PROCESSO DE INVENTÁRIO SUBSEQUENTE A DIVÓRCIO
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
CONTRATO-PROMESSA DE PARTILHA
Sumário

I - Nos termos do artigo 1789º do Código Civil, os efeitos do divórcio retrotraem-se à data da propositura da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges.
II - A cessação da comunhão patrimonial derivada do casamento pode ocorrer, após o divórcio, por acordo dos ex-cônjuges, quer por via da venda dos bens comuns a terceiros, mediante celebração do respetivo contrato de compra e venda, quer por via da partilha extrajudicial.
III - O contrato-promessa de partilha de bens comuns destina-se a constituir a promessa de imputação de bens concretos de que o casal seja titular, na meação de cada cônjuge.
IV - A determinação da vontade real dos declarantes constitui-se em matéria de facto a indagar, sendo que se desconhecida essa vontade, devem-se aplicar os critérios previstos nos arts. 236.º a 238.º do CC.

Texto Integral

Processo nº 1971/22.1T8MTS-A
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Família e Menores de Matosinhos - Juiz 1
Relatora: Ana Vieira
1º Adjunto Desembargador Dr. António Carneiro da Silva
2º Adjunto Desembargadora Dra. Isabel Rebelo Ferreira

*

Sumário
…………………………………………
…………………………………………
…………………………………………

*

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO

Nos autos de processo de inventário para partilha dos bens comuns por divórcio em que é requerente AA, o qual inicialmente correu os seus termos junto do Cartório Notarial da Exm. Sr. Dra. BB, Matosinhos, sendo interessado (cabeça de casal) CC, foi proferido a 13-11-2022 despacho com o seguinte teor: «Inventário (Lei 23/2013)
Nestes autos de inventário para partilha de bens comuns dos ex cônjuges AA e CC, não está junto: Certidão da data em que foi requerido o divórcio o qual decretado na conservatória a 11.12.2013.
Atento o disposto no artigo 1789º nº 1 do CC notifique o cabeça de casal para juntar a mesma aos autos em 10 dias.

Da reclamação à relação de bens:
A Interessada veio reclamar por omissão de:
A
Saldo existente no Banco 1... conta nº ...40:
O cabeça de casal juntou extrato à data de 31.12.2013 cujo montante é de 1,32 euros.
Notifique o Cabeça de casal para relacionar o saldo à data da apresentação do requerimento de divórcio na conservatória (artigo 1789º nº 1 do CC), devendo, juntar aos autos em 10 dias o mesmo.
B
Quanto aos certificados de aforro e outros valores existentes no Banco 1..., não obstante a Interessada ter declarado que procedeu à junção da respetiva autorização aos autos, o certo é que a mesma não chegou a ser junta, por razões que se ignora (cfra despacho da Exma Notária de 20-09-2020).
Consequentemente e atento a que o cabeça de casal notificado para juntar a referida autorização nada fez, e atento o disposto nos artigos 7º e 8º do CPC, notifique os mesmos para juntarem a estes autos as respetivas autorizações para consulta dos elementos bancários.
Notifique o cabeça de casal 10 dias para prestar autorização nos autos para pedido de consulta dos mesmos à data do requerimento de divórcio, considerando que a interessada veio prestar essa autorização.
Junta a autorização, e a certidão comprovativa da data do requerimento de apresentação de divórcio solicite as informações requeridas às entidades competentes.
C
Reclamou ainda do não relacionamento de:
Quota social
Veiculo marca seat.
O cabeça de casal juntou o documento aos autos datado e assinado pelos interessados e no qual a quota social foi adjudicada ao cabeça de casal e o veiculo seat foi adjudicado à reclamante.
Decidindo:
Salvo quanto a imóveis a partilha extrajudicial não está sujeita a forma legal.
O documento junto ao processo de divórcio consubstancia uma partilha de bens comuns na medida em que ambos os interessados declararam não só aqueles bens como comuns, como ainda estabelecem a forma da sua divisão.
A partilha extrajudicial é válida e eficaz, quanto aos bens e direitos que foram objeto da mesma, pelo que não pode em inventário vir discutir-se de novo, o que foi dividido (salvo se for requerida a anulação ou nulidade da mesma), o que in casu não aconteceu.
Com efeito «a partilha extrajudicial só pode ser impugnada nos casos em que o sejam os contratos» (art. 2121º, do CC -Neste sentido Acórdão do TRL 891/11.0TBGDM.L1-7 Relator Desembargadora MARIA DO ROSÁRIO MORGADO, de 27.11.2012 in dgsi.pt.)
Consequentemente, não há que relacionar neste inventário bens que já estão partilhados pelo que indefiro nesta parte a reclamação.
D.
A interessada também impugna os créditos do cabeça de casal sob o património comum:
Vejamos:
A divida de IMI dos anos 2014 e 2015:
O cabeça de casal apenas juntou documento comprovativo do pagamento de 332,00 euros.
DECIDINDO
Nos termos do disposto no artigo 1689º nº 3 do CC “Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum” (…)
Como refere Lopes Cardoso in “Administração Dos Bens Comuns Do Casal” em anotação ao artº 1689 CC anot Abílio Neto 19ª ed: “(…) a partilha é o momento de os cônjuges se exigirem reciprocamente o pagamento das dividas entre si. Assim sucede quando por dividas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles (artigo 1697º nº1 CC)
São dividas da responsabilidade de ambos os cônjuges aquelas que oneram os bens comuns conforme o artigo 1694º nº 1CC.
Do exposto, resulta que sendo o IMI divida que onera o imóvel comum, a cabeça de casal responde na parte correspondente pelo seu pagamento que tendo sido feito pelo interessado CC se constituiu credor dessa parte (proporção de 1/2) da mesma nos termos expostos.
O art. 1697º, do CC sobre as compensações devidas pelo pagamento de dívidas do casal, dele resultam dois princípios: de que elas são devidas quando as dívidas comuns foram pagas com bens próprios de um dos cônjuges e quando as dívidas de um só dos cônjuges foram pagas com bens comuns.
O momento em que se efectiva o crédito de compensação é o momento da partilha dos bens do casal.
Em conformidade concedo 10 dias ao Interessado para juntar aos autos o documento (ainda não junto) comprovativo do alegado pagamento das demais prestações de IMI sob pena de indeferimento, não o fazendo.
Sem prejuízo admito desde já o relacionamento do crédito de 332,96 euros
E as despesas de manutenção do imóvel no valor de 461,25 euros não estão devidamente documentadas.
A oposição da reclamante significa que não deu o seu acordo às mesmas pelo que determino a sua eliminação.
As verbas identificadas sob o ponto III não são dividas da responsabilidade de ambos os cônjuges uma vez que respeitam a consumos posteriores ao divórcio, pelo que responsabilizam apenas o respetivo consumidor - vde artigo 1789 nº 1 do CC que limita os efeitos patrimoniais à data da petição.
As verbas IV e V não constituem créditos sobre o património comum pelo que determino a sua eliminação.
H
Verba VI
Dada a impugnação apresentada pela Interessada, o cabeça de casal juntará em 10 dias documento comprovativo da alegada transferência dos 125.000,00 euros para a sua conta e desta para o vendedor do imóvel comum em que diz ter participado com este montante.
**
Indefiro as requeridas diligências, pela interessada, junto do Banco 1... uma vez que é irrelevante o conteúdo dos extratos bancários, nos períodos em causa, já que apenas interessam os saldos à data da apresentação do pedido de divórcio.
Prejudicada por consequência a prova testemunhal apresentada…»(Sic).
*
Inconformada com o teor do referido despacho veio a requerente recorrente interpor recurso tendo apresentado as seguintes alegações:«… A.OBJECTO DO RECURSO
Como resulta do requerimento que antecede, o presente recurso vem interposto da decisão proferida no incidente de reclamação da relação de bens autonomamente processado, na parte em que que indeferiu tal reclamação no que se refere ao acusado não relacionamento da quota social e do veículo marca seat.

B. FUNDAMENTOS DA DECISÃO RECORRIDA É o seguinte, o teor da decisão recorrida:
O cabeça de casal juntou o documento aos autos datado e assinado pelos interessados e no qual a quota social foi adjudicada ao cabeça de casal e o veículo seat foi adjudicado à reclamante. Decidindo:
Salvo quanto a imóveis a partilha extrajudicial não está sujeita a forma legal.
O documento junto ao processo de divórcio consubstancia uma partilha de bens comuns na medida em que ambos os interessados declararam não só aqueles bens como comuns, como ainda estabelecem a forma da sua divisão.
A partilha extrajudicial é válida e eficaz, quanto aos bens e direitos que foram objeto da mesma, pelo que não pode em inventário vir discutir-se de novo, o que foi dividido (salvo se for requerida a anulação ou nulidade da mesma), o que in casu não aconteceu.
Com efeito «a partilha extrajudicial só pode ser impugnada nos casos em que o sejam os contratos» (art. 2121º, do CC -Neste sentido Acórdão do TRL 891/11.0TBGDM.L1-7 Relator Desembargadora MARIA DO ROSÁRIO MORGADO, de 27.11.2012 in dgsi.pt.)
Consequentemente, não há que relacionar neste inventário bens que já estão partilhados pelo que indefiro nesta parte a reclamação.
Colhe-se do teor da decisão que o indeferimento da reclamação se fundou no entendimento de que a partilha desses bens (a quota social e o veículo de marca seat) já foi realizada e que tal partilha desses bens comuns se encontra consubstanciada por documento junto ao processo de divórcio pelo cabeça de casal.

C. FUNDAMENTOS DO RECURSO
A decisão recorrida não identifica o documento junto pelo cabeça de casal ao processo de divórcio que, no seu entender, consubstanciará a partilha desses bens comuns.
Nos autos não existe nenhum documento junto pelo cabeça de casal que preencha tais condições.
Em 1 de Setembro de 2015 a Recorrente requereu no Cartório Notarial de BB, o inventário para partilha subsequente ao divórcio (cfr. refª CITIUS 435692629).
E instruiu tal pedido com certidão extraída do processo de divórcio por mútuo consentimento que correu os seus termos na Conservatória do Registo Civil de Matosinhos sob o nº ... de 2013, certidão da qual constava a relação especificada dos bens comuns a que se refere a alínea a) do n.º 1 do artigo 1775º do Código Civil (cfr. refª CITIUS 435692628, de 01/05/2015).
No pressuposto de que será esse o documento a que a sentença recorrida se refere (essa relação especificada dos bens comuns, integrante da referida certidão), há que dizer o seguinte:
Da referida certidão não consta que os cônjuges tenham optado por proceder à partilha daqueles bens nos termos dos artigos 272.º-A a 272.º-C do Decreto-Lei n.º 324/2007, de 28 de Setembro.
Tal faculdade foi instituída pelo DL nº 324/2007 que veio alterar, para esse efeito, o Código do Registo Civil, aditando-lhe desde logo os artigos 272º-A e 272º-B, do seguinte teor:
Artigo 272.º-A
Partilha do património conjugal
1 - Os cônjuges podem proceder à partilha dos seus bens comuns no âmbito do processo de separação judicial de pessoas e bens ou de divórcio por mútuo consentimento.
2 - São pressupostos da partilha do património conjugal quanto aos bens imóveis, móveis ou participações sociais sujeitos a registo:
a) A inexistência de dúvidas quanto à identidade e à titularidade dos bens a partilhar;
b) O seu registo definitivo a favor dos cônjuges.
3 - O acordo é homologado pela decisão que decreta o divórcio, tendo os mesmos efeitos previstos na lei para outras formas de partilha.
4 - A recusa de titulação da partilha não obsta à promoção do procedimento de divórcio ou de separação de pessoas e bens por mútuo consentimento.
5 - Por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça podem ser definidas as condições de verificação dos pressupostos referidos no n.º 2.
Artigo 272.º-B Sequência de actos
1 - No âmbito da partilha do património conjugal, o serviço de registo procede aos seguintes actos, pela ordem indicada:
a) Elaboração de documento, conforme à vontade dos interessados, que titule a partilha, seguida da leitura e explicação do respectivo conteúdo;
b) Promoção da liquidação e do pagamento dos impostos relativos à partilha, nos termos declarados pelo contribuinte;
c) Cobrança dos emolumentos e de outros encargos que se mostrem devidos;
d) Registo obrigatório e imediato da transmissão dos bens imóveis, móveis ou participações sociais sujeitos a registo partilhados;
e) Entrega de certidão gratuita dos documentos previstos na alínea a) e dos registos efectuados, bem como dos comprovativos de pagamento das obrigações tributárias, dos emolumentos e dos demais encargos.
2 - A leitura dos documentos previstos na alínea a) do número anterior pode ser dispensada a pedido dos interessados.
3 - A pedido dos interessados, o documento referido na alínea a) do n.º 1 pode ser substituído por documento elaborado pelos mesmos, que é imediatamente integrado em suporte informático pelo funcionário.
Os bens aqui em causa são os descritos nessa relação especificada de bens comuns sob as suas alíneas b) c), correspondendo a uma participação social numa sociedade comercial por quotas e a um veículo automóvel ou seja, a dois bens sujeitos a registo.
Da certidão (cfr. refª CITIUS 435692628, de 01/05/2015), resulta que foi a seguinte, a decisão proferida:
Acautelados os interesses dos cônjuges como os da descendência menor comum e verificados os requisitos legais, nos termos dos artigos 1776º do CC e 14º do DL nº 272/2001 de 13.10, decreto o divórcio por mútuo consentimento, dissolvendo o casamento, homologando o acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais, relativamente à descendência menor comum e acordo sobre o destino da casa de morada da família (apenas quanto ao direito de utilização), cujo(s) teor(es) se dá(ão) aqui por reproduzidos (…)
Acresce o seguinte:
A relação especificada dos bens comuns, não tendo os então cônjuges optado por proceder à partilha daqueles bens nos termos dos artigos 272.º-A a 272.º-C do Decreto-Lei n.º 324/2007, é apenas a relação especificada dos bens comuns e nada mais.
E dele não consta qualquer partilha.
Após a especificação dos três bens comuns, consta um parágrafo que diz o seguinte:
A verba a) do activo será adjudicada em partes iguais a ambos os requerentes, a verba b) do activo será adjudicada ao requerente marido e a verba c) será adjudicada à requerente mulher.
Será adjudicada, diz-se ali. Trata-se do futuro do indicativo, significando que irá ser adjudicada mas que ainda o não foi nem é.
E diz-se o mesmo para cada uma de todas as três verbas: “será adjudicada”.
Ali, apenas se manifesta o propósito de tais bens virem a ser adjudicados nos termos que ali se enunciam.
Nos negócios formais, não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (artº 238º, nº 1 do Código Civil).
Tal documento pode ter o sentido e alcance de uma promessa de partilha, mas não consubstancia nenhuma partilha.
Por essa mesma razão o cabeça de casal, aqui Recorrido, não teve dúvidas em relacionar no inventário o primeiro dos bens que constam dessa mesma relação especificada dos bens comuns, o imóvel.
A certidão junta pela Recorrente ao requerimento inicial do inventário (cfr. refª CITIUS 435692628, de 01/05/2015), constitui documento autêntico (artº 369º, nºs 1 e 2 do Código Civil).
Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (artº 371º, nº 1 do Código Civil), não se encontrando, pois, quanto a tais factos plenamente provados, sujeitos à livre apreciação do julgador (cfr. artº 607º, nº 5 do CPC).
A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 371º, nº 1 do Código Civil e 607º, nº 5 do CPC bem como no artigo 1775º, nº 1, al. a), 2ª parte do Código Civil e nos artigos 272º-A nº 3 e 272º-B, nºs 1, als. a), b), d) e e) do Código do Registo Civil, devendo ser revogada e substituída por outra que defira a reclamação da relação de bens, determinando a inclusão nela dos bens comuns omitidos a saber, a participação social na sociedade A... Lda., com o NIPC ... e o veículo automóvel marca Seat, de matrícula ..-BV-...

D. CONCLUSÕES
1. A certidão junta pela Recorrente ao requerimento inicial do inventário (cfr. refª CITIUS 435692628, de 01/05/2015), constitui documento autêntico (artº 369º, nºs 1 e 2 do Código Civil).
2. Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (artº 371º, nº 1 do Código Civil), não se encontrando, pois, quanto a tais factos plenamente provados, sujeitos à livre apreciação do julgador (cfr. artº 607º, nº 5 do CPC).
3. Decorre de tal documento autêntico que a Recorrente e o Recorrido não optaram por proceder à partilha dos bens comuns nos termos dos artigos 272.º-A a 272.º-C do Decreto-Lei n.º 324/2007.
4. E dessa certidão não consta qualquer partilha.
5. A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 371º, nº 1 do Código Civil e 607º, nº 5 do CPC bem como no artigo 1775º, nº 1, al. a), 2ª parte do Código Civil e nos artigos 272º-A nº 3 e 272º-B, nºs 1, als. a), b), d) e e) do Código do Registo Civil, devendo ser revogada e substituída por outra que defira a reclamação da relação de bens, determinando a inclusão nela dos bens comuns omitidos a saber, a participação social na sociedade A... Lda., com o NIPC ... e o veículo automóvel marca Seat, de matrícula ..-BV-...
JUSTIÇA…».
Não foram apresentadas contra-alegações.

Foi proferido despacho que admitiu o recurso interposto pela interessada como sendo de apelação, a subir em separado e com efeito devolutivo.
***

II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Cód. Processo Civil.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, resulta que a questão a analisar visa determinar da manutenção do despacho que indeferiu a integração na relação de bens da quota e veículo Seat.
*

III - FUNDAMENTOS DE FACTO

Os factos a ter em conta são os acima referidos no relatório, para além de resultar dos autos certificado o seguinte:
1- Na relação de bens junta pelo cabeça de casal foi relacionada apenas como activo uma única verba (bem imóvel) e foram relacionadas despesas.
2- A requerente veio apresentar reclamação quanto á reclamação de bens, na parte relevante ao presente recurso, nos seguinte termos: «… QUANTO AO ACTIVO
FALTA DE RELACIONAÇÃO DE BENS
O C.C. não relacionou o dinheiro comum do casal e existente no Banco 1..., de valor superior a 111.000,00 euros; Docº nº 1 que junta e aqui dá por inteiramente reproduzido
Não relacionou o dinheiro existente em certificados de aforro, de valor superior a 16.000,00 euros;
Não relacionou as obrigações diversas/valores mobiliários e ações existentes naquele mesmo Banco 1.... Doc 1
Não relacionou a quota no valor nominal de 22.500,00 na sociedade por quotas A..., LDA, com o NIPC ...
com sede na Rua ..., freguesia ..., concelho do Porto, com o capital social de 45.000,00 euros; Doc nº 2 que junta e aqui dá por reproduzido.
Não relacionou o veículo automóvel de marca SEAT, modelo ..., com a matrícula ..-BV-..;
E todos estes bens são bens comuns do casal porquanto não foram partilhados pelos ex-cônjuges.
O C.C. usa ou tenta usar o subterfúgio de apresentar a relação de bens “conforme acordo junto em sede de divórcio por mútuo consentimento”
Mas o facto de os bens não terem sido nessa data relacionados, não significa que eles não existissem ou que não existam; apenas significa que essa relação de bens comuns estava errada e incompleta.
Os bens existem e, existindo, têm agora que ser relacionados e partilhados.
10º
Aquele “acordo” reflecte a situação do casal e as vicissitudes que ocorrerem até a aqui Requerente conseguir divorciar-se.
11º
A Reclamante saiu do domicílio conjugal em 28 de Dezembro de 2012, data a partir da qual os cônjuges passaram a viver em absoluta separação de facto.
12º
E chegou a uma altura que a Reclamante assinaria qualquer coisa só para que o divórcio se concretizasse.
13º
Desse “acordo” constava também que havia bens que seriam adjudicados a cada um dos cônjuges, o facto é que tal adjudicação nunca se concretizou, pelo que têm os mesmos que ser relacionados e partilhados.
14º
Aliás foi o que o C.C. fez em relação a um deles.
QUANTO AO PASSIVO…».

3- Foi junto aos autos de inventário copia do teor do registo comercial quanto á sociedade A..., LDA.
4- O cabeça de casal respondeu á predita reclamação tendo impugnado a mesma quanto á alegada falta de relacionamento de verbas do alegado activo, invocando em síntese que os bens referidos na reclamação (quota e veículo) já teriam sido partilhados por acordo das partes nos acordos do divorcio, tendo o veículo sido adjudicado á requerente e a quota ao cabeça de casal
5- O cabeça de casal informou nos autos de inventário que o bem imóvel foi vendido.
6- A requerente veio pedir a remessa dos autos ao tribunal, tendo sido realizada essa remessa.
7- Na Conservatória consta na acta como tendo sido homologado o acordo quanto á regulação do poder paternal.
8- Consta como junto na Conservatória um documento denominado «relação de bens a partilhar», constando no mesmo nomeadamente a quota social (como alínea b) e o veículo seat (alínea c) e consta um imóvel (verba a), e consta que a verba a) será adjudicada em partes iguais a verba b) ao requerido e a c) á requerente..».


IV - FUNDAMENTOS DE DIREITO

A recorrente invoca que o tribunal recorrido poderia considerar o documento junto com o requerimento de inventário como sendo uma promessa de partilha, mas não consubstancia nenhuma partilha. De resto, refere que nesse documento também consta imóvel (alínea a)) e esse bem foi relacionado pelo cabeça de casal no inventário.
Refere que a certidão junta pela Recorrente ao requerimento inicial do inventário (cfr. refª CITIUS 435692628, de 01/05/2015), constitui documento autêntico (artº 369º, nºs 1 e 2 do Código Civil).
Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (artº 371º, nº 1 do Código Civil), não se encontrando, pois, quanto a tais factos plenamente provados, sujeitos à livre apreciação do julgador (cfr. artº 607º, nº 5 do CPC).
Conclui que a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 371º, nº 1 do Código Civil e 607º, nº 5 do CPC bem como no artigo 1775º, nº 1, al. a), 2ª parte do Código Civil e nos artigos 272º-A nº 3 e 272º-B, nºs 1, als. a), b), d) e e) do Código do Registo Civil, devendo ser revogada e substituída por outra que defira a reclamação da relação de bens, determinando a inclusão nela dos bens comuns omitidos a saber, a participação social na sociedade A... Lda., com o NIPC ... e o veículo automóvel marca Seat, de matrícula ..-BV-...
Verifica-se que estamos perante uma reclamação á relação de bens, tendo a requerente considerado que falta indicar na relação de bens duas verbas (quota social e veículo Seat) e indica meios de prova, sendo que o requerido alega que já foi feita essa partilha no âmbito dos autos de divorcio invocando o documento acima referido e indica melos de prova.
A composição do património comum é, portanto, aquela que existia na data da proposição da acção de divórcio e não em momento anterior, e só os bens existentes nesse momento devem ser objecto de partilha.
A partilha dos bens comuns decorrente do divorcio ou separação judicial de pessoas e bens, ocorre depois de terem cessado as relações patrimoniais entre os cônjuges (art.ºs 1688º e 1689º, nº 1 do CC).
Dissolvido o casamento (por morte ou divórcio), coloca-se o problema da determinação e especificação dessa meação nos concretos bens que integram o património comum, sendo que esse problema é resolvido (judicial ou extrajudicialmente) pela partilha subsequente ao divórcio.
Nada impede que os cônjuges antecipem a solução extrajudicial e celebrem um contrato-promessa, na perspectiva do decretamento de divórcio, o qual funcionaria como condição suspensiva do cumprimento daquele contrato (o contrato de partilha versado na promessa fica prometido para um tempo após o casamento).
O contrato promessa de partilha origina apenas prestações de facto jurídico - a celebração do contrato definitivo.
Mas existem os contratos acessórios realizados no âmbito dos processos de divorcio que visam a fixação antecipada das regras a que deve obedecer a liquidação do regime matrimonial após a extinção ou a modificação da relação jurídica matrimonial.
Existem duas figuras distintas: de um lado, o contrato promessa de partilha; do outro o contrato de partilha sob condição suspensiva (cfr. Vaz Serra, Contrato-Promessa, BMJ nº 76, p. 35).
O contrato de partilha deve ser interpretado e integrado nos termos do art.º 239.º do CC, que determina: “Na falta de disposição especial, a declaração negocial deve ser integrada de harmonia com a vontade que as partes teriam tido se houvessem previsto o ponto omisso, ou de acordo com os ditames da boa fé, quando outra seja a solução por eles imposta”
Quando estejam em causa negócios formais, estatui o art. 238.º, n.º 1, do CC que o sentido correspondente à impressão do destinatário não pode valer se não tiver um mínimo de correspondência, ainda que imperfeita, no texto do respectivo documento.
Para outros desenvolvimentos, vide o Ac da RL 1421/20.8T8CSC.L1-8, Relator: CARLA MARIA OLIVEIRA, 12-01-2023, Sumário: I - Nos regimes de comunhão de bens, os contratos promessa de partilha de bens comuns são válidos, desde que respeitada a regra imperativa da metade prevista no art.º 1730º, do CC.
II - A celebração de contrato promessa de partilha entre os ex-cônjuges, ainda que válido, não constitui, por si só, obstáculo ao prosseguimento de inventário judicial para partilha dos bens comuns do casal dissolvido, não lhe retirando razão de ser.»
No caso dos autos é manifesto que a decisão proferida terá de ser revogada, porque sem nenhuma fundamentação conclui que os dois bens em causa já foram partilhados, considerando ter existido uma partilha judicial. A requente invoca a sua existência no património comum e que não foram partilhados e o requerido alega que já foram partilhados tendo por base nomeadamente o documento referido, sendo que ambas as partes indicam meios de prova.
A sentença recorrida limitou-se a declarar ter sido feita a partilha considerando a mesma realizada nos acordos para o divórcio (seria uma partilha judicial).
Verifica-se que na relação de bens a partilhar apresentada no processo de divórcio, os ex-cônjuges indicaram os bens que deviam preencher os quinhões de cada um (considerando a quota social e o veículo em causa nos autos), mas a sentença homologatória do divórcio não se pronunciou sobre essa questão. Por outro lado, não consta que tenha sido elaborado qualquer dos documentos referidos no artigo 272º-B do DL nº 324/2007, sendo que só tivesse havido homologação judicial desse acordo, nos termos do artigo 272º-A do Decreto-Lei nº 324/2007, e elaborados os documentos do artigo 272º-B, é que se poderia concluir como referido na decisão recorrida.
Só se poderia considerar existir partilha judicial (e não acordo particular de partilha ou promessa de partilha) se estivessem preenchidos os pressupostos dos artigos 272-A e 272-B do DL 324/2007 e é manifesto que por interpretação da sentença proferida no processo de divórcio, não se realizou nenhuma partilha judicial (ao contrário do teor da decisão recorrida).
Assim, dado não estarem preenchidos os pressupostos de uma partilha judicial a decisão recorrida terá de ser revogada.
Questão diversa da partilha judicial é que saber, se ainda assim o mesmo documento pode ou não traduzir uma partilha extra-judicial, ou promessa de partilha, e essa matéria é matéria que, face à posição das partes, depende de prova dado ser matéria controvertida.
É manifesto que estamos perante matéria controvertida e que o tribunal não produziu nenhum desses meios de prova nem invocou estar a interpretar o documento o qual sempre deverá ser interpretado nos termos do artigo 239 e 238 do Ccivil.
Estamos perante matéria controvertida que carece de produção de prova antes da sua decisão.
Igualmente não se poderá determinar o relacionamento dessas duas verbas sem a produção de prova dado que se trata de matéria controvertida, não tendo os autos elementos para a sua decisão nesta fase.
***

V - DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação integralmente procedente, e nesta conformidade revogando-se integralmente o segmento do despacho recorrido (apenas o segmento objecto do recurso- Quota social e veículo), e em sua substituição deverão ser produzidos os meios de prova e determinado o prosseguimento dos autos para a decisão da reclamação á relação de bens quanto a esses bens.

Custas pelo recorrido.


Porto, 28/9/2023
Ana Vieira
António Carneiro da Silva
Isabel Ferreira