Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
ACÇÃO POPULAR
OBJECTO
INTERESSES DIFUSOS
INTERESSES COLECTIVOS
TUTELA POPULAR INJUSTIFICADA
Sumário
I. A acção popular pode destinar-se a tutelar interesses difusos, interesses colectivos ou interesses individuais homogéneos. II. A tutela popular é materialmente justificada não pelo facto de os interesses em causa irradiarem sobre a esfera dos membros do grupo sob a forma de interesses individuais, mas, desde logo, porque, tomados como um todo, esses interesses assumem uma importância de ordem pública que excede o plano subjectivo-individual de mera compreensão atomística dos elementos que o compõem.
Texto Integral
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO A e B, ambos advogados, instauraram “acção popular cível, inibitória, declarativa comum de condenação para tutela de interesses difusos”, invocando o art.º 52º/3 da Constituição da República Portuguesa, o art.º 31º do Código de Processo Civil, a Lei nº 83/95, de 31/8 e os art.ºs 11º e 13º da Lei de Defesa do Consumidor, contra NOS – COMUNICAÇÕES, S.A., pedindo que a ré seja:
a) inibida de cobrar aos consumidores valores que estes não tenham expressamente contratado, no âmbito dos serviços referidos no Art.º 11º da PI, ou outros análogos, por via do mecanismo digital designado por WAP BILLING aos quais os consumidores não tenham dado o seu consentimento expresso para contratar;
b) condenada a devolver aos consumidores os valores que tenha cobrado ilicitamente, ou que tenha feito seus, à revelia de um contrato, no âmbito da alínea anterior.
Alegam, para tanto e em síntese, que a Ré possui um mecanismo digital, conhecido por wap billing, que permite, através do toque na superfície do touchscreen ou écran de um smartphone, a celebração não autorizada de um contrato, directamente facturado ao cliente, para acesso a determinados sites, sem que os consumidores prestem o seu consentimento e contra a sua vontade, sendo que, na maior parte das vezes, estes não conseguem anular esses serviços e só se apercebem de que celebraram um contrato quando consultam a factura do serviço da Ré.
Invocam que tais contratos são nulos e violam os direitos dos consumidores.
Mais referem que a Ré abandonou tal procedimento a partir de Fevereiro de 2020 quanto a novos contratos, mas manteve-o quanto aos contratos em curso.
Afirmam os AA. que agem no processo em causa própria e alheia, defendendo interesses difusos, como a segurança na contratação do consumidor, a equidade das partes na contratação e demais direitos dos consumidores contra práticas abusivas e na defesa dos direitos económicos destes.
Pronunciou-se o Ministério Público, ao abrigo do art.º 13º da Lei nº 83/95, de 31/8, concluindo no sentido de que “não parece ser manifesto a improbabilidade do pedido”.
Foram citados, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 15º da mesma Lei nº 83/95, os titulares dos interesses em causa para, em 30 dias, passarem, querendo, a intervir no processo a título principal, aceitando-o na fase em que se encontra, e para declararem se aceitam ou não ser representados pelo autor ou se, pelo contrário, se excluem dessa representação, nomeadamente para o efeito de lhes não serem aplicáveis as decisões proferidas, sob pena de a sua passividade valer como aceitação.
Citada, a Ré contestou, sustentando a inadmissibilidade da presente acção popular ou a ilegitimidade popular dos AA. e a ineptidão da petição inicial, mais impugnando a factualidade alegada.
Os AA. responderam às excepções deduzidas, a convite do tribunal.
Foi proferido despacho saneador-sentença em que foi julgada improcedente a excepção de ineptidão da petição inicial e procedente a excepção de nulidade de todo o processo com fundamento em erro na forma de processo, com a consequente absolvição da ré da instância.
Interposto recurso de tal decisão para este Tribunal da Relação, foi proferido acórdão em 22/3/2022, julgando procedente a apelação e revogando a decisão que absolveu a ré da instância, por se considerar verificada a nulidade prevista no art.º 193º do Código Processo Civil.
Após baixa dos autos à 1ª instância e ouvidas as partes e o Ministério Público, foi proferido saneador-sentença, que julgou a acção improcedente.
Inconformado com esta decisão, dela apelou o A. A, requerendo a revogação da mesma “e prosseguindo os autos até final, com prolação do douto despacho saneador, produção de prova e condenação da Ré a ser inibida do Wapbilling bem como a devolver aos titulares dos direitos e interesses identificados que não se excluíram os valores subtraídos.”
Formula, para o efeito, as seguintes conclusões:
“1. O A que representa os consumidores que não se auto-excluíram nestes autos de proibição e reparação/indemnização do WAPBILLING foi notificado da sentença com a referência nº 423806139, que considerou improcedente a presente ação popular inibitória.
2. Desde já os fatos dados como assentes na douta sentença são falsos arguindo-se ainda a suspeição da Sra. Juiz de Direito, Ana Madalena Gomes.
3. Em nenhum ponto do processo ficou assente que o WAPBILLING já não é praticado pela Ré, NOS – Comunicações Pessoais, SA, como refere a Sra. Juíza A Quo na página 12 da sentença.
4. Tal afirmação é absolutamente falsa, como se alegou no Art.º 32º da Petição Inicial.
5. Mesmo que se admitisse que a prática teria cessado em toda a sua latitude, a ação inibitória será pertinente e atual, dado que na Lei de Defesa do Consumidor, Lei nº 24/96, acautela-se a defesa dos interesses económicos do consumidor: Art.º 9º, nº 1 da Lei de Defesa do Consumidor.
6. No nº4 deste Art.º 9º da Lei de Defesa do Consumidor: “O consumidor não fica obrigado ao pagamento de bens e serviços que não tenha prévia e expressamente contratado ou solicitado, ou que não constitui cumprimento de contrato válido (…)”.
7. A ação inibitória prevista no Art.º 10º, nº 1, c) da Lei de Defesa do Consumidor refere que: “É assegurado o direito de ação inibitória destinada a prevenir, corrigir ou cessar práticas lesivas dos direitos dos consumidores.
8. O Art.º 12º, nº 1 da LDC: “O consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens (…)” é uma norma injuntiva.
9. Bem se vê que mesmo se a prática do WAPBILLING houvesse cessado completamente, o que não é o caso, como supra se refere – sempre seria obrigatório tutelar os consumidores lesados nos termos do Art.º 12º, 1 da Lei de Defesa do Consumidor.
10. As diretivas podem ser invocadas nos tribunais nacionais quando sejam claras e confiram direitos e sejam incondicionais.
11.O Art.º 288º e Art.º 260º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, refere que aos particulares em caso da transposição incorreta ou inexistente das Diretivas, o Tribunal de Justiça da União Europeia considera que uma Diretiva que não foi objeto de transposição pode produzir determinados efeitos.
12. Invocação das Diretivas não transpostas: não tenha sido efetuada a sua transposição para o direito nacional ou tenha sido objeto de transposição incorreta; as disposições da Diretiva sejam incondicionais e suficientemente claras e precisas; as disposições da Diretiva confiram direitos particulares.
13.Tal acontece no presente processo com a Diretiva Europeia (EU) 2020/1828 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Novembro de 2020 relativa a ações coletivas para proteção dos interesses coletivos dos consumidores que revoga a Diretiva 2009/22/CE.
14.Com efeito estipula a referida diretiva que:
15. Art.º 1º, nº 1: “A presente diretiva estabelece normas que asseguram que esteja disponível em todos os Estados – Membros um meio processual de ação coletiva para proteção dos interesses coletivos dos consumidores, prevendo simultaneamente salvaguardas adequadas para evitar a litigância de má-fé. A presente diretiva graças à consecução de um elevado nível de defesa dos consumidores, contribui para o bom funcionamento do mercado interno através da aproximação de certos aspetos das disposições legislativas regulamentares e administrativas dos Estados–Membros respeitantes das ações coletivas.
16.A presente Diretiva não prejudica a adoção ou a manutenção em vigor pelos estados – membros dos meios processuais visem a proteção dos interesses coletivos dos consumidores à escala nacional.
17. Os Estados – Membros devem assegurar que, pelo menos um meio processual que permite que as entidades qualificadas intentem ações coletivas para medidas inibitórias e de reparação cumpra o disposto na presente Diretiva.
18.Estas entidades qualificadas abrangem o agente de ação popular.
19. No Art.º 8º é dito de forma clara e sem margem para dúvidas que os consumidores individuais não são obrigados a manifestar a sua vontade de serem representados (…)” e à entidade qualificada (como o agente da ação popular), não é exigido que prove:
20.Dano real sofrido pelos consumidores individuais e afetados pela infração (…)”.
21. O Art.º 18º da referida Diretiva preceitua :” Os Estados – Membros asseguram que, caso a entidade qualificada tenha produzido prova razoavelmente suficiente para sustentar uma ação coletiva e tenha identificado que outros meios de prova adicionais se encontram em posse do demandado ou de um terceiro, o tribunal ou a autoridade qualificada, tenham a possibilidade de ordenar que esses meios de prova sejam apresentados pelo demandado ou terceiro, nos termos do direito processual nacional.
22. Ora foi produzida farta prova documental, com citação de numerosas queixas na internet por parte do A.
23. Se bem que a Diretiva citada seja clara e precisa e confira direitos individuais, e que portanto possa ser invocada nos tribunais nacionais, com efeito desde 1995, com a Lei nº83/95, de 31 de Agosto que já é possível a viabilidade da ação popular (que a Diretiva chama de “Ação Coletiva”, por parte dos consumidores, sem mandato e sem alegação precisa dos consumidores lesados e dos danos concretamente sofridos pelos lesados.
24.Os tribunais ainda mais exercem constitucionalmente a sua soberania em nome do povo, aqui os titulares dos direitos e interesses previstos no Art.º 15ºda lei da ação popular e não ao sabor de um capricho de uma Sra. Juíza de Direito que interpreta a lei a seu bom grado, e não de uma forma vinculada.
25. Como preceitua o Art.º 202º, nº 1 da Constituição: “Os tribunais são os órgãos de soberania com competências para administrar a justiça em nome do povo”.
26. Ação análoga desta contra a VODAFONE está em curso e em fase pós despacho saneador e em fase de prova: proc.º 4350/20.1T8LSB, do Juiz 3 Local Cível do mesmo Tribunal da Comarca de Lisboa.
27. A contra ciclo os lesados desesperados com esta denegação de justiça já fizeram uma Petição à Assembleia da República, mas quem está aqui a fugir às suas responsabilidades são os tribunais que aplicam as leis…promulgadas pela Assembleia da República.
28. E contra a recomendação da ANACOM, AUTORIDADE NACIONAL DAS COMUNICAÇÕES, que já recomendou o fim da burla do WAPBILLING, em 2017, como se transcreve supra.
29. De acordo com a Lei da Ação Popular, Lei nº 83/95, de 31 de Agosto, - Art.º 19º, a lei determina claramente que até os titulares dos interesses difusos ou interesses individuais homogéneos que não tiverem exercido o direito de auto - exclusão depois de publicados os anúncios previstos no Art.º 15º da referida lei ficam inelutavelmente abrangidos pelas disposições da sentença condenatória.
30. Tanto no Direito Europeu, como no nacional: Lei nº24/96, de 31 de Julho, o direito à reparação é injuntivo e não pode ser sonegado ou limitado por lei ou contrato:
31. O tribunal não pode abster-se de julgar invocando dúvida ou obscuridade da lei:
32. O tribunal deve presumir que o legislador soube exprimir as soluções mais acertadas: Art.º 9º do Código Civil
33. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados:
34. Não sendo fonte imediata de direito a jurisprudência cujas divagações inúteis da Sra. Juiz a Quo abrangem várias páginas:
35. Não são fonte de direito as discussões jurisprudenciais, invocadas vastamente pela Sra. Juiz de Direito, facto que violaria o princípio da separação de poderes.
36. É sim fonte de direito imediata todo o normativo em vigor em sede de Lei de Ação Popular e Lei de Defesa do Consumidor: Lei nº83/95, de 31 de Agosto e Lei nº 24/96, de 31 de Julho.
37. Tal interpretação vinculada decorre na norma angular do Art.º 1º, nº 1 do Código Civil: São fontes imediatas do direito as leis e as normas corporativas.
38. A formação da decisão da Sra. Juíza a Quo viola a lei, bem como as disposições do Direito Europeu bem como a Convenção dos Direitos do Homem: Diretiva supra citada e Art.º 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
39. No Art.º 15º, nº 1 a nº 4 da Lei da Ação Popular, lei nº 83/95, de 31 de Agosto diz-se claramente: 1.Recebida petição de ação popular, serão citados os titulares dos interesses em causa na ação de que se trate, e não intervenientes nela, para o efeito de, no prazo fixado pelo juiz, passarem a intervir no processo a título principal, querendo, aceitando-o na fase em que se encontrar, e para declararem nos autos se aceitam ou não ser representados pelo autor ou se, pelo contrário, se excluem dessa representação, nomeadamente para o efeito de lhes não serem aplicáveis as decisões proferidas, sob pena de a sua passividade valer como aceitação, sem prejuízo do disposto no n.º 4.
40. Fato é que ninguém se excluiu, valendo a passividade dos lesados como aceitação em serem representados.
41. Contra isto nada há de “difuso”.
42. Acresce que tem sido entendimento da ANACOM- AUTORIDADE NACIONAL DAS COMUNICAÇÕES, de acordo com recomendação de 2 de Novembro de 2017, que o WAPBILLING viola o direito dos consumidores, que se cita e é pública:
43. E que compete aos tribunais, que aplicam a lei, proibir a mesma, dado
que a Lei já existe e a proíbe: Lei de Defesa do Consumidor.”
A ré e o Ministério Público contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II – QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados nos artigos 635º/4 e 639º/1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso (art.º 608º/2 do Código Processo Civil) e sendo o tribunal livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º/3 do Código Processo Civil), importa, no caso, apreciar e decidir as seguintes questões:
- impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
- apreciar se existe fundamento para revogar a sentença recorrida, aferindo da verificação dos pressupostos da acção popular.
*
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1. FACTOS PROVADOS
O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1.1. A R. é uma empresa que se dedica entre outros a serviços de telecomunicações, internet, serviço móvel, multimédia e de dados.
1.2. A R fornece serviço móvel de telefonia e internet aos utilizadores de smartphones, e possui mais de dois milhões de clientes.
1.3. A R presta serviços de telecomunicações e Internet para milhões de consumidores em Portugal.
1.4. A R. recorreu a um mecanismo designado por WAP BILLING até Janeiro de 2020 que possibilitava a realização de pagamento de conteúdos on-line através de telemóvel.
*
O tribunal de 1ª instância consignou ainda que:
“Tais factos encontram-se assentes por acordo das partes.
Quanto aos demais factos, pese embora os mesmos não possam ser considerados demonstrados pela impugnação da R., a sua demonstração é irrelevante para a decisão a proferir.
Não obstante, discriminam-se adiante os factos alegados pelos AA. a sustentar os pedidos formulados, sendo que a sua demonstração não alteraria o teor da decisão a proferir:
- a R. possui um mecanismo digital, que consiste na celebração não autorizada de um contrato de jurídico, diretamente faturado aos clientes de contratos pós – pagos, e descontado no saldo de clientes pré-pagos;
- o mecanismo de WAP BILLING, consiste em permitir através do toque na superfície do touchscreen de um smartphone, a faturação direta, seja através de uma faturação posterior ou desconto no saldo do consumidor, em sites eróticos ou de conteúdo erótico, de jogo, de astrologia, de conteúdo comercial ou vendas;
- através do mecanismo de WAP BILLING, a R. permite-se celebrar um contrato jurídico com o consumidor, sem que o consumidor dê o seu consentimento expresso ao mesmo, forneça o seu número de contribuinte ou os dados de um cartão bancário, de crédito ou débito ou forneça o seu nome ou dados pessoais;
- por via do WAP BILLING, os consumidores ao navegarem na Internet, e sem a intenção de contratar com quem quer que fosse, vêm-se em risco de celebrar um contrato contra a sua vontade com a R., contratos designados Serviço “Go Porn”, Serviço “Mobibox New Cloub”, Serviço “Erotixxo”, Serviço “MoboboxVip” e outros;
- tal contrato é a maior parte das vezes bastante caro e oneroso, e periódico, tendo um valor unitário médio de €3,99, renovando-se todos os meses e às vezes todas as semanas ou com um intervalo de vários dias, sem que o consumidor tenha de voltar a ativá-lo;
- o mecanismo digital de nome WAP BILLING, pelo qual, qualquer cliente da R.
pode, sem intenção para tal, sem animus de celebrar um negócio, pode ficar vinculado a um pagamento prestado por empresas terceiras, é intermediado e cobrado pela R.;
- os consumidores contratados à força e contra a sua vontade, revoltam-se e têm um profundo desagrado, prejuízo psicológico e moral, falta de confiança no sistema de defesa do consumidor e instituições, em terem de ligar para a linha de apoio do cliente, para pedirem o cancelamento de tais serviços e a anulação das faturas;
- na maior parte das vezes não conseguem anular esses serviços que não contrataram, por via do apoio ao cliente, tendo de suportar os custos dos serviços não contratados – que por vezes ascendem a dezenas de Euros/mês;
- a R claramente, com recurso a meios digitais, não dá ou fornece ao consumidor o preço total dos bens ou serviços, nem fornece ao consumidor o período de vigência do contrato, quanto aos referidos contratos celebrados com recurso ao designado mecanismo digital de WAP BILLING nem as condições de denúncia desse contrato, ou indica se é de renovação automática, quanto ao processo de celebração ou nos preliminares do contrato, nem fornece a R aos consumidores uma forma legítima e válida de contratarem esses contratos, facto que nos leva a concluir a inexistência da celebração de um contrato, entre a R e os seus consumidores, ou um contrato forçado ou celebrado contra a vontade do consumidor, e como tal nulo;
- a forma de contratar entre a R e os seus consumidores quando a estes contratos, não é expressa, ignorando o consumidor se celebrou algum contrato desse tipo;
- a forma de contratação da R consiste numa verdadeira armadilha digital, pois o consumidor, só por navegar, com a pressão dos dedos no touchscreen ou ecrã do telemóvel, acaba por ficar vinculado a um contrato que não quis celebrar.”
III.2. MÉRITO DO RECURSO
III.2.1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Sob a conclusão 2. das alegações de recurso, sustenta o apelante que “os factos dados como assentes na douta sentença são falsos, arguindo-se ainda a suspeição da Srª Juiz de Direito (…).”
Mais alega, na conclusão 3., que “em nenhum ponto do processo ficou assente que o que o WAPBILLING já não é praticado pela Ré, NOS – Comunicações Pessoais, SA, como refere a Sra. Juíza A Quo na página 12 da sentença.” Mais esgrimindo, na conclusão 4., que “Tal afirmação é absolutamente falsa, como se alegou no Art.º 32º da Petição Inicial.”
Antes de mais, importa esclarecer que a dedução da suspeição do juiz da 1ª instância constitui um incidente previsto e regulado nos artigos 120º a 123º do Código Processo Civil (com fundamentos, prazo e tramitação específicos), pelo que não cabe no âmbito do presente recurso apreciar tal questão.
No que concerne à impugnação da decisão de facto, embora não o enuncie expressamente e à revelia da melhor técnica processual, parece ser intenção do recorrente impugnar a decisão sobre o ponto de facto considerado provado sob o nº 1.4.
Nos termos do disposto no art.º 662º/1 do Cód. Proc. Civil, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, estabelece o art.º 640º/1 do Cód. Proc. Civil que:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
Tais ónus são de cumprimento cumulativo, sob pena de imediata rejeição do recurso, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento quanto ao recurso da decisão da matéria de facto (neste sentido, v. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, pág. 199; e os seguintes acórdãos: do STJ de 27/10/2016, Ribeiro Cardoso; de 27/09/2018, Sousa Lameira; de 3/10/2019, Maria Rosa Tching; e de 2/2/2022 - revista n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1-1ª Secção, Fernando Samões; e do TRG de 19/06/2014, Manuel Bargado; de 18/12/2017, Pedro Damião e Cunha; e de 22/10/2020, Maria João Matos – todos acessíveis em www.dgsi.pt.)
Acresce que, a reapreciação do julgamento de facto pela Relação, destina-se primordialmente a corrigir invocados erros de julgamento que, atento o preceituado no citado artigo 662º/1 do CPC, se evidenciem a partir dos factos tidos como assentes, da prova produzida ou de um documento superveniente, impondo decisão diversa. Significa que não basta que a prova produzida nos autos permita decisão diversa, necessário é que a imponha.
Por esta razão, a lei exige ao recorrente que motive as alegações de recurso, dizendo as razões que determinam, em seu entender, diverso juízo probatório, para que a Relação possa aquilatar se os meios de prova por aquele indicados impõem ou não decisão diversa da recorrida quanto aos concretos pontos de facto impugnados.
No que tange à rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 7ª Ed., Almedina, 2022, p. 200-201, elenca as situações em que deve verificar-se tal rejeição:
“a) Falta de conclusão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (art.º 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art.º 640º, nº 1, al. a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.):
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.”
Como sustenta o mesmo autor, estas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, sendo “uma decorrência do princípio de autorresponsabilidade das partes, impedindo que a decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” (ob. cit. pág. 201).
Ora, à luz deste enquadramento, é patente que o ora apelante incumpriu os ónus previstos no art.º 640º do Código de Processo Civil, limitando-se a alegar a falsidade dos factos assentes na decisão posta em crise.
Com efeito, o recorrente além de não indicar qual/quais o/s concreto/s ponto/s de facto da sentença recorrida que pretende ver modificado/s, não indica os concretos meios probatórios que determinam uma decisão diversa, não procedendo à apreciação crítica dos meios de prova, nem sequer especificando o concreto sentido da modificação pretendida.
Pelo exposto, atento o incumprimento dos ónus a que alude o artigo 640º/1 alíneas a), b) e c) do CPC, impõe-se a imediata rejeição do recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto.
*
III.2.2. Apreciação jurídica
Na presente acção popular pretendem os autores que a ré seja:
a) Inibida de cobrar aos consumidores valores que estes não tenham expressamente contratado, no âmbito dos serviços referidos no art.º 11º da PI, ou outros análogos, por via do mecanismo digital designado por wap billing aos quais os consumidores não tenham dado o seu consentimento expresso para contratar;
b) Condenada a devolver aos consumidores os valores que tenha cobrado ilicitamente, ou que tenha feito seus, à revelia de um contrato, no âmbito da alínea anterior.
O interesse difuso cuja protecção reclamam é a “segurança na contratação do consumidor, a par da equidade na contratação das partes e demais direitos dos consumidores contra práticas abusivas, bem como a defesa dos direitos económicos dos consumidores”.
Entendendo não estar em causa situação legitimadora do recurso à acção popular, por inexistir in casu qualquer interesse difuso ou interesse individual homogéneo, o tribunal recorrido julgou a acção improcedente.
Insurge-se o apelante contra esta decisão, sustentando que a mesma constitui uma verdadeira denegação de justiça, não sendo conferido aos consumidores nenhuma forma processual de defesa dos seus direitos lesados pela prática do wap billing.
Invoca, para tanto, quer a legislação nacional relativa ao direito do consumo, quer a Directiva 2020/1828 do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de novembro de 2020, relativa a acções colectivas para protecção dos interesses colectivos dos consumidores.
A ré/apelada e o Ministério Público pronunciaram-se pela improcedência do recurso.
Cumpre apreciar se se mostram preenchidos os requisitos de que depende a tutela requerida.
Os bens jurídicos que os AA. pretendem proteger com a presente ação são os direitos dos consumidores, reconhecidos como direitos fundamentais no capítulo dos direitos e deveres económicos consagrados na Constituição da República Portuguesa (cf. art.ºs 60º da CRP), sendo um dos principais eixos da protecção dos consumidores o da protecção da segurança do consumidor e reparação de danos.
Para o efeito, lançaram mão da acção popular cível, inibitória, para tutela de interesses difusos, ao abrigo do art.º 52º/3 da CRP, art.º 31º do Código Processo Civil, Lei nº 83/95, de 31 de Agosto (Lei da Acção Popular) e Lei nº 24/96, de 31 de Julho (Lei de Defesa do Consumidor, na redacção actual).
O direito de acção popular encontra-se plasmado no art.º 52º/3 da CRP, que prescreve:
“3. É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:
a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural;
b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.”
Tal direito veio a ser regulado na mencionada Lei nº 83/95 (Lei da Acção Popular), cujo art.º 2º/1 estabelece que: “São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de acção popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda.”
Por seu turno, estatui o art.º 10º da Lei 24/96 (Lei de Defesa do Consumidor), na redacção actual, que:
“1 - É assegurado o direito de ação inibitória destinada a prevenir, corrigir ou fazer cessar práticas lesivas dos direitos do consumidor consignados na presente lei, que, nomeadamente:
a) Atentem contra a sua saúde e segurança física;
b) Se traduzam no uso de cláusulas gerais proibidas;
c) Consistam em práticas comerciais expressamente proibidas por lei.
2 - A sentença proferida em ação inibitória pode ser acompanhada de sanção pecuniária compulsória, prevista no artigo 829.º-A do Código Civil, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar.”
E dispõe o art.º 13º do mesmo diploma que:
“Têm legitimidade para intentar as ações previstas nos artigos anteriores:
a) Os consumidores diretamente lesados;
b) Os consumidores e as associações de consumidores ainda que não diretamente lesados, nos termos da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto;
c) O Ministério Público e a Direção-Geral do Consumidor quando estejam em causa interesses individuais homogéneos, coletivos ou difusos.
Em termos processuais, rege o art.º 31º do Código Processo Civil, com a epígrafe “Ações para a tutela de interesses difusos”, nos termos do qual “Têm legitimidade para propor e intervir nas ações e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, bem como à proteção do consumo de bens e serviços, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos termos previstos na lei.
É este o quadro legal que deve servir de base à análise do caso vertente, sendo que a Diretiva (UE) 2020/1828, de 25 de novembro, relativa a acções colectivas para protecção dos interesses colectivos dos consumidores (que revoga a Directiva 2009/22/CE) – invocada pelo apelante – ainda aguarda transposição e, de qualquer modo, a legislação nacional em vigor em nada contraria as normas desta Directiva.
Como ensina Lebre de Freitas (em “Introdução ao processo civil - conceito e princípios gerais à luz do Código Revisto”, Coimbra Editora, 1996, pág. 80/81), o direito de acção popular é conferido no âmbito dos direitos colectivos e difusos, “a qualquer cidadão no gozo dos seus direitos cívicos e políticos, bem como às associações e fundações que tenham como objecto estatutário a defesa dos interesses em causa, nomeadamente para defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural, do domínio público e da qualidade do consumo de bens e serviços”.
Esclarece o mesmo autor que “fala-se de interesses colectivos e difusos para qualificar interesses individuais generalizados, como tais próximos dos interesses públicos, mas de natureza ainda fundamentalmente privatística. Em causa está sempre a fruição de bens de uso pessoal não susceptíveis de apropriação exclusiva. O interesse colectivo reporta-se a uma comunidade genericamente organizada, cujos membros são como tais identificáveis, mas sem que essa organização se processe em termos de pessoa colectiva. O interesse difuso reporta-se a um grupo inorgânico de pessoas, cuja composição é, em cada momento, ocasional e por isso não permite a identificação prévia dos respectivos titulares. Em ambos os casos, a natureza geral do interesse leva a atribuir o direito de acção a pessoas em que pode não radicar (pessoas singulares) ou não radica nunca (associações e fundações) a titularidade individual do interesse em causa.”
Paula Costa e Silva e Nuno Trigo dos Reis in “Private enforcement e tutela colectiva”, Almedina, 2022, pág. 10/11, procedendo à distinção entre acções populares públicas e acções populares que visam a tutela de interesses de outro tipo, afirmam que no caso destas últimas «estão em causa os chamados “interesses difusos de segunda geração”, de que é exemplo paradigmático, justamente, o consumo. A ambivalência é deste segundo conjunto de interesses uma nota característica: eles são, a um tempo, públicos e privados, difusos - de segunda geração – e individuais. Através da tutela conjunta de situações jurídicas pertencentes aos membros do grupo, afirma-se o propósito de defesa de um interesse comum, que transcende a mera agregação de interesses individuais de cada um. O bem comunitário que fundamenta o recurso a um meio de tutela de tipo colectivo, por sua vez, é protegido precisamente através da tutela das situações individuais dos respectivos titulares.
Mais referem os referidos autores, citando Jorge Miranda/Rui Medeiros in Constituição da República Anotada, tomo I, Universidade Católica, 2017, pág. 754, que “a acção popular pode destinar-se a tutelar interesses difusos, interesses colectivos ou interesses individuais homogéneos.”
E acrescentam que “aquilo que justifica o recurso à acção popular não é apenas a estrutura categorial dos interesses em causa, mas também a relevância que esses interesses assumem no sistema axiológico-material da ordem jurídica. A tutela popular é materialmente justificada não pelo facto de os interesses em causa irradiarem sobre a esfera dos membros do grupo sob a forma de interesses individuais, mas, desde logo, porque, tomados como um todo, esses interesses assumem uma importância de ordem pública que excede o plano subjectivo-individual de mera compreensão atomística dos elementos que o compõem.»
Neste conspecto, pode ler-se no acórdão do STJ de 8/9/2016, P. 7617/15.7T8PRT.S1, relator Oliveira Vasconcelos (acessível em www.Direito em Dia), nos pontos III e IV do respectivo sumário que:
“III - A tutela do interesse difuso supõe a abstração de particularidades respeitantes a cada um dos titulares, pois o que sobreleva é a proteção do interesse supra individual e a prossecução da finalidade visada com a sua criação na ordem jurídica, o que prescinde da apreciação de qualquer especificidade; porém, quando por intermédio daquela acção se almeje a tutela de um interesse colectivo, releva a proteção de situações individuais dos respectivos titulares, sendo que tal é admissível apenas até ao limite em que seja aceitável uma apreciação indiferenciada das mesmas, sem que, contudo, se dispense a análise individualizada de cada uma.
IV - Posto que a ação popular não é admissível quando o demandado possa invocar diferentes defesas contra os vários representados, deve-se atentar na posição por este assumida, assumindo-se assim aquela possibilidade como um critério prático para discutir a sua admissibilidade.”
Na mesma linha, afirma-se no acórdão do STJ de 6/7/2023, P. 26412/16.0T8LSB.L2.S, relator Ferreira Lopes (in www.dgsi.pt):
“É pacífico que nas acções para tutela de interesses difusos não existe propriamente um direito subjectivo nem uma relação jurídica de que o autor seja titular. Por isso, o art.º 31º do CPCivil concedeu especialmente legitimidade activa a cidadãos no gozo dos seus direitos civis, a autarquias locais, associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e Ministério Público, nos termos previstos na lei.
Na acção popular, ao contrário dos interesses directos e individuais em que o critério aferidor da legitimidade consta do art.º 30º do CPC, está em causa a tutela de interesse meta-individuais, que não apresentam relação identificável e imediata com o indivíduo, desenquadrado da sua inserção comunitária.”
Volvendo ao caso dos autos e atendendo ao objecto da presente acção, configurado pelo pedido e causa de pedir, não podemos deixar de subscrever o entendimento do tribunal a quo ao afirmar, após correcto enquadramento jurídico da questão, que:
«Revertendo para o caso dos autos, os AA. apontam a “segurança na contratação do consumidor, a par da equidade na contratação das partes e demais direitos dos consumidores contra práticas abusivas, bem como a defesa dos direitos económicos dos consumidores”. Tal seria verdadeiro caso estivesse em causa o pedido de inibição de recurso a determinada prática contratual dirigida à pluralidade de consumidores.
Mas não é esse o caso. No caso, os AA. dirigem a sua actuação a situações já consumadas e em que a R. cobra valores aos clientes ao abrigo de um contrato “firmado” sem consentimento expresso ou, em bom rigor, com falta de consciência da declaração e, por isso, inexistente (nas palavras dos AA., nulo).
A apreciação do pedido não é possível mediante a apreciação genérica do procedimento contratual da R. Impõe, antes, a análise de cada uma das situações individualizadas, designadamente o concreto percurso contratual de cada um dos consumidores alegadamente abrangido por tal situação e a verificação em concreto e em cada caso dos pressupostos para a inexistência/nulidade do contrato. Isto porque é inviável proferir uma decisão, sob pena de ser uma decisão genérica não legalmente consentida, inibindo a A. de cobrar aos consumidores valores que estes não tenham expressamente contratado, no âmbito dos serviços referidos, ou outros análogos, por via do mecanismo digital designado por WAP BILLING aos quais os consumidores não tenham dado o seu consentimento expresso para contratar, sem identificar previamente os consumidores a quem isso tenha sucedido e apreciar individualmente cada “contrato”.
Essa necessidade de identificação aponta já para a circunstância de não estar em causa um interesse difuso, mas sim um interesse individual de cada um dos clientes naquelas circunstâncias.
Também não estamos perante interesses individuais homogéneos, precisamente, pela necessidade de apreciação e aferição do percurso contratual em cada uma das situações.
Ora, dada a configuração da acção pelos AA. e os pedidos formulados, ainda que se demonstrassem todos os factos alegados na petição inicial, esta nunca poderia proceder, por não estar em causa qualquer situação que legitime o recurso à acção popular.
Em face do exposto, é de julgar a presente acção improcedente.»
Com efeito, tal como já foi entendido no acórdão desta Secção proferido em 24/11/2020 no âmbito do apenso da providência cautelar que antecedeu a presente acção (P. nº 7692/20.2T8LSB-A.L1, relator José Capacete) - acórdão que julgou improcedente o recurso da decisão que indeferiu a providência cautelar - a pretensão formulada pelos ora autores/ali requerentes visando a inibição da ora ré/ali requerida de cobrar aos consumidores valores que estes não tenham expressamente contratado, por via do mecanismo wap billing, extravasa o âmbito do direito de acção popular.
Escreveu-se no citado acórdão que:
«(…) No caso, os AA. dirigem a sua actuação a situações já consumadas e em que a R. cobra valores aos clientes ao abrigo de um contrato “firmado” sem consentimento expresso ou, em bom rigor, com falta de consciência da declaração e, por isso, inexistente (nas palavras dos AA., nulo).
A apreciação do pedido não é possível mediante a apreciação genérica do procedimento contratual da R. Impõe, antes, a análise de cada uma das situações individualizadas, designadamente o concreto percurso contratual de cada um dos consumidores alegadamente abrangido por tal situação e a verificação em concreto e em cada caso dos pressupostos para a inexistência/nulidade do contrato. Isto porque é inviável proferir uma decisão, sob pena de ser uma decisão genérica não legalmente consentida, inibindo a A. de cobrar aos consumidores valores que estes não tenham expressamente contratado, no âmbito dos serviços referidos, ou outros análogos, por via do mecanismo digital designado por WAP BILLING aos quais os consumidores não tenham dado o seu consentimento expresso para contratar, sem identificar previamente os consumidores a quem isso tenha sucedido e apreciar individualmente cada “contrato”.
Essa necessidade de identificação aponta já para a circunstância de não estar em causa um interesse difuso, mas sim um interesse individual de cada um dos clientes naquelas circunstâncias.
Também não estamos perante interesses individuais homogéneos, precisamente, pela necessidade de apreciação e aferição do percurso contratual em cada uma das situações.
Ora, dada a configuração da acção pelos AA. e os pedidos formulados, ainda que se demonstrassem todos os factos alegados na petição inicial, esta nunca poderia proceder, por não estar em causa qualquer situação que legitime o recurso à acção popular.
Em face do exposto, é de julgar a presente acção improcedente.»
Pese embora em tal acórdão se tenha procedido a uma análise perfunctória da situação, porque em sede cautelar, os argumentos ali expendidos, que subscrevemos, são válidos na presente acção.
De facto, o que aqui está em causa não são interesses colectivos ou difusos da titularidade de uma comunidade genericamente organizada ou um grupo inorgânico de pessoas, ou seja, não estamos em presença de interesses individuais homogéneos.
O que resulta do alegado na petição inicial é a eventual existência de direitos ou interesses individuais de determinados consumidores a quem a ré NOS, empresa que fornece serviços de telecomunicações, internet, serviço móvel, multimédia e dados, teria cobrado valores não expressamente contratados, através do mecanismo wap billing (que possibilitava a realização de pagamento de conteúdos on line através de telemóvel), embora se desconheça, porque não foram identificados, quais os consumidores aos quais a ré terá cobrado tais valores e quais os consumidores que não deram o seu consentimento expresso para contratar, circunstâncias que, porém, não relevam face ao objecto desta acção.
Não se vislumbra, portanto, que esteja em causa a tutela de interesses difusos, no sentido de interesses cuja titularidade cabe a todos e a cada um dos membros de uma classe ou de um grupo (independentemente da sua vontade) e por referência a bens que podem ser gozados de forma concorrente e não exclusiva.
Flui de todo o exposto que não se verificam in casu os pressupostos que legitimam o recurso à acção popular.
Destarte, não nos merecendo censura a decisão recorrida, concluímos pela improcedência do recurso.
*
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo apelante (art.º 527º/1 e 2 do CPC).
Registe e notifique.
*
Lisboa, 24 de Outubro de 2023
Ana Mónica Mendonça Pavão
Luís Filipe Pires de Sousa
Cristina Silva Maximiano