BUSCA
CONSENTIMENTO
Sumário

– A lei fala no consentimento dos visados para a busca, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado mas nada refere quanto ao momento em que esse consentimento deve ser prestado nem quanto à forma como deve ocorrer essa documentação.

– O acto do consentimento não deverá ser dissociado da sua documentação, isto é, deve ser logo expresso, não podendo valer como tal uma mera assinatura no auto lavrado, o qual, por definição, relata os termos em que um determinado acto processual se realizou, o que implica que seja posterior à prática desse acto, quando o consentimento a que se refere o artigo 174.º é necessariamente prévio.

– O que importa é que o consentimento seja prévio à busca e que o mesmo fique documentado em termos que não deixem incertezas sobre se foi efectivamente prestado e sobre a natureza e âmbito do mesmo.

– Existindo nos autos elementos suficientes para considerar que os recorrentes eram, já na altura, suspeitos da prática de um crime de tráfico de droga, existindo indícios do transporte e consequente detenção de uma quantidade significativa da mesma e existindo elementos que levavam a acreditar que essa droga se encontrava no interior do veículo, sendo a sua apreensão uma diligência da máxima importância para se obter prova desse mesmo tráfico, apreensão essa que, se não fosse realizada naquele momento, poderia vir a ser impossível, sendo previsível que os recorrentes, se alertados para o facto de as autoridades policiais terem detectado a sua actividade ilícita, se colocariam naturalmente em fuga, impedindo a apreensão da droga e evitando a sua detenção e ulterior responsabilização pelo crime de tráfico de droga, existia base legal para a realização da indicada busca naquele preciso momento, diligência cuja realização, pela sua urgência, não podia ser adiada, nem a sua necessidade podia ser antecipada de modo a que fosse possível a emissão do correspondente mandado pelo magistrado do Ministério Público.

– E se essa busca e o resultado da mesma foram comunicados ao Ministério Público logo que cessou a diligência, o que aconteceu no dia seguinte posto que aquela já cessou fora das horas de expediente do tribunal, o qual validou a detenção dos arguidos e a apreensão do estupefaciente na sequência dessa busca, esta mostra-se tacitamente validada.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I–Relatório


1.–
 Na sequência de primeiro interrogatório judicial subsequente à detenção foi proferido despacho, a 13 de Agosto de 2020, a determinar a aplicação aos arguidos RP, AJ, SV e LV, melhor identificados nos autos, da medida de prisão preventiva.

2.–
 Os arguidos RP, AJ e SV interpuseram recursos desse despacho tendo cada um deles extraído da sua motivação de recurso as seguintes conclusões (transcrição):

2.1.– Recurso do arguido SV


I.– A insuficiência da prova indiciária apresentada pelo Ministério Público e o erro na sua apreciação.
1.-Dos elementos probatórios apresentados pelo M.P. e da decisão judicial proferida no dia 13 de julho de 2020, na sequência do auto de primeiro interrogatório judicial de arguidos detidos, não resultam indícios fortes que o arguido SV tenha praticado, em coautoria material, um crime de tráfico de estupefacientes (previsto e punido nos termos do Artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro).
2.- O arguido referiu ter-se deslocado ao encontro dos coarguidos RP e AJ para prestar assistência (colocação de líquido AdBlue) ao veículo que estes conduziam e que tinham alugado junto da empresa na qual colabora, seguindo depois viagem.
3.-
As declarações de arguido devem sucumbir face à demais prova sempre que esta for capaz de as contrariar de acordo com as regras da experiência comum.
4.-O Tribunal a quo considerou as declarações do arguido destituídas de credibilidade, não porque entenda que os meios de prova as contrariam de forma sustentada, mas apenas porque as mesmas se revelam sem sentido.
5.-Porém, não cabe ao Tribunal sustentar a forte indiciação apenas com a pouca credibilidade das declarações do arguido, mas sim com os elementos que se extraem das provas juntas aos autos - o que não aconteceu (incorrendo em erro de fundamentação, para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 6 do Artigo 194. ° do C.P.P.).
6.-Assim, mal andou o Tribunal a quo ao considerar as declarações do arguido pouco credíveis por si só e, por consequência, entender que os factos percecionados pelos OPC indiciam fortemente a prática de um crime de tráfico de estupefacientes (até porque tal não acontece).
7.-O M.P. apresenta como únicos meios de prova diretamente relacionados com o aqui recorrente o auto de notícia (fls. 611 a 613) e um RDE (fls. 646 a 649).
8.- O mero facto de o ora recorrente ter viajado à frente de um veículo onde foi encontrado produto estupefaciente não é facto ilícito típico do crime de tráfico de estupefacientes.
9.-
Para que tal aconteça, são necessárias provas adicionais que permitam concluir pelo prévio acordo e pela atividade conjunta dos arguidos - o que não sucede.
10.-Em primeiro lugar, mal andou o Tribunal a quo ao entender haver fortes indícios de o recorrente ter procurado contactar os arguidos RP e AJ para dar conta da operação policial.
11.-O alegado contacto feito por SV e LV aos arguidos RP e AJ não encontra sustento em qualquer elemento probatório constante dos autos, desconhecendo-se como é que foi feito, através de que número, a que horas e por qual dos arguidos.
12.-Não existem interceções telefónicas junto aos autos e não foi realizada qualquer perícia aos seus telefones.
13.-A tentativa de contacto a RP e AJ aquando e por razão da detenção destes é impossível que tenha acontecido, já que SV seguia sua à frente e, por consequência, não observou a detenção.
14.-Ademais, se RP e AJ foram abordados quando pararam para abastecer sua viatura (cfr. auto de notícia), significa que os OPC se encontrariam atrás deles - o que impossibilita que SV se tenha apercebido de qualquer operação policial, já que iria a 20 a 30km à frente.
15.-
Em segundo lugar, inexistem ainda fortes indícios de que SV tenha acordado e participado na ação de transporte de produto estupefaciente.
16.-
O arguido deslocou-se ao encontro de RP e AJ para prestar assistência (colocação de líquido AdBlue) ao veículo onde estes seguiam e cujo aluguer teria intermediado dias antes (tal como constatado pelo RDE de 11/08/2020).
17.-O arguido desconhecia o que se encontrava no interior do veículo onde seguiam os outros arguidos.
18.-
Até à data da sua detenção, nada constava dos autos que fizesse crer que o arguido SV fosse suspeito de se dedicar à atividade de tráfico de estupefacientes.
19.-Segundo o auto de notícia, os suspeitos que se encontravam a ser "monitorizados" eram apenas RP e AJ (verificando a sua entrada em território espanhol pela hora de almoço).
20.-
 O veículo onde seguia SV não foi visto a entrar em Espanha, mas apenas a sair pelas 16h45.
21.- Os OPC só tiveram a perceção de que os "arguidos SV e LV circularam todo o percurso sempre à frente da viatura conduzida pelo RP e pelo AJ e sempre a uma distância superior a vinte quilómetros" (cfr. auto de notícia) e nada mais.
22.-A mera perceção não permite, sem mais prova, concluir existirem fortes indícios de o ora recorrente ter desempenhou qualquer função de "batedor" de um veículo onde foi encontrado produto estupefaciente.
23.-Os OPC tiveram "clara perceção de que LV e o SV vinham na frente a controlar a presença das autoridades, tanto é que durante a abordagem ao RP e ao AJ o LV e o SV tentou entrar em contacto com os mesmos" (cfr. auto de notícia de fls. 611 a 613 e sublinhado nosso).
24.-Contudo, conforme aduzido nos pontos 10. a 14. destas conclusões, nada permite concluir que tal tentativa de contacto ocorreu.
25.-
Também não faz parte das regras da experiência comum que, num transporte de produto estupefaciente com recurso a batedores, o veículo com produto estupefaciente no interior pare para abastecer e o veículo "batedor" continue viagem, perdendo-se a utilidade da sua proximidade / imediação / instantaneidade.
26.-
Ora, a mera perceção (ainda não concretizada face à falta de inquirição dos agentes) de a viatura onde se encontrava SV circular sempre à frente da viatura onde seguiam os outros arguidos não é suficiente para o Tribunal concluir pela existência de fortes indícios quanto à alegada ação de "batedor", sendo certo que o RDE de fls. 646 e 649 apenas mostra o ora recorrente a almoçar com RP e AJ e que nada nos autos sustenta a alegada tentativa de contacto por parte do ora recorrente.
27.-Pelo que mal andou o Tribunal a quo ao considerar existirem fortes indícios da participação de SV no alegado transporte de produto estupefaciente que se encontraria noutro veículo.

Se assim não se entender quanto à inexistência de fortes indícios,
II. A incorreta fundamentação acerca da exclusão da medida de OPHVE.

28.-
O ato típico imputado ao ora recorrente é a mera fiscalização do transporte de produto estupefaciente ("batedor"), já que o Tribunal a quo entendeu não existirem indícios de o arguido proceder à venda nem ao armazenamento de produto estupefaciente desde março de 2020 (facto 8).
29.-O arguido encontrar-se-á impedido de manter a mesma conduta criminosa (único perigo apontado pelo Tribunal) caso fique circunscrito à sua residência, já que não lhe é fisicamente possível proceder à fiscalização do transporte de produto estupefaciente.
30.-O arguido encontra-se a trabalhar na empresa FP, Lda. e na empresa do seu irmão (cfr. declarações prestadas e documento junto aos autos), reside com a mãe e tem um filho.
31.-Ponderando os princípios da adequabilidade, necessidade e proporcionalidade, a medida de OPHVE demonstra-se suficiente para satisfazer as necessidades cautelares do caso concreto, impedindo a prática de ilícitos idênticos.
32.- Foi o próprio Tribunal a quo que considerou que a situação profissional do arguido não se encontrava bem comprovada - tornando-se relevante proceder à elaboração dos relatórios nos termos do n.º 2 do Artigo 7. ° da Lei n.233/2010, de 2 de setembro.
33.-Ao decidir como fez, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 193º, n.º 1 a 3, 196º, 198°, 200º, 201°, 202º e 204º, todos do C.P.P., incorrendo em erro de interpretação dos referidos normativos e em erro de subsunção dos mesmos ao caso concreto.

34.-
Por todo o exposto, deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por douto acórdão que determine:
A)-
A aplicação da medida de coação de termo de identidade e residência ao arguido SV, cumulada com apresentações periódicas diárias e proibição de contactos com os demais arguidos.

Se assim não se entender,

B)-
A aplicação da medida de coação de termo de identidade e residência ao arguido SV, cumulada a obrigação de permanência na habitação e com a proibição de contactos com os demais arguidos.

2.2.– Recursos dos arguidos AJ  e RP 
 [1]:

1.-
A busca documentada a fls. 615/616 foi levada a cabo à margem de mandado da autoridade judiciária ou de autorização de qualquer dos visados.
2.-Quando o órgão de polícia criminal, por sua própria iniciativa e decisão, avançou para a realização da busca documentada a fls. 615/616, não haviam fundados indícios da prática iminente de crime que ponho em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa.
3.-A primeira e segunda partes da al. a) do n.º 5 do art. 174° do Cód. de Processo Penal, consubstanciam pressupostos de validade de verificação cumulativa, como se percebe da conjunção subordinativa "quando" empregada pelo legislador, onde, presumidamente, disse exatamente aquilo que quis dizer - n.°3 do art.º 9.º do Cód. Civil.
4.-A busca documentada a fls. 615/616 não foi efetuada aquando da detenção em flagrante de crime algum; conforme resulta do relato de fls. 613. pelas 18h20 na área de Serviço de Grândola da Auto Estrada A2, sentido sul/norte, foi o RP e o AJ intercetados quando pararam na respetiva área de serviço para abastecerem a referida viatura e, logicamente, como resultado da própria busca, na viatura, mais concretamente, na bagageira do Mercedes conduzido pelo RP foi apreendido três sacos contendo Liamba.
5.-
O conceito de flagrante delito a que alude a al. c) do n.º 4 do art. 174° do Cód. do Processo Penal, tem de ser alcançado na letra dos n.ºs 1 e 2 do art. 256° também do Cód. do Processo Penal, onde não tem cabimento a tese segundo a qual uma suspeita policial, per se, pode configurar flagrante delito.
6.-A sequência cronológica dos acontecimentos, descrita a fls. 611/614. apenas coloca os dois arguidos que seguiam no veiculo, na posição de autores de um crime de trafico de estupefacientes, na modalidade típica do transporte, após a busca ao veiculo em que seguiam; sem a realização da busca ao veiculo, nada permitia, pois, afirmar que os arguidos estavam cometendo ou haviam acabado de cometer qualquer acto típico, nomeadamente à luz do disposto no art. 21º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
7.-A busca documentada a fls. 615/616, tendo sido efetuada sem prévia autorização da autoridade judiciária competente e não satisfazendo factualmente qualquer dos requisitos de validade a que aludem todas e cada uma das alíneas do n.º 5 do art. 174° do Código do Processo Penal, consubstancia um método proibido de prova e, consequentemente, as apreensões dela resultantes, são prova nula. nos termos do n.º 3 do art. 126° do Cód. do Processo Penal.

8.-
A busca só pode ser realizada enquanto medida cautelar e de polícia verificados que estejam, cumulativamente, os requisitos previstos na al. a) do n.º 1 do art. 251° do Cód. do Processo Penal, quais sejam:
a.-a busca só pode ser efetuada ao local onde se encontre suspeito em fuga ou ao local onde se proceda à detenção fora de flagrante de suspeito;
e
b.-
a busca só pode ser efetuada quando houver fundada razão para crer que nesse local se ocultam objetos relacionados com o crime;
e
c.-
os objetos que se pretendam apreender têm de ser suscetíveis de servir como prova;
e
d.-
a busca só pode ser efetuada quando não haja outra forma de garantir que aqueles objetos não se percam.

9.-
O arguido ora recorrente não estava em fuga e a sua detenção, sem mandado do Juiz de Instrução ou do Ministério Público, não respeitou. ademais. os requisitos a que aludem, cumulativamente, as três alíneas do n.º 2 do art. 257° do Cód. do Processo Penal.
10.-
A detenção fora de flagrante delito do arguido, uma vez feita à margem da lei, é nula, por violação do disposto no n.º 3 do art. 27º da Const. da República Portuguesa e a medida cautelar e de policia que nela se alicerçou é, por contágio, nos termos do n.º 1 do art. 122° do Cód. do Processo Penal, também ela nula.
11.-Pretendendo garantir que tudo aquilo que pudesse encontrar-se dentro da viatura não viesse a dissipar-se, bastaria que o órgão de policia criminal tivesse procedido à apreensão da viatura, nos termos do art. 249°, n.º 2, al. c), do Cód. do Processo Penal, e requerido a emissão dos respetivos mandados de busca ao Ministério Público, deixando a direção da investigação e a escolha dos atos de inquérito a praticar para o titular da ação penal.
12.-Independentemente do mais quanto à verificação dos pressupostos de validade material da busca, sempre seria de continuar a considerar-se a mesma formalmente nula porque, como se verifica da Decisão recorrida, o Meritíssimo Senhor Juiz de Instrução não a validou, deixando, pois, de dar cumprimento à regra ínsita no n.º 6 do art. 174° do Cód. do Processo Penal, fosse pela sua própria previsão, quer na sua aplicação por força do n.º 2 do art. 251º do Cód. do Processo Penal, ou seja, considerando-a no âmbito do regime dos meios de obtenção de prova (art. 174° do Cód. do Processo Penal) ou no âmbito do regime das medidas cautelares e de policia (art. 251° do Cód. do Processo Penal).
13.- A busca documentada a fls. 615/616 consubstancia um método proibido de prova e, consequentemente, as apreensões dela resultantes, são prova nula, nos termos do n.º 3 do art. 126º do Cód. do Processo Penal.

Subsidiariamente,

14.-
A prisão preventiva que o Tribunal a quo aplicou ao arguido, aqui recorrente, por apresenta-se desnecessária e desproporcional, nos termos do n.º 1 do art. 193° Cód. do Processo Penal.
15.-
Um estatuto coativo que passasse pela sujeição do arguido à obrigação de permanência na habitação (art. 201° do Cód. do Processo Penal), com a obrigação de o mesmo entregar nos autos o seu passaporte, reforçado pelas respetivas comunicações aos gabinetes de controlo de fronteiras (art. 200°, n.º 3, do Cód. do Processo Penal), acautelaria o perigo de continuação da concreta atividade ilícita que lhe é imputada e evitaria com elevadíssima eficácia a sua fuga.
16.-Porque i) arguido é muito jovem, (ii) é primário, (iii) o estupefaciente em causa, entre todos os que se conhecem, é aquele que apresenta uma danosidade para a saúde pública mais baixa, (iv) a própria quantidade transportada, não sendo baixa, no contexto deste tipo de transporte internacional, também não é, sequer, elevada e, com especial enfoque, (v) o arguido, logo no primeiro contacto com o Tribunal, confessou de forma integral e sem reservas, mostrando já alguma (se não muita) permeabilidade às atividades de reabilitação e correção, o juízo de proporcionalidade imposto na segunda parte daquele n.º 1 do art. 193° do Cód. do Processo Penal, implica o afastamento da mais gravosa das medidas de coação, segundo o qual, a prisão preventiva deve ser afastada quando a suspensão da pena eventualmente aplicável se apresente como significativamente provável.

Por tudo quanto expusemos, pedimos a Vossas Excelências, Senhores Juízes Desembargadores deste Tribunal da Relação de Lisboa, se dignem:
I.- Declarar a nulidade da busca de fis. 615/616;
e
II.- Considerar a prisão preventiva aplicada ao arguido recorrente desnecessária face ao perigo de continuação da atividade criminosa e desproporcional em razão da pena que poderá vir a ser-lhe aplicada, nos termos do n.º 1 do art. 193° do Cód. do Processo Penal, substituindo-a pela Obrigação de Permanência na Habitação, prevista no art. 201° do Cód. do Processo Penal.
3.-
O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu aos recursos conforme fls. 72 a 96 (correspondente a fls. 1313 a 1340 do processo principal), defendendo a sua improcedência e a manutenção dos recorrentes na situação de prisão preventiva, tendo finalizado as suas respostas com as seguintes conclusões: (transcrição)

3.1.–Ao recurso do arguido SV


1.-
 Pretende o recorrente que o despacho ora em crise labora em erro na medida em que não se verificam os indícios do crime que lhe é imputado, porquanto ele era trabalhador de uma empresa de rent a car a qual tinha alugado um veículo ao coarguido RP ;
2.-Resulta do relatório intercalar de fls.605 e ss e dos relatórios de vigilância constantes de fls.646 a 649, no dia 11 de Agosto de 2020, pelas 11h00, os arguidos RP, AJ e o recorrente arguido SV encontraram-se no Centro Comercial ..., sito em O..., e, findo o diálogo entre os três, estes mesmos arguidos deslocaram-se para as Bombas de Abastecimento de Combustível da Galp, onde se juntaram com o arguido LV, que os aguardava;
3.-No dia seguinte, pelas localizações celulares os elementos da PSP perceberam que os arguidos RP e AJ  se deslocavam para Espanha, local onde adquiriam a canábis;
4.-Pelas 15H34, o arguido LV, utilizando o cartão telefónico n.44 ..., entrou em contacto telefónico com o arguido AJ informou que não conseguia falar com ele, mas que já lhe tinha enviado a localização e perguntou se o outro já tinha chegado (sessão 59867 do alvo 11423040);
5.-Cerca das 15H48, o arguido LV, utilizando o mesmo cartão telefónico, entrou de novo em contacto telefónico com o arguido AJ informando que estava sempre a perder a rede e perguntou novamente pelo outro, ao que o arguido AJ responde para estar tranquilo que mais 5 minutos e ele já chegava (sessão 59870 do alvo 11423040);
6.-Às 16H30, elementos da PSP verificaram que os arguidos RP  e AJ  circulavam no veículo de matrícula 12... na autoestrada n.A-22 no sentido de este para oeste (de Espanha para a ponta de Sagres) e à sua frente, com um intervalo de cerca de 30 quilómetros, circulava o veículo de matrícula 33... conduzido pelo arguido LV  e ao seu lado seguia o arguido SV, ora recorrente;
7.-
Às 18H20, na estação de serviço de Grândola, sita na autoestrada n.2, no sentido de sul para norte (do Algarve para Lisboa), os elementos da PSP lograram intercetar o veículo de matrícula 12... no qual se faziam transportar os arguidos RP e AJ . Nesse veículo estavam cerca de 8 quilogramas de liamba que os elementos policiais apreenderam. Tal produto valia cerca de € 40.000,00;
8.-
Pelas 18H30, ao quilómetro 60 da autoestrada n.A-22, elementos policiais interceptaram o veículo de matrícula 33..., conduzido pelo arguido LV e no qual também seguia o recorrente coarguido SV;
9.-Ao arguido LV foi apreendido um telemóvel no qual estava o cartão telefónico n.º 44... com o qual entrara em contacto com o arguido AJ ;
10.-Logo que o recorrente recebeu ordem de paragem dos elementos policiais, o recorrente arguido SV tentou entrar em contacto telefónico com o arguido AJ a fim de o avisar da intervenção policial e, como este não atendeu, tentou entrar em contacto telefónico com o arguido RP que também não atendeu;
11.-
A análise critica e concatenada destes diversos elementos probatórios revela, à luz das regras da experiência comum e segundo juízos de adequação social, sem a mínima margem para dúvida que a versão apresentada pelo recorrente não pode corresponder à verdade.
12.-O recorrente já conhecia os arguidos que seguiam no veículo que transportava a liamba, não houve qualquer avaria nesse veículo e a distância, cerca de 30 quilómetros, que os dois veículos mantiveram entre si só é explicável à luz do habitual padrão de com portamento dos traficantes de droga que realizam o transporte de substâncias proibidas;
13.-O teor das intercepções telefónicas releva que o recorrente era o arguido LV que controlava o transporte de liamba na medida em que foi ele que deu as ordens e as indicações para que, no território de Espanha, se concretizasse a entrega da liamba (cfr. sessões 59867 e 59870 do alvo 11423040) e o ora recorrente seguia ao seu lado pelo que não podia deixar de ouvir e entender tal diálogo telefónico;
14.-A existência de indícios resulta pois, não só do facto dos coarguidos terem sido detidos em flagrante delito pela PSP na posse de 8 quilogramas de liamba, avaliados em cerca de € 40.000,00, como também pelas intercepções telefónicas do arguido LV e de todo o seu comportamento na condução do veículo batedor do transporte da liamba e do comportamento do ora recorrente;
15.-Nos termos do art.202° do Código de Processo Penal são pressupostos específicos da prisão preventiva, a existência de fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos, ou se tratar de pessoa que tiver penetrado ou permaneça irregularmente em território nacional, ou contra a qual estiver em curso processo de extradição ou de expulsão;
16.-O recorrente está fortemente indiciado pela prática de pela co-autoria material de um crime de um crime tráfico de estupefacientes, na forma consumada, p.p. no art. 21. ° n.1 do Decreto-lei n.15/93 de 22 de Janeiro, sendo que o crime tem uma moldura abstracta de 4 a 12 anos de prisão;
17.-
O juízo de inadequação ou insuficiência das medidas de coacção menos gravosas que a prisão preventiva relativamente às exigências cautelares que o caso requer, é o requisito que, uma vez preenchido, permite a aplicação concreta desta (cfr. arts.193°, ns.1 e 2 e 202. ° do Código de Processo Penal);
18.-Os factos apurados nos autos configuram uma elevada ilicitude material da conduta do recorrente, que, juntamente com outros três indivíduos, também sujeitos a prisão preventiva, em comunhão de vontades e conjugação de esforços, muniram-se de dois veículos e deslocaram-se a Espanha onde adquiriram 8 kgs de liamba, passaram a fonteira com tal produto e foram interceptados por elementos da Polícia de Segurança Pública na posse do produto acima mencionado;
19.-Acresce que a obrigação de permanência na habitação ou qualquer outra medida de coacção, que não a prisão preventiva se mostra inidónea a acautelar o perigo de continuação da actividade criminosa, uma vez que o recorrente teria fácil acesso ao seu meio social e ao seu grupo de amigos, de onde surgiu o grupo que agora está detido, podendo continuar a actividade criminosa;
20.-
O crime em investigação foi cometido no âmbito de um grupo, resultando óbvia a atracção que o arguido e seus comparticipantes nutrem por este tipo de actos;
21.-Ficar em casa não é, pois, para o recorrente suficiente impedimento para acautelar os perigos que se fazem sentir;
22.-
O trabalho que o arguido diz realizar não lhe proporciona os meios financeiros necessários para prover ao seu próprio sustento, razão pela qual é forte a tentação de continuar a praticar crimes para prover ao seu sustento;
23.-Assim, afigura-se-nos que as elevadas exigências cautelares do caso vertente justificam a aplicação ao recorrente da prisão preventiva, sendo esta a única medida de coacção que se mostra adequada e proporcional às circunstâncias do caso concreto e a elas responde de forma cabal.

3.2.–Aos recurso dos arguidos AJ e RP
  [2]:

1.-
Pretende o arguido/recorrente que a busca que foi realizada ao veículo de matrícula 12... é nula na medida em que não foi precedida da emissão do necessário mandato, nem de autorização para tanto;
2.-A questão da eventual nulidade da busca não foi presente ao Mm. Sr. Juiz de instrução criminal que, assim, sobre ela não se pronunciou, sendo uma questão nova em relação á decisão impugnada.
3.-
O recurso é o instituto jurídico-processual por via da qual o tribunal a quo sindica a legalidade do acto praticado pelo tribunal ad quem a fim de obviar a existência de erro judiciário, razão pela qual só é admissível recurso se e quando o recorrente pretender impugnar uma decisão que foi proferida e lhe é desfavorável;
4.-
O recorrente não tem, pois, interesse em agir neste segmento da instância recursiva, uma vez que contra ele não foi proferido qualquer decisão (cfr. art.401. ° n.1 al. b) e n.2 do Código de Processo Penal);
5.-Se o recorrente pretende ver declarada a busca como nula, deverá requerer em conformidade ao Ministério Público ou ao Mm.° Sr. Juiz de instrução criminal e, caso não se conforme com o consequente despacho, seguir a tramitação com vista a sua impugnação;
6.-
Ao abrigo do disposto nos arts.401 °, n.1, al. b) e n.2, e 414. ° n.2 do Código de Processo Penal, porque o recorrente não tem interesse em agir, deve o recurso ser liminarmente rejeitado, neste segmento da eventual nulidade da busca;
7.-As buscas são, nos termos do art.174. ° do Código de Processo Penal, ordenadas ou autorizadas por autoridade judiciária, no caso de veículos automóveis, pelo Ministério Público, ressalvadas as excepções previstas no mesmo artigo;
8.-Uma das excepções previstas é a autorização do visado pela busca, podendo as entidades policiais proceder a buscas a veículos automóveis sempre que o visado, assim o consinta;
9.-
É o caso vertente, uma vez que, tal como expressamente resulta do auto de busca constante de fls.615 e 616, o coarguido RP claramente autorizou a busca ao veículo de matrícula 12... ;
10.-A fls.615 expressamente se refere que o mesmo arguido autorizou a busca, sendo que o mesmo rubricou o canto superior direito dessa folha, assim assumindo tal autorização, e assinou o seu nome na folha seguinte que corresponde à segunda folha do mesmo auto de busca que lhe foi lido na integra e com o qual o arguido concordou;
11.-A exigência legal de documentação da autorização para a busca é, nos termos do art.174 °, n.5, al. b) do Código de Processo Penal, “por qualquer forma", razão pela qual bastaria aos elementos policiais fazerem cota nos autos declarando o consentimento verbal, sem necessidade de assinatura do arguido, para que o consentimento ficasse exarado nos termos legais;
12.-A autorização de busca ao veículo de matrícula 12..., foi dada nos termos legais, razão pela qual é valida não enfermando de nulidade ou de qualquer outro vício processual;
13.-Nos termos do art.202° do Código de Processo Penal são pressupostos específicos da prisão preventiva, a existência de fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos, ou se tratar de pessoa que tiver penetrado ou permaneça irregularmente em território nacional, ou contra a qual estiver em curso processo de extradição ou de expulsão;
14.-O recorrente está fortemente indiciado pela prática de pela co-autoria material de um crime de um crime tráfico de estupefacientes, na forma consumada, p.p. no art.21. ° n.1 do Decreto-lei n.15/93 de 22 de Janeiro, sendo que o crime tem uma moldura abstracta de 4 a 12 anos de prisão;
15.-O juízo de inadequação ou insuficiência das medidas de coacção menos gravosas que a prisão preventiva relativamente às exigências cautelares que o caso requer, é o requisito que, uma vez preenchido, permite a aplicação concreta desta (cfr. arts.193.º, ns.1 e 2 e 202. ° do Código de Processo Penal);
16.-Os factos apurados nos autos configuram uma elevada ilicitude material da conduta do recorrente, que, juntamente com outros três indivíduos, também sujeitos a prisão preventiva, em comunhão de vontades e conjugação de esforços, muniram-se de dois veículos e deslocaram-se a Espanha onde adquiriram 8 kgs de liamba, passaram a fronteira com tal produto e foram interceptados por elementos da Polícia de Segurança Pública na posse do produto acima mencionado;
17.-Acresce que a obrigação de permanência na habitação ou qualquer outra medida de coacção, que não a prisão preventiva se mostra inidónea a acautelar o perigo de continuação da actividade criminosa, uma vez que o recorrente teria fácil acesso ao seu meio social e ao seu grupo de amigos, de onde surgiu o grupo que agora está detido, podendo continuar a actividade criminosa;
18.-O crime em investigação foi cometido no âmbito de um grupo, resultando óbvia a atracção que o arguido e seus comparticipantes nutrem por este tipo de actos;
19.-Ficar em casa não é, pois, para o recorrente suficiente impedimento para acautelar os perigos que se fazem sentir;
20.-O arguido não trabalha, não tem dinheiro e não tem meios lícitos de prover ao seu próprio sustento, razão pela qual é forte a tentação de continuar a praticar crimes para prover ao seu sustento;
21.-
Assim, afigura-se-nos que as elevadas exigências cautelares do caso vertente justificam a aplicação ao recorrente da prisão preventiva, sendo esta a única medida de coacção que se mostra adequada e proporcional às circunstâncias do caso concreto e a elas responde de forma cabal.

4.– Neste tribunal, a Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer nos termos constantes de fls. 167v., no qual conclui que deve ser mantido o despacho recorrido, aderindo para tanto à argumentação de facto e de direito das respostas apresentadas pelo Ministério Público na 1ª instância.

5.– Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do C.P.P, os recorrentes responderam ao parecer do Ministério Público conforme fls. 169 e 170 e 172 e 173.

6.– Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos legais, após o que foram os autos à conferência, para o recurso aí ser julgado, nos termos do art.º 419.º, n.º 3, al. b) do mesmo Código, o que cumpre fazer.

II–Fundamentação


1.–Objecto do recurso


É pacífico o entendimento de que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso ou das nulidades que não devam considerar-se sanadas, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, as quais devem ser uma síntese da motivação, nos termos do n.º 1 do artigo 412.º do C.P.P.
Tendo presentes as conclusões apresentadas por cada um dos recorrentes, importa apreciar a existência de fortes indícios e a necessidade da prisão preventiva no recurso do arguido SV e a nulidade da busca ao veículo e a necessidade e proporcionalidade da medida da prisão preventiva no recurso dos arguidos AJ  e RP.

2.–Apreciação


O interrogatório judicial dos arguidos foi efectuado através de registo áudio, tendo ficado a constar do auto os elementos previstos nos artigos 141.º e 101.º do C.P.P., que, na parte respeitante ao despacho que foi proferido pelo Sr. Juiz de instrução criminal, são os seguintes: (transcrição do auto)

TIPO DE CRIME

um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º, nº 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência ao teor das tabelas I-C e II-A, anexas a este Decreto-Lei.


PERIGOS:

Perigo de continuação da actividade criminosa.

MEDIDA DE COACÃO:

RP
AJ
SV
LV
• TIR, já prestado
• Prisão preventiva
Tudo cfr. artºs 191º, 192º, 193º, 194.º, 196º, 202º, n.º 1, al. a) e 204.º al. c), todos do Código de Processo Penal.

***

Este tribunal procedeu à audição do CD respeitante à gravação das declarações prestadas pelos arguidos e ao despacho que foi proferido pelo sr. Juiz de instrução criminal[3].

No que respeita aos factos indiciados e às provas que os sustentam, o Sr. Juiz disse:
«O tribunal obviamente não se vai pronunciar sobre o ponto 1 de fls. 708 porque os factos constantes da apresentação têm que estar realmente escritos e não podemos remeter simplesmente para o auto, não estamos perante um processo sumário e as coisas têm de ser devidamente apresentadas.
Considero fortemente indiciados os factos que constam da apresentação de fls. 708 a 711, dos pontos 2 a 13, com excepção: com excepção do valor indicado do estupefaciente - não sendo aqui especificado, não decorrendo de qualquer meio de prova, não é esse o valor razoavelmente que consigo calcular e aquele que vem sendo informado pelos senhores polícias, há-de ser algum valor bastante diferente e, portanto, mais perto da ordem dos 5.000/6000 euros. De todo o modo é um cálculo que não está aqui sequer apresentado e que às vezes é expresso no processo; com excepção,  também, da referência que consta do ponto 8 “ pelo menos a partir de Março que os arguidos se dedicam à actividade de venda de estupefaciente”  porque realmente aqui não há nada, mas rigorosamente nada sobre esse assunto (…incompreensível) e ainda que o dinheiro que tinham era derivado da actividade de venda de produtos, fica só a parte “utilizados nessa actividade, porque também não há aqui referência nenhuma a que tenham tido os arguidos outra actividade senão esta. O tribunal baseia-se apenas na prova que é indicada na apresentação e o contacto que eu tenho com o processo é em termos temporais idêntico ou menor do que aquele dos senhores doutores e, portanto, é esta a prova que mantive e não conheço mais do que isto. O ponto, na questão do rigor, que já tinha reparado, mas só por uma questão de rigor, porque daí não retiro especial consequência, não é, essa derivação dos cartões de telefone encontra-se referido no auto de fls. 614, não na apreensão do auto em si, está lá referido dois cartões, não vou, portanto, retirar daqui, digamos, outras consequências dessa situação.
Estes factos estão fortemente indiciados considerando os meios de prova expostos na apresentação de fls. 711 e em coordenação a congruência que foi apresentada pelas declarações dos arguidos».

Os factos que o Sr. Juiz a quo considerou estarem fortemente indiciados foram, assim, os seguintes (tendo por referência os pontos 2 a 13 da apresentação de fls. 711 e ss.):
2)-No dia 12-8-2020, cerca das 18h20, na área de serviço de Grândola situada na A2, sentido Sul/Norte, os arguidos RP e AJ transportavam consigo, na bagageira do veículo onde seguiam, da marca Mercedes, matrícula 12..., 7,850 gr (sete kilos e oitocentas e cinquenta gramas) de haxixe/liamba, acondicionada em 3 sacos, conforme teor do auto de apreensão e teste ao estupefaciente junto, que aqui se dão por reproduzidos.
3)-O veículo 12... era conduzido pelo arguido RP.
4)-À frente do veículo 12..., como batedores, controlando a possível presença das autoridades policiais, seguiam os arguidos LV e SV no veículo da marca BMW, de matrícula 33..., conduzido pelo arguido LV, os quais foram interceptados pelas autoridades policiais ao km 60 da A2, sentido Sul/Norte.
5)-Assim procedendo, com vista a transportarem o aludido estupefaciente, os quatro arguidos, de comum acordo e de modo previamente planeado, regressavam de uma deslocação a Espanha, transpondo a fronteira entre Portugal e Espanha existente em Vila Real de Santo António, cerca das 16h45 do dia 13-8-2020.
6)-Durante o percurso, os arguidos LV e SV seguiram sempre à frente do veículo onde viajavam os arguidos RP e AJ, mantendo uma distância de 20 a 30 km entre si.
7)-Apercebendo-se da operação policial em curso, os arguidos LV e SV procuraram de imediato contactar os arguidos RP e AJ para os alertar do que estava a suceder.
8)-Os arguidos, desde data não concretamente apurada, dedicam-se à venda de estupefaciente, nomeadamente liamba, o que fazem, designadamente, na área de Lisboa, Sintra, Amadora, Queluz e Cacém, deslocando-se, em regra, ao Sul de Espanha para se abastecerem do estupefaciente.

9)-Os arguidos tinham ainda em seu poder:

9.1)-
O arguido RP, além do veículo que conduzia:
a)-1 telemóvel da marca Iphone;
b)-190,20 € em numerário;
c)-E, bem assim, no interior da sua residência, sita na Rua ... Q...- Sintra:
i)-1 embalagem de ecstasy de 3,29 gr;
ii)-7 embalagens de haxixe/liamba com o peso de 24,97 gr;
iii)-1 embalagem de haxixe/liamba com o peso de 95 gr;
iv)-2.050,00 € em numerário.

9.2)-
 O arguido AJ :

a)- 
1telemóvel de marca Iphone;
b)- 1 telemóvel de marca Maxcom; 
c)- 80,00 € em numerário;
d)- E, bem assim, no interior da sua residência, sita na Rua ..., nº...
...,
Q...:
i)- 430,00 € em numerário.

9.3)-
 O arguido LV, além do veículo que conduzia:
- 1 telemóvel da marca Iphone;
- 2 embalagens de cartões de telemóvel MEO

9.4)-
O arguido SV:
- 2 telemóveis da marca Samsung;
- 6.072,90 € em numerário.

10)-
O estupefaciente encontrado na posse dos arguidos destinava-se a ser vendido e cedidos a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias.
11)-O dinheiro e objectos apreendidos descritos foram utilizados pelos arguidos no exercício da actividade de venda de produtos estupefacientes.
12)-Os arguidos quiseram agir da forma descrita, o que fizeram de comum acordo, de forma concertada e mediante um plano previamente articulado, bem sabendo da natureza e características estupefacientes das substâncias que tinham na sua posse e que a respectiva aquisição, detenção, cedência, transporte e venda lhes era vedada, actuando com o propósito de vender posteriormente essa droga a terceiros e, assim, realizar e obter para si elevados proveitos económicos.
13)-Agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
E, de acordo com o auto, é imputado a todos os arguidos a prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22/01, por referência às tabelas I-C- e II-A anexas ao mesmo.

***

Os arguidos AJ e RP  impugnam a validade da busca ao veículo em que se transportavam no dia 12 de Agosto de 2020, quando ele se encontrava parado na área de serviço de Grândola da A2, dizendo que essa busca não podia ter sido validamente realizada ao abrigo das diferentes alíneas do n.º 5 do artigo 174.º do Código de Processo Penal, nem com base no disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 251.º do mesmo diploma legal.
Porque esta é uma questão que tem a ver com a validade de um meio de obtenção de prova, na qual se funda a existência dos fortes indícios relativamente a todos os arguidos, começamos pela sua apreciação.
O Ministério Público defende na sua resposta, como questão prévia, a falta de interesse em agir dos recorrentes RP e AJ, para arguirem a nulidade da busca, pelo facto de não terem suscitado essa questão perante o Sr.  juiz a quo e por isso se tratar de uma questão nova de que o tribunal de recurso não pode conhecer, pedindo a rejeição do recurso nessa parte.
Como resulta do despacho recorrido, um dos elementos de prova que foi valorado foi o auto de busca e apreensão de fls. 615 e 616, correspondente a fls. 106 e 107 dos presentes autos e o resultado dessa busca - apreensão do estupefaciente.
O Sr. Juiz de instrução não se pronunciou expressamente sobre a validade da busca, mas, ao valorar os elementos de prova que dela resultaram, está implicitamente a considerá-la válida.
O arguido não tem que suscitar previamente a questão da validade da busca para que seja proferido um despacho sobre a matéria para depois o poder impugnar e, por esta forma pôr em causa a valoração da prova por esta forma obtida.
É por isso um absurdo afirmar que os arguidos não têm interesse em agir ao impugnarem a valoração da prova resultante da busca.

Apreciando, assim, a validade da busca:

A busca a um veículo numa estação de serviço é uma busca não domiciliária sujeita ao regime previsto no artigo 174.º do Código de Processo Penal.
Pode ser realizada pelos órgãos de polícia criminal nos casos previstos nas três alíneas do n.º 5 desse preceito, só estando sujeita a validação do juiz de instrução no caso da alínea a) desse mesmo preceito. É o que resulta do n.º 6 desse mesmo artigo.
No caso, não se verificava nenhuma das circunstâncias previstas nas alíneas a) e c) do n.º 5 do artigo 174.º do Código de Processo Penal. Embora o tráfico de droga seja pela lei qualificado como criminalidade altamente organizada (alínea m) do artigo 1.º do Código de Processo Penal e artigo 51.º da Lei da droga), não estava iminente a prática de crime que pusesse em grave risco a vida ou a integridade física de qualquer pessoa - alínea a) - e antes da realização da busca, não existia qualquer situação de flagrante delito, tal como este conceito é definido no artigo 256.º do Código de Processo Penal, que tivesse sido constatado pelos agentes policiais e que legitimasse a realização da busca – alínea c).
Resta a alínea b) que prevê a possibilidade da realização da busca «em que os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado»
No auto de busca em questão consta a palavra “Sim”, à pergunta “A busca foi autorizada pelo visado, de acordo com o artigo 174.º, n.º 5, al. b)?” e tal auto está assinado pelo arguido RP, que era quem dispunha da viatura, e contém, também, a rubrica deste na primeira página onde consta aquela inscrição (assinatura e rubrica que o recorrente não impugna), o que no entender do Ministério Público basta para expressar o consentimento do visado.

Vejamos:


Da busca há que elaborar auto que descreva os termos em que a mesma decorreu, quem nela interveio e o que dela derivou, sendo o auto assinado, para além do mais, pelo buscado – artigos 95.º e 99.º do Código de Processo Penal.

A lei fala no consentimento dos visados, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado mas nada refere quanto ao momento em que esse consentimento deve ser prestado nem quanto à forma como deve ocorrer essa documentação.

Pode defender-se que uma coisa é o consentimento prestado, outra a sua documentação e que, na falta de exigência legal, a documentação pode ser feita, por qualquer forma, nos autos, ainda que posteriormente.

Nesse sentido escreve Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código de Processo Penal, 2ª edição actualizada, p. 474): «O consentimento só é relevante se prestado pelo visado. Ele pode ser prestado oralmente antes da busca, mas deve ser posteriormente documentado», citando jurisprudência, a que acrescentamos o acórdão da Relação de Évora, de 14/07/2015 (processo 266/15.1PAOLH-B.E1, acessível em www.dgsi.pt, em que é relator Clemente Lima) em cujo sumário se diz «O consentimento do visado, livre e esclarecido, tem de preceder a busca, podendo ser prestado de forma verbal, impondo-se, quando assim acontece, que, ulteriormente, tal consentimento seja documentado».

Esse é também o entendimento defendido no Código de Processo Penal Comentado (por Conselheiros do STJ), 2016, 1.ª edição, p. 736.

De acordo com essa posição pode defender-se que vale como documentação de um consentimento verbal a declaração consignada no auto de busca, desde que assinada pelo visado no campo próprio em que tal documentação constasse.

Temos algumas reservas em defender tal posição na medida em que o auto de busca não se confunde com a documentação do consentimento e o consentimento do visado não é uma simples formalidade, mas sim um pressuposto ou condição de validade da busca, que é prévio à realização do acto, ao passo que o auto só é elaborado posteriormente. E, por isso, tenderíamos a defender que o acto do consentimento não deverá ser dissociado da sua documentação, isto é, deve ser logo expresso, não podendo valer como tal uma mera assinatura no auto lavrado, o qual, por definição, relata os termos em que um determinado acto processual se realizou, o que implica que seja posterior à prática desse acto, quando o consentimento a que se refere o artigo 174.º é necessariamente prévio.

Porém, sempre poderá objectar-se que a exigir-se a documentação do consentimento anterior ao acto em documento autónomo do auto de busca, não há garantias que essa documentação tenha sido elaborada e assinada antes ou depois da realização da busca, a não ser que fique consignada a hora, minuto e segundo em que o visado assinou, exigência que é excessiva, quando a lei se basta com uma qualquer forma de documentação.

De todo o modo, consideramos que essa será a interpretação mais coerente com o preceito legal em causa e com os bens jurídicos que se pretende proteger mas, em qualquer dos casos, mesmo que se possa admitir, de acordo com a doutrina e a jurisprudência citadas, que a documentação do consentimento possa ser feita posteriormente, o que importa é que o consentimento seja prévio à busca e que o mesmo fique documentado em termos que não deixem incertezas sobre se foi efectivamente prestado e sobre a natureza e âmbito do mesmo. A prestação e documentação do consentimento devem ser de tal ordem que não deixe dúvidas sobre a realidade desse mesmo consentimento[4].

No caso dos autos, como já referimos, na primeira página do auto de busca consta a palavra “Sim”, à pergunta “A busca foi autorizada pelo visado, de acordo com o artigo 174.º, n.º 5, al. b)?” e tal auto está assinado pelo arguido RP, que era quem dispunha da viatura, e contém, também, a rubrica deste nessa primeira página, rubrica essa que sempre teria de existir, ainda que não contivesse aquele “Sim”, face ao disposto no n,º1 do artigo 95.º do Código de Processo Penal.

Porém, a mera aposição da palavra “Sim”, à pergunta “A busca foi autorizada pelo visado, de acordo com o artigo 174.º, n.º 5, al. b)?”, e a assinatura do visado no fim do auto, com uma rubrica na 1.ª página, quando tal auto foi elaborado na Esquadra, muitas horas depois de a busca ter sido efectuada no local dos factos - numa estação de serviço da A2 – em que os arguidos foram surpreendidos, não assegura que aquele tivesse efectivamente conhecimento do teor e alcance daquele “Sim”, deixando na incerteza se o consentimento havia sido ou não efectivamente prestado, nem garante o momento em que esse “Sim” foi aposto no auto.

E por isso entendemos que, no caso, se encontrava afastada, também a aplicação da alínea b) do n.º 5 do artigo 174.º do Código de Processo Penal.

Todavia, se estava afastado o n.º 5 do artigo 174.º do Código de Processo Penal, o mesmo não acontecia com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 251.º do mesmo Código, que permite aos órgãos de polícia criminal proceder, sem prévia autorização da autoridade judiciária a buscas no lugar em que se encontrarem suspeitos, com excepção de busca domiciliária, «sempre que tiverem fundada razão para crer que neles se ocultam objectos relacionados com o crime, susceptíveis de servirem a prova e que de outra forma poderiam perder-se», devendo essa busca, sob pena de nulidade, ser imediatamente comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada em ordem à sua validação – n.º 2 do artigo 251.º que remete para o n.º 6 do artigo 174.º.

Se essa “busca cautelar” tiver lugar numa fase pré-processual ou durante o inquérito, tem sido entendido que essa sindicância (de validação) pertence ao Ministério Público (cf. Paulo Pinto de Albuquerque in Obra citada, p. 669 e Maia Costa in  “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, p. 939.

Segundo Maia Gonçalves (in Código de Processo Penal, 13ª edição, 2002, p. 528) “No caso deste artigo 251.º trata-se de uma nítida medida cautelar, de uma actividade típica de polícia, visando evitar a perda de um meio de prova que poderá desaparecer se não forem tomadas cautelas imediatas, por parecer iminente a fuga de um suspeito ou por existir fundada razão de que o lugar onde ele se encontra oculta objectos relacionados com o crime, susceptíveis de servir a prova, e que de outra forma poderiam perder-se”.

Na mesma linha ensina o Prof. Germano Marques da Silva (in Direito Processual Penal Português vol. 3, edição da Universidade Católica, p. 67) que «Além das hipóteses excepcionais admitidas pelo artigo 174, n.º 5, o artigo 251º admite também como medida cautelar que, em caso de urgência, os órgãos de polícia criminal procedam à revista de suspeitos e a buscas nos lugares onde eles se encontrem, salvo tratando-se de busca domiciliária, sempre que tiverem fundada razão para crer que neles se ocultam objectos relacionados com o crime, susceptíveis de prova e que, de outra forma, poderiam perder-se. A urgência da medida e a utilidade para o processo justificam a atribuição de competência às polícias para a sua prática, ainda antes de lhes serem ordenadas ou autorizadas».

São, portanto, nas palavras do acórdão do STJ de 7/04/2005[5], em que é relator Madeira (processo 05P767, acessível em www.dgsi.pt) “ medidas urgentes, que importa adoptar em face das circunstâncias do caso, com vista a evitar, nomeadamente, a perda das provas presumidamente albergadas pelo objecto da busca. E cuja execução eficaz é incompatível, por isso mesmo, com qualquer dilação, nomeadamente a condição de imposição de prévia autorização judicial.»

Ora, existiam nos autos elementos suficientes para considerar que os recorrentes eram, já na altura, suspeitos da prática de um crime de tráfico de droga, existindo indícios do transporte e consequente detenção de uma quantidade significativa de uma substância como tal qualificada. Existiam, de igual forma, elementos que levavam a acreditar que essa droga, objecto do indicado crime, se encontrava no interior do veículo, sendo a sua apreensão uma diligência da máxima importância para se obter prova desse mesmo tráfico, apreensão essa que, se não fosse realizada naquele momento, poderia vir a ser impossível. Acresce que os recorrentes, como qualquer outra pessoa naquela mesma situação, alertados para o facto de as autoridades policiais terem detectado a sua actividade ilícita, se colocariam naturalmente em fuga, impedindo a apreensão da droga e evitando a sua detenção e ulterior responsabilização pelo crime de tráfico de droga.

Existia, portanto, base legal para a realização da indicada busca naquele preciso momento, diligência cuja realização, pela sua urgência, não podia ser adiada, nem a sua necessidade podia ser antecipada de modo a que fosse possível a emissão do correspondente mandado pelo magistrado do Ministério Público.

E essa busca e o resultado da mesma foram comunicados ao Ministério Público logo que cessou a diligência, o que aconteceu no dia seguinte posto que aquela já cessou fora das horas de expediente do tribunal, o qual validou a detenção dos arguidos e a apreensão do estupefaciente na sequência dessa busca, validando assim tacitamente a mesma.

Se o Código teve a legítima preocupação de conter os poderes policiais como forma de assegurar os direitos, liberdades e garantias legal e constitucionalmente reconhecidos, também procurou agilizar os meios de actuação das autoridades policiais por forma a que elas não ficassem impedidas de actuar em situações de urgência, garantindo a realização da justiça penal e o direito à segurança.

Improcede, por isso, o recurso interposto pelos arguidos AJ e RP, na parte em que eles impugnaram a validade da busca efectuada e, consequentemente, a valoração da apreensão da droga encontrada no interior do veiculo.

Tal apreensão, associada à confissão destes arguidos em sede de primeiro interrogatório, permite formular um juízo de forte indiciação da prática pelos referidos arguidos de um crime de tráfico de droga. Porém, só ao arguido RP  é possível, para já, a imputação desse crime de tráfico por referência à tabela I-A anexa ao DL n.º 15/93, de 22/01, uma vez que só na residência deste arguido foi encontrado e apreendido estupefaciente previsto nessa tabela – ecstasy – e nenhuma outra prova aponta para que tal substância fosse, também, pertença dos demais arguidos, ou que fosse por todos eles destinada à venda.

Importa,  assim, apreciar, quanto aos recursos dos arguidos RP e AJ, se o perigo de continuação da actividade criminosa que o sr. Juiz a quo considerou estar verificado[6] (e contra o qual os recorrentes não se insurgem) poderia ser acutelado pela aplicação da medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, nos termos do artigo 193.º, n.º3 do C.P.P..

É verdade que os arguidos ainda são jovens, embora já não possam beneficiar do regime especial para jovens delinquentes, e que o estupefaciente traficado, pelas suas características, não é considerado como dos mais prejudiciais para a saúde pública, apesar dos seus efeitos aditivos nefastos. Porém, o circunstancialismo fáctico indiciado revela uma organização na aquisição e distribuição de droga, que passa fronteiras e que facilmente os arguidos continuariam a montar através da sua residência, utilizando outras pessoas para o seu transporte, que dificilmente os meios de vigilância electrónica poderiam controlar. Acresce que a actividade de tráfico, pela sua alta rentabilidade, estando os arguidos desempregados, é um fácil atractivo e a permanência em casa permite, ainda assim, colaborar numa actividade organizada de tráfico.

Por isso, não vislumbramos que o perigo de continuação da actividade criminosa pudesse ficar suficientemente acautelado com a aplicação da OPHVE aos recorrentes, numa altura em que a investigação não está sequer concluída quanto à participação de outros agentes na “rede” da qual os arguidos faziam parte.

A medida de prisão preventiva imposta aos recorrentes RP e AJ não se mostra, assim, desproporcionada à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas e é, de igual modo, adequada para conter o perigo de continuação da actividade criminosa, com a intensidade que o mesmo, no caso, revela, não se mostrando adequada, no contexto do factualismo fortemente indicado, outra medida que possa conter esse perigo.

Termos em que improcedem os recursos dos arguidos RP  e AJ .

***

Quanto ao recurso do arguido SV e, designadamente, quanto à existência ou não de fortes indícios quanto ao crime de tráfico que lhe é imputado:

O Código de Processo Penal não define o que considera fortes indícios.No entanto, usa a expressão indícios suficientespara definir um dos pressupostos essenciais para a dedução de acusação e para a prolação do despacho de pronúncia, nos artigos 283.º, n.º 1 e 308.º, n.º 1, estipulando no n.º 2 do art.º 283º que “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
A probabilidade razoável aqui referida tem sido maioritariamente interpretada pela doutrina no sentido da probabilidade preponderante, ou seja, da maior e mais forte possibilidade de o processo conduzir à condenação do que à absolvição do arguido (entre outros, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, p. 179, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I p.133).

Na ausência de definição expressa pelo legislador quanto ao conceito de “fortes indícios” e podendo a aplicação de uma medida de coacção que os exija como pressuposto específico ter lugar numa fase em que não existem ainda indícios suficientes para deduzir a acusação, os indícios da prática do crime que justificam a sua imposição não poderão deixar de ter um conteúdo menos exigente, ou seja, fortes indícios da prática de um crime não podem significar menos que indícios suficientes de que resultem uma possibilidade razoável de condenação. Ainda que possam ser insuficientes para permitir a dedução da acusação têm, contudo, de revelarem uma forte probabilidade de o arguido ter praticado os factos que lhe são imputados, para o que se torna necessária uma apreciação crítica e concreta da prova indiciária recolhida.

Essa prova tem de ser aquela que foi indicada pelo Ministério Público no requerimento de apresentação dos arguidos para interrogatório judicial e que lhes foi comunicada já que, nos termos do artigo 194.º, n.º 7, do Código de Processo Penal, não tendo sido omitida a comunicação dos concretos elementos do processo que indiciam os factos imputados por estar em causa a salvaguarda da investigação – n.º 6 alínea b) – não podem ser considerados para fundamentar a decisão elementos de prova que não tenham sido comunicados.

Por isso, ao contrário do que faz o Ministério Público na sua resposta, não podem aqui ser atendidos, para este efeito, elementos de prova, como os que resultam das escutas, já que estes não foram comunicados ao arguido aquando do seu interrogatório judicial, nem lhe foi omitida a sua comunicação por estar em causa a salvaguarda da investigação, nos termos previstos naquele preceito legal e na alínea e) do n.º 4 do artigo 141.º do C.P.P.

Dos elementos de prova que foram comunicados ao arguido aquando do seu interrogatório (auto de noticia por detenção de fls. 611 a 614, autos de busca e apreensão de fls. 615 e 616, 621 a 623, 627 e 628, 629 e 630, 634 e 635, 636 e 637, 642 e 643, testes rápidos de fls. 617 e 626, relatório de vigilância de fls. 646 a 649 e CRC dos arguidos de fls. 669 a 705), conjugados com as declarações que foram prestadas pelos arguidos RP e AJ, quanto ao transporte do estupefaciente, resulta que:
- no dia 12 de agosto de 2020, cerca das 18h20, na área de serviço de Grândola situada na A2, sentido Sul/Norte, os arguidos RP e AJ transportavam consigo, na bagageira do veículo onde seguiam, da marca Mercedes, matrícula 12..., 7,850 gramas de haxixe/liamba, acondicionada em 3 sacos.
- esses arguidos, de modo previamente planeado, regressavam de uma deslocação a Espanha, transpondo a fronteira entre Portugal e Espanha existente em Vila Real de Santo António, cerca das 16h45 do dia 13-8-2020.
- À frente desse veículo de matricula 12..., seguiam os arguidos LV e SV no veículo da marca BMW, de matrícula 33..., conduzido pelo arguido LV, os quais foram interceptados pelas autoridades policiais ao km 60 da A2, sentido Sul/Norte.
- Durante o percurso, os arguidos LV e SV seguiram sempre à frente do veículo onde viajavam os arguidos RP e AJ, mantendo uma distância de 20 a 30 km entre si.
- Durante a abordagem policial aos arguidos RP e AJ os arguidos LV e SV tentaram entrar em contacto com aqueles.
-Quando foram interceptados pelas autoridades policiais, o arguido SV tinha na sua posse 2 telemóveis da marca Samsung e €6.072,90 (seis mil e setenta e dois euros e noventa cêntimos) em numerário e o arguido LV tinha 1 telemóvel da marca Iphone e duas embalagens de cartões de telemóvel MEO.
- No dia 11 de agosto, pelas 13h50, o arguido SV foi visto a encontrar-se com os arguidos RP e AJ, na zona da restauração do Centro Comercial ... em O... e após, às 14.30, a deslocar-se com aqueles na viatura de matricula 33..., por si conduzida, até às bombas de gasolina da Galp, em O..., local onde o arguido SV é visto a sair da viatura e a contactar com um individuo de cor que entretanto chega num Fiat 500, que se veio a apurar tratar-se do arguido LV, tendo após esse contacto o arguido SV seguido com o RP e o AJ na viatura 33... para a Prac... ... em Q....
Daqui é possível inferir, face ás regras da experiência comum, da razoabilidade e da lógica, com um forte grau de probabilidade, que:
- a viagem a Espanha no dia 12 de Agosto para irem buscar a droga, que os arguidos RP e AJ confessaram quando prestaram decarações, foi previamente combinada entre os quatro arguidos, no dia anterior;
- que os arguidos SV e LV  circulavam na viatura 33..., à frente da viatura onde era transportada a droga como “batedores” desta e que, muito provavelmente, embora o Sr. Juiz a quo não tenha retirado essa conclusão, o “líder” da operação seria o arguido SV pois era ele quem tinha consigo uma quantidade elevada de dinheiro, depois de ter sido feita a aquisição em Espanha da droga que veio a ser apreendida e que era transportada na viatura, para o que seria necessário, pelo menos, quantia em dinheiro equivalente à que ele levava consigo.

As regras da experiência comum apontam que, neste tipo de actividade, o dono da droga nunca ou raramente se expõe e daí a razão para o arguido SV se fazer transportar num veiculo com o dinheiro, conduzido por terceiro e a uma distância razoável do veículo onde a droga era transportada, não só para controlar o transporte da droga e poder avisar o condutor deste veiculo, se surgisse alguma operação de fiscalização mas, sobretudo, para poder fugir em segurança se houvesse algum problema com o veículo onde era transportado o estupefaciente. O que só não aconteceu no caso porque o veículo onde a droga estava a ser transportada estava a ser monitorizado pela polícia e foi abordado sem que o arguido SV, que circulava no carro da frente, se tenha disso apercebido (como resulta do auto de noticia).

A versão dada pelo arguido SV quando foi ouvido (de que foi ao encontro do arguido RP porque ele tinha um problema com o carro e este era um veiculo alugado pela empresa onde o arguido alegadamente trabalhava ou para a qual fazia de intermediário nos alugueres; de que pediu ao LV para conduzir porque ele estava magoado de uma lesão que havia sofrido no ginásio, e de que o dinheiro que tinha com ele era para entregar ao seu irmão e lhe havia sido entregue por uma pessoa para pagar uma obra de construção que o seu irmão ainda iria fazer na casa dessa pessoa) não é razoável como considerou o sr. Juiz a quo, nem faz qualquer sentido à luz das regras da experiência e do senso comum e do que foi observado na vigilância do dia anterior, em que o arguido SV, se tinha uma lesão como referiu, foi visto a conduzir a mesma viatura.

De todo o modo, não é por a versão do arguido ser irrazoável que os fortes indícios existem, é antes porque as provas acima indicadas permitem concluir no sentido de existir uma forte probabilidade de o arguido ter praticado os factos conjuntamente com os demais arguidos e com eles concertado, tendo em vista a venda do produto estupefaciente transportado no veículo que era conduzido pelo arguido RP, face à quantidade do mesmo e ao dinheiro que, no total, foi apreendido aos arguidos, que não exerciam qualquer actividade remunerada, pelo menos comprovada.

Termos em que improcede esse segmento do recurso do arguido.
Resta apreciar se a medida de prisão preventiva que foi aplicada ao recorrente é adequada e proporcional e se outra medida de coação, designadamente a medida de OPHVE é suficiente para acautelar o perigo de continuação da actividade criminosa que o Sr. Juiz a quo considerou existir, despacho que nessa parte não é impugnado pelo recorrente.

Os factos que fortemente se indiciam são susceptíveis de integrar a prática, pelo arguido, em comparticipação com os demais, de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 do DL n.º 15/93 de 22/01, por referência à sua tabela I-C, com pena de prisão de 4 a 12 anos.

Nos termos do artigo 193.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, «as medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que possivelmente venham a ser aplicadas»

As finalidades a acautelar na ponderação da adequação da medida de coação ao caso concreto são as previstas no art.º 204º do CPP, sob a forma de perigos a acautelar e o princípio da adequação das medidas exige que exista uma correspondência entre os interesses cautelares a tutelar no caso concreto e a medida imposta ou a impor. A medida cautelar deve ser apta a responder ao perigo ou perigos que no caso concreto existirem.

O princípio da proporcionalidade, por sua vez, assenta o seu pressuposto na gravidade do ilícito só sendo por isso admissível prisão preventiva relativamente a crimes dolosos puníveis com pena de prisão de máximo superior a 5 anos, que têm ínsita uma ideia de gravidade ou, em casos expressamente determinados de máximo superior a 3 anos. (art.º 202º do CPP) e exige a ponderação entre a medida aplicada ou a aplicar, a importância ou gravidade do crime imputado e a pena que previsivelmente possa vir a ser imposta. Exige uma certa correspondência entre os interesses a acautelar no caso concreto e a medida imposta, ou a impor, por forma a que, tendo em conta o princípio da presunção da inocência do arguido, só sejam postos em causa os direitos fundamentais que o tiverem mesmo de ser, em função das finalidades cautelares visadas.

Tendo em conta a moldura penal aplicável ao crime em causa e a pena que é previsível que venha a ser aplicada ao arguido face aos seus antecedentes criminais, não podemos dizer que a prisão preventiva seja uma medida de coacção desproporcionada.

Mostra-se fundado o juízo sobre a existência de um efectivo perigo de continuação da actividade de tráfico de estupefacientes, que, aliás, o recorrente não impugnou, pois é do conhecimento geral que tal actividade criminosa proporciona a obtenção de lucros rápidos e o recorrente, ainda que tenha alegado que exercia actividade profissional, tinha consigo uma quantia de valor elevado (€6.072,90), no decurso de uma operação organizada de transporte de droga, que tudo leva a crer seja proveniente da actividade de tráfico por si levada a cabo.

A prisão preventiva mostra-se adequada para conter esse perigo com a intensidade que o mesmo se manifesta.

Importa, então, apreciar, dada a natureza subsidiária e excecional da prisão preventiva, se outra medida de coacção não detentiva ou a de permanência na habitação, às quais deve ser dada preferência nos termos do nº 3 do art.º 193º do CPP, responderia de uma forma suficientemente eficaz ao perigo verificado, isto é, se houve violação do princípio da subsidiariedade na aplicação ao recorrente da medida de prisão preventiva.

Nessa parte o despacho recorrido, ainda que de forma pouco fundamentada, afastou expressamente a possibilidade de aplicação da medida de OPHVE, por considerar a mesma insuficiente para acautelar o perigo que se verifica.

A jurisprudência tem identificado situações em que a obrigação de permanência na habitação, como medida alternativa à prisão preventiva e com preferência sobre esta, não se mostra adequada à realização das finalidades cautelares visadas. São casos em que o patamar do perigo não seria evitável mesmo com a obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica.

É o que acontece, por exemplo, em certas situações de tráfico de estupefacientes, em que se identifique a existência de um forte perigo de continuação da atividade criminosa, sabido que o crime de tráfico, excetuando na modalidade de "transporte", é um daqueles crimes que, com os meios de comunicação atuais e algumas ajudas, pode perfeitamente desenvolver-se a partir do interior de uma residência, sem conhecimento da entidade vigilante, já que não é possível efetuar qualquer "fiscalização" da actividade criminosa através do meio técnico de controlo (neste sentido acórdão deste Tribunal da Relação de 7/10/2014, no Proc.º nº 5987/13.0TDLB).

No caso dos autos a actividade de tráfico, que fortemente se indicia por parte do arguido, não se resume ao transporte de droga, antes se desenvolvendo de forma mais ampla e organizada, com ligações fora do território nacional, em que o arguido terá uma posição preponderante e envolve a distribuição de quantidades elevadas de haxixe, actividade que o arguido terá facilidade em continuar a partir da sua residência.

Impondo-se concluir, por isso, pela necessidade da medida da prisão preventiva para conter o perigo de continuação da mesma actividade criminosa pelo arguido, que se manifesta de forma intensa.

Em suma, os factos imputados ao arguido SV encontram-se efectivamente indiciados com base nos elementos probatórios que lhe foram comunicados e conjugadamente considerados e ponderados, sendo os indícios, na fase em que foram apreciados na decisão recorrida – que é a que nos importa - merecedores da caracterização como “fortes”.

A medida de coacção imposta não se mostra desproporcionada à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas e é, de igual modo, adequada e necessária para conter o perigo de continuação da actividade criminosa, com a intensidade que o mesmo, no caso, revela.

Conclui-se, assim, que também o recurso deste arguido não merece provimento.

Uma vez que os recorrentes decaem quanto ao recurso, suportarão os mesmos as custas respectivas, nos termos do art.º 513.º, n.º 1 do C.P.P., sem prejuízo de se poder vir a verificar a condição de que depende a isenção prevista na al. j) do artigo 4.º do Regulamente das Custas Processuais.

III–Decisão.


Pelo exposto acordam os Juízes na 5ª Secção deste Tribunal da Relação em negar provimento aos recursos interposto pelos arguidos SV, AJ e RP, mantendo a medida de prisão preventiva que lhes foi aplicada.
Custas a cargo dos recorrentes, fixando-se em 3 (três) UC a taxa de justiça a pagar por cada um deles.
***
Comunique de imediato o teor do presente acórdão à 1ª instância.


Lisboa, 15 de Dezembro de 2020
(processado e revisto pela relatora)
Maria José Costa Machado
Carlos Manuel Espírito Santo
_______________________________________________________
[1]Os arguidos recorreram separadamente, mas a sua motivação de recurso e conclusões é exactamente a mesma.
[2]As respostas do Ministério Público a estes recursos são exactamente iguais e daí ter-se reproduzido apenas uma delas.
[3]Só não tendo solicitado ao tribunal recorrido a sua transcrição, nos termos do n.º 5 do artigo 101.º do C.P.P. por estar em causa a apreciação da prisão preventiva e esse procedimento poder atrasar a prolação da decisão.
[4]Nesse sentido veja-se o acórdão a Relação de Évora de 31/01/2012, processo n.º 602/11.0JACBR-A. E2, acessível em www.dgsi.pt.
[5]Em cujo sumário se pode ler: «I - O artigo 251 do Código de Processo Penal admite, como medida cautelar, que, em caso de urgência, os órgãos de polícia criminal procedam à revista de suspeitos e a buscas nos lugares onde eles se encontrem, salvo tratando-se de busca domiciliária, sempre que tiverem fundada razão para crer que neles se ocultam objectos relacionados com o crime, susceptíveis de prova e que, de outra forma, poderiam perder-se.
II- A urgência da medida e alguma preocupação com a salvaguarda de eficácia da investigação justificam a atribuição de competência às polícias para a sua prática, ainda antes de lhes serem ordenadas ou autorizadas pelo juiz de instrução.
[6]Ao contrário do que os recorrentes alegam, o Sr. Juiz a quo apenas considerou estar verificado o perigo de continuação da actividade criminosa a e não outros perigos.