processo 785- A/2002 do 4º Juízo Cível de Santa Maria da Feira sentença homologatória da partilha de bens, tendo os bens imóveis penhorados sido adjudicados à BB – facto provado nº 26;
13- Considerando que ficou provado, que a divida de cônjuge comerciante, reu AA, foi contraída no exercício do seu comércio, é comercial, portanto, beneficia de presunção de ter sido contraída em proveito comum do casal, (artº 1691º d) do C.C.) e considerando que tais presunções legais dispensam o credor de alegar e fazer a prova dos benefícios que a mesma trouxe ao cônjuge não comerciante, recai sobre o cônjuge não comerciante o ónus de ilidir a sua responsabilidade – Artº 342 nº 2 344º do CC e 571º nº 2 do CPC;
14- Deveria ter sido alegado pela Ré BB e provado – que no caso dos autos não foi alegado nem provado: que do património partilhado do casal, nomeadamente os bens imoveis penhorados supra referidos, que couberam no processo partilha de divorcio inventario à mesma Ré, não foram adquiridos com os rendimentos auferidos da actividade comercial do Reu AA.
15- Assim sendo, a Ré, BB, não demonstrou que, não obstante a natureza comercial da dívida em questão, esta não visou o interesse e exclusivo do Reu AA, esta não visou o interesse exclusivo da sua mulher, pelo que não ilidiu a presunção de proveito comum prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 1691º do Código Civil, pelo que deve ser condenado a pagar solidariamente a divida em causa nos autos com o outro Reu.
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2.2. A apelada contra-alegou, em suma, que:
a Ré / Recorrida veio a demonstrar que a divida contraída pelo Réu AA e reclamada pela Autora não foi contraída com a intenção de proveito comum do casal, que o fim visado não foi o interesse do casal, beneficiando, deste modo, da excepção prevista no nº1, al. d) do artigo 1691º do C. Civil;
Isto porque, face à matéria de facto provada e dada por assente (não foi objecto do recurso), o casal dos Réus passaram a fazer vidas distintas a partir de 2001, tendo-se separado em definitivo em Agosto de 2003;
Face à total ausência de contributo do Réu para as despesas do casal, entre outros factos, a Ré / Recorrida instaurou acção de divórcio em 23 de Setembro de 2003, que veio a ser decretado por sentença de 09 de Junho de 2005;
Ou seja, à data em que o Réu AA contraíu as dividas (2002 e 2003), o mesmo usava em beneficio próprio e exclusivo (não no interesse do casal) os eventuais rendimentos decorrentes da sua actividade, não comparticipando nas despesas do agregado familiar, não contribuindo para qualquer proveito da Ré / Recorrida, que sobrevivia e subsistia exclusivamente com os rendimentos provenientes do seu trabalho, com os quais fazia face às despesas domésticas e do seu agregado familiar, sem contar, nessa altura e a partir, pelo menos, do ano 2000, com qualquer contribuição económica e financeira do Réu AA;
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3. Questões
Determinar se o proveito comum do casal foi ou não ilidido, no caso dos autos.
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4. Fundamentaçãodefacto:
1. A Autora é uma sociedade comercial dedica-se à actividade industrial e comercial que tem por objecto a prestação de serviços de lacagem de alumínios.
2. O Réu AA dedicou-se à actividade de serralharia civil, produzindo caixilharias de alumínio e grades.
3. No âmbito da sua actividade comercial, a Autora prestou ao Réu AA, a solicitação deste e para o exercício da sua actividade, serviços de lacagem em material fornecido pela Ré com periodicidade regular.
4. Tendo sido entregue o material lacado ao Réu AA que conferiu as mesmas e achado conforme ao encomendado á Autora quanto á quantidade, qualidade e preço.
5. O Réu AA porque não tinha dinheiro disponível para pagar os serviços de lacagem em divida, emitiu e assinou os seguintes documentos: • Letra de câmbio no montante de 3500,00€ Euros, emitida em 30/9/02 com vencimento para 27/12/2002. • Cheque emitido em .../.../2002 n.º ...08 no montante de 5487,00€. • Letra emitida em 02/10/02 no montante de 5200,00€ com vencimento para 10/01/03. Letra emitida em 6/1/03 no montante de 6500,00€ com vencimento para 6/03/03.
6. O Réu AA, não pagou à Autora a quantia total de €20.687,00€ (3500,00+5487,00+5200,00+6500,00).
7. O Réu AA celebrou com a Ré BB em 8 de Março de 1981, casamento com convenção antenupcial no regime de comunhão geral de bens.
8. O casal passou a fazer vidas distintas a partir de 2001, tendo-se separado em definitivo em Agosto de 2003.
9. Atenta, entre outros factos, a total falta de qualquer contributo por parte do cônjuge marido para as despesas do casal, foi intentada acção de divórcio no Tribunal Judicial da Feira em 23 de Setembro de 2003 cujo processo correu termos pelo 3º Juízo, com o nº 6985/03.8TBVFR.
10. O divórcio dos Réus foi decretado por sentença de 9 de Junho de 2005.
11. A aqui Autora “A..., Lda.” intentou, em 14-02-2003, acção executiva para pagamento de quantia certa sob a forma de processo sumário contra AA, alegando, em súmula, ser portadora de uma letra de câmbio no montante de 3.500 Euros, emitida em 30/09/02 com vencimento para 27/12/2002.
12. Peticionou ainda, na acção executiva, juros de mora à taxa legal de 7%, que à data da entrada do requerimento injuntivo perfazia o montante de €32,00.
13. A aqui Autora, exequente nos autos do Proc. n.º 1685/03.1TBVFR do 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, apresentou novo requerimento executivo, juntamente com a cumulação de outros títulos executivos, concretamente: - Cheque n.º ...08 no montante de 5.487,00 Euros, da conta do executado AA e por ele assinado; - Letra emitida em 02/10/02 no montante de 5.200 Euros; - Letra emitida em 6/01/02 no montante de 6.500 Euros com vencimento para 6/03/03, aceites pelo referido AA, passando a execução a ter o valor total de €21.363,66.
14. Por requerimento entrado em 13.11.2003 no Proc. nº 1685/03.1TBVFR do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de V.N. de Gaia, a ali exequente A..., Lda, foi dar nota da existência de uma execução ordinária com o nº 785/2002 no 4º juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira contra o executado AA, informando que em tal execução já estavam penhorados os únicos bens imóveis conhecidos para pagar a dívida e no mesmo requereu com urgência a penhora de dois imóveis inscritos na matriz rústica sob os artigos ...69 e ...68 ambos da freguesia ..., concelho de V.N.de Gaia e descritos na 2ª Conservatória do Registo Predial de V. N. de Gaia sob os nºs ...93 e ...93.
15. A A..., Ldª, no requerimento de 05.01.2004 e em requerimento subsequente datado de 09.02.2004 requerer o averbamento do termo de penhora de tais bens para posterior reclamação do crédito na execução ordinária nº 785/2002 do 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira.
16. Em tal processo executivo foram juntas certidões de ónus e encargos sobre os imóveis referidos supra e do registo provisório de penhoras por força de penhoras anteriores à ordem do processo 785/2002 do 4º juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, requerendo a A..., Lda a suspensão total do processo nos termos do artigo 871º do Código de Processo Civil, à data vigente.
17. No referido processo executivo nº 785/2002 do 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira instaurado por CC contra AA.
18. Por notificação de 14.05.2004 nesse Proc. nº 785/2002 do 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira foi a BB, notificada na qualidade de cônjuge do executado AA para requerer a separação de bens.
19. Na sequência disso, em 26.05.2004, nesse processo Proc. 785/2002 do 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, a referida BB, aqui Ré, requereu, ao abrigo do então artigo 825º do CPC, a separação de bens, inventário para separação de bens, o que veio a dar origem ao apenso A, e indicando para cabeça de casal o cônjuge mais velho, no caso o executado AA.
20. Por despacho de 2.11.2004, prolatado nos autos de execução nº 785/2002, foi declarada suspensa a execução até à partilha a realizar no inventário apenso (apenso A).
21. Pela conclusão de 06-10-2004, foi proferido despacho de sustação da execução nº 1685/03.1TBVFR do 3º Juízo Cível de Vila Nova de Gaia, intentada pela A..., Ldª, sendo executado AA, ao abrigo do então artigo 871º do CPC, por os bens penhorados em tal execução o terem sido anteriormente penhorados pelo processo de execução nº 785/2002, do 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira.
22. A A..., Ldª em 29.10.2004 foi ao referido processo nº 785/2002 do 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, onde foi requerida a separação de bens ao abrigo do então artigo 825º do CPC, deduzir Reclamação de Créditos.
23. No âmbito desse processo de separação de meações foi apresentada a relação de bens pelo cabeça de casal, no caso o Réu AA que relacionou o crédito do exequente no Proc. 785/2002 e o crédito da A..., Ldª, tendo relacionado este último pelo montante de 3.532,00€.
24. A ex-cônjuge do executado, BB, reclamou da relação de bens declarando, além do mais, que o crédito relacionado da A..., Lda.” não é da sua responsabilidade por não ter sido contraída em proveito comum do casal nem daí retirou qualquer benefício.
25. A BB não consta dos respectivos títulos executivos dados pelo “A..., Lda.” à execução que correu termos sob o processo n.º 1685/03.1TBVFR do 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia.
26. Em 14.06.2010, nos autos de processo de separação de bens nº 785-A/2002 do 4º Juízo Cível de Santa Maria da Feira, foi proferida sentença homologatória da partilha de bens, tendo os bens imóveis penhorados sido adjudicados à BB, sentença que transitou em julgado em 28.06.2010.
27. Face a tal, as execuções não prosseguiram quanto aos bens adjudicados á ex-cônjuge BB, podendo prosseguir apenas contra os bens que couberam ao executado AA.
28. No Proc. nº 1685/03.1TBVFR, no qual era exequente a A..., Ldª, em 10.05.2005, foi proferido despacho a declarar interrompida a instância.
29. Por falta de impulso processual em tais autos, a instância executiva foi declarada deserta e extinta a instância, do que foi a exequente A..., Ldª notificada.
30. A solicitação da aqui Ré BB, foi declarado o levantamento das penhoras e o cancelamento das mesmas junto da Conservatória do Registo Predial e que incidiam sobre os imóveis referidos supra em 4.
31. A Autora intentou em 11 de Dezembro de 2019 a presente acção declarativa comum contra os Réus visando a condenação solidária de ambos no pagamento do capital de €20.952,59 e dos juros de mora vencidos no montante de €7.265,59, acrescido dos juros de mora vincendos à taxa supletiva legal sobre a quantia de €20.952,59 até efectivo e integral pagamento.
32. A Ré exercia à data de 2000, 2001, 2002, 2003 e ainda exerce o fabrico e comercialização de bolos e produtos de pastelaria, estando colectada nas finanças em tal actividade desde 18.09.2000.
33. Era com os créditos de tal actividade que a Ré fazia face às despesas com a alimentação, saúde, vestuário, calçado, educação dos filhos, água e luz, em nada contribuindo o Réu para tais despesas.
34. Da actividade do Réu AA, aludida em 2., nunca foi destinado qualquer montante para fazer acorrer e fazer face aos encargos e despesas do casal.
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5. Fundamentação jurídica
Nos presentes autos está em causa determinar se a apelada conseguiu ou não ilidir a presunção da existência do proveito comum do casal, por via da comercialidade da dívida.
O art.º 1691º, nº 1 do CC, alínea d), dispõe: «As dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal (…)».
Essa expressão "dividas contraídas... em proveito comum do casal” tem sido entendida correntemente na nossa doutrina e jurisprudência[1] com o sentido de não ser necessário que das dividas advenha num beneficio efectivo para os cônjuges, bastando a simples expectativa ou possibilidade dele e que resulta da constituição da própria divida, ou seja, directamente desta.
Sendo consensual que “O proveito comum do casal, no sentido do n.º 2 do art. 1691.º do Código Civil, deve aferir-se pelo fim visado pelo cônjuge que contraiu a dívida”.[2]
Este mecanismo, deriva da concepção, com origem germânica, do casamento como uma comunhão conjugal de bens. Nesta concepção ambos os cônjuges (ou apenas o cônjuge marido) tinham o poder de administração dos bens do casal que formavam um conjunto de bens perante o qual cada um deles era titular de uma quota ideal. Por causa, disso as actividades com relevência jurídica realizadas com terceiros iriam sempre repercutir-se na comunhão conjugal, que assim deveria ser responsabilizada globalmente perante terceiros.
Ou seja, a responsabilização da ré deriva da sua participação numa sociedade com um escopo lucrativo comum, pelo que deve ser responsabilizada na medida e se a dívida produziu um enriquecimento (efectivo ou esperado) desse património[3].
De notar, porém que, existe uma desconformidade entre a realidade social e o modelo legal, que apenas foi revisto profundamente em 1977, pois, a actual realidade familiar alterou-se “profundamente, passando a assentar numa estrutura muito mais liberal e paritária, em que ambos os cônjuges exercem atividades profissionais remuneradas e asseguram a gestão, de forma cada vez mais autónoma e independente, do ativo e do passivo da “sociedade familiar”. [4]
Do ponto de vista sistemático, teremos de notar que essa responsabilização patrimonial tinha, por contraponto uma série de mecanismos legais que visavam proteger a família, tais como a moratória dos bens do casal. Razão pela qual a actual eliminação perante credores dessa moratória, em sede de processo executivo, deveria implicar também, de forma sistemática, uma interpretação actualista das posições mais rigorosas sobre a responsabilidade do cônjuge não interveniente no negócio.
Aplicando estes princípios ao caso concreto, parece seguro que a actividade do marido se integra numa actividade comercial, logo presume-se iuris tantum que beneficia o casal.
Isto porque, a intenção legislativa, é a de incentivar o comércio, beneficiando o credor com uma garantia pessoal sobre o cônjuge do devedor permite facilitar a concessão do crédito e estimular o desenvolvimento das relações comerciais. E, “o sacrifício imposto ao cônjuge e família do comerciante não é arbitrário, por se entender que, em princípio, a dívida terá sido contraída no interesse do casal, com vista a granjear proveitos a aplicar em benefício da família ou em benefício comum”[5].
Mas, apesar disso é necessário que “a dívida seja contraída tendo em vista o interesse comum de ambos os cônjuges ou da família"[6], podendo sempre o cônjuge ilidir a dupla presunção referida.
Ora, o interesse comum do casal pressupõe que estejamos perante os encargos normais da vida familiar.
Este conceito, tem vindo a ser densificado como incluindo as despesas de alimentação, vestuário e saúde, rendas, serviços básicos e tudo aquilo que se destine à gestão do agregado familiar[7], incluindo, em certos casos, a aquisição de bens duradouros.
Podemos assim afirmar que “Haverá proveito comum do casal sempre que a dívida tiver sido contraída tendo em vista os interesses comuns do casal, ou seja, o interesse da sociedade familiar.
O proveito comum do casal deve ser aferido em função do fim visado pelo devedor com a assunção da dívida e não pelo seu resultado concreto na aplicação da mesma[8].
Importa, pois, saber se o cônjuge administrador, ao contrair a dívida, agiu em vista de um fim comum (ainda que precipitado ou desastroso) ou procurou, pelo contrário, realizar um interesse exclusivamente seu, satisfazendo uma sua necessidade[9].
E, por isso, “determinar se uma dívida contraída por um dos cônjuges foi aplicada em proveito comum implica averiguar uma questão de facto - saber o destino dado ao mútuo concedido - e, depois, decidir, face a esse destino, se a dívida foi ou não contraída em proveito comum do casal”[10].
Ora, in casu sabemos que:
I. A divida diz respeito a letras e cheque emitidos em final de 2002.
II. Está provado que “o casal passou a fazer vidas distintas a partir de 2001, tendo-se separado em definitivo em Agosto de 2003”.
III. O divórcio dos Réus foi decretado por sentença de 9 de Junho de 2005, tendo a acção sido intentada em 23.9.03.
IV. A Ré exercia à data de 2000, 2001, 2002, 2003 e ainda exerce o fabrico e comercialização de bolos e produtos de pastelaria, estando colectada nas finanças em tal actividade desde 18.09.2000.
V. Era com os créditos de tal actividade que a Ré fazia face às despesas com a alimentação, saúde, vestuário, calçado, educação dos filhos, água e luz, em nada contribuindo o Réu para tais despesas.
VI. Da actividade do Réu AA, aludida em 2., nunca foi destinado qualquer montante para fazer acorrer e fazer face aos encargos e despesas do casal.
Do conjunto desses factos é evidente e notório que a ré logrou demonstrar que nunca existiu, nem foi visado, qualquer proveito comum do casal que fundamente a sua condenação.
Com efeito, a realidade dos autos impõe um juízo da existência de uma normal e salutar autonomia entre os membros do casal, em que a esposa assume uma actividade empresarial autónoma que é, aliás, o sustento efectivo do agregado.
Note-se, aliás, que nunca foi alegado e provado que a ré tenha consentido nessa dívida, sendo que poderia a autora, querendo ter obtido a sua assinatura como garante no título de crédito[11].
Não o tendo feito, com base na concreta causa de pedir, terá de improceder totalmente a sua pretensão.
Porque, como salienta o antigo, mas ainda actual Ac do STJ de 10.9.09, nº 07B3536 (Pires da Rosa), para a definição da dívida como sendo do proveito comum dos cônjuges são essenciais o “tempo” e o “modo” do casamento e o “interesse” na contratação da dívida.
Ora, in casu está claramente demonstrado que, na data da dívida a vida comum já não existia e que o interesse comum patrimonial também não.
6. Deliberação
Pelo exposto este tribunal, julga a presente apelação improcedente por não provada e, por via disso, confirma a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante que decaiu inteiramente.
Porto em 28.9.23
Paulo Duarte Teixeira
Isabel Silva
Paulo Albuquerque
______________ [1] Cfr. Ferrer Correia, in Lições de Direito Comercial, pág. 168; Pereira Coelho in Curso Direito de Família, 2.º, 71; e Antunes Varela in Direito de Família, pág. 328, e Rute Pedro, in “Código Civil Anotado”, Vol. II, Almedina, pág. 583. (arestos infra citados). [2] AC do STJ de 25.5.23, 1575/17.0T8PRT.P1.S2 (NUNO PINTO OLIVEIRA). [3] O clássico Roberto de Ruggiero In Instituciones de Derecho Civil, II, pág. 163. [4] Marco Carvalho Gonçalves, RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL DOS CÔNJUGES E PENHORA DE BENS COMUNS DO CASAL 5 e segs. disponível em https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/42750/1/Responsabilidade%20patrimonial%20dos%20c%C3%B4njuges%20e%20penhora%20de%20bens%20comuns%20do%20casal.pdf [5] Lobo Xavier, Direito Comercial, Sumários das Lições ao 3° ano jurídico, Coimbra 1977-1978, 92. [6] Cfr. Augusto Lopes Cardoso, in "Revista dos Tribunais", ano 86º, p. 52. [7] Marco Gonçalves, loc cit. [8] Ac da RC de 30.11.2010, nº 2345/09.5TBFIG.C1 (Isaías Pádua). [9] Ac da RC de 25.3.2010, nº 252/06.2TBCVL.C1 (Barateiro Martins). [10] Ac da RL de 6.7.2006, nº 4025/2006-8 (Gonçalves Rodrigues). Ac do SJ de 11.11.08, nº 08B3303 (Alves Velho): “A questão de apurar do proveito comum apresenta-se como uma questão mista ou complexa, envolvendo uma questão de facto e outra de direito, consistindo a primeira em averiguar o destino dado ao dinheiro representado pela dívida, enquanto a segunda é de valoração sobre se, perante o destino apurado, a dívida foi contraída no interesse comum do casal, preenchendo o conceito legal”. AC do STJ de 10.12.09, nº 1499/07.0TVLSB.L1 (ALBERTO SOBRINHO); Ac do stj de 7.1.2010, nº 2318/07.2TVLSB.L1.S1 (SERRA BAPTISTA) e, por mais recente o AC do STJ de 25.5.23, 1575/17.0T8PRT.P1.S2 (NUNO PINTO OLIVEIRA) “O proveito comum do casal, no sentido do n.º 2 do art. 1691.º do Código Civil, deve aferir-se pelo fim visado pelo cônjuge que contraiu a dívida”. [11] Situação analisada no AC da RP de 28.11.2011, nº 505/10.5TBBGC.P1 (Eusébio Almeida).