DESTITUIÇÃO DE GERENTE
NULIDADE DA SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
JUSTA CAUSA
Sumário


I - A nulidade da sentença com fundamento em omissão de pronúncia apenas se verifica quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão, sem que a sua resolução tenha sido prejudicada pela solução, eventualmente, dada a outras.
II - A circunstância de o tribunal recorrido não se ter pronunciado sobre as sugestões feitas pela autora relativas à atuação dos réus como litigantes de má-fé não integra o vício de nulidade de sentença previsto no art. 615º, nº 1, al. d), do CPC, porque, não tendo sido formulado o correspondente pedido, a litigância de má-fé não constituía questão a apreciar.
III - Para que exista justa causa de destituição do gerente não basta que tenha ocorrido uma violação de algum dos seus deveres, sendo necessário que essa violação tenha sido grave e que, à luz dos princípios da confiança e da boa fé, torne inexigível à sociedade a manutenção dessa relação de gerência.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

AA instaurou ação especial de destituição de titular de órgão social contra H... LDA. e BB pedindo que seja decretada a destituição deste último do cargo de gerente da referida sociedade comercial.
Como fundamento do seu pedido, alegou, em síntese, que o requerido BB é o único gerente da sociedade e auferia a remuneração mensal de € 1 500,00, a qual lhe foi fixada por deliberação tomada em assembleia geral da sociedade realizada em outubro de 2017.
A partir de junho de 2019, o requerido BB, na qualidade de gerente, passou a retirar mensalmente da sociedade a quantia de € 2 000,00, 14 vezes por ano, a título de remuneração de gerência e, a partir de janeiro de 2021, passou a retirar mensalmente da sociedade a quantia de € 2 200,00, 14 vezes por ano, a título de remuneração de gerência. Tal ocorreu sem prévia deliberação dos sócios e sem que lhes fosse dado conhecimento da situação.
Ao fixar a si próprio remuneração, o requerido BB usurpou uma competência exclusiva dos sócios, violando um dever de lealdade para com os mesmos, abusando da sua posição de gerente e atuando em conflito de interesses.
O aumento da remuneração da gerência constitui um dano para a sociedade comercial em causa, diretamente ocasionado por facto ilícito e culposo e constitui o gerente em obrigação de indemnizar a sociedade.
A gravidade da conduta do requerido BB é acentuada pela circunstância de este ser acompanhante da sócia CC, estando vinculado a reforçados deveres de lealdade perante esta sócia, com quem é casado, e, designadamente, ao dever de não atuar em conflito de interesses.
O comportamento do requerido lesou intoleravelmente interesses patrimoniais da sociedade e tornou inexigível manter a relação de gerência, constituindo justa causa de destituição.

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Foi registada a pendência da presente ação (certidão de 27.52022, ref. Citius ...64).
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O requerido BB apresentou contestação na qual invocou a existência de litispendência, ou pelo menos de prejudicialidade, entre os presentes autos e o processo de suprimento de consentimento, que corre termos sob o apenso C do processo n.º 62/20.... do Juízo de Competência Genérica ....
Invocou ainda não possuir legitimidade passiva para intervir na presente ação.
Impugnou a factualidade invocada pela requerente, defendendo não estar verificada qualquer atuação culposa, ou não diligente, que justificasse ou fundamentasse a sua destituição do gerente.
Alegou ainda que a presente ação constitui uma situação de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, porquanto as contas da sociedade, nas quais se encontram plasmadas as remunerações do gerente, foram aprovadas, criando assim a confiança de que nenhuma ilegalidade seria suscitada quanto à atuação da gerência, no que respeita à remuneração.
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A requerida H..., Lda. apresentou contestação na qual invocou a existência de litispendência, ou pelo menos de prejudicialidade, em moldes idênticos aos invocados pelo requerido BB.
Impugnou também a factualidade alegada, considerando não existir fundamento para a destituição de gerente e haver atuação em abuso de direito, invocando fundamentos análogos aos invocados pelo requerido BB.
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A requerente pronunciou-se no sentido de improcedência das exceções arguidas.
Referiu ainda que vê “uma clara litigância de má-fé, a censurar de modo adequado por este Tribunal”, que “é impossível contornar a má-fé na posição processual ziguezagueante assumida por ambos os RR” (...) “esperando que o Tribunal aplique sanção adequada à conduta do R” (arts. 16º, 28º e 29º do requerimento de 2.9.2022, ref. Citius ...07).
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Realizou-se a audiência prévia, na qual:

a) foi julgada improcedente a exceção de ilegitimidade passiva do requerido BB;
b) foi julgada improcedente a exceção de litispendência, bem como de eventual prejudicialidade, entre os autos e o processo de suprimento de consentimento, que corre termos sob o apenso C, do proc. n.º 62/20...., do Juízo de Competência Genérica ...;
c) foram considerados verificados os demais pressupostos processuais;
d) foi fixado à causa o valor de € 30 001,00;
e) foi identificado o objeto do processo e foram enunciados os temas de prova;
f) foram advertidas as partes para a possibilidade de serem condenadas como litigantes de má-fé;
e) foram apreciados os requerimentos probatórios;
f) foi designada data para a realização da audiência final.
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No requerimento apresentado em 7.12.2022 (ref. Citius ...25) no qual a autora se pronunciou sobre documentos juntos pela Segurança Social, a mesma refere que os réus ocultaram factos ao tribunal, que, no decurso do processo, foi apresentada uma declaração retificativa de forma sub-reptícia com o intuito de ocultar da autora e do tribunal a irregularidade da sua atuação, tendo os réus atuado concertadamente no processo de forma absolutamente reprovável, alterando a verdade dos factos com relevância para a decisão da causa, “[i]mpondo-se que tal conduta seja sancionada de acordo com o prudente arbítrio do Tribunal, condenando-se os Réus em multa de montante adequado ao cumprimento das necessidades de prevenção geral e especial” (cf. nºs 3, 5, 6, 8 e 9 desse requerimento).
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Realizou-se a audiência final e, posteriormente, foi proferida sentença com o seguinte teor decisório:

Em conformidade com o exposto, julga o Tribunal a presente acção totalmente improcedente, termos em que decide absolver os Réus do pedido formulado.---
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A requerente AA não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1) A sentença do Tribunal a quo deixou de considerar como provados factos de relevância manifesta, que estão integralmente suportados na prova produzida e cuja consideração evidenciaria a justa causa de destituição do R. gerente.
2) Constitui justa causa de destituição de gerente uma atuação que exprima violação grave dos seus deveres de cuidado, de diligência e de lealdade, que impliquem perda irreparável da confiança, por existir conflito de interesses gerador de danos efetivos ou potenciais, o que torna inexigível manutenção daquele vínculo jurídico.
3) No caso em análise, o gerente reconheceu em depoimento de parte que aumentou a sua remuneração por vontade própria, fazendo-o repetidamente e sem precedência de qualquer deliberação tomada em Assembleia Geral, nunca restituindo os montantes recebidos a mais à sociedade, embora tivesse até prometido fazê-lo.
4) Persistiu na intenção de fazer vencer os aumentos, chegando a convocar, em simultâneo com o decurso do processo judicial, assembleias gerais com o intuito de aprovar aumentos retroativos e, ainda, assim, para montante inferior ao realmente auferido.
5) Em tais assembleias, o gerente apareceu a votar, em conflito de interesses com a sociedade por se tratar de assunto que lhe diz respeito, envergando ao mesmo tempo a veste de Acompanhante da sócia maioritária, declarada incapaz com eficácia reportada a 2013.
6) A cada passo, o gerente foi secundado pela R. sociedade que, com a junção das atas de tais assembleias aos autos, persistentemente tentou subtrair o assunto à apreciação do Tribunal.
7) Em conluio manifesto com a Ré sociedade, invocou o gerente R. os mais diversos argumentos para sustentar os aumentos ilícitos enquanto paralelamente tentava mascarar através de declarações apresentadas junto da Segurança, descobertas apenas por força das diligências de prova da Recorrente, a superioridade da remuneração efetivamente recebida.
8) Cumpre ter em conta que consta dos factos não provados a existência de qualquer lapso quanto ao processamento da remuneração do gerente, ainda que este tenha tentado empurrar a responsabilidade para a então contabilista e testemunha DD.
9) No entanto, impunha-se considerar outros factos ilícitos a par da gravidade que a própria defesa do R. gerente, nos termos acima expostos, incrementa à atitude que já lhe era imputada.
10) Toda a argumentação aduzida pelos Réus improcedeu manifestamente, não deixando de se assinalar a estranheza das semelhanças das contestações de ambos, numa clara evidência de que a vontade deste último determina a daquela, em manifesto conflito de interesses.
11) No que diz respeito ao segundo aumento de remuneração que o R. gerente a si próprio atribuiu, misteriosamente nunca os RR. a ele se referiram nas respetivas contestações, vindo posteriormente a detetar-se que, por meios sub-reptícios e durante a pendência do processo, tentaram os RR., por mão do gerente, ocultar do Tribunal a ocorrência de tal segundo aumento.
12) Tal ocultação fez-se mediante declarações retificativas de remunerações apresentadas junto da Segurança Social, na sequência das informações prestadas aos autos, que os RR. Ocultaram para fazer valer a tese de que uma autorização para votar favoravelmente, em assembleia geral, o aumento retroativo da remuneração da gerência para 2.000,00 €, obtida no processo de acompanhamento de maior da sócia maioritária, sanaria a irregularidade cometida.
13) Sucede que os documentos que o Instituto da Segurança Social forneceu revelaram, com especial perversidade, que a Ré sociedade, por mão do Réu gerente, apresentou, já no decurso do presente processo e finda a fase de articulados, declaração retificativa da remuneração da gerência desde início de 2021 até então, subtraindo a quantia de 200,00 € à remuneração base, recategorizando esse montante.
14) Pelo que a prova documental produzida acima referida deveria ter levado a incluir no elenco de factos provados o seguinte com relevo para a decisão da causa:
- A Ré H..., por mão do Réu gerente, apresentou, já no decurso do processo e finda a fase de articulados, a saber em 10 de agosto de 2022, declaração retificativa da remuneração da gerência desde início de 2021 até à data dessa declaração, subtraindo a quantia de 200,00€ à remuneração base mensal da gerência (código de remuneração P), recategorizando esse montante como “prémios, bónus e outras prestações de caráter mensal” (código de remuneração B).
15) Em cumulação (!) com a teoria do lapso, apresentou o gerente R., outros argumentos a favor do aumento, a saber ter o mesmo “acompanhado” os aumentos dos demais funcionários da R.
16) Ora, o Tribunal a quo não teve acesso a material probatório, nem sequer a alegação de factos bastante que permitisse dar como provado o facto elencado sob o n.º 3.13, que aqui expressamente se requer que seja dado como não provado.
17) Em momento algum, foi provado ou sequer alegado (i) o momento temporal concreto dos eventuais aumentos dos demais trabalhadores da sociedade, a terem ocorrido, (ii) o respetivo quantitativo por trabalhador, ou ainda (iii) critério de determinação desse valor.
18) Aliás, como bem resulta do depoimento da testemunha DD, de 00:36:34 a 00:37:17, os aumentos, habitualmente, ocorriam em janeiro de cada ano, sendo que o primeiro aumento que o gerente se atribuiu ocorreu em junho de 2019, o que jamais permitiria dar como provado o facto 3.13. da decisão em crise, pelo que deve o mesmo ser retirado.
19) E de igual modo se diga que não consegue a Recorrente aceitar que o Tribunal a quo tenha considerado como provado o ponto 3.14 pois que não se o gerente R. era perfeitamente conhecedor da pré-existência de uma deliberação da Assembleia Geral dos sócios de 2015 em que expressamente se fixava a sua remuneração, remuneração essa que durante vários anos auferiu sem alteração!
20) Não consegue pois a Recorrente aceitar que qualquer declaração do gerente R. possa fundamentar a convicção de que o gerente desconhecia a necessidade de deliberação dos sócios a fixar a sua remuneração, pois que não só a experiência anterior na sociedade em causa revela o contrário como as regras da experiência comum não permitem ver como provável que um gerente não cuide de tomar conhecimento das deliberações dos sócios em assembleias que são, em regra, por ele gerente convocadas ou que desconheça a origem da sua remuneração, devendo, por isso tal facto ser retirado do elenco de factos provados.
21) O Tribunal a quo deveria ainda ter dado como provado, porque determinantes para a apreciação da censurabilidade imputada ao gerente o aumento para 2.500,00 € em janeiro de 2021, novamente por decisão própria do gerente, valor que no mês seguinte reduz para 2.200,00 €, também por mote próprio, por lhe parecer – a ele gerente – excessivo.
22) Nesse sentido, atente-se no depoimento de parte do R. BB, de 00:11:20 a 00:11:58 e 00:12:50 a 00:13:23.
23) Deverão, pois, ser acrescentados ao elenco de factos provados os seguintes:
- Em janeiro de 2021, o R. gerente aumentou a sua remuneração de 2.000,00€ para 2.500,00€, por sua vontade e sem deliberação prévia dos sócios;
- Em fevereiro de 2021, O R. gerente fixou a sua remuneração em 2.200,00€, por sua vontade e sem deliberação prévia dos sócios, por considerar o montante de 2.500,00€ excessivo;
24) Impunha-se igualmente ao Tribunal a quo balizar a dimensão pecuniária da vantagem ilícita para o gerente e do prejuízo para a sociedade, ainda que a censurabilidade e o prejuízo para a relação da confiança muito ultrapassem o valor pecuniário da perda.
25) Assim, e porque tal resulta expressamente provado dos documentos juntos como Docs. ... a ..., que representam o Anexo A (Quadro de pessoal) dos Relatórios únicos da sociedade R. referentes aos anos de 2019, 2020 e 2021, Docs. ... a ... - informação empresarial simplificada da sociedade R. referente aos anos de 2018 a 2021, e Docs. ... a ...9 – recibos de vencimento, todos juntos com o requerimento apresentado pela sociedade R. a 04/01/2023 com a ref.ª ...21; Docs. ... a ...6 – recibos de vencimento – juntos com o requerimento apresentado pela sociedade R. em 04/01/2023, com a ref.ª ...86; Docs. ... a ... - recibos de vencimento – juntos com o requerimento apresentado pela sociedade R. em 04/01/2023; Ofício do Instituto da Segurança Social I.P. integrado nos autos a 05/12/2022, com a ref.ª ...82, deverá acrescentar-se ao elenco de factos provados os seguintes factos com relevo para a decisão da causa:
- Por força dos aumentos supra referidos, os custos anuais da sociedade com a remuneração de gerência subiram de 21.000,00 € em 2018 para 30.862,68 € em 2019, ascenderam a 29.745,20 € em 2020 e em 2021 não serão inferiores a 37.052,40 €;
- ao custo mensal com a remuneração soma-se o valor da taxa social única devida pela sociedade à Segurança Social, à taxa de 20,3%.
26) Mais um exemplo manifesto desse agravamento e da atitude despudorada do R. gerente, foi a posterior tentativa de convencer o Tribunal de que o critério para a atribuição do aumento era uma suposta isenção de horário de trabalho, critério que só surge quando confrontado com documentos que comprovavam que já procedera à recategorização da sua remuneração junto da Segurança Social já na pendência da ação.
27) Essa foi, na verdade, como se viu, a única forma que o gerente, confrontado com a propositura da ação judicial, e já depois de a contestar, apressadamente encontrou para tentar fazer coincidir o valor da remuneração com o valor intermédio que fez constar das várias convocatórias de assembleia geral, por si elaboradas e assinadas, para fixar a sua remuneração.
28) E mesmo assim, foi incauto ao ponto de ignorar que a retribuição por alegada isenção de horário de trabalho sempre seria efetiva remuneração e não “prémios, bónus e outras prestações de caráter mensal”.
29) Neste ponto, veja-se o depoimento do R. BB, de 00:23:17 a 00:24:15, titubeante e hesitando, trocando até a expressão por “ajudas de custo” - 00:16:38 a 00:17:16 e 00:24:40 a 00:25:58.
30) E isto quando a testemunha DD, que foi contabilista da sociedade R. nos períodos em que os aumentos ocorreram, categoricamente o negou qualquer prática de remuneração por isenção de horário de trabalho - 00:06:30 a 00:07:25 e 00:12:29 a 00:13:35.
31) Como bem se percebeu, já finda a fase dos articulados, atuaram os RR. com o único intuito de ocultar da A. e do Tribunal a irregularidade da atuação, nunca dando voluntariamente a conhecer ao Tribunal a retificação de declarações de remunerações, o que só veio a resultar da consulta dos documentos juntos ao processo pelo Instituto da Segurança Social.
32) Assim, para além de confirmarem a irregularidade da atuação da gerência, conforme a A. na petição inicial, tais factos revelaram, também, que os Réus atuaram concertadamente no presente processo de forma absolutamente reprovável, alterando a verdade dos factos com relevância para a decisão da causa, pelo que se impunha ao Tribunal a quo sancionar tal conduta, o que não fez, nem tão-pouco sobre ela se pronunciou na sua decisão.
33) Aliás, está a Recorrente certa de que a pronunciar-se sobre a atuação processual reprovável dos Réus, dificilmente o Tribunal a quo poderia fazer conviver tal pronúncia com uma decisão de improcedência da ação.
34) Note-se que R. gerente quando confrontado, em sede de julgamento, com a ardilosa retificação de remunerações, não a consegue contextualizar convenientemente - 00:24:40 a 00:25:58 e 00:44:03 a 00:45:20.
35) Acresce ainda o facto de se ter apurado que o gerente Réu tentou convencer a testemunha EE, Revisora Oficial de Contas, de modo a inquinar a apreciação que esta fez sobre a sua atuação, de que iria reverter os aumentos que ilicitamente se atribuiu. Veja-se o depoimento de tal testemunha - 00:05:20 a 00:07:34 e 00:14:32 a 00:15:42.
36) Por último, considerando que o Tribunal a quo deu como provados os pontos 3.15 e 3.16, e ainda que tal convocatória de assembleia sejam insuscetíveis de retirar ao Tribunal o poder de apreciar a ilicitude do comportamento do gerente, cumpre ter em conta que ainda hoje não existe deliberação definitiva que altere a remuneração do gerente.
37) Na verdade, realizada nova assembleia em 20.02.2023, convocada pelo gerente R. para renovar a deliberação inquinada por desrespeito da antecedência mínima da convocatória referida no ponto 3.16, nela foi reprovada a proposta de aumento, o que se encontra hoje em discussão em ação de anulação instaurada pelo próprio gerente R.
38) Considerando que a ata de tal assembleia, realizada por meios telemáticos apenas veio a ser assinada posteriormente ao encerramento da discussão na primeira instância e, mais relevante ainda, foi instaurada a ação de anulação em 21.03.2023, a saber um dia depois de proferida a decisão de que se recorre, é pertinente requerer ao abrigo dos art.ºs 651º n.º 1 e 425º do CPC, a junção aos autos de certidão judicial comprovativa do teor da ação instaurada que atualmente pende no Tribunal a quo sob o n.º 980/23...., por se tratar de documento cuja apresentação só é manifestamente possível após o encerramento da discussão.
39) E da análise de tal documento deverá considerar-se provado o seguinte facto:
3.17. Pende neste Tribunal, sob o n.º 980/23....,ação de anulação proposta em 21.03.2023 pelo gerente R. para anulação da reprovação do aumento da sua remuneração em Assembleia Geral extraordinária convocada para renovar a deliberação inválida ocorrida a 26.01.2023.
40) Por tudo quanto se expôs, a censurabilidade da conduta do gerente não só é reprovável no seio da sociedade e no exercício das funções confiadas, como expõe também, da forma mais eloquente, a censurabilidade apontada, que nem o crivo do processo judicial em curso refreou.
41) Crê, por isso, a Recorrente que, atentos os temas da prova acima transcritos, estamos perante uma circunstância da atuação do gerente agravante da ilicitude inicialmente imputada, que deveria ter sido considerada na apreciação da justa causa de destituição, sobretudo porque a quebra de confiança constitui não só prejuízo efetivo mas também potencial.
42) Foi com manifesta a arrogância com que o gerente R., sempre secundado pela sociedade R., que gere, afronta a competência exclusiva dos sócios de lhe fixar a sua remuneração, persistindo em evidente conflito de interesses, quando, por força do cargo de gerente e do cargo de Acompanhante da sócia maioritária, se lhe impunha conduta bem diferente e mais impoluta.
43) Essa acumulação de funções e da situação de particular sensibilidade que a situação da sócia maioritária incapaz implica, na verdade, um crivo especialmente estreito.
44) O Tribunal a quo considerou mesmo que a atitude do gerente constitui violação manifesta do disposto no art.º 255.º, n.º 1 do CSC e que havendo numa sociedade por quotas um único gerente, constitui violação do dever de se abster de agir em conflito de interesses, como decorrência do dever de lealdade, a conduta do mesmo consubstanciado na atribuição a si próprio de um aumento de remuneração pelo exercício do cargo de gerência mas não chegou a aplicar qualquer sanção pelo comportamento verificado.
45) A competência deliberativa dos sócios é imperativa e, nos termos do artigo 411º c) e 433º do Código das Sociedades, aplicáveis por analogia às deliberações da gerência, é nula a deliberação dos sócios que introduza a possibilidade de a gerência determinar a remuneração dos seus membros, bem como a deliberação da gerência que fixe as respetivas remunerações.
46) Pelo que o Tribunal a quo esteve até perante a verificação de uma clara nulidade por violação de norma imperativa, de conhecimento oficioso e cuja declaração deveria implicar a destruição de todos os efeitos produzidos pela decisão do gerente, a saber a reposição de todos os montantes indevidamente recebidos pela gerente R.
47) Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou as normas constantes dos artigos 255º n.º 1, 257º n.º 6, 259º, 411º n.º1c) e 433º n.º 1(estas duas aplicáveis por analogia), todas do Código das Sociedades Comerciais, cujo respeito determinaria a procedência, incorrendo ainda em omissão de pronúncia quanto ao pedido de condenação em litigância de má-fé dos Réus, assente no artigo 542º n.ºs 1 e 2 b) do Código de Processo Civil, o que implica nulidade da sentença nessa parte, nos termos do artigo 615º n.º 1 d) do mesmo diploma.”

Termina pedindo que a sentença recorrida seja revogada e substituída por decisão que julgue inteiramente procedente a ação.
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A requerida H..., Lda. contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“I. A Recorrente, através do presente recurso, pretende alargar o objeto da causa, não se reduzindo à causa de destituição que fundamentou o pedido deduzido no Tribunal de 1.ª instância, alegando, ex novo, a existência de conflitos de interesses geradores de prejuízos efetivos e potenciais para a Recorrida, bem como alegando a violação de deveres de cuidado e diligência, quando havia restringido a causa de pedir à violação de deveres de lealdade por parte do gerente/Recorrido. O conhecimento de tais factos, nos termos do art.º 608.º, n. 2, do Cód. de Proc. Civil, estava vedado ao conhecimento do Tribunal a quo, e, por força do art.º 636.º, n.º 1, do mesmo Diploma Legal, está vedado ao conhecimento do Tribunal ad quem.
II. A Recorrente imputa à Recorrida a prática de factos graves que não correspondem à verdade, nomeadamente, que a Recorrida tentou ocultar do Tribunal a existência de aumentos de remuneração do gerente, porquanto procedeu a declarações retificativas de remunerações, junto da Segurança Social.
III. Olvida a Recorrente que tais factos são do pleno conhecimento do Tribunal a quo e foram tidos em linha de consideração na decisão proferida, não tendo, contudo, o Tribunal a quo considerado que os mesmos importam justa causa de destituição do gerente, conforme peticionado pela Recorrente.
IV. O que não pode o Tribunal ad quem admitir é que a Recorrente deturpe a verdade dos factos, em sede de Apelação, com o fito único de ver a decisão proferida ser revogada e alcançado o fito da Recorrente que é apenas o de destituir o gerente da Recorrida, sociedade da qual a Recorrente é apenas detentora de 10% de capital social.
V. Não assiste razão à Recorrente relativamente à impugnação da matéria de facto, como Vs. Exas. Senhores Juízes Desembargadores não poderão deixar de notar pela audição dos depoimentos prestados, uma vez que os excertos transcritos pela Recorrente se encontram ardilosamente descontextualizados.
VI. O Tribunal a quo considerou provados a maioria dos factos pela Recorrente, não se percebendo a censura que a referida Recorrente imputa à matéria de facto dada como provada e não provada.
VII. O elenco dos factos provados e não provados deve ser mantido inalterado, só podendo resultar coisa diversa se for dado provimento ao recurso apresentado em separados por os aqui Recorridos e ouvida a contabilista da Recorrida e a sócia (não ouvida nos autos).
VIII. A Recorrente pretende ver provado que pende no Tribunal a quo, sob o n.º 980/23...., ação de anulação proposta em 21.03.2023, pelo gerente R. para anulação da reprovação do aumento da sua remuneração em Assembleia Geral Extraordinária convocada para renovar a deliberação inválida ocorrida a 26.01.2023.
IX. A Recorrida é R. na ação de anulação de deliberações sociais, que corre termos sob o n.º 980/23...., no Juízo de Comércio ..., no qual a sócia CC requer que a Recorrida seja condenada a computar o seu voto e a deliberação seja aprovada.
X. Tal ação não foi proposta pelo Gerente, conforme alega a Recorrente, em qualidade própria como quer fazer crer, mas exercendo o cargo de Acompanhante da sócia CC, e não visa a anulação da reprovação do aumento da sua remuneração, mas sim que o voto da sócia CC, sua Acompanhada, seja computado, como legalmente é exigido.
XI. Não assiste razão à Recorrente nesta matéria, nem a mesma pode ser alegada em sede de Apelação, como supra se deixou dito, na medida em que o Tribunal ad quem não conhece de matéria nova, nos termos do art.º 636.º, do Cód. de Proc. Civil, não podendo a mesmo justificar decisão diversa da que foi proferida pelo Tribunal a quo.
XII. Cumpre ao Tribunal ad quem verificar se a sentença proferida está de acordo com as normas legais em vigor. Aquilo que verdadeiramente está em causa, independentemente do que possa resultar ou não da matéria de facto impugnada, é se o aumento de remuneração por parte do Gerente, sem precedência de deliberação dos sócios, constitui justa causa de destituição.
XIII. Salvo o devido respeito, não existe qualquer fundamento para considerar existir justa causa de destituição do gerente, em virtude das condutas alegadas nos autos, nomeadamente, de aumento da remuneração da gerência sem precedência de deliberação dos sócios.
XIV. Para que se verifique a existência de justa causa do Gerente é necessário que este tenha tido um comportamento culposo que torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação contratual com a aqui Recorrente.
XV. É própria Recorrente que age de modo a demonstrar não estar verificada a justa causa de destituição, porquanto ao não avançar com o pedido de suspensão do gerente, aceita que a relação contratual com a sociedade se mantenha.
XVI. A Recorrente alegou a violação do dever lealdade – ainda que depois tenha tentado alargar o objeto do recurso à violação de outros deveres genéricos – pelo que a culpa, nos termos do art.º 799.º, n.º 1, do Cód. Civil, não se presume a culpa da atuação do Gerente.
XVII. Decorre da matéria de facto provada, que o Gerente não agiu com culpa, desconhecendo, na verdade, a necessidade de deliberação para proceder ao aumento da remuneração da gerência. Mais, assim que tomou conhecimento de tal necessidade encetou diligências no sentido de “legalizar” a sua atuação.
XVIII. Nos presentes autos e como bem entendeu o Tribunal a quo as condutas do gerente não permitem considerar que se torna inexigível à sociedade a manutenção da relação contratual.
XIX. Em questão semelhante, mas com a agravante de atribuição de prémios reiterados à gerência, por mão própria, no âmbito do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 16.07.2009, considerou o douto Tribunal não haver justa causa de destituição da gerência, uma vez que a atuação não era de tal modo grave que tornasse inexigível à sociedade, seguindo os princípios da boa-fé, a manutenção da relação contratual pela manifesta quebra da relação de confiança.
XX. A decisão a quo não viola nenhum preceito legal, devendo Vs. Exas. Senhores Desembargadores mantê-la na íntegra, não considerando verificada a justa causa de destituição da gerência.
XXI. Não existe nulidade da sentença, porquanto o conhecimento do pedido de condenação como litigante de má-fé da Recorrida ficou prejudicado pela decisão e absolvição proferida.
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O requerido FF também contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“a) Resulta suficientemente dos autos que a autora/recorrente peticionou a destituição do gerente pelo aumento de remuneração, sem aprovação pelos sócios em Assembleia.
b) Os Réus impugnaram os factos alegados, defendendo não estar verificada qualquer atuação culposa, ou não diligente, que justifique ou fundamente a destituição do gerente.
c) Sobre a questão decidenda julgou o Tribunal a quo a presente acção totalmente improcedente, decidindo pela absolvição dos Réus no tocante aos pedidos formulados.
d) A Sentença recorrida é irrepreensivel quanto ao julgamento que faz quer em relação aos factos quer no tocante à aplicação do direito.
e) Com relevância para o caso decidendo relevam-se como essenciais os seguintes factos, que foram corretamente dados como provados:
Trata-se de uma sociedade de cariz familiar, exercendo o Réu, pai da Autora, as funções de gerente desde 1990.
O Réu gerente conhece a forma de trabalho da sociedade, os recursos humanos, os meios técnicos, os custos associados a cada obra, etc.
Além das funções de gerente, o Réu exerce funções de apoio em diversas áreas, designadamente orçamentação, visita de obras, oficina, transportes, entre outras.
O Réu é o único gerente da sociedade ré, sendo remunerado por essa função.
O aumento da remuneração do gerente acompanhou os demais aumentos que se efetuaram no quadro de trabalhadores da sociedade.
f) Tal como refere a mui douta sentença recorrida, a apreciação da justa causa de destituição tem que ser apreciada em concreto, atenta toda a realidade envolvente, nomeadamente para efeitos de qualificação objetiva e subjetiva dos comportamentos visados.
g) Acompanhando a argumentação da sentença recorrida não se vislumbram fundamentos que, face aos comportamentos tidos, pudessem tornar inexigivel à sociedade a manutenção da relação organica com o gerente.
h) Reveste essencialidade o facto do réu, para além das funções inerentes à gerencia, exercer também funções de apoio em todas as areas, nomeadamente orçamentação, oficina, transportes, obras, etc
i) Pela prova produzida, resultou claro que o réu BB, para além de gerente é o funcionário da ré H... Lda mais polivalente, desempenhando toda e qualquer função, sem horário de trabalho, em prejuizo do seu bem estar pessoal, conforme depoimentos das testemunhas GG (Ficheiro 20230127115633_1631971_3994076 de minuto 0.00 a minuto 18.31 e HH (Ficheiro 20230127121559_1631971_3994076 minuto 1.22 a minuto 9.56) conforme transcrições que se juntam sob o doc 1 e 2.
j) Para um leigo (gerente), sem dominio das normas legais societárias, em claro amadorismo no tratamento de tais questões , foi reputado como empiricamente razoável e justo o aumento da sua remuneração, por referencia aos aumentos dos demais funcionários (cujas remunerações eram e são mais elevadas).
k) Sendo tais aumentos efetuados de forma transparente e nas circunstancias acima descritas, nunca poderia resultar dos mesmos, qualquer lesão irreparável da confiança que deve existir no gerente ou bem assim qualquer lesão patrimonial da ré H... Lda, antes pelo contrário, não fosse o desempenho do reu gerente, polivalente e sem horário.
l) Por fim, não se verifica qualquer omissão de pronuncia, na medida em que a verificação e condenação por litigância de má-fé não consta dos temas de prova, os quais não foram alvo de reclamação tempestiva.
m) A litigância de má-fé nunca podia constar dos temas de prova na medida em que os comportamentos do reu, ora recorrido, já faziam parte do objeto processual/causa de pedir, sendo inadmissivel um duplo julgamento/qualificação da mesma fatualidade.
n) Devendo em consequencia ser confirmada a douta sentença do tribunal a quo, irrepreensível quer no tocante ao julgamento dos factos quer na aplicação do direito, com a consequente absolvição dos reus/recorridos, inexistindo qualquer fundamento válido para a sua alteração.”
*
O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo, sem ter sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação, e foi proferido despacho que, de forma genérica e tabelar, considerou que a decisão recorrida não padece de nulidade.
*
Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:

I - saber se a sentença padece de nulidade, por omissão de pronúncia sobre a existência de litigância de má-fé;
II - saber se a matéria de facto deve ser alterada;
III - saber se existe fundamento para destituir o gerente com justa causa.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos:

3.1. A Ré é uma sociedade comercial por quotas, com sede no Lugar ..., ... ... e ..., união de freguesias ... e ..., concelho ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial ... sob o N...21 e com o capital social de 199.519,17€.---
3.2. O capital social corresponde à soma de quatro quotas, sendo duas tituladas em nome da mãe da Autora, CC, uma do valor nominal de 119.711,50 € e outra de 39,903,83 €, e duas outras quotas do valor nominal de 19.951,92 €, cada uma, pertencentes, respetivamente, à Autora e a sua irmã II.---
3.3. Trata-se de uma sociedade de cariz familiar, exercendo o Réu, pai da Autora, as funções de gerente desde 1990.---
3.4. O Réu gerente conhece a forma de trabalho da sociedade, os recursos humanos, os meios técnicos, os custos associados a cada obra, etc..---
3.5. Além das funções de gerente, o Réu exerce funções de apoio em diversas áreas, designadamente orçamentação, visita de obras, oficina, transportes, entre outras.-
3.6. Por sentença datada de 07.12.2020 e devidamente transitada em julgado, proferida no processo n.º 62/20...., que corre termos no Juízo de Competência Genérica ..., foi decidido o acompanhamento da sócia CC pelo marido e aqui Réu, BB.---
3.7. O Réu é o único gerente da sociedade ré, sendo remunerado por essa função.-
3.8. Por deliberação tomada em assembleia geral da sociedade, realizada em 12.10.2017, a remuneração do gerente foi fixada em 1.500,00 € mensais.---
3.9. A partir de Junho de 2019, o Réu passou a retirar mensalmente da sociedade a quantia de 2.000,00 € por mês, a título de remuneração de gerência, catorze meses por ano, isto é, incluindo subsídios de férias e de Natal.---
3.10. Posteriormente, a partir de Janeiro de 2021, o Réu passou a retirar mensalmente da sociedade a quantia de 2.200,00 € por mês, a título de remuneração de gerência, catorze meses por ano, incluindo subsídios de férias e de Natal.---
3.11. Os referidos aumentos de remuneração foram efectuados por exclusiva vontade e iniciativa do Réu, sem qualquer deliberação dos sócios que o autorizasse.---
3.12. A Autora só tomou conhecimento dos referidos aumentos remuneratórios pelo teor do relatório elaborado pela Revisora Oficial de Contas, EE, em apenso de nomeação de curador especial do supra id. processo de maior acompanhado.---
3.13. O aumento da remuneração do gerente acompanhou os demais aumentos que se efetuaram no quadro de trabalhadores da sociedade.---
3.14. O Réu tomou consciência de que o aumento da sua remuneração na qualidade de gerente da sociedade Ré carecia de ser precedido de deliberação dos sócios, na sequência da auditoria realizada no processo de suprimento do consentimento n.º 62/20.... do Juízo de Competência Genérica ...---
3.15. Por deliberação da Assembleia Geral Extraordinária da Ré, datada de 26.01.2023, foi aprovado o aumento do valor da retribuição da gerência para o valor de 2.000,00€, com eficácia retroativa reportada ao mês de Junho de 2019.---
3.16. A sócia ora Autora não compareceu à Assembleia supra referida, tendo dirigido à sociedade uma carta na qual invoca a falta de antecedência mínima da convocatória e o direto a impugnar qualquer deliberação que ali viesse a ser tomada.---
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Na 1ª instância foram considerados não provados os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos:

a) A Ré sociedade incorreu em lapso quanto ao processamento da remuneração do gerente, através da contabilidade, quer em janeiro de 2021, quer nos meses subsequentes, lapso que detectou apenas na pendência dos presentes autos.---
b) O Réu gerente aufere a quantia mensal de 2.000,00€, a título de vencimento, e 200,00€ a título de “prémios, bónus e outras prestações de caráter mensal”.---
c) O comportamento do Réu gerente importou uma lesão substancial dos interesses patrimoniais da sociedade, tornando inexigível manter a relação de gerência.--
d) A Autora age, em relação à Ré sociedade, no prosseguimento dos seus objetivos pessoais, ainda que os mesmos sejam contrários aos da sociedade da qual é sócia e perante a qual assumiu diversos deveres de conduta.---

FUNDAMENTOS DE DIREITO

I – Nulidade da sentença por omissão de pronúncia sobre a existência de litigância de má-fé


Dispõe o art. 615º, nº 1, do CPC, que é nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

As nulidades da decisão são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal supra citado.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da decisão.
As nulidades da decisão, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cf. Acórdão desta Relação de 4.10.2018, Relatora Eugénia Cunha, in www.dgsi.pt).

O vício da decisão decorrente da omissão de pronúncia relaciona-se com o dispositivo do art. 608º, do CPC, designadamente, com o seu nº 2, que estabelece as questões que devem ser conhecidas na sentença, havendo, assim, de por ele ser integrado.
Desta conjugação de normativos resulta que a nulidade da decisão com fundamento na omissão de pronúncia apenas se verifica quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão, sem que a sua resolução tenha sido prejudicada pela solução, eventualmente, dada a outras.
Importa, porém, não confundir questões com factos, argumentos ou considerações. A questão a decidir está intimamente ligada ao pedido da providência e à respetiva causa de pedir. Relevam, de um modo geral, as pretensões deduzidas e os elementos integradores do pedido e da causa de pedir.
Neste sentido, veja-se o Acórdão do STJ, de 9.2.2012, segundo o qual “a nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (...), sendo certo que não se tem por verificada quando o tribunal deixa de apreciar algum ou alguns dos argumentos invocados pela parte tendo em vista a decisão da questão ou questões que a mesma submete ao seu conhecimento, só ocorrendo quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre a própria questão ou questões que lhe são colocadas ou que tem o dever de oficiosamente apreciar, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte na defesa da sua pretensão.

O conceito (questões) terá ser considerado num sentido amplo, ou seja, englobando tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir e às controvérsias que sobre elas as partes hajam suscitado” (Acórdão da Relação de Guimarães, de 5.4.2018, Relator Jorge Teixeira, in www.dgsi.pt).
*
A recorrente considera que a sentença é nula, por omissão de pronúncia, porquanto não apreciou o pedido de condenação dos réus como litigantes de má-fé.

Dispõe o art. 542º, nº 1, do CPC, que, tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
A litigância de má-fé é de conhecimento oficioso, mas também pode ser invocada pela parte, tendo necessariamente de o ser nos casos em que esta pretende o pagamento de uma indemnização.
Se a parte deduziu de forma formal e expressa pedido de condenação da contraparte como litigante de má-fé o tribunal tem sempre que o apreciar, julgando-o procedente ou improcedente.
Mas se a parte se limitou a fazer alegações de que a contraparte litigou de má-fé, sem ter formulado tal pedido em concreto, o tribunal não está obrigado a apreciar essa matéria, a qual não constitui “questão” a resolver.
O que implica que, nessa hipótese, se o tribunal recorrido entende que não deve oficiosamente condenar os réus a esse título, pode limitar-se a não proferir tal condenação, não se lhe impondo que aprecie as meras sugestões feitas pela parte sobre essa matéria e não constituindo a falta de pronúncia uma nulidade para efeitos do disposto no art. 615º, nº 1, al. d), do CPC.

Consideramos que, na situação em apreço, a autora não deduziu pedido de condenação dos réus como litigantes de má-fé que impusesse ao tribunal a quo a prolação de uma decisão.
Com efeito, como referimos no relatório supra, a requerente limita-se a fazer alusões à existência de má-fé por parte dos réus. Fá-las nos arts. 16º, 28º e 29º do requerimento de 2.9.2022, ref. Citius ...07, dizendo que vê “uma clara litigância de má-fé, a censurar de modo adequado por este Tribunal”, que “é impossível contornar a má-fé na posição processual ziguezagueante assumida por ambos os RR” (...) “esperando que o Tribunal aplique sanção adequada à conduta do R” , e também no requerimento de 7.12.2022, ref. Citius ...25, designadamente nos nºs 3, 5, 6, 8 e 9, referindo que os réus ocultaram factos ao tribunal, que no decurso do processo foi apresentada uma declaração retificativa de forma sub-reptícia com o intuito de ocultar da autora e do tribunal a irregularidade da sua atuação, tendo os réus atuado concertadamente no processo de forma absolutamente reprovável, alterando a verdade dos factos com relevância para a decisão da causa, “[i]mpondo-se que tal conduta seja sancionada de acordo com o prudente arbítrio do Tribunal, condenando-se os Réus em multa de montante adequado ao cumprimento das necessidades de prevenção geral e especial”.

Porém, não formula de modo formal e expresso o concreto e adequado pedido de condenação dos réus como litigantes de má-fé.
De salientar que o que atrás escrevemos é uma síntese aglutinada, da nossa autoria, do que está vertido nesses requerimentos sobre a conduta processual dos réus.
Ou seja, extraiu-se desses requerimentos o que de útil consta sobre a matéria atinente à conduta processual dos réus. Todavia, lendo na íntegra os requerimentos é fácil de concluir que as alusões são feitas de forma dispersa, a propósito de outras questões e como comentários e considerações sobre a atuação dos réus, e que não há formulação de pedido de condenação de litigância de má-fé no sentido técnico jurídico.

Significa isto que as referidas alusões sobre a conduta processual dos réus feitas pela autora /recorrente têm que ser entendidas como meras sugestões feitas ao tribunal no sentido de este oficiosamente sancionar a conduta dos réus, e não como dedução de um incidente de litigância de má-fé dos réus que, de forma necessária e obrigatória, impusesse pronúncia do tribunal sobre a matéria.
E é neste sentido, pensamos nós, que na audiência prévia foi proferido despacho advertindo as partes, e não apenas os réus, para a possibilidade de serem condenadas como litigantes de má-fé.
Se verdadeiramente tivesse sido deduzido incidente de litigância de má-fé ele teria necessariamente que ser apreciado e decidido no sentido da sua procedência ou improcedência, o que tornaria desnecessária ou supérflua qualquer advertência às partes sobre a possibilidade de condenação a esse título a qual, em nosso entender, só se compreende no contexto de litigância de má-fé despoletada oficiosamente pelo tribunal.

Por assim ser, a circunstância de o tribunal recorrido não se ter pronunciado sobre as sugestões feitas pela autora relativas à atuação dos réus como litigantes de má-fé não integra o vício de nulidade de sentença previsto no art. 615º, nº 1, al. d), do CPC, porque, não tendo sido formulado o correspondente pedido em sentido técnico-jurídico, a litigância de má-fé não constituía questão a apreciar.
Improcede assim este fundamento de recurso.
*
II – Alteração da matéria de facto

A – Eliminação oficiosa de factos

Dispunha o artigo 646º, nº 4, do anterior CPC, que se têm por não escritas as respostas do tribunal sobre questões de direito.
Pese embora esta norma não tenha transitado expressamente para o atual Código de Processo Civil, o comando ínsito na mesma mantém-se incólume e em plena vigência face à correta interpretação das regras processuais vigentes.
Com efeito, nos termos do art. 607º, nº 4, do CPC vigente, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados.
De tal norma decorre naturalmente que da sentença, na parte relativa ao acervo factual, só podem constar factos, e não juízos conclusivos, conceitos normativos e matéria de direito. Como referido no Acórdão da Relação de Évora, de 28.6.2018 (in www.dgsi.pt), na seleção dos factos em sede decisão da matéria de facto deve atender-se à distinção entre factos, direito e conclusão, acolher apenas o facto simples e afastar de tal decisão os conceitos de direito e as conclusões que mais não são que a lógica ilação de premissas, atendendo a todos os factos relevantes, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito
Por isso, se a matéria factual selecionada na sentença não respeitar estes limites tem de ser expurgada de todos os elementos que integrem matéria de direito, juízos de valor ou conclusivos e afirmações que se insiram na análise das questões jurídicas que definem o objeto da ação e suscetíveis de conduzir, só por si, ao desfecho da ação.
Neste mesmo sentido, veja-se o Acórdão do STJ, de 28.9.2017, (in www.dgsi.pt) segundo o qual “muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos.

Ora, no caso em apreço, a autora formulou um pedido de destituição do gerente com invocação de justa causa e os réus invocaram que a autora age em abuso de direito.
Por conseguinte, não podem constar da matéria de facto juízos valorativos que só por si determinem o desfecho da ação, nem juízos de direito ou conclusivos sobre a matéria do abuso de direito.

Os factos não provados c) e d) têm a seguinte redação:

c) O comportamento do Réu gerente importou uma lesão substancial dos interesses patrimoniais da sociedade, tornando inexigível manter a relação de gerência.--
d) A Autora age, em relação à Ré sociedade, no prosseguimento dos seus objetivos pessoais, ainda que os mesmos sejam contrários aos da sociedade da qual é sócia e perante a qual assumiu diversos deveres de conduta.---

Face ao que acima se expôs, e tendo em conta o pedido formulado na ação pela autora e a invocação de abuso de direito da autora por parte dos réus, os factos c) e d) contêm matéria de direito e conclusiva, pelo que se determina a sua eliminação do acervo factual.
*
B- Aditamento oficioso de factos

Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 607º, nº 4 e 663º, nº 2, do CPC, adita-se à factualidade provada o seguinte facto, o qual resulta da Alteração ao Pacto da Sociedade, datada de 7 de maio de 2013, e que foi junto como documento nº ... com a petição inicial:
3.2.A - De acordo com o ponto quarto da Alteração ao Pacto da Sociedade, datada de 7 de maio de 2013, a gerência social, remunerada ou não conforme for deliberado em Assembleia Geral, pertence a um gerente, sendo exercida por BB.

C – Impugnação quanto à matéria de facto

Dispõe o artigo 662º, n.º 1, do C.P.C. que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A norma em questão alude a meios de prova que imponham decisão diversa da impugnada e não a meios de prova que permitam, admitam ou apenas consintam decisão diversa da impugnada.
Por seu turno, o art.º 640.º do C.P.C. que tem como epígrafe o “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, dispõe que:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

Como se escreveu no Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 19.6.2019, Relatora Vera Sottomayor, (in www.dgsi.pt):
Importa referir que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade do julgador ou da prova livre, consagrado no n.º 5 do artigo 607º do CPC (…), segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que tenha formado acerca de cada um dos factos controvertidos, salvo se a lei exigir para a prova de determinado facto formalidade especial, ou aqueles só possam ser provados por documento, ou estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes.
Sobre a reapreciação da prova impõe-se assim toda a cautela para não desvirtuar, designadamente o princípio referente à liberdade do julgador na apreciação da prova, bem como o princípio de imediação que não podem ser esquecidos no convencimento da veracidade ou probabilidade dos factos. Não está em causa proceder-se a novo julgamento, mas apenas examinar a decisão da primeira instância e respetivos fundamentos, analisar as provas gravadas, se for o caso, e procedendo ao confronto do resultado desta análise com aquela decisão e fundamentos, a fim de averiguar se o veredicto alcançado pelo tribunal recorrido quanto aos concretos pontos impugnados assentou num erro de apreciação.
Em suma, a alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação tem de ser realizada ponderadamente, em casos excecionais, pontuais e só deverá ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente. Tal sucede quando a convicção do tribunal de 1.ª instância assentou em erro tão flagrante que o mero exame das provas gravadas revela que a decisão não pode subsistir.

No mesmo sentido, considerou o Acórdão desta Relação de Guimarães, de 2.11.2017, Relatora Eugénia Cunha (in www.dgsi.pt), em termos com os quais concordamos integralmente, que “o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição, que é, está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas ficando aquém quanto a fatores de imediação e de oralidade. Na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deitar por terra a livre apreciação da prova, feita pelo julgador em 1ª Instância, construída dialeticamente e na importante base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º, nº 5 do CPC) que está atribuído ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também, elementos que escapam à gravação vídeo ou áudio e, em grande medida, na valoração de um depoimento pesam elementos que só a imediação e a oralidade trazem. (...)
O princípio da livre apreciação de provas situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.
E na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal de segunda instância procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção - desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. (...).
Ao Tribunal da Relação competirá apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados.
Porém, norteando-se pelos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e regendo-se o julgamento humano por padrões de probabilidade, nunca de certeza absoluta, o uso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto, proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, pelo Tribunal da Relação deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados, devendo ser usado, apenas, quando seja possível, com a necessária certeza e segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, só deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam para direção diversa e impõem uma outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância.”

Tendo por base estes critérios, analisemos então se a matéria de facto deve ser alterada nos termos pretendidos pela recorrente.

Em primeiro lugar importa salientar que, tal como deve suceder na decisão proferida na 1ª instância, também na reapreciação da prova que é feita em sede de recurso é formulado um juízo global que abarca todos os elementos em presença, sendo a prova produzida analisada, de forma direta e indireta, no seu conjunto.
Como tal, não é suficiente para efeitos de prova de um facto a mera invocação e transcrição de segmentos de um depoimento feita de forma descontextualizada. Também o próprio depoimento não pode ser valorado de per se, devendo sempre ser articulado e concatenado com o conjunto da prova produzida.
Por conseguinte, para efeitos de apreciação da impugnação da matéria de facto, a par da consulta dos elementos documentais juntos ao processo, procedeu-se à audição integral de todos os depoimentos prestados na audiência final.
*
A recorrente pretende que se adite à factualidade provada o seguinte facto:

- A Ré H..., por mão do Réu gerente, apresentou, já no decurso do processo e finda a fase de articulados, a saber em 10 de agosto de 2022, declaração retificativa da remuneração da gerência desde início de 2021 até à data dessa declaração, subtraindo a quantia de 200,00€ à remuneração base mensal da gerência (código de remuneração P), recategorizando esse montante como “prémios, bónus e outras prestações de caráter mensal” (código de remuneração B).

Invoca para sustentar esta sua pretensão os documentos que foram juntos pela Segurança Social no ofício de 5.12.2022, ref. Citius ...82.

Das págs. nºs 149 e 150 desse ofício (o qual, de acordo com a numeração constante do sistema informático é constituído por 162 páginas, não sendo possível fazer outra referência visto que as folhas do processo físico não se encontram numeradas) consta que, em 10.8.2022, foi recebida na Segurança Social uma declaração de remunerações referente a BB, relativa ao período de fevereiro de 2021 a julho de 2022, na qual consta a quantia de 200,00 com o código B e a quantia de - 200,00 com o código ... quanto ao período de 2021/02 a 2022/07; a quantia de 25,83 com o código R quanto a 2022/07 e a quantia de 2.000,00 com o código P quanto a 2022/07.

Esta matéria factual, porque sustentada pelo documento em questão, deve ser aditada à matéria provada. O mais que a recorrente pretende aditar não tem suporte direto no teor do documento, pois do mesmo não consta que se trata de uma declaração retificativa apresentada pelo próprio gerente nem a que se referem os códigos B e 6, sendo certo que nenhuma outra prova foi produzida com vista a esclarecer o conteúdo e significado do documento.

Assim sendo, adita-se à factualidade provada o facto 3.17 com a seguinte redação:

3.17 Em 10.8.2022 foi recebida na Segurança Social uma declaração de remunerações referente a BB, relativa ao período de fevereiro de 2021 a julho de 2022, na qual consta a quantia de 200,00 com o código B e a quantia de – 200,00 com o código ... quanto ao período de 2021/02 a 2022/07, a quantia de 25,83 com o código R quanto a 2022/07 e a quantia de 2.000,00 com o código P quanto a 2022/07, nos termos melhor descritos nas págs. nºs 149 e 150 do ofício da Segurança Social de 5.12.2022, ref. Citius ...82, cujo teor, no mais, se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
*

A recorrente pretende que o facto provado 3.13 seja dado como não provado.
Alega que não existe prova acerca da sua veracidade.

Tal facto tem a seguinte redação:

3.13. O aumento da remuneração do gerente acompanhou os demais aumentos que se efetuaram no quadro de trabalhadores da sociedade.

Da audição integral da prova produzida discorda-se da posição da recorrente.

Por um lado, o réu BB referiu no seu depoimento que o aumento da sua retribuição foi feito em termos análogos ao dos demais trabalhadores da sociedade.
Naturalmente que, dado o seu interesse direto e pessoal no desfecho do processo, estas declarações têm que ser valoradas com cautela.

Porém, as suas declarações foram secundadas pelo depoimento da testemunha DD, que exerceu as funções de contabilista na H... até julho de 2021 e que confirmou que havia atualizações salariais dos trabalhadores no início de cada civil.
Foram também corroboradas pelo depoimento de testemunha GG, engenheiro civil que trabalha na H... há cerca de 14 anos, o qual confirmou que as revisões salariais ocorrem no início de cada ano e que quer a sua remuneração quer a dos demais trabalhadores foi aumentada.
E foram sobretudo confirmadas pelo depoimento de JJ, que efetuou a auditoria à H..., no âmbito do processo de acompanhamento de maior (Proc. nº 62/20....), e que, para o efeito, teve acesso à documentação da empresa.
A mesma declarou que se o vencimento do gerente não tivesse sido aumentado, o mesmo ficaria a receber menos do que muitos trabalhadores da empresa. Explicou ainda que, dadas as concretas funções que o gerente exercia, as quais iam além das inerentes à gerência, não considerou o aumento da retribuição prejudicial para a sociedade. O único problema que encontrou foi a irregularidade decorrente da inexistência de deliberação dos sócios a aprovar o aumento, mas o aumento em si, considerou-o adequado quer às concretas funções que o gerente desempenhava, quer no confronto com o vencimento dos demais trabalhadores.

Isso mesmo tinha já referido no relatório pericial que elaborou em 11.9.2021 e que foi junto pela ora recorrente como doc. nº ... da p.i., onde consta, na pág. 10, que “ainda que os aumentos de remuneração do gerente acompanhassem as atualizações salariais de outros funcionários, estes não foram objeto de aprovação em sede de Assembleia Geral, que apenas aprovou o valor de 1.500 euros mensais” (o sublinhado é nosso).

Esta testemunha tem uma posição equidistante relativamente a todas as partes envolvidas, tendo prestado um depoimento que nos apareceu absolutamente isento, imparcial e objetivo e alicerçado em sólido conhecimento da situação da H..., face à documentação a que teve acesso no âmbito da auditoria que efetuou.

Assim, os elementos probatórios referidos sustentam a veracidade do facto 3.13 o qual se tem de considerar provado.
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A recorrente pretende que o facto provado 3.14 seja dado como não provado.

Tal facto tem a seguinte redação:

3.14. O Réu tomou consciência de que o aumento da sua remuneração na qualidade de gerente da sociedade Ré carecia de ser precedido de deliberação dos sócios, na sequência da auditoria realizada no processo de suprimento do consentimento n.º 62/20.... do Juízo de Competência Genérica ....


A recorrente considera que este facto não pode ser dado como provado apenas com base nas declarações prestadas pelo réu BB. De onde, se bem percebemos, infere que não existe outra prova dessa factualidade além de tais declarações.


Sucede que para além das declarações prestadas pelo réu existem outros meios probatórios nos autos que sustentam a veracidade do facto em questão e justificam que ele seja dado como provado.

Desde logo, importa fazer o enquadramento do tipo de sociedade que é a H... e como era o seu funcionamento para perceber e contextualizar a situação.
A H... é uma sociedade familiar detida por três sócias: CC, detentora de 80% do capital social, e as suas filhas AA (aqui autora e recorrente) e KK, detentoras cada uma delas de 10% do capital social.
O réu BB é marido da sócia CC e pai das sócias AA e KK.
Dada o muito próximo grau de parentesco existente entre as sócias e o gerente muitos assuntos inerentes à vida da sociedade eram resolvidos de modo informal.
Assim o réu BB referiu que não havia nem convocatórias nem assembleias. Tratavam do que houvesse a tratar, o contabilista fazia a ata, a mulher assinava e traziam o livro para casa para as filhas assinarem quando chegassem.
Mesmo quanto à deliberação de 2017 que aprovou a sua remuneração também não houve nem convocatória, nem assembleia, apenas se elaborou a ata.
Declarou que estava convencido que não era preciso deliberação porque como era ele que decidia os aumentos a dar aos trabalhadores da sociedade e ele próprio também desempenhava funções idênticas às dos trabalhadores, achava que também podia decidir o aumento da sua própria remuneração.
A testemunha DD, que trabalhava como contabilista na H..., referiu que não sabe se eram expedidas convocatórias para assembleias gerais nem se estas se realizavam formalmente, mas declarou que nunca esteve presente em nenhuma assembleia e que posteriormente elaborava a ata aí fazendo constar aquilo que lhe transmitiam.
A própria testemunha, embora fosse contabilista, declarou que desconhecia que era necessária a existência de uma deliberação dos sócios formalizada em ata para aumentar a remuneração do gerente. Daí que tenha procedido ao aumento da remuneração do gerente BB quando ele lhe disse para o fazer e para o valor que lhe foi comunicado pelo mesmo.

A testemunha JJ, que efetuou a auditoria à H... e que já referimos, declarou expressamente que o réu BB não tinha noção de que era necessária uma ata onde constasse a deliberação dos sócios para aumentar a sua retribuição e que a contabilista da empresa também não tinha essa noção porque o gerente podia decidir o vencimento dos restantes trabalhadores.
Referiu que quem se apercebeu da situação da falta da ata foi ela própria e que quando falou quer com o gerente quer com a contabilista ficou convencida que ambos não sabiam da necessidade de existência dessa deliberação.

Numa análise puramente objetiva pode parecer incompreensível, à luz das regras da experiência comum, que um gerente não soubesse que era necessária uma deliberação dos sócios para efeitos de aumentar a sua retribuição. Porém, no concreto caso e no contexto e com o enquadramento que acabámos de enunciar, já se afigura plausível essa falta de consciência por parte do gerente, que até era partilhada pela contabilista DD.
Assim, da conjugação dos elementos probatórios ora referidos, analisados de forma crítica, conclui-se que os mesmos sustentam a veracidade do facto 3.14 o qual se deve manter como provado.
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A recorrente pretende que se aditem à factualidade provada os seguintes factos:

- Em janeiro de 2021, o R. gerente aumentou a sua remuneração de 2.000,00€ para 2.500,00€, por sua vontade e sem deliberação prévia dos sócios;
- Em fevereiro de 2021, o R. gerente fixou a sua remuneração em 2.200,00€, por sua vontade e sem deliberação prévia dos sócios, por considerar o montante de 2.500,00€ excessivo;

Baseia esta sua pretensão nas declarações do réu BB.
Efetivamente, no seu depoimento o réu declarou que, com referência ao mês de janeiro de 2021, aumentou a sua remuneração para € 2 500 mas que, logo no mês seguinte, a reduziu para € 2 200, por ter considerado o valor que recebeu excessivo.
Explicou que tal sucedeu porque o valor a que dá relevância é o que efetivamente recebe, ou seja, o líquido, e não o ilíquido, pelo que nesse mês de janeiro, após os descontos, considerou que o valor que tinha a receber era excessivo o que o levou a reduzir a remuneração logo no mês seguinte.
Assim, e compatibilizando esta factualidade com os demais factos que foram dados como provados, entende-se que a mesma deve ser integrada no facto 3.10 cuja redação passará a ser a seguinte:

3.10 - Em janeiro de 2021, o réu retirou da sociedade a quantia de 2.500,00 €, a título de remuneração de gerência, a qual, face ao valor líquido recebido, acabou por considerar excessiva, pelo que, posteriormente, a partir de fevereiro de 2021, passou a retirar mensalmente da sociedade a quantia de 2.200,00 € por mês, a título de remuneração de gerência, catorze meses por ano, incluindo subsídios de férias e de Natal.---

O aumento ter sido feito por vontade do réu e sem deliberação prévia dos sócios consta já do facto 3.11 o qual se refere quer ao facto 3.9 quer ao 3.10, este último com a redação ora alterada.
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A recorrente pretende que se aditem à factualidade provada os seguintes factos:

- Por força dos aumentos supra referidos, os custos anuais da sociedade com a remuneração de gerência subiram de 21.000,00 € em 2018 para 30.862,68 € em 2019, ascenderam a 29.745,20 € em 2020 e em 2021 não serão inferiores a 37.052,40 €;
- ao custo mensal com a remuneração soma-se o valor da taxa social única devida pela sociedade à Segurança Social, à taxa de 20,3%.

Não se afigura relevante o aditamento desta matéria porquanto a mesma configura conclusões que se podem e devem extrair a nível de subsunção jurídica dos factos já provados pois os custos da remuneração de gerência aumentaram na exata medida em que ocorreram os aumentos de renumeração já dados como provados em 3.9. e 3.10, sendo sempre acrescidos da taxa social única que é devida à Segurança Social.

Assim, improcede o pedido de aditamento desta factualidade.
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A recorrente pretende que se adite à factualidade provada o seguinte facto:

3.17. Pende neste Tribunal, sob o n.º 980/23...., ação de anulação proposta em 21.03.2023 pelo gerente R. para anulação da reprovação do aumento da sua remuneração em Assembleia Geral extraordinária convocada para renovar a deliberação inválida ocorrida a 26.01.2023.

Para o efeito juntou certidão dessa ação nas suas alegações de recurso.

Dessa certidão resulta que em 21.3.2023, BB instaurou ação de anulação de deliberações sociais contra H..., Lda., a qual corre termos no Juízo do Comércio ... com o nº 980/23...., na qual formulou os seguintes pedidos:
“...deve ser concedido provimento à presente ação e, em consequência, declarar-se:
Anulada a não aprovação da deliberação de renovar, nos termos do art. 62º, nº 2, do Cod. das Soc. Comerciais, a deliberação tomada na Assembleia Geral Extraordinária, realizada no dia 26.1.2023, pelas 18h00, de aumentar o valor da retribuição da gerência para o valor de 2.000,00 € (dois mil euros), com eficácia retroativa reportada ao mês de junho de 2019; e
Declarar-se judicialmente a deliberação positiva, declarando-se aprovada a deliberação de Renovar, nos termos do art. 62º, nº 2, do Cod. das Soc. Comerciais, a deliberação tomada na Assembleia Geral Extraordinária, realizada no dia 26.1.2023, pelas 18h00, de aumentar o valor da retribuição da gerência para o valor de 2.000,00 € (dois mil euros), com eficácia retroativa reportada ao mês de junho de 2019, computando-se o voto da sócia CC.”
Nessa ação, BB pretende que seja computado o voto da sócia CC na deliberação tomada na Assembleia Geral Extraordinária da H... que se realizou no dia 20.2.2023, a qual tinha como ponto único renovar, nos termos do art. 62º, nº 2, do Cod. das Soc. Comerciais, a deliberação tomada na Assembleia Geral Extraordinária, realizada no dia 26.1.2023, pelas 18h00, de aumentar o valor da retribuição da gerência para o valor de 2.000,00 € (dois mil euros), com eficácia retroativa reportada ao mês de junho de 2019, assembleia essa na  qual a Presidente da Mesa decidiu que “o voto exprimido pelo gerente em representação da sócia CC será desconsiderado, contabilizando-se apenas os demais votos pelo que a proposta, registando igual número de votos a favor e contra, não é aprovada” (ata nº ...8).

É esta a factualidade que resulta dessa certidão, a qual vai além do que a recorrente pretende aditar.

Pese embora não se considere que esta matéria se revele de essencialidade direta para a decisão a proferir, porque a mesma resulta de certidão judicial e permite também uma melhor compreensão do facto 3.15, considera-se que a mesma deve ser aditada à factualidade provada.

Assim, adita-se à matéria de facto provada o facto nº 3.18, com a seguinte redação:

3.18 - Em 21.3.2023, BB instaurou ação de anulação de deliberações sociais contra H..., Lda., a qual corre termos no Juízo do Comércio ... com o nº 980/23...., na qual formulou os seguintes pedidos:
“...deve ser concedido provimento à presente ação e, em consequência, declarar-se:
Anulada a não aprovação da deliberação de renovar, nos termos do art. 62º, nº 2, do Cod. das Soc. Comerciais, a deliberação tomada na Assembleia Geral Extraordinária, realizada no dia 26.1.2023, pelas 18h00, de aumentar o valor da retribuição da gerência para o valor de 2.000,00 € (dois mil euros), com eficácia retroativa reportada ao mês de junho de 2019; e
Declarar-se judicialmente a deliberação positiva, declarando-se aprovada a deliberação de Renovar, nos termos do art. 62º, nº 2, do Cod. das Soc. Comerciais, a deliberação tomada na Assembleia Geral Extraordinária, realizada no dia 26.1.2023, pelas 18h00, de aumentar o valor da retribuição da gerência para o valor de 2.000,00 € (dois mil euros), com eficácia retroativa reportada ao mês de junho de 2019, computando-se o voto da sócia CC.”
Nessa ação, BB pretende que seja computado o voto da sócia CC na deliberação tomada na Assembleia Geral Extraordinária da H... que se realizou no dia 20.2.2023, a qual tinha como ponto único renovar, nos termos do art. 62º, nº 2, do Cod. das Soc. Comerciais, a deliberação tomada na Assembleia Geral Extraordinária, realizada no dia 26.1.2023, pelas 18h00, de aumentar o valor da retribuição da gerência para o valor de 2.000,00 € (dois mil euros), com eficácia retroativa reportada ao mês de junho de 2019, assembleia essa na qual a Presidente da Mesa decidiu que “o voto exprimido pelo gerente em representação da sócia CC será desconsiderado, contabilizando-se apenas os demais votos pelo que a proposta, registando igual número de votos a favor e contra, não é aprovada” (ata nº ...8).
*
Acresce ainda que posteriormente veio a ser proferida sentença nessa ação, tendo sido junta aos autos a respetiva certidão.
Tal matéria deve também constar da factualidade provada, como complemento do facto anterior, pelo que se adita o facto 3.19, com a seguinte redação:

3.19 - Na ação nº 980/23.... foi proferida sentença, em 18.9.2023, a qual aguarda o decurso do prazo de interposição de recurso, que julgou a ação totalmente procedente e decidiu:

i. Declarar anulada a não aprovação da deliberação de renovar, nos termos do art. 62º, nº 2 do CSC, a deliberação tomada na Assembleia Geral Extraordinária, realizada no dia 26.1.2023, de aumentar o valor da retribuição da gerência para o valor de 2.000,00 €, com eficácia retroativa reportada ao mês de junho do ano de 2019;---
ii. – Declarar-se judicialmente aprovada a deliberação de renovar, nos termos do art. 62º, nº 2 do CSC, a deliberação tomada na Assembleia Geral Extraordinária, realizada no dia 26.1.2023, de aumentar o valor da retribuição da gerência para o valor de 2.000,00 €, com eficácia retroativa reportada ao mês de junho do ano de 2019, computando-se o voto da sócia CC. ---
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Assim, a matéria de facto provada consolidada a ter em consideração na decisão a proferir é a seguinte, constando a negrito as partes alteradas ou aditadas:

3.1. A Ré é uma sociedade comercial por quotas, com sede no Lugar ..., ... ... e ..., união de freguesias ... e ..., concelho ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial ... sob o N...21 e com o capital social de 199.519,17€.---
3.2. O capital social corresponde à soma de quatro quotas, sendo duas tituladas em nome da mãe da Autora, CC, uma do valor nominal de 119.711,50 € e outra de 39,903,83 €, e duas outras quotas do valor nominal de 19.951,92 €, cada uma, pertencentes, respetivamente, à Autora e a sua irmã II.---

3.2.A - De acordo com o ponto quarto da Alteração ao Pacto da Sociedade, datada de 7 de maio de 2013, a gerência social, remunerada ou não conforme for deliberado em Assembleia Geral, pertence a um gerente, sendo exercida por BB.

3.3. Trata-se de uma sociedade de cariz familiar, exercendo o Réu, pai da Autora, as funções de gerente desde 1990.---
3.4. O Réu gerente conhece a forma de trabalho da sociedade, os recursos humanos, os meios técnicos, os custos associados a cada obra, etc..---
3.5. Além das funções de gerente, o Réu exerce funções de apoio em diversas áreas, designadamente orçamentação, visita de obras, oficina, transportes, entre outras.-
3.6. Por sentença datada de 07.12.2020 e devidamente transitada em julgado, proferida no processo n.º 62/20...., que corre termos no Juízo de Competência Genérica ..., foi decidido o acompanhamento da sócia CC pelo marido e aqui Réu, BB.---
3.7. O Réu é o único gerente da sociedade ré, sendo remunerado por essa função.-
3.8. Por deliberação tomada em assembleia geral da sociedade, realizada em 12.10.2017, a remuneração do gerente foi fixada em 1.500,00 € mensais.---
3.9. A partir de Junho de 2019, o Réu passou a retirar mensalmente da sociedade a quantia de 2.000,00 € por mês, a título de remuneração de gerência, catorze meses por ano, isto é, incluindo subsídios de férias e de Natal.---

3.10 - Em janeiro de 2021, o réu retirou da sociedade a quantia de 2.500,00 €, a título de remuneração de gerência, a qual, face ao valor líquido recebido, acabou por considerar excessiva, pelo que, posteriormente, a partir de fevereiro de 2021, passou a retirar mensalmente da sociedade a quantia de 2.200,00 € por mês, a título de remuneração de gerência, catorze meses por ano, incluindo subsídios de férias e de Natal.---
3.11. Os referidos aumentos de remuneração foram efectuados por exclusiva vontade e iniciativa do Réu, sem qualquer deliberação dos sócios que o autorizasse.---
3.12. A Autora só tomou conhecimento dos referidos aumentos remuneratórios pelo teor do relatório elaborado pela Revisora Oficial de Contas, EE, em apenso de nomeação de curador especial do supra id. processo de maior acompanhado.---
3.13. O aumento da remuneração do gerente acompanhou os demais aumentos que se efetuaram no quadro de trabalhadores da sociedade.---
3.14. O Réu tomou consciência de que o aumento da sua remuneração na qualidade de gerente da sociedade Ré carecia de ser precedido de deliberação dos sócios, na sequência da auditoria realizada no processo de suprimento do consentimento n.º 62/20.... do Juízo de Competência Genérica ...---
3.15. Por deliberação da Assembleia Geral Extraordinária da Ré, datada de 26.01.2023, foi aprovado o aumento do valor da retribuição da gerência para o valor de 2.000,00€, com eficácia retroativa reportada ao mês de Junho de 2019.---
3.16. A sócia ora Autora não compareceu à Assembleia supra referida, tendo dirigido à sociedade uma carta na qual invoca a falta de antecedência mínima da convocatória e o direto a impugnar qualquer deliberação que ali viesse a ser tomada.---

3.17 Em 10.8.2022 foi recebida na Segurança Social uma declaração de remunerações referente a BB, relativa ao período de fevereiro de 2021 a julho de 2022, na qual consta a quantia de 200,00 com o código B e a quantia de – 200,00 com o código ... quanto ao período de 2021/02 a 2022/07, a quantia de 25,83 com o código R quanto a 2022/07 e a quantia de 2.000,00 com o código P quanto a 2022/07, nos termos melhor descritos nas págs. nºs 149 e 150 do ofício da Segurança Social de 5.12.2022, ref. Citius ...82, cujo teor, no mais, se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
3.18 - Em 21.3.2023, BB instaurou ação de anulação de deliberações sociais contra H..., Lda., a qual corre termos no Juízo do Comércio ... com o nº 980/23...., na qual formulou os seguintes pedidos:
“...deve ser concedido provimento à presente ação e, em consequência, declarar-se:
Anulada a não aprovação da deliberação de renovar, nos termos do art. 62º, nº 2, do Cod. das Soc. Comerciais, a deliberação tomada na Assembleia Geral Extraordinária, realizada no dia 26.1.2023, pelas 18h00, de aumentar o valor da retribuição da gerência para o valor de 2.000,00 € (dois mil euros), com eficácia retroativa reportada ao mês de junho de 2019; e
Declarar-se judicialmente a deliberação positiva, declarando-se aprovada a deliberação de Renovar, nos termos do art. 62º, nº 2, do Cod. das Soc. Comerciais, a deliberação tomada na Assembleia Geral Extraordinária, realizada no dia 26.1.2023, pelas 18h00, de aumentar o valor da retribuição da gerência para o valor de 2.000,00 € (dois mil euros), com eficácia retroativa reportada ao mês de junho de 2019, computando-se o voto da sócia CC.”
Nessa ação, BB pretende que seja computado o voto da sócia CC na deliberação tomada na Assembleia Geral Extraordinária da H... que se realizou no dia 20.2.2023, a qual tinha como ponto único renovar, nos termos do art. 62º, nº 2, do Cod. das Soc. Comerciais, a deliberação tomada na Assembleia Geral Extraordinária, realizada no dia 26.1.2023, pelas 18h00, de aumentar o valor da retribuição da gerência para o valor de 2.000,00 € (dois mil euros), com eficácia retroativa reportada ao mês de junho de 2019, assembleia essa na qual a Presidente da Mesa decidiu que “o voto exprimido pelo gerente em representação da sócia CC será desconsiderado, contabilizando-se apenas os demais votos pelo que a proposta, registando igual número de votos a favor e contra, não é aprovada” (ata nº ...8).
3.19 - Na ação nº 980/23.... foi proferida sentença, em 18.9.2023, a qual aguarda o decurso do prazo de interposição de recurso, que julgou a ação totalmente procedente e decidiu:

i. Declarar anulada a não aprovação da deliberação de renovar, nos termos do art. 62º, nº 2 do CSC, a deliberação tomada na Assembleia Geral Extraordinária, realizada no dia 26.1.2023, de aumentar o valor da retribuição da gerência para o valor de 2.000,00 €, com eficácia retroativa reportada ao mês de junho do ano de 2019;---
ii. – Declarar-se judicialmente aprovada a deliberação de renovar, nos termos do art. 62º, nº 2 do CSC, a deliberação tomada na Assembleia Geral Extraordinária, realizada no dia 26.1.2023, de aumentar o valor da retribuição da gerência para o valor de 2.000,00 €, com eficácia retroativa reportada ao mês de junho do ano de 2019, computando-se o voto da sócia CC. ---

III – Destituição do gerente com justa causa.

Defende a recorrente que, à luz da factualidade provada, se verificam os pressupostos legais relativos à destituição do gerente com justa causa.

Analisemos a questão.

De acordo com o art. 257º, nºs 4 e 6 do CSC, existindo justa causa, pode qualquer sócio requerer a suspensão e a destituição do gerente, em ação intentada contra a sociedade, constituindo justa causa de destituição, designadamente, a violação grave dos deveres do gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respetivas funções.

A justa causa de destituição é um conceito indeterminado, dotado de plasticidade, adaptável casuisticamente, para aferir se, uma certa atuação se compagina com os direitos e deveres do gerente destituendo (cf. Acórdão do STJ, de 26.2.2019, Relator Fonseca Ramos in www.dgsi.pt).

Embora não defina o conceito de justa causa, a lei elenca como exemplos de justa causa de destituição do gerente o exercício, por conta própria ou alheia, de uma atividade concorrente com a da sociedade, sem consentimento dos sócios (art. 254º, nºs 1 e 5, do CSC), a violação grave dos deveres do gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respetivas funções (art. 257º, nº 6, do CSC).

No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30.9.2014, Relator Fonseca Ramos in www.dgsi.pt) afirma-se que “[c]onstitui justa causa de destituição de gerente, actuação sua que exprima violação grave dos deveres de gerente, mormente, dos deveres de cuidado, de diligência e de lealdade, que impliquem perda irreparável da confiança dos afectados por essa actuação, seja no contexto interno da sociedade, seja na sua relação com terceiros a justificar a impossibilidade da manutenção do vínculo que o une ao ente societário, por existir conflito de interesses gerador de danos efectivos ou potenciais, que devam ser consideradas razão inequívoca da inexigibilidade da manutenção daquele vínculo jurídico. A lei alemã alude a “grosseira violação dos deveres, incapacidade de condução regular dos negócios ou privação da confiança…”, ou seja, quando “a confiança por manifestos e improcedentes fundamentos foi destruída […]”.

Jorge Coutinho de Abreu (in Código das Sociedades Comerciais em Comentário Vol. IV, 2ª edição, págs. 128 e 129) afirma que “[e]m tese geral, diremos que é justa causa a situação que, atendendo aos interesses da sociedade e do gerente, torna inexigível àquela manter a relação orgânica com este, designadamente porque o gerente violou gravemente os seus deveres, ou revelou incapacidade ou ficou incapacitado para o exercício normal das suas funções.
Os deveres, cuja violação grave (com dolo ou negligência forte) constitui justa causa de destituição, podem ser legais específicos (resultam imediata e especificadamente da lei), legais gerais (deveres de cuidado e deveres de lealdade; art.º 64º, 1), ou estatutários. (...)
Relativamente aos deveres (legais gerais), são destituíveis por justa causa os gerentes que violem gravemente o dever de controlo ou vigilância organizativo-funcional, ou o dever de atuação procedimentalmente correta (para a tomada de decisões), ou o dever de tomar decisões (substancialmente razoáveis).
Por sua vez, entre os deveres de lealdade dos gerentes cuja violação constitui justa causa de destituição destacamos (....) o dever de não abusarem do seu estatuto ou posição de gerentes”.

Menezes Cordeiro (in Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2009, pág. 675) quanto ao conceito de justa causa de destituição do gerente refere que “[s]egundo o legislador, serão (a) a violação grave dos deveres do gerente (b) e a incapacidade para o exercício normal das funções. São noções orientadoras e meramente exemplificativas. Percebe-se, no entanto, que a justa causa tanto possa ser subjectiva como objectiva. Será justa causa subjectiva a que resulte da violação culposa dos deveres que, da lei ou do contrato de administração, decorrem para o gerente, em termos muito próximos da feição laboral em que se exige justa causa para o despedimento de trabalhadores”.

Dos exemplos legalmente fornecidos e das definições doutrinais apresentadas decorre que a justa causa de destituição pode ser subjetiva ou objetiva: verifica-se a primeira quando ocorra violação culposa dos deveres que da lei ou do contrato de administração decorrem para o gerente e verifica-se a segunda quando ocorra incapacidade para o exercício do cargo, sem qualquer culpa do gerente, como, por exemplo, numa situação de doença.
Abordaremos apenas a justa causa subjetiva pois só sobre esta versa o caso em análise.

Recorrendo ao expendido no acórdão desta Relação de Guimarães, de 8.10.2020, Relator José Alberto Moreira Dias (in www.dgsi.pt)a existência de justa causa subjetiva exige que ocorra uma violação grave do gerente das suas obrigações de administrador, que pela sua natureza ou reiteração torne inexigível, em termos objetivos e subjetivos, à sociedade a continuação da relação contratual com o seu gerente, tornando insuportável ou inexigível para a parte não inadimplente a manutenção dessa relação.
Dito por outras palavras, “haverá justa causa para efeitos de destituição de gerente quando dos factos provados se retire a prática por este de atos que impossibilitam a manutenção da relação contratual de gerência, por quebrarem gravemente a relação de confiança que o exercício do cargo supõe, ou que, segundo a boa fé, torne inexigível à sociedade o prosseguimento do seu exercício. Existe justa causa para a destituição se não for justo exigir que a sociedade mantenha o contrato vinculante. A justa causa preconizada no n.º 6 do art. 257º do CSC pode definir-se como toda a ação praticada pelo gerente que merece a abominação generalizada dos demais associados e que, devido à reprobabilidade individual daquela sua conduta, faz desaparecer a habitual segurança e boa fé que antes e até aí existia, deste modo tornando impraticável a prossecução desta habitual ligação funcional e, inexoravelmente, reclamada para uma fortalecida administração da sociedade”.
E, nesta linha de pensamento, refere o Acórdão do STJ, de 26 de fevereiro 2019, Relator Fonseca Ramos (in www.dgsi.pt) que “a justa causa destitutiva do gerente da sociedade, relaciona-se com os princípios da confiança e a boa fé que devem ser observados por quem detém tal função na sociedade, princípios relevantes nas relações com os credores sociais, sócios e terceiros, de modo a que a transparência dos comportamentos e o rigor ético das condutas, possam ser valorados objectivamente e subjectivamente. A justa causa é uma sanção excludente do “infractor”, que visa defender a sociedade, na sua inserção na vida comercial”.

O conteúdo das funções da gerência consta genericamente do art. 259º do CSC, onde se lê que os gerentes devem praticar os atos que forem necessários ou convenientes para a realização do objeto social, com respeito pelas deliberações dos sócios.

De forma mais concretizada, consta do art. 64º do CSC, o elenco dos deveres fundamentais dos gerentes e administradores das sociedades comerciais, onde se determina que:

1 - Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar:
a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da atividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e
b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores.

Assentes nestas premissas e aplicando-as ao concreto caso em apreço vejamos se, perante os factos provados, se pode considerar que o gerente praticou uma violação grave dos seus deveres que, à luz dos princípios da confiança e da boa fé, torne inexigível à sociedade a manutenção dessa relação de gerência.

Está provado que a gerência é remunerada ou não conforme for deliberado em assembleia geral (facto 3.2.A) e que a remuneração do gerente foi fixada em € 1 500 por deliberação dos sócios de 12.10.2017 (facto 3.8).
Está também provado que o gerente alterou essa remuneração para € 2 000 em junho de 2019 (facto 3.9), em janeiro de 2021 alterou-a para € 2 500 e a partir de fevereiro alterou-a para € 2 200, por ter considerado excessiva a remuneração recebida em janeiro de 2021 (facto 3.10).
Está igualmente provado que todas as referidas alterações de remuneração foram efetuadas por exclusiva vontade e iniciativa do réu, sem qualquer deliberação dos sócios que as autorizasse (facto 3.11).

De acordo com o disposto no art. 255º, nº 1, do CSC, salvo disposição do contrato de sociedade em contrário, o gerente tem direito a uma remuneração, a fixar pelos sócios.
No caso, não havendo disposição contrária do contrato de sociedade, e decorrendo do ponto quarto que é da competência da assembleia geral deliberar se a gerência é ou não remunerada, resulta evidente que ao alterar a sua remuneração para os valores anteriormente referidos o gerente incorreu em violação do aludido normativo visto que era aos sócios que competia a fixação da sua remuneração, não o podendo fazer ele próprio de forma unilateral.
Mas, como explanámos, não basta que ocorra a violação de um dever por parte do gerente para que tal constitua justa causa de destituição do cargo pois torna-se necessário que essa violação seja grave, o que convoca a necessidade de se tratar de uma violação dolosa ou gravemente negligente.
No caso estão excluídas as atuações a este título porquanto se provou que o réu apenas tomou consciência de que o aumento da sua remuneração na qualidade de gerente da sociedade ré carecia de ser precedido de deliberação dos sócios, na sequência da auditoria realizada no processo de suprimento do consentimento n.º 62/20.... do Juízo de Competência Genérica ... (facto 3.14).
Tal afasta quer uma atuação dolosa quer uma atuação com grave negligência sendo certo que já supra referimos que, no caso concreto, se trata de uma sociedade de cariz familiar em que as sócias são a mãe e duas filhas sendo o gerente marido de uma sócia e pai das restantes, o que implica que muitos assuntos da vida da sociedade eram tratados de forma informal, sendo ainda de relembrar que o gerente, para além destas funções, exercia funções de apoio em diversas áreas, designadamente orçamentação, visita de obras, oficina, transportes, entre outras (facto 3.5), ou seja, acabava por exercer funções análogas às de outros trabalhadores, o que explica o seu convencimento, ainda que erróneo, de que se podia aumentar a remuneração de todos os trabalhadores também podia aumentar a sua. Não obstante este convencimento não ser legalmente correto, porquanto a remuneração do gerente carecia efetivamente de deliberação dos sócios como já explicámos, tal circunstância afasta a existência de dolo ou negligência grave.
Para além disso, essas mesmas circunstâncias também afastam, no caso concreto, que se possa considerar inexigível a manutenção da relação de gerência, o que constitui pressuposto necessário para que ocorra fundamento para a destituição do gerente.
E igualmente afasta essa inexigibilidade a circunstância de o gerente exercer outras funções para além das de gerente e de o aumento da sua remuneração ter acompanhado os demais aumentos que se efetuaram no quadro de trabalhadores da sociedade (facto 3.13).
O gerente, com o seu comportamento, incorreu efetivamente num vício procedimental pois aumentou a sua remuneração sem que tenha obtido a necessária e prévia deliberação dos sócios. Porém, para além das funções de gerência, desempenhava também funções idênticas às de outros trabalhadores e o seu aumento de remuneração acompanhou os aumentos dos demais trabalhadores, o que significa que do ponto de vista material o aumento justificava-se tanto mais que a remuneração tinha sido fixada em 2017, não tendo sido alterada desde então. E o gerente, verificando até que procedeu a um aumento excessivo da remuneração em janeiro de 2021, face ao valor líquido recebido, logo no mês seguinte reduziu a remuneração para um valor inferior.
É evidente que os custos suportados pela sociedade com a gerência aumentaram em estrita correspondência com os aumentos de remuneração que ocorreram, aos quais acresce o valor da taxa social única.
Mas, em nosso entender, o gerente não quis causar qualquer prejuízo à sociedade com a alteração da sua retribuição, a qual acompanhou os aumentos dos restantes trabalhadores, e apenas atuou nos moldes descritos porquanto não tinha noção de que era necessária a prévia deliberação dos sócios para o efeito, o que se considera compreensível no caso concreto dadas as muito próximas relações de parentesco existentes entre o gerente e as sócias sendo marido de uma sócia e pai das outras duas sócias.

Não se pretende com estas afirmações desculpabilizar a atuação do gerente ou incentivar comportamentos idênticos, mas tão só justificar que a atuação do gerente, dadas as especificidades e contornos deste caso concreto, não viola os princípios da confiança e da boa fé de molde a tornar inexigível a manutenção da relação existente.

Por conseguinte, concluímos que, pese embora o gerente tenha violado o disposto no art. 255º, nº 1, do CSC, a sua atuação não constitui justa causa de destituição por não ter atuado de forma dolosa ou com grave negligência e, à luz dos princípios da confiança e da boa fé, não ser inexigível à sociedade a manutenção da relação de gerência.

Consequentemente, improcede o recurso.
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado improcedente quanto à decisão final de mérito e não sendo relevante de forma autónoma a procedência meramente parcial da impugnação da matéria de facto que foi deduzida, considera-se que a recorrente tem que ser considerada parte vencida, sendo responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a disposição legal citada.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente.
Custas da apelação pela recorrente.
Notifique.
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Sumário (da responsabilidade da relatora, conforme art. 663º, nº 7, do CPC):

I - A nulidade da sentença com fundamento em omissão de pronúncia apenas se verifica quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão, sem que a sua resolução tenha sido prejudicada pela solução, eventualmente, dada a outras.
II - A circunstância de o tribunal recorrido não se ter pronunciado sobre as sugestões feitas pela autora relativas à atuação dos réus como litigantes de má-fé não integra o vício de nulidade de sentença previsto no art. 615º, nº 1, al. d), do CPC, porque, não tendo sido formulado o correspondente pedido, a litigância de má-fé não constituía questão a apreciar.
III - Para que exista justa causa de destituição do gerente não basta que tenha ocorrido uma violação de algum dos seus deveres, sendo necessário que essa violação tenha sido grave e que, à luz dos princípios da confiança e da boa fé, torne inexigível à sociedade a manutenção dessa relação de gerência.
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Guimarães, 12 de outubro de 2023

(Relatora) Rosália Cunha
(1º/ª Adjunto/a) Alexandra Maria Viana Parente Lopes
(2º/ª Adjunto/a) Maria Gorete Morais