I. Os operadores de televisão (pessoas coletivas) são civilmente responsáveis pelos factos ilícitos e danosos praticados pelos seus comissários, agentes, representantes ou mandatários, no exercício da respetiva atividade televisiva, ainda que não se tenha apurado a identidade concreta do comissário, agente, representante ou mandatário.
II. O alongamento do prazo da prescrição previsto no n.º 3 do art.º 498.º do Código Civil, decorrente de o facto ilícito e danoso referido em I constituir um crime de difamação, estende-se ao operador de televisão apesar de este, na qualidade de pessoa coletiva, não ser criminalmente punível por tal facto.
Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO
1. Em 12.7.2018 AA instaurou ação declarativa de condenação com processo comum contra BB, SIC - Sociedade Independente de Comunicação, S.A., CC e DD.
O A. alegou que casou com a 1.ª R. em ........2003 e está separado de facto dela desde ........2013, estando pendente processo de divórcio. A 2.ª R. é a proprietária do canal televisivo SIC. O 3.º R. era, em 2013, o ...da SIC, responsável pela... dos respetivos programas. A 4.ª R. era, em 2013, a ... da SIC e ... “...”. No dia........2013 a 1.ª R. participou, em direto, no programa “...”. Nesse programa a 1.ª R. apresentou-se, e foi apresentada, como vítima de violência doméstica por parte do seu marido. Os alegados factos consubstanciadores de violência doméstica são falsos, como a 1.ª R. sabia, tendo inclusivamente sido judicialmente condenada pela prática de quatro crimes de difamação sobre o ora A.. Os restantes RR. não cuidaram de ouvir o A. sobre tais factos, antes os tendo dado como verdadeiros e seguros, sem qualquer investigação prévia séria. Com a descrita conduta dos RR. o A. sofreu danos de natureza não patrimonial que descreve e cuja responsabilidade é solidariamente de todos os RR., deles se reclamando, a esse título, a quantia de € 39.000,00, com juros desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
2. A 1.ª R. contestou por impugnação, acentuando que foi no quadro de cessação da atribuição do RSI que a 1.ª R. se envolveu no programa da 2.ª R. referindo um quadro de violência intrafamiliar. Mais defende afigurar-se-lhe que a 2ª, 3.º e 4.ª Réus se pautaram por critérios semelhantes, na defesa da dignidade humana que deverá prevalecer sobre o invocado direito do A., defendendo, nestes termos, a improcedência do pedido do A.
3. Os 2.º, 3.º e 4 .º RR. vieram contestar por exceção – exceção dilatória de ilegitimidade passiva da 2.ª R. e exceção perentória de prescrição. No mais, na impugnação dos factos invocados pelo A. negaram a prática de factos integradores da lesão invocada pelo A. e que funda o pedido pelo mesmo formulado.
4 O A. veio responder às exceções invocadas pelos 2.º, 3.º e 4.º RR. defendendo a respetiva improcedência.
5. Com dispensa da realização da audiência prévia, foi delimitado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
6. Realizou-se audiência final e em ........2022 foi proferida sentença em que se julgou a ação improcedente e se absolveu os RR. do pedido.
7. O A. apelou da sentença e em ........2023 a Relação de Lisboa julgou a apelação parcialmente procedente, emitindo o seguinte dispositivo:
“- Pelo exposto, acordam em considerar parcialmente procedente a apelação, revogando a decisão impugnada nestes termos:
- absolvem a R. DD do pedido;
- condenando os RR a indemnizar o A, solidariamente, na indemnização de € 25.000 (vinte cinco mil euros) a que acrescem juros desde a citação à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Custas pelos apelados e apelante na respectiva proporção”.
8. Os RR. SIC – Sociedade Independente de Comunicação, S.A. e CC interpuseram recurso de revista desse acórdão, tendo apresentado alegação em que formularam as seguintes conclusões:
a. À indemnização solidária em que os Recorrentes vêm condenados, obsta o n.º 2 do art. 70.º da Lei n.º 27/2007, de 30 de julho (LEI DA TELEVISÃO E DOS SERVIÇOS AUDIOVISUAIS A PEDIDO);
b. Os 2.ª a 4ª Réus alegaram e provaram nos autos que a ... da SIC e ... do programa "...", 4.ª Ré nos autos, com a efetiva direção e coordenação desse programa televisivo e todas as rúbricas que o compõem, competindo-lhe orientar, superintender e determinar o seu conteúdo, não teve conhecimento antecipado dos conteúdos transmitidos em direto em antena, a que se reportam os presentes autos;
c. E mais ficou provado que essa ... esteve ausente no dia dos factos das funções que lhe cabiam junto da 2.ª Ré, resultando disso que tal facto permite concluir que tal desconhecimento não lhe era culposamente imputável, dada a sua ausência;
d. Os 2.ª a 4-ª Réus elidiram a presunção de conhecimento prévio dos conteúdos transmitidos em direto, por parte da ... aqui 4.ª Ré, razão pela qual, nos termos do art. 70º, nº 2 da LTSAP, na qualidade de empresa televisiva, a SIC, SA, não responde pelos danos que a transmissão em directo dos conteúdos em causa nos autos possam ter causado ao Autor;
e. A indicação à ERC do Recorrente CC como “...”, sem sequer se identificar – e, por maioria de razão, constar certificado no respetivo extrato certificativo - a que canais respeitava tal indicação, é meramente formal, já que, na mesma data dessa sua indicação, consta o mesmo CC nomeado como ... da SIC, SA.;
f. Consagrando a Lei no artigo 35.º da LTSAP um princípio de independência editorial entre a empresa proprietária da antena e a sua ..., julga-se correta, a bem da defesa de tal princípio, a atribuição de funções de ... da SIC e ... "...", com a efetiva ... desse programa televisivo e todas as rúbricas que o compõem, à aqui 4.ª Ré, competindo-lhe, isso sim, orientar, superintender e determinar o seu conteúdo, pelo que sempre o acórdão recorrido deveria ter considerado delegadas as aparentes funções “de direito” de CC, nas funções, de facto, exclusivamente exercidas pela Ré DD;
g. Não se mostra fixada nos autos matéria de facto relativa às concretas funções do 3.º Réu, aqui Recorrente, o que, salvo melhor entendimento, se afigura aos Recorrentes necessário para uma eventual condenação;
h. Tendo o A. sido notificado do teor da Contestação dos 2.ª a 4.ª Réus, deveria o mesmo ter impugnado, sob qualquer uma das formas legais, a alegação concreta de funções e ausência da 4.ª Ré no dia de ocorrência dos factos em causa nos autos, coisa que, podendo, não concretizou, nem sequer tendo alegado, por hipótese, a substituição da 4.ª Ré, no cumprimento das suas funções, por um outro profissional vinculado à SIC, SA., o que se deixa invocado, com todas as consequências legais;
i. Conforme consta alegado na Contestação apresentada pelos 2.ª a 4.ª Réus, 24 - A produção do programa "... " resulta de um contrato de prestação de serviços entre a 2.ª Ré e a "E..., S.A..". [do art.º 44.º - contestação 2.º a 4.º R.R.], sendo que a produtora "E..., S.A." realizou uma investigação prévia de modo a obter a confirmação de existência de queixa-crime promovida pela entrevistada 1.ª Ré contra o Autor, o que veio a ser confirmado [dos artigos 47.º a 49.º - contestação 2.º a 4.º Réus], existiu atividade prévia concreta de confirmação, pela produtora do programa, das circunstâncias de vida da entrevistada e de enquadramento prévio das declarações que iria prestar em direito no programa em causa nos autos (cfr., por exemplo, ponto 23.º da fundamentação de facto do acórdão recorrido);
j. De acordo com a matéria fixada no ponto 7.º da fundamentação de facto do acórdão recorrido - conforme se reconheceu expressamente no artigo 8.º da PI, “emissão em direto”, -, consta provado nos autos que os conteúdos transmitidos pela antena de televisão detida pela SIC, SA, o foram em emissão televisiva realizada em direto;
k. De acordo com o n.º 2 do artigo 70.º da LTSAP, tratando-se nos autos de uma emissão televisiva em direto, também não pode a SIC, SA responder civil e solidariamente pela indemnização dos autos, o que se deixa aqui alegado, com todas as consequências legais.
l. m. Não se verifica in casu o alargamento do prazo prescricional, não se mostrando preenchidos os requisitos da responsabilidade civil por facto ilícito, e não podendo incorrer, em consequência, os ora Recorrentes no dever de indemnizar (arts. 483..º, n.º 1 e 498.º, n.º 3 do Código Civil e do art.º 70.º, n.º 1 da Lei n.º 27/2007, de 30 de julho, adiante LTSAP);
n. Invocando o Autor a ocorrência do suposto facto ilícito com referência à data de ... de 2013, verifica-se à data das respetivas citações dos Réus para os termos dos presentes autos, terem já decorrido mais de 3 anos sobre a data em que o Autor teve conhecimento, pelo menos, do invocado direito que lhe compete;
o. A tal constatação não obsta o facto de o Autor omitir conscientemente do seu articulado inicial a data em que terá tido conhecimento dos factos por si invocados (cfr. artigo 50.º da Petição Inicial – adiante PI), desde logo porque, quando muito, conforme se pode observar do teor do documento n.º 2 por ele junto com a PI (que é Deliberação ERC/2016/223, de ... de 2016), o Autor apresentou queixa à Entidade Reguladora para a Comunicação Social, em ...de setembro de 2013, exatamente pelos mesmos factos em causa nos presentes autos, pelo que, para todos os efeitos legais, terá que se presumir que, na referida data de apresentação da queixa à ERC, o Autor tinha já conhecimento do eventual direito que lhe pudesse assistir;
p. Não colhe nem pode colher, para eventual efeito de alargamento do prazo de prescrição de 3 anos, hipótese prevista no n.º 3 do artigo 498.º do Código Civil, a invocação pelo Autor das meras conclusões vertidas nos artigos 39.º e 40.º da PI, exatamente porque nelas o Autor não alega e prova que as condutas individuais de cada um dos aqui demandados constitui, no caso concreto, determinado crime, cujo prazo de prescrição é superior aos 3 anos consignados no n.º 1 do preceito acima citado;
q. Não bastará, para a aplicação do prazo alargado do n.º 3 do artigo 498º do CC, que a responsabilidade civil dos lesantes possa advir de uma qualquer presunção de culpa, exatamente porque, em direito penal, a culpa não se presume, e, portanto, para que se possa ter por verificada, concretamente, uma conduta criminosa, é sempre necessária a prova da culpa efetiva;
r. No caso concreto, como resulta das alegações do Autor e dos factos julgados provados no acórdão recorrido, não é possível imputar aos ora Recorrentes qualquer grau de culpa na produção dos invocados danos, e, por conseguinte, não tendo o Autor alegado ou provado como lhe competia qualquer conduta criminosa dos Réus, não pode beneficiar do prazo prescricional de 5 anos;
s. O prazo de prescrição a ter em conta nos autos é, pois, o prazo normal de 3 anos, o que provoca, portanto, a extinção do direito que o Autor convoca no processo, por ocorrência de prescrição, o que se deixa aqui invocado, com todas as consequências legais;
t. Ao ter concluído de forma divergente à proposta nas conclusões supra dos Recorrentes, a decisão recorrido violou, por errónea interpretação e aplicação ao caso dos autos, as normas jurídicas vertidas nos artigos 35.º, n.ºs 1 e 6, 70.º, n.º 1 e 2 e 71.º, n.º 3 da LTSAP, e, ainda, os artigos 350.º, n.º s 1 e 2, 483.º, n.º 1, 487.º, n.º 1 e 498.º, n.ºs 1 e 3 do Código Civil, razão pela qual deve o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outra decisão que proceda à absolvição dos ora Recorrentes,
9. Não houve contra-alegações.
10. Foram colhidos os vistos legais.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. O presente recurso tem por objeto as seguintes questões: desresponsabilização dos RR. recorrentes pelo conteúdo do programa televisivo objeto da ação; prescrição da responsabilidade civil dos RR. recorrentes.
2. Primeira questão (desresponsabilização dos RR. recorrentes pelo conteúdo do programa televisivo objeto da ação)
2.1. As instâncias (com alterações introduzidas pela Relação) deram como provada a seguinte
Matéria de facto
1. A 1.ª R. casou com o A. em .../2003.
1-B. O A. e a R. BB encontram-se separados de facto desde .../2013 e divorciados desde .../2018.
2. A 2.ª Ré é a proprietária da estação privada de televisão SIC, que emite em Portugal e em todo o mundo, como já o emitia em 2013, e através dos canais SIC, SIC INTERNACIONAL e da sua versão eletrónica na internet.
3. À data de Agosto de 2013 CC encontrava-se registado como responsável pela programação dos serviços de programas “SIC” e “SIC Internacional”.
4. A 4ª Ré era, em 2013, a ...da SIC e ... “...” com a efetiva direção e coordenação desse programa televisivo e todas as rúbricas que o compõem, competindo-lhe orientar, superintender e determinar o seu conteúdo.
5. Na data de emissão do programa a 4.ª Ré estava ausente das funções que lhe cabem junto da 2.ª Ré.
6. O programa televisivo “...” foi transmitido na SIC entre ....2011 e ....2014, a partir de então sendo substituído pelo programa “...”, e teve um formato de talk-show português. Foi transmitido todos os dias úteis, entre as ... e as... horas, com público aí presente, terminando imediatamente antes do bloco informativo da SIC das ...horas.
7 No dia ....2013, a 1.ª Ré compareceu nos estúdios da SIC e esteve presente na emissão em direto do programa “...”, no qual foi entrevistada e aí foi apresentada e enquadrada a sua intervenção e a respetiva rubrica televisiva, nos exatos termos que constam do suporte vídeo de emissão integral do programa no dia em causa e que se dá integralmente reproduzido e do qual foram extraídos, designadamente os seguintes trechos “foi vítima de violência doméstica durante oito longos anos. Às mãos do marido. Um ...”. “casa que partilhava com o agressor. ... no desemprego. BB dá agora a cara pela luta contra a violência doméstica. Mas ainda não se sente segura porque já este mês voltou a ser agredida. E da agressão resultou a amputação de .... Como se não bastasse ter perdido a casa e ter de recomeçar de novo, a Segurança Social ainda lhe retirou o Rendimento Social de Inserção. Uma injustiça que a fez dar a cara e revelar-se ao país como mais uma vítima da violência conjugal sem apoios do país onde nasceu”; “Um dos filhos menores viu a mãe ser agredida pelo pai”
8. Terminada a peça, estão em estúdio BB, EE e FF, consultora da Segurança Social.
9. Na sequência de questão formulada por a 1.ª ré responde “Sim, (que se lembra como começou) e lembro-me de quando me disse que saberia muito bem como fazer para deixar muito poucas marcas”.
10. A ... pergunta se nessa altura “estava com o seu bebé ao colo?”, ao que a 1.ª Ré BB responde: “Não, os meus filhos nascem mais tarde. São de 2008 e 2009. Também houve uma agressão em que um deles estava ao colo e ela estava deitada no berço. Houve várias! Eles assistiram a várias. Verbais, físicas, isso tudo”.
11. No programa em causa GG diz: “Quando me diz que é muito difícil sair destas relações não é só a BB que está a falar, é uma ... também que está a falar” “antes de sermos ... somos pessoas e ficamos ali um bocadinho presos, às vezes, aos outros”, “Mas acho que isso dá para perceber a dimensão. Ou seja, se uma mulher que é ..., que estudou com certeza estes temas, que consegue perceber até que ponto é que vai a manipulação psicológica, não ter durante estes anos todos o discernimento de perceber que está errado e que há uma solução e que tem que haver uma fuga”.
12. A 1.ª Ré no âmbito do programa declara: “Está errado! Há uma solução, há fuga, mas há sobretudo medo. Há vergonha de dizer às outras pessoas. Eu tinha uma vida boa, com jardim, com piscina. Eu tinha uma vida social boa. Neste momento, eu saí de tudo para o nada. Mas o facto de ser ... fez sobretudo que eu olhasse para os meus filhos e visse a imitação de comportamentos dele, entre brincadeiras, a imitar o que ele fazia. Eu ralhar com eles: Não façam isso, quando eles estavam a ver o adulto a fazer. E a ver o sofrimento deles. Aí sim, eu consegui na parte final, pela minha licenciatura também, tirá-los daquilo. Foi quando decidimos sair de casa os três”.
13. A ... passa a palavra para EE questionando-o, nos exatos termos da gravação vídeo do programa e que se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
14. Nesse programa a ... aborda com a 1.ª Ré a questão dos apoios concedidos pelo Estado, ao que a 1.ª Ré responde nos termos da gravação vídeo e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.
15. Após a ... convoca a ... da Segurança Social para a conversa, FF que, além do mais declara “sujeitavam-se a levar pancada por contrapartida do marido ser o sustento da casa e, portanto, permitir satisfazer as necessidades do agregado. Quando digo do agregado é dos filhos, fundamentalmente. Porque não há conceito de felicidade para esta senhora enquanto esposa. Portanto, sujeitava-se a passar por esta dificuldade para satisfazer as necessidades dos seus filhos. Portanto, o seu papel de mãe falava mais alto”; “legislação está a atacar-se a si própria e a dificultar que estas vítimas de facto tenham dignidade”.
16. Nenhum dos outros Réus conhece o Autor nem o auscultou ou sequer informou ou confrontou sobre a ida da sua mulher ao programa ou o respetivo tema.
17. O A. era e é ... de profissão.
18. No referido programa, nas circunstâncias, tempo, modo e lugar já descritos, foi reproduzida a fotografia da 1.ª Ré e emitida a sua imagem.
19. Foi feita referência ao seu casamento com o autor, duração, e data da separação entre eles.
20. Foi, por diversas vezes, referida a profissão de ... do marido daquela Ré, precisamente o ora Autor.
21. Foi referida e repetida a condição daquela Ré como ... e, tendo aquela exercido funções de ... em regime de profissional livre em ....
22. Foi referida a cidade de ... como o da residência daquela Ré e do Autor, também como o local da ocorrência dos factos que foram objeto de discussão no programa e que envolviam o ex-marido da 1.ª Ré.
22-A. Por deliberação da ERC acerca de uma queixa apresentada pelo A. e apreciados os factos referidos 17º a 23, aquela entidade deliberou que “…ainda que esteja em causa um programa de entretenimento a SIC, deveria ter respeitado o princípio da presunção da inocência de que o queixoso beneficiava, garantindo uma ética de antena que garantisse o respeito pelos direitos fundamentais.”
23. Foi proferida acusação contra o Autor em 22.02.2017 nos autos com o n.º 20/16.3... por dois crimes de maus tratos e factos referentes a pelo menos desde março de 2015.
23-A. Correu termos no Juízo Local Criminal de ... – Juiz ... o Processo Comum (Tribunal Singular) n.º 927/14.2..., em que o A. era queixoso e a R. BB a arguida.
23-B. A decisão proferida nesse processo, transitada em julgado em 14/6/2017, foi esta:
“Pelo exposto e tendo em conta as disposições legais consideradas, o Tribunal decide julgar procedente por provada a acusação particular e, em consequência:
a) Condenar a arguida BB como autor material de quatro crimes de difamação, p e p pelo artº 180º n.º 1 e 183º n.º 1 al. a) do Código Penal, cada um na pena de 100 (cem) dias de multa; fixar a taxa diária em € 5,00 (cinco euros);
b) Em cúmulo jurídico de penas, condenar a arguida BB na pena única de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 5,00, o que perfaz a pena única de € 1.250,00 (mil, duzentos e cinquenta euros);
c) Julgar parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização cível e, em consequência condenar o demandado/arguido BB a pagar ao demandante/assistente AA a quantia de € 1.000,00 (mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora, contados à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da notificação para contestar até integral pagamento.
d) Condenar a arguida BB no pagamento de custas, fixando a taxa de justiça em 2 UC´s.
23-D. Os factos pelos quais foi condenada no processo acima identificado, traduziram-se na imputação ao A. da prática de actos ofensivos da sua integridade física e psíquica.
24. A produção do programa “... “ resulta de um contrato de prestação de serviços entre a 2.ª Ré a “E..., S.A.”.
25. A produtora “E..., S.A.” realizou uma investigação prévia de modo a obter a confirmação de existência de queixa crime promovida pela entrevistada.
26. A emissão em directo do programa de televisão “...” de ...2013 e com o conteúdo descrito nos pontos 7.º a 15.º e 18.º a 22.º, provocou no A. tristeza, angústia e ansiedade.
27. Bem como constrangimento perante pessoas que o A. pensava terem tido conhecimento do programa por qualquer meio.
2.2. O Direito
No acórdão recorrido a Relação condenou a 1.ª R. (BB), a 2.ª R. (SIC, S.A.) e o 3.º R. (CC), solidariamente, a pagarem ao A. a quantia de € 25 000,00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais por aquele sofridos em consequência do conteúdo de um programa televisivo transmitido no canal de televisão pertencente à 2.ª R.. Nesse programa, em que a 1.ª R., então mulher do A., participou, foi imputada ao A. a prática reiterada de agressões sobre a 1.ª R., consubstanciadora de violência doméstica. Embora o A. não tivesse sido identificado expressamente, no decurso do programa foram dadas informações que permitiam que as pessoas que o conheciam se apercebessem de quem se tratava. Tais factos, objetivamente atentatórios da honra e consideração do A., causaram-lhe tristeza, angústia e ansiedade, bem como constrangimento perante pessoas que o A. pensava terem tido conhecimento do programa por qualquer meio (n.ºs 26 e 27 da matéria de facto).
Não ficou minimamente provado ou indiciado que os factos imputados ao A. no decurso do aludido programa eram verdadeiros. Aliás, a 1.ª R. foi condenada, em processo-crime, pela prática, na pessoa do A., de quatro crimes de difamação, traduzidos na imputação ao A., perante os seus superiores hierárquicos (o A. é ...) e, também, em publicações num blogue na internet, de factos idênticos aos relatados no aludido programa televisivo, na pena única de € 1 250,00 de multa (250 dias de multa à taxa diária de € 5,00) – vide os factos n.ºs 23-A a 23-D dados como provados.
A 1.ª R. não recorreu da sua condenação cível, pelo que assente ficou a sua responsabilidade civil, decorrente do disposto nos artigos 70.º, 80.º, 483.º, 484.º, 496.º, 562.º a 566.º do Código Civil.
Pretendem os RR./recorrentes, porém, eximir-se da sua responsabilização pelos aludidos factos.
Para tal, deixando por ora de lado a questão da prescrição da responsabilidade civil, que será apreciada adiante, os RR. defendem que:
- a R. SIC não pode ser responsabilizada pelo ocorrido, pois ficou demonstrado que a responsável pelos conteúdos do programa “...”, a R. DD, se encontrava ausente, não tendo podido interferir nesse programa em concreto, pelo que foi absolvida;
- não se provou que o R. CC exercia qualquer função de direção ou coordenação do programa em causa;
- o programa em causa foi transmitido em direto, pelo que, nos termos do n.º 2 do art.º 70.º da Lei da Televisão, a SIC não pode responder civil e solidariamente pela indemnização dos autos;
- a produção do programa foi entregue, mediante um contrato de prestação de serviços, à produtora E..., S.A., a qual efetuou uma averiguação prévia de confirmação das circunstâncias de vida da entrevistada e de enquadramento prévio das declarações que esta iria prestar em direto no programa dos autos.
Vejamos.
O art.º 70.º da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido (Lei n.º 27/2007, de 30.7, com a redação introduzida pela Lei n.º 8/2011, de 11.4), sob a epígrafe “Responsabilidade civil”, estipula o seguinte:
“1 - Na determinação das formas de efectivação da responsabilidade civil emergente de factos cometidos através de serviços de programas televisivos ou de serviços audiovisuais a pedido observam-se os princípios gerais.
2 - Os operadores de televisão ou os operadores de serviços audiovisuais a pedido respondem solidariamente com os responsáveis pela transmissão de materiais previamente gravados, com excepção dos transmitidos ao abrigo do direito de antena, de réplica política, de resposta e de rectificação ou no decurso de entrevistas ou debates protagonizados por pessoas não vinculadas contratualmente ao operador”.
O art.º 70.º, n.º 1, da Lei da Televisão remete para as regras gerais da responsabilidade civil. Conforme é entendimento assente na jurisprudência, essa remissão não contém qualquer restrição quanto à aplicação desse regime, que leve a concluir que o art.º 500.º do Código Civil não tem aplicação no domínio da responsabilidade civil dos operadores televisivos ou da atividade televisiva em geral (cfr., v.g., acórdão do STJ de 24.5.2022, processo 14570/16.8...). Nestes termos, a operadora responde objetivamente pelos factos ilícitos praticados pelo seu comissário, nada adiantando provar que o comitente não agiu com culpa.
Por outro lado, sendo a operadora televisiva uma pessoa coletiva, responde perante terceiros, em regra, como responderia uma pessoa singular. Nos termos do art.º 165.º do Código Civil, “As pessoas colectivas respondem civilmente pelos actos ou omissões dos seus representantes, agentes ou mandatários nos mesmos termos em que os comitentes respondem pelos actos ou omissões dos seus comissários”. Solução idêntica está prevista para as sociedades civis (art.º 998.º do CC) e para as sociedades comerciais (art.º 6.º n.º 5 do CSC). Trata-se de preceitos que se decalcam sobre o regime da responsabilidade do art.º 500.º do Código Civil.
Está em causa um princípio de justiça (afloramento do princípio “ubi commoda, ibi incommoda”) segundo o qual quem utiliza ou emprega determinadas pessoas para vantagem própria deve suportar os riscos dessa atividade.
Conforme é jurisprudência assente, o facto de não ser possível apurar a identificação da pessoa (comissário, agente, representante, mandatário) que em concreto praticou o facto lesivo torna-se irrelevante na hipótese em que se procura aferir a responsabilidade do comitente. Aquele que encarrega outrem de prosseguir determinada atividade no seu interesse (comitente) pode responder por culpa própria (e não apenas por facto ilícito de comissário), nomeadamente pela escolha dessa pessoa (culpa in eligendo), ou pela omissão na fiscalização da sua atividade que veio a causar danos a terceiro (culpa in vigilando) – neste sentido, cfr., v.g. o citado acórdão do STJ de 24.5.2022, assim como o acórdão do STJ de 05.6.2018, processo n.º 517/09.1... e o acórdão do STJ de 23.10.2012, processo 2398/06.8... Conforme se expende no último acórdão citado, “…em toda e qualquer acção cível para ressarcimento de danos provocados por factos (acções ou omissões) cometidos através da comunicação social os responsáveis são para além dos autores das peças divulgadas a empresa proprietária do órgão ou estação difusora, desde que, obviamente, esteja provado que os factos danosos praticados pelos referidos autores (comissários) o tenham sido no exercício das funções confiadas ao comitente, acrescendo ser entendimento doutrinal dominante (por todos v. Prof. Mota Pinto, Teoria Geral) que em todas as situações em que há, legalmente, responsabilidade solidária entre a pessoa colectiva (comitente) e os seus agentes (comissários) apenas responderá a pessoa colectiva nas situações em que não tiver sido possível a concreta determinação do comissário culpado da prática dos factos que são fonte de responsabilidade civil extracontratual”.
No caso destes autos, provou-se que no canal de televisão pertencente à 2.ª R. foi transmitido um programa (“...”) no qual foi abordado o tema da violência doméstica e as dificuldades que as vítimas de violência doméstica enfrentam, nomeadamente ao nível de apoios por parte da segurança social. Nesse programa interveio a 1.ª R., que se apresentou como vítima de violência doméstica, a qual foi entrevistada pela apresentadora da SIC GG, tendo também participado HH e FF, esta como ... da Segurança Social.
A entrevista à 1.ª R. foi antecedida da apresentação de uma peça gravada na qual se dá nota de que a 1.ª R. fora vítima de violência doméstica durante “oito longos anos”, “às mãos do marido”, “um ...”, tendo perdido a casa, mas continuando a sentir-se insegura, porque “já este mês voltou a ser agredida”, e “da agressão resultou a amputação de ...”, sendo certo que “um dos filhos menores viu a mãe ser agredida pelo pai” (n.º 7 dos factos provados).
No decurso da entrevista a 1.ª R. reiterou as afirmações de que havia sido prolongadamente alvo de agressões verbais e físicas pelo seu marido, inclusive na presença dos filhos. No programa, quer na peça introdutória, quer no decurso da entrevista, é feita referência à circunstância de a 1.ª R. ser ...de formação (n.ºs 7, 11, 12 dos factos provados). Foi por diversas vezes feita referência ao facto de o marido da 1.ª R. ser ... e, bem assim, à circunstância de ambos residirem em ... (n.ºs 20 a 22 da matéria de facto).
Mais se provou que “A produção do programa “...“ resulta de um contrato de prestação de serviços entre a 2.ª Ré a “E..., S.A..” (n.º 24 dos factos provados) e que “a produtora “E..., S.A.” realizou uma investigação prévia de modo a obter a confirmação de existência de queixa crime promovida pela entrevistada” (n.º 25 dos factos provados).
O acima descrito revela que o aludido programa não é, ou não foi, uma transmissão televisiva que teve por objeto factos que ocorreram em direto sem possibilidade de controle prévio ou conhecimento prévio, por parte da 2.ª R., quanto ao seu conteúdo. Pelo contrário, o tema do programa foi previamente escolhido e o seu conteúdo foi planeado e programado no âmbito da atividade da 2.ª R.. O teor e o sentido da entrevista a efetuar à 1.ª R. já eram conhecidos pela 2.ª R.
Assim, a 2.ª R., ao ter proporcionado os elementos materiais e humanos consubstanciados no aludido programa, não pode deixar de ser responsabilizada pelo mesmo, nos termos dos artigos 165.º e 500.º n.º 1 do Código Civil, para os quais remete o n.º 1 do art.º 70.º da Lei da Televisão. Para tal, como já se referiu supra, é irrelevante que, porventura, não sejam apurados os concretos agentes que, no seio da organização da 2.ª R., foram os responsáveis pelos factos em que se concretizou a preparação e a realização do aludido programa.
Conforme se mencionou acima, o programa traduziu-se na imputação ao A. de factos que constituem crime, o de violência doméstica (art.º 152.º do Código Penal). Se bem que o nome do A. não tenha sido indicado no programa, foi dada a conhecer a identidade da alegada vítima, a sua mulher, que interveio perante as câmaras de televisão sem ocultar a sua identidade, e foram concretizados aspetos que facilitavam a identificação do A. perante pessoas que o conhecessem, tais como a sua condição de ... e a residência do casal em ....
Essas afirmações atentam contra o bom nome e a consideração do A., isto é, contra a sua honra.
A tutela da honra radica na dignidade da pessoa humana, fundamento da ordem jurídica (art.º 1.º da Constituição da República Portuguesa), a qual consagra expressamente a integridade moral e física e o bom nome e reputação como direitos pessoais fundamentais (artigos 25.º n.º 1 e 26.º n.º 1 da CRP).
Tal tutela pode assumir feição penal, nos termos previstos nos artigos 180.º e seguintes do Código Penal.
Também a reserva da intimidade da vida privada goza de proteção, na CRP (art.º 26.º n.º 1) e no direito ordinário (art.º 80.º do Código Civil).
Conforme se nota no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 442/2007, de 14.8.2007, o conteúdo do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar fraciona-se em três manifestações: direito à solidão, direito ao anonimato e direito à autodeterminação informativa.
“Por autodeterminação informativa poderá entender-se o direito de subtrair ao conhecimento público factos e comportamentos reveladores do modo de ser do sujeito na condução da sua vida privada. Compete a cada um decidir livremente quando e de que modo pode ser captada e posta a circular informação respeitante à sua vida privada e familiar” (citado acórdão do TC).
“Indicativamente poderá dizer-se,” continua o aludido aresto do Tribunal Constitucional, “que o conceito cobre a esfera de vida de cada um que deve ser resguardada do “público”, como condição de plena realização da identidade própria e de salvaguarda da integridade e da dignidade pessoais.”
Segundo aquele alto tribunal, quer no art.º 26.º n.º 1 da CRP, quer no art.º 80.º do Código Civil, consagra-se “um direito genérico à reserva, cobrindo todo o âmbito da vida privada. A fórmula “reserva sobre a intimidade da vida privada”, em ambas as normas utilizadas, não pode, pois, ser interpretada no sentido de circunscrever o domínio de protecção a uma certa parte da vida privada – a vida íntima, como núcleo central da vida privada.”
O direito à reserva faculta o livre controlo da informação sobre aquilo que, em decorrência da liberdade de conduta decorrente do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, garantido pelos artigos 26.º n.º 1 da CRP e pelo art.º 70.º do Código Civil, cada um faz na sua vida privada (mesmo acórdão do TC).
É sabido que por vezes o exercício de um direito pode conflituar com o gozo de outro, daí decorrendo restrições para um deles ou para ambos, cujos limites há que determinar, em ordem a averiguar-se da licitude ou ilicitude da conduta do ou dos respetivos titulares. No que concerne à emissão de leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, o legislador constituinte estabelece que as restrições devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (n.º 2 do art.º 18.º da C.R.P.) e que as leis assim restritivas não podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais (n.º 3 do art.º 18.º). Quanto ao exercício de direitos, o legislador ordinário expressou que “havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes” (art. 335.º n.º 1 do Código Civil); e, “se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior” (n.º 2 do art.º 335.º do C.C.).
O direito à honra (e à reserva da vida privada) pode colidir com o direito à livre expressão do pensamento e o direito a informar, os quais têm também consagração constitucional.
A Constituição da República Portuguesa reconhece, na categoria dos direitos fundamentais, a liberdade de expressão e informação (art.º 37.º n.º 1: “Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações”) e a liberdade de imprensa (art.º 38.º).
A Lei nº 2/99, de 13 de janeiro (Lei da Imprensa), explicita que a liberdade de imprensa “abrange o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações” (nº 2 do artigo 1.º).
A liberdade de imprensa admite, obviamente, limites, os quais são, nos termos do artigo 3.º do diploma, “os que decorrem da Constituição e da lei, de forma a salvaguardar o rigor e a objectividade da informação, a garantir os direitos ao bom nome, à reserva da intimidade da vida privada, à imagem e à palavra dos cidadãos e a defender o interesse público e a ordem democrática.”
Também a tutela penal da honra cederá quando “a imputação for feita para realizar interesses legítimos” e “o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira” (n.º 2 do art.º 180.º do C.P.). É certo que, nos termos do n.º 3 do art.º 180.º do C.P., tais ressalvas não se aplicam quando esteja em causa a imputação de facto “relativo à intimidade da vida privada e familiar”. Mas logo a tal exceção se reconhece, no mesmo n.º 3 do art.º 180.º do C.P., a aplicabilidade do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do art.º 31.º do C.P., ou seja, a exclusão da ilicitude do facto praticado, nomeadamente, “no exercício de um direito” (alínea b) do n.º 2 do art.º 31.º do C.P.).
Em situações de conflito entre o direito à honra (e à reserva da vida privada) e o direito a informar, haverá que proceder, em concreto, à ponderação das circunstâncias que justifiquem o sacrifício de um ou de outro, e em que medida.
Importa levar em consideração o disposto na Convenção Europeia dos Direitos Humanos e a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH). Portugal aderiu à aludida Convenção (aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/75, de 13 de outubro) e declarou, para os efeitos previstos no art.º 46.º da Convenção (reconhecimento, pela Parte Contratante, da obrigatoriedade da jurisdição do TEDH para todos os assuntos relativos à interpretação e aplicação da Convenção), reconhecer como obrigatória a jurisdição daquele Tribunal para todos os assuntos relativos à interpretação e aplicação da Convenção (aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros, publicado no D.R., I série, de 06.02.1979).
O TEDH foi já várias vezes chamado a apreciar decisões dos tribunais portugueses, em que estes emitiram condenações por alegadas violações do direito à honra mediante uso abusivo da liberdade de expressão.
Estava em causa a eventual violação do art.º 10.º da Convenção, que tem o seguinte teor:
“1 – Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideais sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras (…).
2 – O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, (…) a protecção da honra ou dos direitos de outrem (…).
Nessas decisões o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos reiterou o seu entendimento, expresso em anteriores acórdãos, de que “a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento de cada um. Sob reserva do n.º 2 do artigo 10.º, é válida não só para as «informações» ou «ideias» acolhidas ou consideradas inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ferem, chocam ou ofendem. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não há «sociedade democrática». Tal como estabelece o artigo 10.º da Convenção, o exercício desta liberdade está sujeito a excepções que devem interpretar-se estritamente, devendo a sua necessidade ser estabelecida de forma convincente. A condição do carácter «necessário numa sociedade democrática» impõe ao Tribunal averiguar se a ingerência litigiosa correspondia a uma «necessidade social imperiosa». Os Estados Contratantes gozam de uma certa margem de apreciação para determinar se existe uma tal necessidade, mas esta margem anda de par com um controlo europeu que incide tanto na lei como nas decisões que a aplicam, mesmo quando estas emanam de uma jurisdição independente” (caso Colaço Mestre e SIC – Sociedade Independente de Comunicação, S.A. c. Portugal, queixas n.ºs 11182/03 e 11319/03, sentença de 26 de Abril de 2007, n.º 22).
Desenvolvendo o seu pensamento, o TEDH entende que “a imprensa desempenha um papel fundamental numa sociedade democrática: se aquela não deve ultrapassar certos limites, referentes nomeadamente à protecção da reputação e aos direitos de outrem cabe-lhe, no entanto, divulgar, no respeito dos deveres e das responsabilidades que lhe incumbem, informações e ideias sobre todas as questões de interesse geral. A esta função de divulgação acresce o direito do público, de receber a informação. Se assim não fosse, a imprensa não poderia desempenhar o seu papel indispensável de «cão de guarda»” (Caso Colaço Mestre, citado, n.º 23).
O TEDH defende ainda que “sobre os limites da crítica admissível eles são mais amplos em relação a um homem político, agindo na sua qualidade de personalidade pública, que um simples cidadão. O homem político expõe-se inevitável e conscientemente a um controlo atento dos seus factos e gestos, tanto pelos jornalistas como pela generalidade dos cidadãos, e deve revelar uma maior tolerância sobretudo quando ele próprio profere declarações públicas susceptíveis de crítica. Sem dúvida tem direito a protecção da sua reputação, mesmo fora do âmbito da sua vida privada, mas os imperativos de tal protecção devem ser comparados com os interesses da livre discussão das questões políticas, exigindo as excepções à liberdade de expressão uma interpretação restritiva” (Caso Lopes Gomes da Silva c. Portugal, queixa n.º 37698/97, 28 de Setembro de 2000, n.º 30 i.i.).
O TEDH atribui grande relevância, na ponderação da proteção da liberdade de expressão, à circunstância de as expressões ou opiniões visadas respeitarem a matérias de interesse geral, as quais podem não ser do foro estritamente político e não terem como objeto propriamente personalidades políticas, mas personalidades bem conhecidas do público, que desempenhem papel de relevo na vida pública do país, como a direção de um grande clube de futebol (vide o já referido Caso Colaço Mestre, em que um jornalista foi condenado pelos tribunais portugueses por ter feito perguntas consideradas difamatórias visando o presidente do Futebol Clube do ..., II).
Tais publicações terão, contudo, de ter relevo social, interesse público, que justifique a compressão da honra ou da privacidade do visado. Privacidade essa que se mostra expressamente protegida pelo art.º 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos:
“Direito ao respeito pela vida privada e familiar
1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.
2 (…)”.
Referindo-se a diversos casos publicitados no âmbito da chamada imprensa cor de rosa, o TEDH recusou a proteção conferida à liberdade de expressão consagrada no art.º 10.º da CEDH e, igualmente, considerou ter ocorrido ilegítima ofensa do direito ao respeito pela vida privada e familiar, protegido pelo art.º 8.º da CEDH, em situações que, embora atinentes a figuras públicas, não eram justificadas por considerações de interesse público, não incidiam sobre assuntos de importância geral, não contribuíam para um debate numa sociedade democrática relativo, por exemplo, a políticos no exercício das suas funções e com relevo para as mesmas, mas apenas se atinham a aspetos da vida privada dessas pessoas e tinham como único propósito a satisfação da curiosidade dos leitores relativa a detalhes da vida privada de pessoas com notoriedade social. Nestas condições a liberdade de expressão requer uma interpretação mais restritiva. Ajuizou-se assim quanto à publicação de fotografias da princesa JJ enquanto fazia compras, almoçava acompanhada num restaurante, passeava de bicicleta, esquiava, frequentava uma piscina (Caso ... contra Alemanha, processo 59320/00, 24.6.2004); também quanto a uma reportagem sobre as férias de uma jovem atriz ..., na Tunísia, com fotografias à beira de uma piscina, com um namorado (caso ... contra França, processo 66910/01, 01.7.2003); reportagem sobre alegadas dificuldades matrimoniais de uma conhecidíssima figura do ...francês (caso ... contra França, processo 71612/01, 01.7.2003); reportagem sobre alegadas relações adulterinas de uma famosa aristocrata e um conhecido ... espanhóis (caso KK e LL – MM contra Espanha, processo 54224/00, 12.02.2000); reportagem com as revelações de uma antiga ama da filha de NN, sobre a vida privada e familiar do casal e sua filha (caso OO e ..., contra Espanha, processo 14929/02, 13.5.2003).
Também o STJ tem relevado, no que concerne ao conteúdo da liberdade de informação, a diferença entre o “interesse público” e o “interesse do público”, realçando que o direito do público a ser informado tem como referência a utilidade social da notícia, factos e acontecimentos que sejam relevantes para a vivência social (assim se excluindo do direito à informação revelações quanto à residência de um ... de televisão – acórdão de 08.5.2013, processo 1755/08.0... – ou sobre um alegado caso amoroso de uma conhecida ... com um outro ..., durante umas férias no ... – acórdão de 17.12.2009, processo 4822/06.0...).
Revertamos ao caso dos autos.
O programa em causa, no segmento que constitui o objeto desta ação, tinha por objeto a violência doméstica e as dificuldades que as suas vítimas enfrentam, em especial no que respeita ao apoio por parte da segurança social.
Sem dúvida que a violência doméstica é um flagelo social que tem ganho, justamente, grande relevância junto da opinião pública e dos meios de comunicação social. Assim, o tratamento desse tema e, nomeadamente, das dificuldades que as vítimas de violência doméstica possam encontrar junto dos serviços da segurança social, justifica-se plenamente num programa televisivo.
Porém, o A. e a 1.ª R. não eram, nem são, figuras públicas.
A sua identificação, nomeadamente a do alegado agressor, não era do interesse público.
O tema abordado pelo programa (falta de apoio, por parte da segurança social, a alegadas vítimas de violência doméstica), poderia ser adequadamente tratado sem que fossem desvendadas circunstâncias concretas que permitissem a identificação do A..
Acresce que não ficou minimamente demonstrado que o A. agrediu a 1.ª R., isto é, não ficou minimamente demonstrada a veracidade das imputações efetuadas. Pelo contrário, como já se aduziu acima, a 1.ª R. foi condenada, por sentença transitada em julgado, pela prática de quatro crimes de difamação, na pessoa do ora A., por lhe ter imputado os mesmos factos, perante outras entidades e num blogue da sua autoria (autoria da 1.ª R.).
A 2.ª R., ou melhor, as pessoas físicas que agiram em seu nome e no seu interesse, deveriam ter diligenciado pela confirmação, pelo menos em termos minimamente razoáveis, da veracidade dos factos alegados pela ora 1.ª R.. Ora, tudo o que se provou foi que a produtora contratada pela 2.ª R. para a produção do programa se limitou a confirmar que havia sido deduzida queixa-crime pelos aludidos factos (cfr. n.º 25 dos factos provados). Ora, a simples apresentação de queixa-crime nada garante quanto à veracidade dos factos denunciados. Mais, provou-se que, para além da 1.ª R., “… [n]enhum dos outros Réus conhece o Autor nem o auscultou ou sequer informou ou confrontou sobre a ida da sua mulher ao programa ou o respetivo tema” (n.º 16 dos factos provados).
Por tudo isto, na sequência de uma queixa apresentada pelo A. pelos factos supra narrados, a ERC deliberou que “…ainda que esteja em causa um programa de entretenimento a SIC, deveria ter respeitado o princípio da presunção da inocência de que o queixoso beneficiava, garantindo uma ética de antena que garantisse o respeito pelos direitos fundamentais.” (n.º 22-A dos factos provados).
Note-se que, se é certo que, nos termos do art.º 35.º n.º 6 da Lei da Televisão, os “cargos de direcção ou de chefia na área da informação são exercidos com autonomia editorial, estando vedado ao operador de televisão interferir na produção dos conteúdos de natureza informativa, bem como na forma da sua apresentação”, excetuam-se de tal proibição de interferência “as orientações que visem o estrito acatamento de prescrições legais cujo incumprimento origine responsabilidade penal ou contra-ordenacional por parte do operador de televisão”.
A independência editorial do serviço de informação não obsta a que o operador possa ser responsabilizado pelos atos lesivos que resultem dessa atividade, o que justifica que o operador possa impor orientações que visem arredar tal responsabilização, em especial na sua vertente penal e contraordenacional.
De resto, o n.º 2 do art.º 70.º da Lei da Televisão, acima transcrito, prevê expressamente a responsabilização civil dos operadores de televisão solidariamente com os responsáveis pela transmissão de materiais previamente gravados, com as exceções aí previstas. Trata-se, conforme explanado no acórdão do STJ de 24.5.2022, processo 14570/16.8T8LSB.L1.S1, acima citado, de uma ampliação da responsabilidade dos operadores de televisão (por confronto com o âmbito de aplicação do art.º 500.º do CC), responsabilizando-os também por factos ilícitos próprios (e não apenas pelo risco como no art.º 500.º do CC), quando esteja em causa a exibição de programas previamente gravados, pois em tal hipótese o operador televisivo tem a possibilidade de controlar ou supervisionar previamente os conteúdos dos programas que serão posteriormente exibidos.
Concorda-se, assim, com a Relação quando considerou que a 2.ª R. é responsável, solidariamente com a 1.ª R., pelos danos causados ao A. pela referida emissão televisiva – sem prejuízo da análise, que se fará adiante, da questão da prescrição da responsabilidade civil da 2.ª R..
No que diz respeito à responsabilização das pessoas concretas que atuavam por conta e no interesse da 2.ª R., máxime o 3.º R. e a 4.ª R., provou-se o seguinte:
3. À data de ... de 2013 CC encontrava-se registado como responsável pela ... “SIC” e “SIC Internacional”.
4. A 4ª Ré era, em 2013, a ... da SIC e ... do programa “...” com a efetiva ... desse programa televisivo e todas as rúbricas que o compõem, competindo-lhe orientar, superintender e determinar o seu conteúdo.
5. Na data de emissão do programa a 4.ª Ré estava ausente das funções que lhe cabem junto da 2.ª Ré.
Isto é, se bem que em 2013 o R. CC estivesse registado como responsável pela ... “SIC” e “SIC Internacional”, o certo é que, nessa data, era à 4.ª R. que competia a ... SIC e a ... “...”, com a efetiva direção e coordenação desse programa televisivo e todas as rubricas que o compunham, competindo-lhe orientar, superintender e determinar o seu conteúdo.
Isto é, era à 4.ª R., não ao 3.º R., que competia orientar e superintender sobre o programa “...”.
Pelo que este não pode ser responsabilizado pela transmissão em referência.
Nesta parte, pois, a revista é procedente. Não deve subsistir a responsabilização do 3.º R. pelos factos provados.
3. Segunda questão (prescrição da responsabilidade civil da R. SIC)
O direito de indemnização emergente de responsabilidade civil por factos ilícitos prescreve no prazo de três anos (n.º 1 do art.º 498.º n.º 1 do CC).
Pelo que, à luz desse preceito, tendo o programa objeto destes autos sido emitido em ... de 2013, à altura da instauração da ação (julho de 2018) já o direito do A. estaria prescrito (pois não se mostra que este teve conhecimento tardio do aludido programa – aliás o A. apresentou queixa à ERC, por causa do programa, em 2013).
No acórdão recorrido considerou-se que, in casu, operou o alargamento do prazo prescricional previsto no n.º 3 do art.º 498.º do Código Civil, que aqui se transcreve:
“Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável.”
O alongamento do prazo justifica-se já que, se para efeitos penais se pode discutir a questão durante um prazo mais longo que o da ação cível, nada justificará que não se pudesse aproveitar tal prazo para apreciar a responsabilidade civil.
É jurisprudência constante do STJ, de que não vemos razões para divergir, tendo em conta os valores da segurança e igualdade subjacentes à interpretação e aplicação uniformes do direito (art.º 8.º n.º 3 do Código Civil) a de que o alargamento do prazo prescricional previsto no n.º 3 do art.º 498.º do Código Civil não está dependente de, previamente, ter corrido processo crime ou da existência de condenação penal, assim como não impede a ação cível o facto de o processo crime ter sido arquivado ou amnistiado (cfr., v.g., acórdãos do STJ, de 23.10.2012, processo 198/06.4TBFAL.E1.S1; 29.10.2002, processo 02A1755; 03.12.1998, processo 98B432).
No caso dos autos, no que concerne à R. BB, considerou-se no acórdão recorrido que a conduta desta integra a previsão do crime de difamação através de meio de comunicação social, previsto e punido pelos artigos 180.º n.º 1 e 183.º n.º 2 do Código Penal com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias. Assim, nos termos do art.º 118.º n.º 1 al. c) do Código Penal, o prazo prescricional aplicável é de cinco anos. Daí que a responsabilidade civil imputada à R. BB não prescreveu.
Vejamos, agora, o caso da R. SIC.
Sobre a responsabilidade penal dos operadores de televisão rege o art.º 71.º da Lei da Televisão, que tem a seguinte redação:
“Crimes cometidos por meio de serviços de programas televisivos e de serviços audiovisuais a pedido
1 - Os actos ou comportamentos lesivos de interesses jurídico-penalmente protegidos perpetrados através de serviços de programas televisivos ou de serviços audiovisuais a pedido são punidos nos termos gerais, com as adaptações constantes dos números seguintes.
2 - Sempre que a lei não estabelecer agravação em razão do meio de perpetração, os crimes cometidos através de serviços de programas televisivos ou de serviços audiovisuais a pedido que não estejam previstos na presente lei são punidos com as penas estabelecidas nas respectivas normas incriminadoras, elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
3 - O director referido no artigo 35.º apenas responde criminalmente quando não se oponha, podendo fazê-lo, à prática dos crimes referidos no n.º 1, através das acções adequadas a evitá-los, caso em que são aplicáveis as penas cominadas nos correspondentes tipos legais, reduzidas de um terço nos seus limites.
4 - Tratando-se de declarações correctamente reproduzidas ou de intervenções de opinião, prestadas por pessoas devidamente identificadas, só estas podem ser responsabilizadas, salvo quando o seu teor constitua incitamento ao ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo ou pela orientação sexual, ou à prática de um crime, e a sua transmissão não possa ser justificada por critérios jornalísticos.
5 - No caso de emissões não consentidas, responde quem tiver determinado a respectiva transmissão.
6 - Os técnicos ao serviço dos operadores de televisão ou dos operadores de serviços audiovisuais a pedido não são responsáveis pelas emissões a que derem o seu contributo profissional se não lhes for exigível a consciência do carácter criminoso do seu acto”.
No que diz respeito à criminalização de condutas perpetradas através de serviços de programas televisivos ou de serviços audiovisuais, a lei remete para a lei geral, sem prejuízo de normas especiais contidas no art.º 71.º.
Ora, da lei geral, isto é, do Código Penal, resulta que a R. SIC, pessoa coletiva, não é criminalmente punível pela conduta objeto desta ação.
Efetivamente, o crime de difamação não se integra naqueles que o legislador considera serem imputáveis às pessoas coletivas (cfr. art.º 11.º do Código Penal).
E a lei da televisão não contém norma que consagre a responsabilidade penal das pessoas coletivas por crimes de difamação praticados no exercício da atividade televisiva.
Mas a jurisprudência tem admitido que o alongamento do prazo de prescrição previsto no n.º 3 do art.º 498.º, além de aplicável ao autor do facto criminoso, se estenda aos meros responsáveis civis.
Assim, o STJ tem decidido, maioritariamente, pela aplicação do art.º 498.º n.º 3 à obrigação de indemnizar do comitente por facto do comissário que pratique ilícito criminal e, bem assim, à seguradora que garanta a responsabilidade extracontratual do agente lesante.
Tal ampliação do âmbito de aplicação do referido alongamento do prazo prescricional não se justifica pelo vínculo inerente às obrigações solidárias. Com efeito, o regime da solidariedade passiva é compatível com a existência de prazos prescricionais distintos para os diversos obrigados, conforme resulta do art.º 521.º do Código Civil.
Conforme se exarou no acórdão do STJ de 22.02.1994, processo n.º 084516, “a responsabilidade objectiva do comitente nos termos atrás referidos assenta precisamente na necessidade de cobrir ou garantir a indemnização ao lesado, indemnização esta que o comissário poderia não ter meios para satisfazer, e daí que o comitente responda, tal como o comissário, pela totalidade da indemnização, e, de modo algum, assenta no facto de as duas responsabilidades serem solidárias (artigo 497 n. 1 do Código Civil). Mas, se é assim, se a vontade legislativa foi dar cobertura à obrigação devida ao lesado, afigura-se-nos que tal cobertura deve manter-se no campo da prescrição, isto é, o comitente não pode deixar de cobrir a indemnização devida ao lesado em toda a linha e por todo o tempo em que o comissário estiver obrigado a indemnizar, pelo que a obrigação dele só deve prescrever quando o mesmo acontecer com a obrigação do comissário”.
Tal interpretação da lei respeita a unidade do sistema jurídico, como se nota no aludido aresto do STJ:
“…o interpretar o artigo 498 n. 3 como aplicável também aos responsáveis meramente civis não implica aplicação analógica do artigo 500 n. 1, apenas concede que tal interpretação é imposta pelo argumento da unidade do sistema jurídico: se o artigo 500 n. 1 responsabiliza o comitente na exacta medida em que o comissário é responsável, manda a lógica que tal se passa em todas as situações, inclusive no campo da prescrição do direito de indemnização.”
E, como igualmente se realça no citado acórdão do STJ, o elemento literal da lei também é tido em consideração:
“Quanto à letra da lei, é certo que o texto legal em apreço não distingue, pois que apenas diz "Se o facto ilícito constitui crime ...", mas não se vê que fora deixar-nos a impressão de só querer referir-se ao autor do facto ilícito criminoso; até pelo contrário, se o texto não se refere ao autor do facto ilícito criminoso e só a este facto constitutivo de crime, parece que o pressuposto da sua aplicação a todos os responsáveis, quer criminais quer civis, é apenas o ter havido crime sujeito a prescrição de prazo mais longo”.
No mesmo sentido, veja-se o acórdão do STJ de 03.12.1998, processo 98B432 e o acórdão do STJ de 08.3.2005, processo n.º 04A4412.
Veja-se, quanto ao alargamento do prazo prescricional também quanto à seguradora do agente, o citado acórdão do STJ de 03.12.1998:
“E porque a situação é semelhante tal doutrina será de aplicar ao caso da seguradora, para quem o segurado e eventual causador do acidente de viação transferiu a sua responsabilidade civil pelos danos causados ao lesado, pois que transferida a responsabilidade para a seguradora, essa transferência deve operar pelo tempo por que perdurar a responsabilidade do segurado perante o lesado. De outro modo, perderia qualquer significado e interesse prático o contrato de seguro celebrado entre ambos, como contrato que é a favor de terceiro”.
Aplicando esta doutrina ao caso dos autos, temos que, embora a R. SIC não seja pessoalmente punível pelo crime de difamação, o certo é que a aludida emissão em si se traduziu numa ofensa, criminalmente relevante, à honra e consideração do A.. Embora não se tenha apurado quem foi a pessoa que, de facto, coordenou a preparação e emissão do programa em concreto e a quem, por isso, seria imputável a responsabilidade criminal respetiva, o certo é que a SIC, enquanto garante, nos termos dos artigos 165.º e 500.º do Código Civil, da responsabilidade civil do(s) agente(s) utilizado(s) na sua atividade, deve sujeitar-se ao alargamento do prazo prescricional da sua responsabilidade civil previsto no n.º 3 do art.º 498.º do Código Civil.
Conclui-se, pois, que a responsabilidade civil da 2.ª R. (SIC, S.A.) não prescreveu.
Nesta parte, consequentemente, a revista é improcedente.
III. DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a revista parcialmente procedente e, consequentemente:
a) Revoga-se o acórdão recorrido na parte em que condenou o 2.º R. (CC) a indemnizar o A., solidariamente com a 1.ª R. e a 2.ª R., na indemnização de € 25 000,00 e, em seu lugar, absolve-se o 2.º R. (CC) do pedido;
b) No mais, mantém-se o acórdão recorrido.
As custas da revista, na componente de custas de parte, são a cargo da recorrente SIC S.A. e do recorrido, na proporção do respetivo decaimento (artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC).
Lx, 20.9.2023
Jorge Leal (Relator)
Maria João Vaz Tomé
António Magalhães