NULIDADE DA FALTA DE CITAÇÃO
SANAÇÃO DA NULIDADE
Sumário

I – A impugnação do despacho que indefere a nulidade da citação tem lugar no âmbito do recurso que venha a ser interposto da decisão final e pode constituir o exclusivo fundamente deste.
II – A nulidade da falta de citação fica sanada se o réu ou o MP intervier no processo e não arguir logo essa falta; o mero conhecimento da existência do processo, v.g. por via da notificação de atos nele praticados não caracteriza uma intervenção no processo normativamente relevante para efeitos de convalidação da nulidade da falta de citação.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Proc. n.º 769/22.1T8LAG.E1


Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório
1. Na ação especial de acompanhamento de maiores instaurado por AA, solteiro maior, residente no Largo ..., ..., em ... e BB, casada, residente na Calle ..., ..., ..., em benefício de sua mãe, CC, viúva, com domicílio na Santa Casa da Misericórdia ..., o Ministério Público veio arguir a nulidade da sua falta de citação.
2. Ouvidos os requerentes, foi proferido despacho a indeferir a nulidade.
Considerou-se, designadamente: “(…) é mister concluir que a Digna Magistrada do Ministério Público não chegou a ser citada, mormente, por facto que não lhe é imputável. Não podendo operar, in casu, sem mais, a presunção a que alude o artigo 21.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ao abrigo do qual foi determinada a citação do Ministério Público.
Com efeito, a citação é o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu (in casu, representado pelo Ministério Público) de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender (cfr. artigo 219.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
O artigo 188.º do Código de Processo Civil contempla os casos em que se verifica uma situação de falta de citação.
Por seu turno, o artigo 189.º do Código de Processo Civil dispõe que “Se o réu ou o Ministério Público intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação, considera-se sanada a nulidade.”
Acerca do que se deva entender por “intervir” (de forma relevante) no processo, cumpre trazer à colação o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão (de 24.11.2020, proc. n.º 2087/17.8T8OAZ-A.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt) cuja ratio cremos ser aplicável, mutatis mutandis, no caso concreto, e no qual se decidiu que “…a intervenção do réu no processo, relevante para os fins do artigo 189.º do Código de Processo Civil, pressupõe o conhecimento, ou a possibilidade de conhecimento, da pendência do processo…”.
Donde, “Se, apesar de ocorrerem circunstâncias passíveis de configurar nulidade por falta de citação, o réu ou o Ministério Público (quando intervenha como parte principal – artigo 187.º, alínea b)) tiver intervenção no processo sem invocar imediatamente o vício, a nulidade considera-se suprida. A solução aqui consagrada radica no seguinte entendimento: se, não obstante o vício, quem deveria ter citado está no processo, o intuito típico da citação está, afinal, assegurado” – cfr. António Santos Abrantes Geraldes et. al. in “Código de Processo Civil Anotado. Vol. I”, Coimbra: Almedina, 2018, pág. 228.
Ora, quer em 04.01.2023 (ref.ª citius ...27), quer em 22.03.2023 (ref.ª citius ...05; presumindo-se a notificação efetuada em 27.03.2023 – cfr. artigo 252.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), o Ministério Público, regularmente notificado, em tais datas, do agendamento do exame pericial a que a Beneficiária foi sujeita e, bem assim, da audição da mesma, tomou conhecimento ou, pelo menos, teve a possibilidade de tomar conhecimento da pendência dos presentes autos – e, por conseguinte, da nulidade cometida - sem que, no prazo (aliás, urgente) de 10 dias (cfr. artigos 138.º, n.º 1, 149.º, n.º 1 e 891.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil), a tenha arguido.
Efetivamente, as sobreditas notificações encontram-se validamente assinadas pela Digna Magistrada do Ministério Público a quem se dirigem, nomeadamente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 19.º, n.º 1, da Portaria n.º 280/2013, de 26.08, “Os atos processuais de magistrados judiciais e de magistrados do Ministério Público são praticados no sistema informático de suporte à atividade dos tribunais, com aposição de assinatura eletrónica qualificada ou avançada”.
Em face do supra exposto, tendo o Ministério Público tomado conhecimento da pendência dos presentes autos, desde logo, assinando as notificações de que foi alvo dando conta de diligências a ocorrerem nos mesmos – e, numa das quais, a sua intervenção era visada – sem que, no sobredito prazo, tenha arguido a nulidade da sua falta de citação, considera-se a mesma sanada, ao abrigo do disposto no artigo 189.º do Código de Processo Civil. Por conseguinte, improcede a argumentação do Ministério Público e, bem assim, a arguição da dita nulidade.»

3. Recurso
Proferida sentença a designar o acompanhante e a definir as medidas de acompanhamento, o Ministério Público recorreu e concluiu assim a motivação do recurso:
“1. Nos termos do artigo 644.º, n.º 2, do C.P.C., vem o Ministério Público interpor recurso da decisão (interlocutória) proferida pela Mmª Juiz do Tribunal a quo, a qual considerou que a falta de citação do Ministério Público para contestar a ação instaurada pelo Requerente, considerou-se sanada a partir do momento em que a aqui signatária assinou eletronicamente as notificações (perícia e data para a audição).
2. Não pode o Ministério Público concordar com a decisão proferida pela Mma. Juiz a quo.
3. No caso, o Ministério Público não foi citado para contestar a ação apresentada pelo Requerente, por “lapso” da secção de processos, apenas tendo sido notificado, posteriormente, da perícia e data para audição do beneficiário.
4. Ora, estas simples notificações não configuram qualquer “intervenção processual” por parte do Ministério Público no processo e, nem delas se pode extrair a conclusão de que o Ministério Público tomou conhecimento do seu processado, por forma a ficar em condições de assegurar o seu efetivo direito de defesa (neste sentido, vide Ac. TRC de 24/04/2018).
5. Suporta o tribunal a quo a sua posição por força da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto (na redação que lhe foi dada pela Portaria n.º 267/2018, de 20/09) que regula os aspetos da tramitação eletrónica dos processos judiciais nos tribunais de primeira instância, trazendo à colação o artigo 19.º, e pese embora de forma não expressa faz uma analogia à questão debatida na jurisprudência (por referência aos acórdãos que sustenta na sua decisão), que se reporta à situação da junção de procuração aos autos por parte do mandatário: se constitui efetivamente, uma intervenção processual que permita pressupor o conhecimento do processo e sanar a eventual nulidade decorrente da sua falta de citação.
6. O Ministério Público não concorda com tal interpretação, uma vez que a situação em análise não tem similitude com a questão tão debatida na jurisprudência, na medida em que naqueles casos há de alguma forma uma “intervenção”, uma ida ao processo.
7. Nos presentes autos, o Ministério Público não tomou qualquer posição ativa no processo, não apresentou qualquer requerimento, no fundo, não teve intervenção.
8. Mesmo que se considerasse, por coerência de raciocínio a analogia a tal situação (junção de procuração nos autos) o desfecho seria o mesmo, cfr. bem entendeu o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22-10-2020, Relator: Dr. Manuel Bargado, Processo n.º 926/19.8T8STB.E1, disponível em www.dgsi.pt e Acórdão da Relação de Coimbra de 03.11.2016 – Proc. 1573/10.5TBLLE-C.E1; Ac. Relação de Lisboa de 05.11.2019 – Proc. 66733/05.5YYLSB-C.L1-7; Ac. Relação de Guimarães de 23.01.2020 – Proc. 17/19.1T8PVL.G.
9. Desta forma, entende-se que não é suficiente para pôr termo à revelia absoluta, nem meio idóneo de tomar conhecimento do processo, de modo a presumir-se que logo aí o Ministério Público prescindiu, conscientemente, de arguir a falta de citação, concluindo-se que não ficou sanada a nulidade da falta de citação com a notificação posterior.
10. Somos do entendimento que se deve considerar que a primeira intervenção processual do Ministério Público ocorreu no dia da audição de beneficiário, data em que se arguiu o incidente da falta de citação e, não com as meras notificações efetuadas pela secção de processos.
11. Ao decidir da forma como o fez, a Mma. Juiz a quo violou o disposto nos artigos 188.º, n.º 1, alínea a), 189.º, 198.º, n.º 2, 225.º, n.ºs 1 e 2,do C.P.C..
12. A consequência legal da falta de citação do Ministério Público é clara e implica que seja declarado nulo todo o processado posterior, conforme dispõe o artigo 187.º do CPC.
Face ao supra exposto, deve o despacho em crise ser revogado, e julgar-se o incidente de falta de citação arguido pelo Ministério Público procedente, por provado, com as legais consequências
Porém, Vossas Excelências, como sempre, doutamente decidirão, fazendo a habitual JUSTIÇA!”
Os Requerentes responderam por forma a considerarem o recurso extemporâneo e a defenderem a confirmação da decisão recorrida.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Questão prévia
1. Os Requerentes consideram o recurso fora de prazo; argumentam que o recurso se enquadra na previsão da alínea h) do n.º 2 do artigo 644.º do Código de Processo Civil (doravante CPC), cujo prazo de interposição é de quinze dias (artigo 638.º, n.º 1, do CPC), prazo que começou a correr com a notificação da decisão recorrida em 17/4/2023 e se completou em 5/5/2023, tornando extemporâneo o requerimento apresentado pelo Ministério Público em 27/6/2023.
Conclusão certa se certos os pressupostos e, a nosso ver, não é o caso.
Nem o prazo para a interposição do recurso é de quinze dias, nem começou a correr com a notificação da decisão que indeferiu a nulidade.
2. A decisão de indeferimento da nulidade da falta de citação não se reconduz a nenhuma das previsões das alíneas do n.º 2 do artigo 644.º do CPC, designadamente à previsão da alínea h), indicada pelos Requerentes.
Segundo esta:
Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1ª instância (…) [d]as decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil.”
Releva, assim, verificar se o recurso do despacho que julga improcedente a arguição da falta da citação seria absolutamente inútil quando interposto com o recurso da decisão final e para tanto apreender o conceito “absolutamente inútil” para efeitos da norma.
A expressão vem do Código de Processo Civil (CPC) de 1939 [artigo 734.º, n.º 2, na redação do D.L. n.º 39.157, de 10/9/1953] e vigorou no domínio do CPC de 1961, cujo artigo 734.º, n.º 2, previa a subida imediata dos agravos cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis.
Trata-se de uma solução vastamente debatida e estabilizada na ordem processual por forma a considerar-se que “o recurso cuja retenção o tornaria absolutamente inútil é apenas aquele cujo resultado, seja ele qual for, devido à retenção já não pode ter qualquer eficácia dentro do processo, mas não aquele cujo provimento possibilite a anulação de alguns atos, incluindo o do julgamento, por ter isso um risco próprio ou normal dos recursos diferidos” ou que “a expressão «absolutamente inúteis (…) deve ser tomada no seu significado rigoroso, restrito. Não basta uma inutilidade relativa, a que corresponde a anulação do processado posterior, para justificar a subida imediata do agravo: a situação há-de ser tal que, se o recurso não for apreciado imediatamente, já não servirá de nada” [cfr., respetivamente, Ac. STA de 17/12/1974, Acórd. Doutin. do STA, 160.º-557 e Ac. R.P. de 12/12/1989, BMJ, 392.º-517, ambos mencionados por Abílio Neto, CPC anotado, 14ª ed. págs. 875 e 876].
Mais recentemente, Abrantes Geraldes: “O advérbio (absolutamente) assinala bem o nível de exigência imposto pelo legislador (…) não basta que a transferência da impugnação para um momento posterior comporte o risco de inutilização de uma parte do processado, ainda que nesta se inclua a sentença final. Mais do que isso, é necessário que imediatamente se possa antecipar que o eventual provimento do recurso não passará de uma «vitória de Pirro», sem qualquer reflexo no resultado da ação ou na esfera jurídica do interessado” [Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, págs. 159 e 160].
A declaração de nulidade de um ato tem por efeito a anulação dos termos subsequentes que dele dependam absolutamente (artigo 195.º, n.º 2, do CPC) e é este o desiderato visado pelo recurso – a declaração da nulidade da falta da citação e anulação de todo o processado subsequente dependente dela.
Objetivo que tanto poderá ser atingido com a subida imediata do recurso (apelação autónoma) ou com a sua subida com o recurso que venha a ser interposto da decisão final (artigo 644.º, n.º 3, do CPC), o que significa que a retenção do recurso não o torna absolutamente inútil.
O recurso do despacho que indeferiu a nulidade da citação não se insere, a nosso ver, na previsão da alínea h) do n.º 2 do artigo 644.º do CPC, podendo (e devendo) tal despacho ser impugnado no âmbito do recurso que venha a ser interposto da decisão final [neste sentido, Abrantes Geraldes, Ob. cit. pág. 161].
Interpor o recurso da decisão interlocutória com o recurso da decisão final significa que o prazo do recurso corresponde ao prazo para impugnar a decisão final e inicia-se com a notificação desta.
Na espécie e pese embora alguma imprecisão formal no requerimento de interposição do recurso – “O Ministério Público não se conformando com o despacho proferido (…), no qual foi declarada improcedente a arguição de nulidade por falta de citação (…) vem da mesma interpor recurso (…) nos termos dos artigos 644.º, n.º 2, do C.P.C.” – o recurso visa, a anulação de todos os atos praticados no processo posteriores ao momento em que deveria ter ocorrido a citação do Ministério Público e, assim, (também) a anulação da decisão final o que significa que a decisão final se mostra impugnada embora com fundamentos que lhe são extrínsecos.
(…) a impugnação da decisão interlocutória pode constituir o único mecanismo capaz de determinar a anulação ou a revogação da decisão final, casos em que a impugnação desta, em vez de se fundar em vícios intrínsecos, pode ser sustentada na impugnação da decisão interlocutória com função instrumental e prejudicial relativamente ao resultado final” [Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pág. 161].
Assim, mostrando-se que o Ministério Público foi notificado da sentença em 23/6/2023 (refª citius ...51), o recurso interposto em 27/6/2023 (refª citius ...79) observa o prazo de quinze dias previsto para a interposição dos recursos em processos urgentes [artigos 638.º, n.º 1 e 891.º, n.º 1, do CPC].
O recurso está em tempo e justifica conhecimento.

II - Objeto do recurso
Considerando as conclusões da motivação e sendo estas que delimitam o seu objeto (artigos 635.º, n.º 4, 639.º, n.º 1, 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil), importa decidir se a nulidade decorrente da falta de citação do Ministério Público se mostra sanada.

III. Fundamentação
1. Factos
Relevam as seguintes ocorrências processuais:
a) Por despacho de 18/11/2022 foi ordenada a citação da beneficiária, por contacto pessoal e, frustrando-se esta por impossibilidade de a mesma a receber, o cumprimento do disposto no artigo 21.º do Código de Processo Civil.
b) Em 23/11/2022 foi lavrada certidão de não citação da beneficiária, onde se fez constar: “(…) a Requerida está acamada, não fala nem reage, não se encontra capaz de ser citada”.
c) Em 25/11/2022 foi elaborado pela secção de processos um termo de citação com o seguinte teor: “Certifico que nesta data citei o Digníssimo Magistrado do Ministério Público, em representação do Réu, para no prazo de 10 dias contestar os presentes autos”.
d) O termo de citação não se mostra assinado pela Magistrada do Ministério Público.
e) Por despacho de 16/12/2022 foi determinada a realização de exame pericial à beneficiária pelo Instituto de Medicina Legal.
f) Em 4/1/2023, a Digna Magistrada do Ministério Público foi notificada da data designada pelo IML para a realização do exame à beneficiária, apondo assinatura eletrónica na notificação [refª (citius) ...27].
g) Em 27/2/2023, foi junto aos autos relatório da perícia médico-legal em que foi examinanda a beneficiária e, nesta mesma data, a Digna Magistrada do Ministério Público foi notificada do relatório pericial, apondo assinatura eletrónica da notificação [refª (citius) ...89].
h) Por despacho de 21/3/2023, foi determinado dia 13/4/2023 para a audição da beneficiária e, no dia seguinte, foi elaborada nota de notificação da Digna Magistrada do Ministério Público, a qual veio a ser por esta assinada eletronicamente no dia 27/3/2023 [refª (citius) ...05].
i) Em 13/4/2023, a Digna Magistrada do Ministério Público atravessou requerimento nos autos arguindo a falta de citação do Ministério Público com a consequente nulidade do processado posterior [refª (citius) ...73].

2. Direito
2.1. Se a nulidade da falta de citação do Ministério Público se mostra sanada
Assente nos autos que o Ministério Público não foi citado em representação da beneficiária impossibilitada de receber a citação – o termo de citação elaborado pela secção de processos em 25/11/2022 não foi assinado [alíneas c) e d), supra] coloca-se a questão de saber se a nulidade da falta de citação se mostra sanada.
Questão tornada controvertida pelo dissenso criado entre a decisão recorrida, segundo a qual, com as notificações das datas agendadas para o exame pericial e audição da beneficiária o Ministério Público “tomou conhecimento ou, pelo menos, teve a possibilidade de tomar conhecimento da pendência dos presentes autos – e, por conseguinte, da nulidade cometida – sem que, no prazo (aliás, urgente) de 10 dias (cfr. artigos 138.º, n.º 1, 149.º, n.º 1 e 891.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil), a tenha arguido (…) considera-se a mesma sanada, ao abrigo do disposto no artigo 189.º do Código de Processo Civil e a posição assumida na minuta do recurso nos termos da qual as notificações (da data da perícia e da data de audição da beneficiária) “não configuram qualquer intervenção processual por parte do Ministério Público no processo (…) não tomou qualquer posição ativa no processo, não apresentou qualquer requerimento, no fundo, não teve intervenção”.
Apreciando.
Segundo o artigo 187.º do CPC, é nulo tudo o que se processe depois da petição inicial, salvando-se apenas esta: (a) quando o réu não tenha sido citado; (b) quando não tenha sido citado, logo no início do processo, o Ministério Público, nos casos em que deva intervir como parte principal.
A citação é o ato mediante o qual se chama o réu (ou um outro interessado) ao processo para se defender e se lhe dá conhecimento de todos os elementos necessários para assegurar a defesa (artigo 219.º, nºs 1 e 2, do CPC), assim, constituindo “um ato processual fundamental, respetivamente garantia do direito de defesa (artigo 3.º-1) ou condição de eficácia da decisão ou providência perante o chamado (cfr. artigos 320.º, 323.º-4, 340.º-2)” [Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, 4ª ed., vol. 1º, pág. 383].
A falta de citação, do réu ou do Ministério Público nos casos em que deva intervir como parte principal, o que se verifica designadamente quando intervém em representação dos incapazes [artigo 9.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 68/2019, de 27/8], tem como consequência a nulidade de tudo o que se processe depois da petição inicial.
Mas os vícios ou irregularidades dos atos processuais surgem irrelevantes se o processo, apesar deles, atingir o fim a que se acha destinado sem prejuízo da posição das partes no processo; se o interessado tem conhecimento da nulidade e prescinde, ainda que tacitamente, de a arguir a lei presume que a existência da nulidade não afeta a justa decisão da causa minguando razões para refazer o ato nulo; de facto, nenhum motivo válido justificaria, v.g. a realização a citação omitida, depois do réu, espontaneamente, haver contestado a ação.
A lei prevê a sanação de atos processuais, ab initio, nulos por preclusão ou por renuncia.
À sanação por preclusão reportam-se os artigos 198.º, n.º 1 e 199.º, n.º 1, do CPC; se o interessado não argui as nulidades aí previstas, respetivamente, até à contestação (ou na contestação) ou no prazo de dez dias (artigo 149.º, n.º 1, do CPC) após delas tomar conhecimento, preclude o direito de reclamar delas e os atos, embora nulos, ficam sanados; já as nulidades previstas nos artigos 187.º (falta de citação do réu ou do M.º P.º) e do artigo 194.º (falta de vista ou exame ao M.º P.º como parte acessória) não têm prazo de arguição (artigo 198.º, n.º 2, do CPC) e apenas se convalidam com a prática de atos incompatíveis com a vontade de reclamar da nulidade (artigos 189.º e 194.º do CPC).
Dispõe o artigo 189.º do CPC:
Se o réu ou o Ministério Público intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação, considera-se sanada a nulidade”.
A nulidade da falta de citação fica sanada se o réu ou o MP intervierem no processo e não arguirem logo a nulidade.
Diferentemente da cláusula aberta estabelecida para a renúncia tácita ao recurso – a prática de qualquer facto inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer [artigo 632.º, n.º 3, do CPC] – a lei tipifica o ato inequívoco considerado incompatível com a vontade de reclamar da nulidade da falta de citação: a intervenção no processo sem a imediata arguição da nulidade.
A convalidação da nulidade decorrente da falta de citação exige uma ação e uma omissão: a intervenção no processo e a não arguição da nulidade.
A intervenção no processo, ensina Teixeira de Sousa, “ocorre quando o réu ou o Ministério Público pratica algum ato no processo [CPC ONLINE, Livro II, pág. 11, https://drive.google.com/file/d/1SZjPAHTYYo1vXXUtQxeVtnbEvZ2NeGjF/view].
Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa anotam que se o réu (ou o Ministério Público) «tiver intervenção no processo sem invocar imediatamente o vício, a nulidade considera-se suprida. Para este efeito, “arguir logo a falta” significa fazê-lo na primeira intervenção processual» (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed, pág. 252) e, de igual modo, a jurisprudência v.g. Ac. R. C. de 24-04-2018: “embora a lei não o diga expressamente, temos para nós que essa intervenção, dada a gravidade da cominação imposta no normativo, pressupõe uma atuação ativa no processo do MPº ou réu (…), através da prática ou intervenção em ato judicial, que lhe permitam tomar pleno conhecimento de todo o processado ou, pelo menos, que façam presumir esse efetivo conhecimento”.
Não basta, pois, que o réu ou o MP tenham conhecimento da existência do processo v.g. por haverem sido notificados de atos nele praticados, para se concluir que renunciaram tacitamente ao direito de reclamarem da falta de citação, é necessário que intervenham no processo e não hajam arguido logo a nulidade.
O que tem suscitado discussão na jurisprudência é qualidade da intervenção exigida pela norma e o alcance da expressão logo para efeitos de arguição da nulidade, com ganhos para a corrente segundo a qual a “intervenção do réu no processo, relevante para os fins do art. 189.º do CPC, pressupõe o conhecimento, ou a possibilidade de conhecimento, da pendência do processo, bastando para tal a junção de procuração a mandatário judicial e que “o prazo para a arguição da nulidade da falta de citação será o que tiver sido indicado para a contestação” (cfr. v.g. os acórdão do STJ de 24/11/2020 e de 24/05/2022, in www.dgsi.pt e jurisprudência citada), mas toda esta discussão parte do pressuposto que o réu interveio no processo – juntou procuração.
Pressuposto que, na espécie, não se verifica, uma vez que não se identifica nenhuma intervenção no processo pelo Ministério Público – nenhum ato praticado – em data anterior à arguição da nulidade da falta de citação.
A tese expressa na decisão recorrida é a de que a nulidade da falta de citação se mostra sanada por não arguida nos dez dias seguintes às notificações das datas do exame e audição da beneficiária, altura em que o Ministério Público tomou conhecimento do processo e, assim, da nulidade cometida.
Juízo assente na ideia que o conhecimento da existência do processo, por via da notificação de atos nele praticados é suficiente para se concluir que o Ministério Público renunciou ao direito de reclamar da falta de citação; ora, o conhecimento, ou a possibilidade de conhecimento, da pendência do processo é necessário para caraterizar a qualidade da intervenção processual relevante para efeitos de convalidação da nulidade da falta da citação mas não a substitui e, pelo contrário, supõe verificada a sua existência.
Em conclusão, a falta de citação fica sanada se o réu ou o MP intervier no processo e não arguir logo essa falta; o mero conhecimento da existência do processo, v.g. por via da notificação de atos nele praticados não carateriza uma intervenção no processo normativamente relevante para efeitos de convalidação da nulidade da falta de citação.
O Recorrente tem razão, restando reconhecer a nulidade decorrente da falta de citação.

2.2. Efeitos da nulidade
Nulidade que envolvendo todo o processado posterior à petição inicial (artigo 187.º do CPC) implicaria, por definição, a anulação do exame pericial em que foi examinanda a beneficiária, bem como a sua audição, o que tudo redundaria numa intolerável sujeição desta à repetição dos mesmos atos num processo talhado para, designadamente, assegurar o seu bem-estar e recuperação [artigo 140.º, n.º 1, do Código Civil].
Razões que aconselham, a nosso ver, que a os referidos atos processuais se mantenham na ordem do processo, caso o seu âmbito não se venha a tornar insuficiente face à eventual defesa que, em representação da beneficiária, venha a ser apresentada pelo Ministério Público.
Com este alcance, procede o recurso.

3. Custas
Vencidos no recurso, incumbe aos Recorridos o pagamento das custas (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC).

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
(…)

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, procedência do recurso, em:
a) revogar a decisão recorrida.
b) determinar que a 1ª instância ordene a citação do Ministério Público, com os efeitos processuais antes referidos.
Custas pelos Recorridos.
Évora, 12/10/2023
Francisco Matos
Rui Machado e Moura
Anabela Luna de Carvalho