REFORMA DE TÍTULO
LIVRANÇA EM BRANCO
PORTADOR LEGÍTIMO
PACTO DE PREENCHIMENTO
AVALISTA
AVAL
GARANTIA
NOVAÇÃO
ABUSO DO DIREITO
SUPRESSIO
BOA -FÉ
OBRIGAÇÃO CAMBIÁRIA
INEXIGIBILIDADE
TÍTULO DE CRÉDITO
DIREITO POTESTATIVO
Sumário


I - É permitida a reforma judicial de livrança em branco entretanto perdida.
II - Estando a livrança em branco já assinada pelo seu subscritor e/ou avalista, há que concluir que o(s) mesmo(s) já se obrigou(obrigaram), embora nos termos de uma convenção externa ao título (i.e., o respetivo pacto ou acordo de preenchimento).
III - A falta de produção de efeitos mencionada no art. 2.º da LULL respeita à inexigibilidade da obrigação cambiária, impedindo o portador do título incompleto de exercer o seu direito cambiário mas, nem por isso, significando a inexistência de um verdadeiro e próprio título de crédito (ou título de obrigação, segundo o art. 1069.º do CPC de 1961).
IV - Ao dar o aval ao subscritor em livrança em branco, fica o avalista sujeito ao direito potestativo do portador de preencher o título nos termos constantes do pacto de preenchimento.
V - O mero decurso do tempo, sem que tenha sido exigido o pagamento da dívida por parte do credor, não é suscetível de, sem mais, criar no devedor a confiança de que não lhe vai mais ser exigido o cumprimento da obrigação que sobre ele impende. Não se verifica o abuso do direito à reforma judicial de uma livrança quando, de um lado, não se contraria manifestamente a boa-fé e, de outro, não se verifica a violação de condutas por parte do seu titular.
VI - A perda, por parte do réu, da qualidade de sócio não acarreta automaticamente a extinção da sua posição de avalista.
VII - Na medida em que nas estipulações subsequentes não se encontre qualquer declaração no sentido de as livranças anteriormente entregues poderem ser preenchidas por forma distinta daquela acordada aquando da respetiva entrega, designadamente no que respeita ao valor máximo de capital que titulam, toma-se claro que, ainda que o réu não tenha ficado vinculado pelas declarações constantes do documento onde se formalizou o acordo posterior, não deixou de estar vinculado pelas declarações constantes da escritura anterior e pela sua posição de avalista nas livranças então entregues. Ainda que no acordo subsequente tenha existido uma reconfiguração do capital em dívida, a par da titulação de parte do mesmo pelas livranças então entregues, isso não significa que tivessem deixado de subsistir as garantias anteriormente prestadas, desde logo as livranças em branco em que se encontra o aval do réu.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,


I - Relatório

1. Caixa Geral de Depósitos, S.A., intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra Fábrica..., Lda. (1.ª Ré), AA (2.º Réu) e BB (3.º Réu), pedindo se declare que a Autora é legítima portadora da livrança em branco melhor descrita na P.I., subscrita pela 1.ª Ré e avalizada pelos 2.º e 3.º Réus.

2. Alega para o efeito, em síntese, que:

- a 6 de novembro de 2006, a 1.ª Ré celebrou com a Autora, com o BCP e com o BPG um contrato de financiamento sob a forma de mútuo com hipoteca e outras garantias, mediante o qual lhe foi concedido um empréstimo;

- para garantia do cumprimento do referido contrato, a 1.ª Ré constituiu hipoteca voluntária sobre diversos imóveis e ainda outras garantias como penhor mercantil, de marcas e de participações sociais;

- a 3 de dezembro de 2007, esse contrato foi objeto de um aditamento e ampliação de hipoteca e garantias no âmbito do qual o montante do crédito foi aumentado e, como garantia, a 1.ª Ré, através dos seus gerentes, entregou a cada um dos bancos uma livrança em branco por si subscrita e avalizada pelos 2.º e 3.º Réus;

- a 16 de dezembro de 2013, o referido financiamento foi objeto de reestruturação, com cessão parcial de créditos e redução da dívida, no âmbito do qual foi entregue, para garantia do mesmo, pela 1.ª Ré à Autora uma outra livrança por si subscrita e avalizada pelo 3.º Réu e por CC, consignando-se, no entanto, que se mantinham em vigor todas as garantias já prestadas, não constituindo a reestruturação a novação do crédito;

- em 2017, teve lugar um novo aditamento ao referido contrato de financiamento, mantendo-se as garantias prestadas tanto no mútuo inicial como em todos os aditamentos subsequentes;

- não encontra nos seus arquivos o original da livrança subscrita em branco pela 1.ª Ré e avalizada pelos 2.º e 3.º Réus a 3 de dezembro de 2007, a qual foi assinada pelos últimos quer enquanto gerentes da 1.ª R., quer a título pessoal, não possuindo, assim, nem o original e nem cópia da referida livrança, e desconhecendo onde a terá perdido.

3. Citados, os Réus, apresentaram contestações separadas.

4. Desde logo, a 1.ª Ré admite a celebração do contrato de mútuo e seus aditamentos, bem como a prestação das garantias aí mencionadas, mais alegando, em síntese, que:

- em 2013, foi concedido um perdão de dívida à 1.ª Ré de cinco milhões de euros;

- em 2019, correu termos um processo especial de revitalização da 1.ª Ré, no âmbito do qual houve negociação com os credores e foi aprovado um plano de recuperação com garantias onde não se inclui qualquer livrança, sendo o valor atual da dívida bastante inferior ao valor da dívida inicial;

- tendo a Autora ao seu dispor como garantias as hipotecas sobre imóveis e os penhores, cuja aprovação teve lugar com aquela do plano de recuperação, e sendo as mesmas mais do que suficientes para garantir o pagamento do valor em dívida, não lhe assiste justificação para a solicitada reforma da livrança.

- conclui pela improcedência da ação, sendo negada à Autora a titularidade da livrança em branco subscrita pela 1.ª Ré e avalizada pelos 2.º e 3.º Réus.

5. Por seu turno, o 2.º Réu invoca a ineptidão da P.I., por contradição entre o pedido e a causa de pedir, mais alegando, em síntese, que:

- a livrança em branco referida pela Autora não pode ser reformada, por não se tratar de um título cambiário nos termos e para os efeitos do art. 484.º do Código Comercial;

- a reforma da livrança em branco violaria a confiança e segurança jurídicas;

- apenas apôs a sua assinatura na livrança em branco enquanto representante da 1.ª Ré, e jamais como avalista;

- ainda que tenha havido aval, este extinguiu-se quer com a reestruturação e recomposição do crédito a 16 de dezembro de 2013, quer com a sua desvinculação a 27 de março de 2014;

- a Autora atua com abuso do direito, já que teve conhecimento da saída do 2.º Réu da 1.ª Ré e nada lhe comunicou sobre o incumprimento desta e sobre os acordos de reestruturação, mais reclamando os seus créditos na PER da 1.ª Ré e vendo os mesmos aí reconhecidos, com perdão parcial, assim levando o 2.º Réu a confiar que não mais acionaria o suposto aval;

- tendo havido redução do valor da dívida a 16 de dezembro de 2013, o montante máximo que a livrança garantiria é inferior àquele indicado pela Autora;

- conclui pela ineptidão da P.I. e pela improcedência da ação, mais pedindo a fixação do valor máximo garantido pela livrança e a prestação de caução pela Autora no caso de se decidir pela procedência da ação.

6. O terceiro Réu, por sua vez, admite a celebração do contrato de mútuo e seus aditamentos, mais alegando, em síntese, que a livrança entregue inicialmente foi devolvida e foi entregue uma nova, pelo que não ocorreu o extravio da mesma, mas a sua substituição. Alega ainda que a Autora não procedeu à descrição dos elementos relevantes da livrança, assim impossibilitando que se tenha a certeza da inexistência de dois títulos, em caso de reforma. Conclui pela improcedência da ação.

7. Foi exercido o contraditório a propósito das exceções invocadas nas diferentes contestações. Com dispensa de audiência prévia foi proferido despacho saneador, julgando improcedente a exceção dilatória da ineptidão da P.I., identificando o objeto do litígio e enunciando os temas da prova.

8. Após a realização da audiência final foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, decide-se julgar a presente acção totalmente procedente e, em conformidade:

1. Declarar que a Autora Caixa Geral de Depósitos, S.A. é titular e legítima portadora da livrança em branco, melhora descrita supra, subscrita por Fábrica..., Lda. e avalizada por AA e BB.

2. Custas pelos Réus, em partes iguais, enquanto partes vencidas (art. 527.º nºs 1 e 2 do C.P.C.)”.

9. Não conformado, o 2.º Réu - AA - interpôs recurso de apelação.

10. Por sua vez, a Autora - Caixa Geral de Depósitos, S.A. - apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.

11. Por acórdão de 15 de dezembro de 2022, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu o seguinte:

Em face do exposto julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente.

12. De novo não conformado, o 2.º Réu - AA -, interpôs recurso de revista, formulando as seguintes Conclusões:

1. Ao pronunciar-se sobre a questão da extinção do aval, o douto Acórdão recorrido fez uso de uma presunção sem ter suporte em qualquer facto provado, pois não consta do “segundo aditamento” efectuado em 2013 que a redução do montante em dívida de €11.100.000,00 para €6.050.000,00, tenha resultado da cessão parcial de parte do crédito da operação inicial, ou seja de parte dos €10.100.000,00;

2. Tanto mais que no primeiro aditamento efectuado em 2007, mediante o qual o montante emprestado foi aumentado em um milhão de euros, o aditamento passou a identificar e a quantificar a dívida global em €11.100.000,00, ou seja, apenas pode entender-se que a cessão parcial do crédito no valor de €5.050.000,000foi feita daquele com referência ao montante global da dívida de €11.100.000,00.

3. O douto acórdão revidendo deve ser revogado na parte relativa à presunção acima indicada, pois ele não resultou da rigorosa aplicação das regras de apreciação da prova, quer da análise crítica da mesma, no termos do disposto nos artigos nos artigos 349º do C.C., quer na análise crítica da prova nos termos dos artigos 607 nº 4 (este aplicável ex vi art. 663º nº 2) e 662º, estes do CPC.

4. A livrança em branco, incompleta, não é ainda uma livrança e não tem natureza cambiária enquanto não for completada. Até ao momento do seu preenchimento, não constitui uma obrigação cartular ou cambiária, pois encontra-se apenas em vias de formação - as declarações nela inscritas constituem apenas actos preparatórios.

5. As livranças em branco não são, por conseguinte, títulos destinados à circulação do crédito. Não são transmissíveis por endosso, a não ser depois de preenchidas de acordo com o pacto de preenchimento.

6. A livrança em branco extraviada pela Recorrida não reveste a natureza de um título de crédito ou título comercial, susceptível de ser transmitido por endosso e, por conseguinte, não preenche os requisitos para a sua reforma judicial, nos termos do artigo 484º do Código Comercial, onde expressamente se refere “títulos comerciais transmissíveis por endosso”.

7. A reforma de uma livrança em branco violaria a confiança e segurança jurídicas, princípios emanados do Estado de Direito consagrado na Constituição da República.

8. Dado que o prazo de prescrição da livrança começa a contar do seu preenchimento, ou seja, do momento em que fica completa, a reforma de uma livrança em branco poderia funcionar como um processo de evitar a prescrição da livrança já prescrita.

9. Isto é, preenchida a livrança pelo portador e deixada prescrever, seria fácil “extraviar” o documento para recorrer à sua reforma judicial de que ressurgiria liberta da prescrição.

10. Tal situação é tanto mais flagrante em casos como o presente em que decorreram já mais de 15 (quinze) anos sobre a data em que foi emitida a livrança (2007).

11. Em qualquer caso, tem de se entender que o aval atribuído ao Recorrente encontrar-se-ia extinto pelo que, caso pudesse proceder a reforma judicial da livrança em branco, nunca poderia incluir o aval deste;

12. Desde logo, porque, em 2013, após o Recorrente ter deixado de ser gerente (em 2007) e sócio da subscritora da livrança (em 2010), teve lugar uma reestruturação e recomposição do crédito que operou a sua consolidação, unificando num único contrato, e sob novas condições, todos os créditos em que a subscritora, 1ª Ré, era interveniente;

13. Em consequência, verificou-se a reconfiguração da relação jurídica fundamental: o crédito sofreu uma redução, por compra pelo sócio da subscritora, e foram acordados: - um novo prazo de pagamento; - um novo valor para as amortizações ou prestações mensais; - novas regras de cálculo e contabilização de juros e as respectivas taxas; - novas garantias.

14. O Recorrente, avalista da livrança em branco, não teve intervenção na negociação, nem na formalização dos contratos, nem deu o seu assentimento aos mesmos, pelo que estas alterações não lhe são oponíveis, apenas vinculando quem teve intervenção nas alterações contratuais – Ac. do STJ de 21-10-2020, Proc.º 1920/16.6...;

15. Acresce que após a reestruturação operada em 2013, por mais duas vezes, em 2015 e em 2017, o Sindicato Bancário e a subscritora da livrança em branco efectuaram subsequentes reestruturações e alterações das condições daquele negócio, sem a participação, conhecimento e assentimento do Recorrente.

16. Assim, o aval do Recorrente na livrança em branco em causa, teria caducado ou estaria extinto em virtude da reestruturação da dívida e da reconfiguração da divida remanescente, feitas à revelia do avalista em branco, atenta a função económica da figura do aval em branco.

17. O facto de um dos membros do Sindicato Bancário (BPG – Banco Português de Gestão) ter devolvido à subscritora a livrança em branco que lhe havia sido entregue na sequência da outorga da escritura pública de 3/12/2007 (primeiro aditamento) por considerar que a operação de 2013 era uma operação nova, que tinha absorvido a celebrada em 2007, mostra a consistência do entendimento defendido pelo Recorrente.

18. Por outro lado, sempre teria de concluir-se que o Recorrente se teria desvinculado daquele pré-aval em 27-03-2014, data da recepção pela Recorrida da carta em que o Recorrente que lhe comunicou a sua desvinculação;

19. Parte da doutrina e da jurisprudência admite que, em certas circunstâncias, é de admitir a possibilidade de desvinculação unilateral do ex-sócio ao acordo de preenchimento, uma vez que não faz sentido que o ex-sócio fique eternamente vinculado a um pré-aval que prestou num determinado momento da vida económico-financeira ou profissional do próprio e da sociedade;

20. Tem-se entendido também que, enquanto o avalista de um título cambiário não se pode unilateralmente desvincular, já o poderá fazer, reunidas certas condições, o avalista de um título em branco, como é o caso sub judice;

21. A perda da qualidade de sócio faz desaparecer, em princípio, a razão de ser da continuidade da vinculação por parte do avalista de livrança em branco, o que justifica o reconhecimento ao avalista da possibilidade de se opor a tal continuação, como fez o Recorrente; tanto mais que o ex-sócio avalista em branco deixa de ter a possibilidade de controlar a gestão da sociedade financiada e a negócios que conduzam ao agravamento da situação da devedora.

22. Não tendo havido - como não poderia haver - circulação da livrança em branco, dada a sua acessoriedade ao crédito que avaliza, a relação entre avalista e avalizado deve ser tratada pelas disposições do direito comum, no que refere às garantias pessoais das obrigações, afastando as características próprias dos títulos de crédito.

23. Ao contrário do decidido no douto acórdão recorrido, tem de se entender que configura um manifesto abuso de direito a pretensão da Recorrida em reformar judicialmente a letra em branco com vista a executar o aval contra o Recorrente.

24. A actuação da Recorrida excede de forma manifesta e desrazoável os ditames da boa-fé e do Direito, o que torna ilegítimo o exercício do seu eventual direito contra o Recorrente, nos termos do artigo 334º do Código Civil.

25. A Recorrida não avisou o Recorrente do incumprimento da devedora principal, nem múltiplas reestruturações da dívida efectuadas, e apenas em 2019 ameaçou o Recorrente de que iria executar o aval, ou seja decorridos doze anos sobre o financiamento efectuado em 2007, e oito anos após a denúncia efetuada pelo Recorrente.

26. O decurso dos anos - e o facto de o Recorrente ter informado a Recorrida da sua saída da devedora principal e da sua denúncia/resolução do vínculo que resultava do aval em branco – criou no Recorrente o sentimento de confiança de que o assunto estava resolvido e de não seria demandado, a que acresceu o facto de um dos membros do sindicato bancário – o BPG – devolveu a livrança considerando que a reestruturação da dívida configurava uma nova operação.

27. A Recorrida participou na negociação e aprovação do PER que foi homologado para a devedora principal, cujo cumprimento está em curso, pelo que o respeito pelo princípio da boa-fé impõe à Recorrida o dever de manter o compromisso assumido no PER, também em relação ao avalista, ora Recorrente, não exigindo deste o que está a ser cumprido no PER.

28. Constitui abuso de direito na modalidade de "Venire Contra Factum Proprium", este comportamento da Recorrida que participou activamente na negociação e aprovação do PER, e, vem agora mover execução sobre avalista, contrariando o acordado no PER.

29. Em face do que oportunamente se expôs a propósito de cada um dos temas, com suporte na doutrina e na jurisprudência, que aqui se dão como reproduzidos, deve ser julgada como inconstitucional, por violação, no acórdão revidendo, designadamente os princípios da boa-fé, da segurança e protecção da confiança, da justiça e da proporcionalidade:

a) A interpretação feita no sentido de que a norma do artigo 484º do Código Comercial permite que uma livrança em branco com um aval em branco nela prestado seja objecto de reforma judicial deixando o avalista em absoluta e imprescritível sujeição ao portador;

b) A interpretação feita no sentido de que a norma do artigo 32º da Lei Uniforme Relativa a Letras e Livranças impõe que o aval em branco, prestado para garantia pessoal para determinado contrato de financiamento, não se extingue com a posterior alteração contratual que operou a reestruturação do crédito, alterando o seu montante, com novos prazos, condições e garantias, declarando que se mantêm as garantias anteriormente prestadas e que não constitui novação, na qual não interveio aquele primitivo avalista, que ficaria assim sujeito às condições e obrigações advindas de alterações contratuais em que não foi parte e, por conseguinte, sem a sua vontade negocial; Tal interpretação, além de ser contrária à lei por violar o princípio fundamental da relatividade dos contratos consagrado no arti406º do Código Civil violaria os princípios constitucionais antes invocados;

c) A interpretação feita no sentido de que LULL, nomeadamente, o seu artigo 32º impede que o avalista de uma livrança em branco se possa desvincular mediante comunicação escrita ao tomador, com a justificação de ter deixado de ser sócio da sociedade subscritora da livrança em branco de já não participar na gestão da sociedade, nem ter participado nas reestruturações do créditos efectuadas, quando nem o titulo estava preenchido, nem a avalizada fora demandada por incumprimento; ao admitir uma vinculação de duração indefinida, tendencialmente perpétua, eliminando a faculdade de pôr termo a tais relações jurídicas, uma tal interpretação, é contrária à ordem pública (artigo 280º do Código Cível) e violadora dos princípios constitucionais acima enunciados;

d) A interpretação feita no sentido de que o nº 4 do artigo 217º do CIRE permite que o credor que participou na negociação e aprovação do PER homologado para a devedora principal, possa executar o avalista exigindo deste o que está a ser cumprido no âmbito do PER.

Nestes termos e nos mais de Direito, com douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso se admitido, e, a final, julgado procedente, revogando-se o douto Acórdão recorrido, e decidindo-se pela improcedência da acção quanto ao Recorrente e pela absolvição do pedido contra ele formulado.

Porque só assim se aplicará o Direito

E se fará Justiça!

13. A Autora - Caixa Geral de Depósitos, S.A. -, por seu turno, apresentou contra-alegações com as seguintes Conclusões:

I) A Recorrida CGD instaurou a presente acção declarativa de simples apreciação, sob a forma de processo comum, nos termos e ao abrigo do disposto no art.º 484º do Código Comercial, com os fundamentos que supra sumariamente foram indicados, e que aqui se reproduzem, atento o princípio de economia processual.

II) Após produção de prova, foi proferida douta sentença pelo Tribunal a quo que, em suma, julgou procedente, por provada, a presente acção, e em consequência, declarou que a A. Caixa Geral de Depósitos, S.A. é titular e legítima portadora da livrança em branco, melhor descrita na petição inicial, subscrita por Fábrica..., Lda., e avalizada por AA e BB.

III) Por douto Acórdão de 15.12.2022, a fls…, foi, em suma, julgado improcedente o recurso de Apelação que pelo Réu tinha sido interposto da douta sentença proferida nos autos, em 13.06.2022, a fls..., confirmando, assim, tal decisão de primeira instância.

IV) O douto Acórdão recorrido foi, sublinhe-se, correcta e devidamente fundamentado, pronunciou-se sobre todas as questões para as quais foi chamada a proferir decisão e tomou em consideração todos os elementos necessários para a boa decisão da causa.

V) Contudo, o Recorrente, nas presentes Alegações, limita-se a reproduzir os mesmíssimos fundamentos do seu anterior recurso de Apelação, motivo pelo qual o ora por si alegado não tem a virtualidade de colocar em crise os fundamentos, de facto e de Direito, de improcedência do recurso de Apelação, facto que, desde logo, demonstra a manifesta improcedência do presente recurso de Revista.

VI) Acresce que, não se tratando de caso em que o recurso é sempre admissível, nos termos do disposto no art.º 629º do CPC (nem, de resto, tal foi alegado por parte do Recorrente), e uma vez que o douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de 15.12.2022, confirmou, sem voto de vencido, e sem fundamentação essencialmente diferente, a douta sentença de 1ª instância, não deverá ser admitido o recurso de revista “normal” interposto pelo Recorrente de tal decisão.

VII) Por outro lado, não cumpriu o Recorrente o ónus que sobre si impende, de fundamentação da excepcionalidade do recurso de revista por si interposto, o que sempre determina a inadmissibilidade do mesmo.

VIII) Em todo o caso, não se mostram preenchidos os requisitos de admissibilidade do recurso de revista excepcional.

IX) Pelo que, não deverá ser admitido, por inadmissível, o recurso de revista interposto pelo Recorrente do douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de 15.12.2022, a fls..., seja enquanto revista “normal”, seja enquanto revista “excepcional”.

X) Analisando o teor das doutas alegações ora notificadas, constata-se que o Recorrente limita-se a transcrever, quase ipsis verbis, o que anteriormente alegou em sede de alegações dirigidas ao Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do seu anterior recurso de Apelação, o que, manifestamente, não é esta a função e o objecto de um recurso de Revista.

XI) Assim, o alegado pelo Recorrente no âmbito do presente recurso é manifestamente inidóneo para pôr em crise o doutamente decidido, por Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, em 15.12.2022, a fls…

XII) A verdade é que, como atestam os autos (pontos 28, 29, 30 e 41 da matéria de facto provada nas instâncias), a A. CGD fez prova dos requisitos a que alude o art.º 484º do Código Comercial, de procedência da presente acção.

XIII) A tese alegada por parte do Recorrente, de que uma livrança em branco pretensamente não pode ser objecto da presente acção de reforma, não tem qualquer suporte legal, nem é isso o que resulta do teor do art.º 484º do Código Comercial, como fez ver, e bem, o Tribunal a quo.

XIV) Todas as referências doutrinárias e Jurisprudênciais citadas pelo Recorrente respeitam ao tema da exequibilidade da livrança, e não quanto à admissibilidade da presente acção, à luz do art.º 484º do Código Comercial, pelo que, nenhuma é aplicável ao caso sub judice.

XV) Ora, a entrega da livrança em branco, em garantia de cumprimento das obrigações assumidas pela mutuária no âmbito do contrato junto como doc. 2, implica a vinculação imediata dos signatários dos títulos e outorgantes às obrigações decorrentes, quer das obrigações cambiárias, quer das obrigações subjacentes – neste sentido, Jurisprudência e Doutrina supra citadas.

XVI) Pelo que, a de que a livrança em branco objecto dos presentes autos pode ser reformada, nos termos e ao abrigo do disposto no art.º 484º do Código Comercial, ao invés do que o Recorrente infundadamente alega.

XVII) Ainda, diga-se que a reforma da livrança em branco objecto dos presentes autos não viola a confiança e segurança jurídicas.

XVIII) Quanto a esta matéria, nada de novo é invocado pelo Recorrente que permita colocar em crise o doutamente decidido pelo Tribunal a quo – é este o fundamento de um recurso, não esqueçamos – pelo que é manifesta a insuprível improcedência do alegado por parte do Recorrente relativamente a esta matéria.

XIX) Em primeiro lugar, a A. não preencheu a livrança em branco objecto dos presentes autos, pelo que a tese expendida pelo 2º Réu, partindo de uma premissa meramente hipotética, sem qualquer relação com a realidade, terá necessariamente de improceder.

XX) Em segundo lugar, não tendo tal livrança sido preenchida, em qualquer dos prismas que se coloque a questão, nem sequer se iniciou a contagem do referido prazo de prescrição.

XXI) Como é Jurisprudência constante deste Colendo Supremo Tribunal de Justiça, o início da contagem do prazo de prescrição de três anos, previsto no art. 70º, nº 1, da LULL (aplicável ex vi art. 77º da LULL) afere-se em função da data de vencimento inscrita na livrança – neste sentido Jurisprudência supra citada.

XXII) Acresce que, o aval prestado pelo Recorrente aquando do aditamento formalizado em 03.12.2007 não se encontra extinto (a admitir-se, por mera hipótese de raciocínio, sem com tal conceder, que o alegado a este propósito por parte do Recorrente não extravasa o objecto da presente acção, que é de reforma da livrança em branco subscrita pela 1ª R. e avalizada pelos 2º e 3º RR., ao abrigo do disposto no art.º 484º do Código Comercial).

XXIII) Em primeiro lugar, a A. CGD não devolveu a livrança que lhe foi entregue aquando da celebração do contrato 03.12.2007, doc. 2 da P.I., nem à subscritora, nem a qualquer dos avalistas, como resulta da factualidade que vem dada como provada das instâncias.

XXIV) Aliás, é o próprio Recorrente que reconhece expressamente que o aval por si prestado não se extinguiu, na carta datada de 25.03.2014 (facto provado n.º 48), em que solicita a devolução de tal livrança.

XXV) Em segundo lugar, do facto de as posteriores negociações da dívida com a empresa mutuária, aqui 1ª Ré, terem sido encetadas com os seus legais representantes, à data dos factos (como, de resto, não podia deixar de o ser)não resulta, per se, qualquer pretensa extinção do aval prestado pelo 2º R., ao invés do alegado por parte do Recorrente.

XXVI) O contrato de 16.12.2013 não importou ou implicou qualquer novação da dívida, como consta expressamente da cláusula 6ª do doc. 3 junto à p.i.( mantêm-se em vigor todas as garantias anteriormente prestadas) e da cláusula 10º (foi acordado que se mantêm em vigor todos os termos, condições e garantias), o mesmo sucedendo nos posteriores aditamentos ao contrato inicial – cfr. cláusulas supra invocadas.

XXVII) Tal novação expressamente afastada.

XXVIII) O certo é que, cfr. dispõe o art.º 859º do Código Civil, a novação tem de ser expressa – cfr. Jurisprudência e doutrina supra invocada. Ora, in casu, não só não houve qualquer declaração expressa de novação, como, mais do que isso, houve declaração expressa no sentido contrário, ou seja, de os posteriores aditamentos não constituírem novação.

XXIX) Do mero facto de o Recorrente não ter eventualmente participado nos posteriores aditamentos (facto que não foi provado, mas que aqui se coloca por mera hipótese de raciocínio) não resulta qualquer pretensa novação, porquanto o aval por si prestado reporta-se somente ao capital de € 277.200,00 a que respeita o contrato de 03.12.2007.

XXX) Mais, resulta da factualidade que vem das instâncias, nomeadamente factos não provados b) e d), que a A. CGD nunca comunicou ao 2º R. que aceita o seu pedido de desvinculação do aval prestado (formulado, nomeadamente, por carta de 25.03.2014).

XXXI) A posição da A. foi sempre de recusar tal desvinculação, que, de facto, inexistiu.

XXXII) Acresce que, o alegado pelo 2º R. não encontra suporte no Direito Cartular: inexiste qualquer disposição legal que suporte tal tese – de eventual desvinculação unilateral do avalista.

XXXIII) E, em todo o caso, a perda, por parte do Recorrente, da sua qualidade de sócio não determina, ipso facto, a extinção da sua qualidade de avalista.

XXXIV) Facto esse que, diga-se, o Recorrente tem perfeita consciência, porquanto na carta de 25.03.2014 apenas solicita a devolução do título, a qual, de resto, não mereceu qualquer aceitação por parte da A..

XXXV) Diga-se, a este respeito, que a Lei Uniforme sobre letras e livranças (LULL) não admite a desvinculação unilateral do avalista das obrigações cambiárias que, por esse aval, assumiu. É sempre indispensável a autorização do beneficiário do aval, aqui a CGD, que , in casu, inexistiu.

XXXVI) O Recorrente não se encontra obrigado a uma qualquer eventual obrigação futura ou ad aeternum.

XXXVII) Por outro lado, a conduta da A. CGD observou a estrita legalidade, tanto no plano do Direito objecto, como adjectivo, pelo que, inexiste qualquer pretenso Abuso de Direito por parte da A. CGD.

XXXVIII) Nem tal conduta pretensamente violou o princípio da boa-fé.

XXXIX) Acresce que, a invocação por parte do Recorrente do PER aprovado e homologado da1ª Ré carece de total fundamento, de facto e de Direito, atento o disposto no art.º 218º n.º 1 alínea a) do CIRE.

XL) A aprovação do PER não tem a vitualidade de, per se, diminuir a dívida do credor.

XLI) E nunca tal pretensa redução da dívida produziria efeitos em relação aos avalistas, 2º e 3º RR., atento o disposto no art.º 217º n.º 4 do CIRE.

XLII) Sendo certo que a Livrança é um título de crédito, cujos caracteres de (i) literalidade, (ii) abstracção e (ii) autonomia, sobre os quais incidiu já vastíssima Doutrina e Jurisprudência, permitem concluir que a Livrança tem um valor próprio, maxime, valendo por si mesma.

XLIII) Pelo que, relativamente aos avalistas, nomeadamente o aqui Recorrente, se a sua obrigação assume um carácter totalmente autónomo relativo à obrigação subjacente, atento o disposto no 32º da LULL, o facto de ter sido aprovado um plano de recuperação relativamente à subscritora, como é bom de ver, em nada muda a obrigação daqueles avalistas perante o credor.

XLIV) Relativamente às pretensas inconstitucionalidades, o mero decalque que o Recorrente faz nas presentes alegações das pretensas inconstitucionalidades que alegadamente padeceriam a sentença de 1ª instância sempre determina a ininteligibilidade do alegado a este propósito, e consequentemente, a improcedência do mesmo.

XLV) Sem prejuízo, e em todo o caso, diga-se que a invocação de uma inconstitucionalidade implica a enunciação do concreto entendimento normativo pretensamente violador da Lei Fundamental, a identificação do normativo e a explicação suficiente que demonstre a violação do entendimento à norma invocada (cfr. Jurisprudência supra invocada), pelo que a simples invocação de normativos constitucionais que o Recorrente faz, não tendo formulado qualquer explicação suficiente que demonstre a violação do entendimento à norma invocada, não é a forma processualmente relevante para invocação de inconstitucionalidade.

XLVI) Por esse motivo, deverá o alegado a este proprósito, desde logo, improceder.

XLVII) Mesmo que assim se não entenda, o que aqui se concebe por mera hipótese de raciocínio, sem com tal conceder ou transigir, a verdade é que o douto Acórdão recorrido não fez errada interpretação de princípios constitucionais.

XLVIII) Com efeito, o douto Acórdão recorrido, ao estar fundamentado na prova produzida nos autos, e nas disposições legais aplicáveis ao caso em apreço, não viola o princípio da justiça.

XLIX) De igual forma, inexiste qualquer violação do princípio da igualdade: não há tratamento desigual de situações iguais nem tratamento igual de situações desiguais.

L) Também, em caso algum, viola o princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança porque, precisamente, o decidido encontra-se fundamentado nas disposições legais aplicáveis ao caso em apreço.

LI) E o doutamente decidido não viola o princípio da proporcionalidade, porquanto, face ao incumprimento e ao extravio do título, a presente acção é a única possibilidade de a A. fazer valer o seu direito de crédito contra os RR.

LII) No caso sub judice não foi praticada qualquer inconstitucionalidade, pelo que improcede tal invocação por parte do Recorrente.

LIII) O douto Acórdão proferido pelo Tribunal a quo foi, permita-se sublinhar, correcta e devidamente fundamentado (de facto e de Direito), e tomou em consideração todos os elementos necessários para a boa decisão da causa, devendo, por esse motivo, ser mantido, in totum.

LIV) Bem andou o Tribunal a quo ao decidir como o fez, inexistindo causa ou fundamento que determine a revogação do douto Acórdão recorrido.

Termos em que, não se vê razão para criticar o doutamente decidido, impondo-se a confirmação do douto Acórdão recorrido e consequentemente negar provimento ao presente recurso, com as legais consequências, fazendo-se assim, como sempre, a acostumada Justiça!

14. Por despacho de 13 de março de 2023, o recurso foi admitido pelo Senhor Desembargador-Relator.

15. Tratando-se de revista excecional, interposto ao abrigo do art. 672.º, n.º 1, als. a) e b), do CPC, por despacho de 30 de março de 2023, o Senhor Conselheiro-Relator remeteu o processo à Formação do Supremo Tribunal de Justiça.

16. Por acórdão de 19 de abril de 2023, à luz do art. 672.º, n.º 1, al. a), do CPC, a Formação admitiu o recurso de revista excecional interposto pelo 2.º Réu - AA..

II – Questões a decidir

Atendendo às conclusões do recurso, que, segundo os arts. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, do CPC, delimitam o seu objeto, e não podendo o Supremo Tribunal de Justiça conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excecionais de conhecimento oficioso, estão em causa as seguintes questões:

- se uma livrança em branco configura um título cambiário reformável, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 484.º do Cód. Comercial;

- se por força da reestruturação da dívida ocorrida em 2013, na qual não interveio, o Réu/Recorrente deixou de estar vinculado à sua posição de avalista na livrança entregue em 2007.

III – Fundamentação

A. De Facto

Depois das alterações introduzidas pelo Tribunal da Relação de Lisboa, foram dados como provados os seguintes factos:

1. Em 6 de Novembro de 2006 a 1ª R. celebrou com a A., com o BCP e com o BPG um financiamento sob a forma de mútuo com hipoteca e garantias, mediante o qual lhe foi concedido um empréstimo no valor global de dez milhões e cem mil euros.

2. A 1ª R. confessou-se desde logo devedora da referida quantia, conforme cláusula 3ª.2, destinando-se tal montante aos fins elencados na cláusula 2ª.3.

3. Estava previsto que o reembolso do empréstimo seria realizado numa única prestação, que se venceria no prazo de cinco anos menos um dia a contar a contar da data da assinatura do contrato de financiamento.

4. Mais se previu, que a taxa de juro seria a correspondente à média aritmética simples das taxas Euribor a três meses, apurada com referência ao penúltimo dia útil anterior ao dia de início de cada período de contagem de juros, acrescida de uma margem de 2%, arredondada para o 1/8 de ponto percentual imediatamente superior.

5. O aludido empréstimo foi concedido em sindicato bancário nas seguintes proporções:

- BCP – 54,46%

- CGD – 27,72% - dois milhões e oitocentos mil euros BPG – 17,82%

6. Para garantia do aludido empréstimo a 1ª R. constituiu a favor dos bancos hipoteca voluntária sobre os seguintes imóveis:

- prédio urbano sito na Rua ..., freguesia ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2477, actualmente 4837, e descrito na CRP de ... sob o n.º ...41;

- prédio urbano sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1765 e descrito na CRP de ... sob o n.º ...;

- prédio urbano sito na Avenida ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2476 e descrito na CRP de ... sob o n.º ...62.

7. Para além da hipoteca, foram ainda constituídas as seguintes garantias: penhor mercantil sobre os esquipamentos da devedora;

- penhor de marcas e logotipos da devedora;

- penhor e promessa de penhor de participações sociais.

8. A 3 de Dezembro de 2007 tal contrato foi objecto de um aditamento e ampliação de hipoteca e garantias.

9. Nos termos do qual, o montante do empréstimo foi ampliado em um milhão de euros, passando o respectivo montante do mútuo para onze milhões e cem mil euros.

10. Sendo que, proporcionalmente, a A. passou a deter um crédito de € 3.076.920,00, relativamente ao empréstimo em apreço.

11. No “aditamento e ampliação” identificado em 8. ficou declarado pelos outorgantes que “Para titulação do capital emprestado nos termos do presente Aditamento, ou seja, € 1.000.000,00 (um milhão de euros), respectivos juros, demais encargos e ainda de todas e quaisquer dívidas e responsabilidades decorrentes deste aditamento, a MUTUÁRIA [1ª R.] entrega nesta, a cada um dos BANCOS DO SINDICATO, uma livrança por si subscrita, e avalizada por AA [2º R.] e BB [3º R.], com o montante, a data de emissão, vencimento e local de pagamento em branco e pelo presente documento a MUTUÁRIA e os AVALISTAS autorizam irrevogavelmente os BANCOS DO SINDICATO a procederem, livre e integralmente, ao preenchimento do referido título de crédito, designadamente quanto à data de emissão e de vencimento, montante e local de pagamento, pelo valor correspondente à totalidade dos créditos e encargos vencidos e exigíveis emergentes do presente contrato e que em cada momento cada um dos BANCOS DO SINDICATO seja credor, acrescido de todos e quaisquer encargos com a selagem, caso se verifique o incumprimento por parte da MUTUÁRIA”.

12. No seguimento de negociações nas quais não teve intervenção o 2º R., em 16/12/2013 foi subscrito pelo BCP, pela A., pelo BPG, pela 1ª R. e pelo 3º R. (por si e em representação de DD), um acordo que denominaram de “Segundo Aditamento a Contrato de Mútuo”, com o teor que consta do documento 3 junto com a P.I. e que aqui se dá por integralmente reproduzido, aí ficando declarado, para além do mais, que “A EMPRESA [1ª R.] reconhece que por via do contrato era devedora, com referência a 31 de Dezembro de 2012, ao SINDICATO FINANCEIRO da quantia global de € 11.100.000,00 de capital, sendo na proporção de € 6.045.600,00 (…) ao BCP, € 3.077.200,00 (…) à CGD [A.] e € 1.978.200,00 (…) ao BPG, acrescida da quantia de € 1.997.282,35 de juros vencidos até àquela data”.

13. No acordo identificado em 12. ficou ainda declarado que “A EMPRESA [1ª R.] entrega, ainda, a cada um dos BANCOS DO SINDICATO uma livrança em branco, por si subscrita e avalizada pelos quinto e sexta outorgantes, BB e DD, acompanhadas da respectiva autorização de preenchimento, até ao limite de capital de € 5.050.000,00, na proporção do crédito de cada um dos BANCOS DO SINDICATO, respectivos juros, despesas e encargos”.

14. No acordo identificado em 12. ficou ainda declarado que “CONSIDERANDO QUE:

(…)

E) na presente data os BANCOS DO SINDICATO cederam ao Sr. BB [3º R.] parte do referido crédito, no montante, em capital, de € 5.050.000,00, pelo valor de € 50.000,00, sem que tal cessão tenha envolvido a transmissão de qualquer garantia real ou pessoa associada a tal crédito, cujas garantias se mantiveram, na totalidade, constituídas a favor dos BANCOS DO SINDICATO;

(…)

Por força da cessão parcial do crédito mencionada no antecedente Considerando E), o capital em dívida ao SINDICATO FINANCEIRO é, nesta data, de € 6.050.000,00, na proporção referida na cláusula anterior, sendo devido, por conseguinte, o montante de (…) € 1.677.200,00 à CGD (…)”;

15. No acordo identificado em 12. ficou ainda declarado que “Para garantia do pontual e integral cumprimento de todas as obrigações emergentes do Contrato, do seu Aditamento e do presente Segundo Aditamento, designadamente o reembolso do capital, o pagamento de juros remuneratórios e moratórios, comissões, demais encargos e despesas, mantêm-se em vigor todas as garantias prestadas, designadamente: (…) As três livranças em branco com as respectivas autorizações de preenchimento entregues, uma a cada um dos BANCOS DO SINDICATO, em 3 de Dezembro de 2007, subscritas pela EMPRESA [1ª R.] e avalizadas por BB [3º R.] e DD e AA [2º R.] e EE, referidas na cláusula 6ª do Documento Complementar que faz parte integrante da escritura pública identificada no Considerando B”.

16. A 17 de Dezembro de 2015, procedeu-se a um novo aditamento ao mútuo inicial, através do qual, sumariamente, foi alargado o período de carência até Dezembro de 2015 e ajustado, em baixa, o valor das prestações de capital de 2016.

17. Em 2017 teve lugar o quarto aditamento ao contrato de mútuo, no qual foram alteradas as prestações mensais de capital, introduzidas cláusulas resolutivas de salvaguarda, adicionada uma cláusula de cessão de créditos pelo sindicato a terceiros, bem como ocorreu a elevação do indexante a zero em caso de negativo.

18. Eliminado.

19. A Dezembro de 2007 os gerentes da empresa, 2º e 3º RR., detinham em partes iguais a integralidade do capital social da 1ª R.

20. Eliminado, por já estar contemplado no ponto 11. reformulado.

21. Eliminado, por já estar contemplado no ponto 11. Reformulado.

22. O “aditamento e ampliação” identificado em 8. foi exarado por escritura pública assinada, para além do mais, pelos 2º e 3º RR., na presença do notário respectivo.

23. Todas as folhas da escritura pública identificada em 22. foram assinadas pelos seus intervenientes, no canto superior direito.

24. Face às dificuldades financeiras que a 1ª R. atravessa, esta deu entrada em Tribunal de um Processo Especial de Revitalização – Processo n.º 2194/19.2... – que correu termos no Juízo Local Cível de ..., Juiz ..., Comarca ..., aprovado e homologado por sentença que transitou em julgado em 4.8.2020.

25. O crédito emergente do presente empréstimo foi reclamado no PER e aí reconhecido.

26. Por carta datada de 21/3/2019, enviada pela A. à 1ª R., e tendo por assunto “Cobrança de créditos por via judicial Operação nº ...91 (Empréstimo Sindicado – Participação CGD)”, a A. declarou à 1ª R., para além do mais, que “irá proceder à cobrança, através de acção judicial, das importâncias que lhe são devidas por essa empresa, que se encontram vencidas, por incumprimento de cláusulas contratuais, correspondente a capital, juros remuneratórios, juros compensatórios, impostos e outros encargos vencidos, a que acresce a respectiva mora diária”.

27. Além da carta enviada para a 1ª R., foi remetida para os 2º e 3º RR. uma missiva com o seguinte teor:

“Exmo. Senhor,

Na qualidade de avalista do crédito acima identificado em assunto e referente à empresa Fábrica..., Lda. informamos V. Exa. de que a Caixa Geral de Depósitos decidiu recorrer à via judicial para cobrança do mesmo, face ao incumprimento que regista e insucesso da via negocial.

A acção executiva será intentada não só contra a empresa referida, mas também contra V. Exa., a menos que, no prazo de 15 dias, proceda à regularização ou ao pagamento em dívida, ficando assim devidamente interpelado para esse efeito.”.

28. A A. não encontra nos seus arquivos o original da livrança em branco referida na escritura pública de 3/12/2007, nos termos do ponto 11., apesar de ter efectuado várias diligências e buscas internas no sentido de o encontrar, tendo-se o mesmo extraviado em circunstâncias não concretamente apuradas pela A.

29. Eliminado, nos termos adiante decididos.

30. Por motivo não concretamente apurado, a A. também não possui cópia da mesma nos seus arquivos.

31. Os 2º e 3º RR. assinaram o referido título como gerentes da empresa em causa, bem como a nível pessoal.

32. De acordo com o estipulado entre as partes, a livrança entregue a cada um dos bancos do sindicato, previa que seriam estes a preencherem a sua data de vencimento e de emissão, montante e local de pagamento.

33. A livrança em causa apenas continha a assinatura dos avalistas, in casu, os 2º e 3º RR.

34. Sendo que, no verso da mesma continha a menção “Bom para aval à firma subscritora”, seguida da assinatura do 2º R.

35. A livrança em questão corresponde à livrança referida na escritura pública de 3/12/2007 como entregue à A., nos termos do ponto 11.

36. A livrança referida consubstancia um modelo de formato normalizado de 211 mm x 102 mm, aprovado pela Portaria n.º 28/2000, de 27 de Janeiro, impressos em papel branco, liso, com gramagem contida entre 85 g/m2 e 95 g/m2.

37. A livrança tem um texto geral, disposto da seguinte forma:

a) Num sector superior, com a área de 211 mm x 86 mm, constam as seguintes indicações: Local e data de emissão (ano, mês, dia); importância em euros; valor; vencimento (ano, mês, dia); “No seu vencimento pagarei(emos), por esta única via de livrança à Caixa Geral de Depósitos ou à sua ordem, a quantia de ...”; livrança n.º...; assinatura de FF; NIB (número de identificação bancária); nome e morada do(s) subscritor(es) e numeração sequencial, descrita na alínea c);

b) Num sector inferior, com a área de 2111 mm x 86 mm, a indicação seguinte: “Imposto do selo pago por meio de guia”; valor do imposto do selo correspondente ao valor da livrança, da moeda em que este se encontra expresso, e da data em que o imposto é liquidado;

c) O número sequencial referido na alínea a) corresponde ao número com que a livrança ficou registada na escrita da instituição de crédito, obedecendo à seguinte estrutura: 9 dígitos correspondentes ao número de identificação fiscal da tipografia produtora do impresso, 2 dígitos correspondentes aos 2 últimos dígitos do ano de produção do impresso, 6 dígitos correspondentes ao número sequencial no ano indicado nos 2 dígitos anteriores, 1 dígito de controlo (módulo 11) dos 8 dígitos imediatamente anteriores, num total de 18 dígitos numéricos.

38. A livrança tem, também, um texto especial, disposto da seguinte forma:

a) Num sector superior esquerdo: o logotipo da Caixa Geral de Depósitos, seguido dos seguintes dizeres: “Av. ... – Contribuinte IVA PT ...46”, inserto por impressão;

b) No canto inferior direito, limitado entre o espaço reservado ao nome e morada do subscritor e a margem direita consta a designação, em letra reduzida, sem o respectivo logotipo, da entidade fabricante dos impressos.

39. O modelo da livrança ora descrita tem o fundo geral de segurança, cobrindo o sector superior, com as dimensões de 211 mm x 86 mm, e o texto geral, ambos impressos em offset.

40. Através de uma carta enviada pelo 2º R. à A., relativamente à livrança objecto de apreciação nos presentes autos, este refere que “vem o signatário [2º R.] solicitar a esse prestigiado Banco que lhe devolva a livrança em branco e por si assinada, que se encontra à guarda dessa Instituição”.

41. Apesar de todos os esforços que a A. desenvolveu nesse sentido, não foi possível aos seus serviços encontrar o original ou cópia da livrança em causa, subscrita pela 1ª R. e avalizada pelo 2º R.

42. O 2º R. adquiriu uma participação na 1ª R.

43. O capital social, integralmente realizado, era de € 2.094.951,17, correspondente à soma de três quotas, a saber, uma quota com o valor nominal de € 209.495,12 pertencente ao 2º R., uma quota com o valor nominal de € 209.495,12 pertencente ao 3º R., e uma quota com o valor nominal de € 1.675.970,93 pertencente em comum e em parte iguais aos 2º e 3º RR.

44. Em 25-10-2007 o 2º R. renunciou à gerência da 1ª R.

45. Em Junho de 2010 o 2º R. alienou a sua participação no capital da 1ª R.

46. Participação essa que foi, entretanto, alienada à S... e, por via da extinção desta, ao Governo ....

47. A mulher do 2º R., EE, nunca interveio como avalista em qualquer operação celebrada pela A. ou pelo sindicato bancário atrás referenciado com a 1ª R.

48. Em 25-3-2014 o 2º R. enviou à administração da A. que, pelas inscrições nela apostas, foi recebida em 27-3-2014, uma carta, e nela o 2º R. comunicou àquela o seu afastamento da 1ª R., que nada tinha a ver com a gestão da sociedade, nem com a estratégia de negócios por aquela seguida, que não participara, nem havia sido informado da reestruturação da dívida para a qual não tinha sido “visto nem achado”, nem assinou os novos documentos contratuais.

49. Essa carta terminou referindo que “não se pode deixar de estar em presença da extinção do aval individual prestado pelo signatário no “aditamento” assinado em 13-12-2007”,

50. E pedindo que lhe fosse devolvida a livrança.

51. O registo da renúncia mencionado em 44. ocorreu em 16.1.2008.

52. Após a subscrição, em 16/12/2013, do acordo identificado em 12., o BPG procedeu à devolução à 1ª R. da livrança em branco que lhe havia sido entregue na sequência da outorga da escritura pública de 3/12/2007, nos termos referidos em 11.

Por seu turno, considerou-se como não provada a seguinte matéria de facto:

a) Eliminado

b) Eliminado.

c) Aquando do contrato de financiamento de Dezembro de 2007, foram entregues duas livranças à A., uma avalizada pelo 2º R. e outra avalizada pelo 3º R.;

d) Aquando do contrato de reestruturação datado de Dezembro de 2013, foi devolvida ao 3º R. a livrança entregue por ele inicialmente.

B. De Direito

Do direito da Autora à reforma da livrança em branco

1. A Autora - Caixa Geral de Depósitos, S.A. - pretende a reforma de uma livrança em branco subscrita pela 1.ª Ré - Fábrica..., Lda. - e avalizada pelos 2.º e 3.º Réus - AA e BB.

2. Para o efeito, a Autora alega que, no âmbito de relações bancárias que estabeleceu com os Réus, essa livrança foi subscrita pela 1.ª Ré e avalizada pelos 2.º e 3.º Réus, a qual, entretanto, se extraviou.

3. Antes da reforma do CPC, operada em 2013, pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, encontrava-se previsto o processo especial de reforma de documentos, autos e livros, nos arts. 1069.º e ss. do anterior CPC.

4. A Autora fez prova do extravio da livrança em branco subscrita pela 1.ª Ré e avalizada pelos 2.º e 3.º Réus e pretende a sua reforma (factos provados sob os n.os 28, 30 e 41).

5. Isto é, tendo feito prova do extravio da livrança em branco subscrita pela 1.ª Ré e avalizada pelos 2.º e 3.º Réus, a Autora pretende, pois, a respetiva reforma.

6. De acordo com o art. 484.º do Cód. Comercial, “As letras, acções, obrigações e mais títulos comerciais transmissíveis por endosso, que tiverem sido destruídos ou perdidos, podem ser reformados judicialmente a requerimento do respectivo proprietário, justificando o seu direito e o facto que motiva a reforma.”

7. O 2.º Réu - AA - alega que, tratando-se de uma livrança em branco, não é passível de ser reformada, pois ainda não constitui um verdadeiro e próprio título de crédito.

8. Contudo,

Não é correcto dizer que, antes do seu preenchimento, antes de ser completa, a letra não exista. O preenchimento não é um pressuposto de existência da letra ou livrança, mas apenas da exigibilidade do seu pagamento, é uma condição de eficácia da exigibilidade do crédito cartular.

Aquela construção prova o contrário do que pretende. Se dela se puder concluir que, até ao preenchimento, os que as assinaram podem delas se desvincular unilateralmente, porque antes de preenchidas, a letra ou a livrança ainda não existem como tais, ainda não têm um regime cambiário, então é inexorável concluir que esta construção não deve ser seguida porque enfraqueceria de tal modo a posição do portador que nunca poderia contar com as assinaturas constantes do título e que nunca saberia com que assinaturas poderia contar nem contra quem poderia cobrar o título.

Esta construção, a ser aceite, descaracterizaria de tal modo as letras e as livranças em branco que as privaria da sua utilidade típica no mercado e no comércio.

Em suma, não mais esses títulos poderiam ser utilizados em branco, o que colidiria com a doutrina do artigo 10º da LULL.

O preenchimento deve ser entendido como mero pressuposto de eficácia, no que respeita à cobrabilidade, um pressuposto de exequibilidade da letra e da livrança na sua cobrança. Antes de a letra estar completamente preenchida, as assinaturas dos seus intervenientes cambiários já os obrigam, já os vinculam, a cada um deles, perante quem vier a ser portador ao tempo do vencimento. A letra tem de ser preenchida e completada antes de ser exigido o seu pagamento, mas pode sê-lo por qualquer dos seus sucessivos portadores, não tendo de o ser pelo primeiro e podendo sê-lo pelo último. Qualquer dos sucessivos portadores a pode preencher e completar.1.

9. Por conseguinte, pode dizer-se que se afigura possível a reforma de uma livrança em branco - in casu, a livrança em branco subscrita pela 1.ª Ré e avalizada pelos 2.º e 3.º Réus, nos termos requeridos pela Autora -, sem que se verifique qualquer violação da tutela da confiança e da segurança jurídica.

10. Todavia, o 2.º Réu - AA - invoca que não se pode afirmar o extravio da livrança em branco em apreço, sendo este um dos requisitos cuja verificação é essencial para admitir a sua reforma. Refere que essa livrança em branco não pode ser considerada um título de crédito suscetível de reforma, nos termos do art. 484.º do Cód. Comercial: desde logo porque, faltando-lhe o valor e a data do vencimento, não se encontra preenchidos dois pressupostos para produzir os efeitos próprios desse tipo de título de crédito.

11. Tal como mencionado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a afirmação de que a Autora - Caixa Geral de Depósitos, S.A. - não pode obter a reforma da livrança em branco, porque está por demonstrar a sua perda ou destruição, baseia-se na consideração de uma realidade factual distinta daquela que foi considerada como provada. Na verdade, da matéria de facto dada como provada resulta que a Autora não encontra nos seus arquivos o original da livrança em branco, apesar de ter encetado diversas diligências para o localizar, tendo-se o mesmo extraviado em circunstâncias não concretamente por aquela apuradas.

12. Ou seja, a Autora deixou de saber do paradeiro da livrança em branco que tinha nos seus arquivos, nos quais não a encontra. Daí que se haja extraviado em circunstâncias não concretamente apuradas pela Autora. Isto equivale a afirmar que a Autora perdeu essa livrança em branco, que esse documento deixou de estar na detenção material da Autora, sem que se possa afirmar qualquer culpa sua nessa perda.

13. Também em conformidade com o acórdão recorrido, no que respeita à (des)qualificação da livrança em branco como um título de crédito reformável, nos termos do art. 484.º do Cód. Comercial, o entendimento do 2.º Réu - AA - parece padecer de uma deficiência interpretativa que inquina a conclusão por si alcançada.

14. É que, mesmo partindo apenas do corpo do art. 484.º do Cód. Comercial, impõe-se afirmar que este prevê a possibilidade de vários títulos de crédito - e não só dos títulos cambiários completos - serem judicialmente reformados. Com efeito, tal resulta claramente da referência, contida nesse preceito, a título meramente exemplificativo, a títulos mobiliários como as ações e as obrigações, a par de títulos cambiários como as letras de câmbio.

15. Tal como fez o Tribunal a quo, importa também convocar os critérios hermenêuticos consagrados no art. 9.º do CC, atendendo-se aos elementos teleológico ou ratio legis, histórico e sistemático, e não apenas ao elemento gramatical da interpretação da lei.

16. Assim, recorde-se desde logo que, na medida em que ao tempo da aprovação do Cód. Comercial (1888) não existia no CPC (de 1876) então em vigor processo especial para a reforma de títulos de crédito, integrou-se naquele corpo de normas a disciplina desta matéria. Todavia, logo se seguiu o Cód. Processo Comercial (de 1895), onde se “organizou o processo especial para a reforma de títulos de crédito mercantil destruídos”, aplicando-se o mesmo, “com algumas modificações, à reforma de títulos de crédito mercantil perdidos”, tendo sido as regras dos arts. 151.º a 155.º do referido corpo de normas “que serviram de fonte aos arts. 1068º a 1071º” do Código de Processo Civil de 1939, depois transpostas para os art. 1069.º a 1073.º do CPC de 1961. O art. 1069.º do CPC de 1961 dispunha sobre a reforma de “títulos de obrigação destruídos”, resultando do corpo do art. 1072.º ser tal processo especial aplicável igualmente à “reforma de títulos perdidos ou desaparecidos”, e decorrendo ainda da al. d) da mesma norma a possibilidade de o título reformado não ser qualquer daqueles elencados no art. 484.º do Cód. Comercial. Por último, decorria igualmente do art. 1073.º que “tratando-se da reforma de documentos que não possam considerar-se abrangidos pelo artigo 1069.º, observar-se-á, na parte aplicável, o que fica disposto nesta secção2.

17. Com a reforma processual civil efetuada em 2013 deixou de estar previsto no CPC o processo especial para reforma de títulos, podendo ler-se na exposição de motivos do novo CPC que “o acervo das alterações ora introduzidas permite classificar esta reforma como a mais profunda realizada no processo civil português desde 1939, o que só por si, justifica (…) a eliminação de alguns processos especiais que, actualmente, já não se justificam”.

18. Porém, apesar da eliminação do processo especial de reforma de títulos operada pela reforma processual civil de 2013, as regras desse mesmo processo especial entretanto suprimido não devem ser descuradas na resolução da questão de saber se existe ou não o direito à reforma de uma livrança em branco (ou incompleta), na medida em que a mesma se possa caracterizar como um título de obrigação (ou mesmo como um daqueles outros títulos que não cabem diretamente na previsão do art. 484.º do Cód. Comercial, mas que resulta, a contrario sensu ,da al. d) do art. 1072.º do CPC de 1961 serem outrossim suscetíveis de reforma judicial). Assim, da conjugação do art. 484.º do Cód. Comercial com os arts. 1069.º - 1072.º do CPC antigo resultava a faculdade de o detentor do título perdido intentar uma ação especial de reforma de documentos em ordem à obtenção de um “novo título”.

19. Estando a livrança em branco já assinada pelo seu subscritor e/ou avalista, há que concluir que o(s) mesmo(s) já se obrigou(obrigaram), embora nos termos de uma convenção externa ao título (i.e., o respetivo pacto ou acordo de preenchimento – normalmente, consubstanciado numa cláusula do contrato escrito).

20. Conforme refere o Tribunal da Relação de Lisboa, isso mesmo vem sendo repetidamente afirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça. Assim:

- “a livrança em branco destina-se a ser preenchida pelo seu adquirente, sendo essa aquisição acompanhada da atribuição de poderes para o seu preenchimento, o chamado pacto ou contrato de preenchimento. À livrança em branco, de acordo com o disposto no art. 10º, aplicável por força do estatuído no art. 77°, ambos da LULL, é imprescindível que dela conste a assinatura de, pelo menos, um dos obrigados cambiários e que essa assinatura tenha sido feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária3;

- “a Lei Uniforme das Letras e Livranças admite e reconhece a figura da livrança incompleta ou em branco, a qual, preenchida antes do vencimento, passa a produzir todos os efeitos próprios da livrança – artigos 75º e 10º, este último aplicável às livranças, por força do artigo 77º4;

- “o pacto de preenchimento é um contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário, no que respeita aos elementos que habilitam a formar um título executivo, ou que estabelece em que termos se torna exigível a obrigação cambiária5;

- “o pacto de preenchimento é o acto através do qual as partes do negócio cambiário acordam os termos ou as condições em que deve vir a ser posteriormente completado o título de crédito emitido, definindo a obrigação cambiária, ou seja, as condições relativas ao seu conteúdo, designadamente quanto ao seu montante, ao seu vencimento, ao lugar do seu pagamento, etc. . (…) pacto esse que pressupõe, além do mais, que o título cambiário tenha sido emitido e entregue em branco, isto é, sem que nessa altura se mostrasse preenchido com alguns dos seus elementos essenciais que dele devem constar aquando da sua apresentação a pagamento6.

21. Ou seja, a falta de produção de efeitos mencionada no art. 2.º da LULL respeita à inexigibilidade da obrigação cambiária, impedindo o portador do título incompleto de exercer o seu direito cambiário mas, nem por isso, significando a inexistência de um verdadeiro e próprio título de crédito (ou título de obrigação, segundo o art. 1069.º do CPC de 1961).

22. Por conseguinte, na medida em que perdendo a livrança em branco perde um verdadeiro e próprio título de crédito, o seu portador tem direito à respetiva reforma judicial.

23. Por seu turno, a afirmação de que o art. 484.º do Cód. Comercial permite a reforma judicial de uma livrança em branco perdida em nada afeta os princípios constitucionais convocados pelo 2.º Réu - AA. Com efeito, não merece acolhimento a posição segundo o qual a reforma judicial deixa, neste caso, o avalista numa posição de absoluta e imprescritível submissão ao portador, na medida em que, não só as regras da prescrição não são afastadas – o cálculo da prescrição pressupõe o vencimento da “livrança” -, mas também a sujeição do avalista correspondente ao direito potestativo do portador (de completar a livrança, designadamente no que toca à data de pagamento) decorre dos termos em que o preenchimento do título se encontra acordado7, e não da circunstância de o mesmo título se ter entretanto perdido e necessitar, por isso, de ser reconstituído. I.e., continuando a ser possível aplicar o pacto de preenchimento, para aferir da (i)legitimidade do exercício do direito ao preenchimento, desde logo com recurso aos princípios constitucionais convocados pelo 2.º Réu, não resulta fragilizada a posição do avalista, no caso de reforma judicial do título, por este se ter perdido.

24. Assim, reiterando a decisão do acórdão recorrido, importa concluir pelo direito da Autora - Caixa Geral de Depósitos, S.A. - à reforma da livrança em branco cuja perda se encontra demonstrada, assim improcedendo, nesta parte, as conclusões do recurso interposto pelo 2.º Réu - AA.

Do abuso do direito

1. Nesta sede, o Tribunal de 1.ª Instância determinou a inexistência de qualquer exercício abusivo do direito da Autora - Caixa Geral de Depósitos, S.A. -, com recurso à seguinte fundamentação:

Face aos elementos dos autos, e reportando-nos à factualidade provada, o facto de o 2.º Réu ter comunicado à Autora a sua desvinculação da sociedade devedora e ter solicitado a devolução da livrança não pode ter criado no mesmo qualquer expectativa de não vir, no futuro, a ser accionado pelas responsabilidades que assumiu e que bem sabe que assumiu, daí ter feito aquelas comunicações à Autora. Acresce que a Autora só pode ter a pretensão de accionar os Réus perante a situação de incumprimento, o que fez, ainda antes do PER, em Março de 2019 (cfr, fls. 56v a 57 - interpelações). Assim, considera-se que a actuação da Autora não consubstancia um abuso de direito, porquanto esta veio exercer um direito legítimo perante a realidade fáctica que se verificou”.

2. Por sua vez, de acordo com o 2.º Réu - AA -, a Autora teve conhecimento, em março de 2014, de que aquele abandonara a 1.ª Ré, nada lhe tendo comunicado sobre os diversos acordos que reestruturaram e/ou reconfiguraram a dívida da 1.ª Ré perante os bancos que integram o sindicato bancário, nem tão pouco tendo prevenido o 2.º Réu do incumprimento da 1.ª Ré8 - via de regra, é o incumprimento do avalizado que desencadeia o accionamento do título. Em sua opinião, a Autora deixou criar no 2.º Réu a expectativa legítima ou convicção, pelo decurso do tempo, de que a denúncia do aval teria sido aceite e que não o iria acionar nessa qualidade ou posição, quando afinal o queria manter ad aeternun como vinculado pelo aval prestado na livrança em branco. O 2.º Réu conclui que se trata de um exercício manifestamente intolerável e desleal do direito à reforma da livrança em branco, porque violador do princípio da boa fé.

3. Segundo o art. 334.º do CC, “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

4. O Supremo Tribunal de Justiça já concluiu que “o abuso do direito – art. 334.º do CC –, na modalidade da supressio, verifica-se com o decurso de um período de tempo significativo susceptível de criar na contraparte a expectativa legítima de que o direito não mais será exercido9. Todavia, o que estava em causa neste litígio era a propositura de ação executiva contra o avalista de uma livrança em branco “treze anos depois desse mesmo avalista ter abandonado a sociedade subscritora da livrança (entretanto declarada insolvente), e reportando-se as responsabilidades reclamadas (só conhecidas do embargante quando foi citado para a execução), a dívidas contraídas por essa sociedade já após o seu abandono como sócio”. Por isso, o Supremo Tribunal de Justiça afirmou que “perante o decurso de tão dilatado lapso de tempo e tendo em consideração os impressivos factos que se acabaram de descrever, era mais do que natural que se tivesse instalado no embargante a convicção de que a responsabilidade assumida pelo aval prestado jamais lhe seria exigida, até porque, no Banco de Portugal, não constava qualquer registo da responsabilidade decorrente desse aval”.

5. Também conforme jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, “III. Ao dar o aval ao subscritor em livrança em branco, fica o avalista sujeito ao direito potestativo do portador de preencher o título nos termos constantes do contrato de preenchimento, assumindo mesmo o risco de esse contrato não ser respeitado e de ter de responder pela obrigação constante do título. IV. O abuso de direito na sua vertente de “venire contra factum proprium”, pressupõe que aquele em quem se confiou viole, com a sua conduta, os princípios da boa fé e da confiança em que aquele que se sente lesado assentou a sua expectativa relativamente ao comportamento alheio. V. O simples decurso do tempo, sem que tenha sido exigido o pagamento da dívida por parte do credor, não é susceptível de, sem mais, criar no devedor a confiança de que não lhe vai mais ser exigido o cumprimento da obrigação que sobre ele impende. VI. O preenchimento de uma livrança, entregue em branco ao credor quanto ao montante e data de vencimento, decorridos mais de doze anos sobre a data da constituição da obrigação e mais de sete anos sobre a declaração de insolvência da sociedade subscritora da livrança, e a instauração da acção executiva contra a avalista desta sociedade, só por si, não consubstanciam fundamento bastante para o reconhecimento do abuso de direito previsto no artigo 334º do Código Civil, na modalidade de “venire contra factum proprium””10.

6. Do mesmo modo, a jurisprudência mencionada pelo 2.º Réu - AA – nas suas alegações de recurso reporta-se a casos em que o credor participa nas negociações de PER do seu devedor e vem, depois, demandar o avalista do devedor, em dissonância com aquilo a que ficou vinculado no âmbito desse PER.

7. Reitere-se, nesta sede, que, in casu, não está em causa o exercício do direito da Autora ao preenchimento da livrança em branco, mas tão somente o exercício do seu direito a ver reformado o título cambiário de que é portadora, e que se perdeu.

8. Por outro lado, da factualidade apurada resulta que a Autora não demandou o 2.º Réu para dele obter a satisfação de qualquer crédito em medida distinta daquela que emerge da sentença do PER (processo n.º 2194/19.2...) identificado sob o n.º 24 dos factos provados. Nesta sede, pode também ponderar-se que, sendo a obrigação do avalista relativamente autónoma perante aquela do avalizado, nos termos do art. 32.º da LULL, a aprovação de um plano de recuperação da subscritora da livrança não afeta a sua obrigação.

9. Acresce ainda que a sentença do PER (que reconheceu o crédito da Autora emergente do mútuo identificado sob o n.º 1 dos factos provados) só transitou em julgado a 4 de agosto de 2020 e que já a 21 de março de 2019 a Autora havia enviado uma carta ao 2.º Réu em que lhe comunicava a sua intenção de intentar ação executiva para pagamento das quantias devidas pelo mesmo, enquanto avalista da 1.ª Ré-mutuária, atendendo ao incumprimento desta, no caso de este persistir11. Não decorreu, assim, um longo período de tempo – nem tão pouco o prazo de três anos de prescrição cambiária12 - entre o incumprimento da relação fundamental pela 1.ª Ré e a comunicação ao 2.º Réu da intenção da Autora de acionar a livrança, preenchendo-a. Só que, perante a perda desta, a Autora tinha de obter a sua reforma judicial.

10. O exercício do direito à reforma judicial da livrança pela Autora não é abusivo: de um lado, não contraria manifestamente a boa fé (enquanto expressão de uma justa composição dos interesses entre as partes) e, de outro, não se verifica a violação de condutas por parte do seu titular. Não resulta qualquer injustiça do exercício dessa posição jurídica pela Autora e muito menos excessiva.

11. Note-se, igualmente, que não é porque o 2.º Réu - AA - comunicou à Autora, em março de 2014, que era totalmente alheio à gestão da 1.ª Ré e à estratégia de negócios por esta adotada, ou porque afirmou que não tinha sido informado do ato negocial praticado em dezembro de 2013, no qual não teve intervenção, que a Autora ficou obrigada, sem mais, a considerar extinto o aval cambiário prestado pelo 2.º Réu na livrança emitida em branco em 2007, através da aposição da sua assinatura a seguir à expressão “Bom para aval à firma subscritora”. Ao silêncio da Autora perante a pretensão então manifestada pelo 2.º Réu, no sentido da devolução da livrança em branco, também não pode ser atribuído qualquer valor declarativo, designadamente no sentido da afirmação da obrigação da Autora de considerar extinto tal aval cambiário, exatamente porque o art. 218.º do CC nega tal valor negocial ao referido silêncio.

12. Segundo o entendimento do Tribunal recorrido – que se acolhe -, no que respeita ao tempo decorrido desde março de 2014, afigura-se claro que se apenas em 2019 a Autora entendeu que devia completar a livrança em branco, na sequência da situação de incumprimento que em março desse mesmo ano (2019) comunicou a cada um dos Réus, só então se justificava a propositura de ação para reforma da mesma livrança, depois de verificada a sua perda.

13. Por último, se é certo que a dívida da 1.ª Ré se foi reconfigurando com cada um dos atos negociais subsequentes a 2007 (designadamente com o de 2013), não é menos certo que a obrigação cambiária do 2.º Réu continuou a ser aquela que emerge do ato negocial de 2007 (nos termos infra melhor explicitados). Daí decorre a desnecessidade de a Autora (ou qualquer outro dos bancos do sindicato bancário que a Autora integra) comunicar ao 2.º Réu o teor do ato negocial de 2013. Isto é, não se pode imputar à Autora a violação de qualquer dever lateral ou acessório de conduta - de fidelidade ou lealdade, de aviso, de informação, de esclarecimento, de cuidado ou proteção da pessoa e património da contraparte e de cooperação - no âmbito das relações mantidas com o 2.º Réu.

14. Por isso, não pode afirmar-se que o exercício, pela Autora, do direito à reforma da livrança em branco se apresenta como ilegítimo, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, não só porque inexiste qualquer violação de deveres laterais ou acessórios de conduta13, mas igualmente porque o tempo decorrido não é suscetível de ter criado no 2.º Réu qualquer expectativa legítima de que a Autora deixaria de o considerar como avalista. Na verdade, daí decorre apenas que a livrança em branco dada em garantia do cumprimento do aditamento de 2007 não tinha sido apresentada a pagamento porque não existia então qualquer incumprimento contratual. Do mesmo modo, porque a Autora não podia antecipar que a livrança em branco se tinha perdido antes de a pretender preencher, e porque só com a comunicação de março de 2019 é que o 2.º Réu tomou conhecimento dessa vontade da Autora de completar a livrança, de modo algum se pode afirmar qualquer conduta pretérita da Autora suscetível de criar no 2.º Réu a convicção séria de que aquela não lhe iria opor o direito à reforma da livrança em branco entretanto perdida.

15. De qualquer modo, a perda, por parte do 2.º Réu, da qualidade de sócio da 1.ª Ré não acarreta automaticamente a extinção da sua qualidade ou posição de avalista, i.e., da sua obrigação de garantia do pagamento da livrança14. De resto, o 2.º Réu prestou o aval também a título pessoal (facto provado sob o n.º 31).

16. Consequentemente, tem razão o Tribunal da Relação de Lisboa quando decide improcederem também nesta parte as conclusões do recurso interposto pelo 2.º Réu - AA -, ficando por afirmar o invocado abuso do direito da Autora - Caixa Geral de Depósitos, S.A. - à reforma da livrança em branco, no que respeita à posição do 2.º Réu como avalista.

Da extinção do aval

1. O 2.º Réu - AA - entende que a extinção do aval cambiário por si prestado obsta à reforma da livrança em branco, pelo menos no que respeita à sua posição como avalista. Sustenta, para tanto, que o ato negocial de 2013, configurando uma transformação do débito inicial numa nova operação, com novas garantias de cumprimento, e celebrado sem a sua participação, não o vincula, designadamente no que toca à declaração de manutenção das garantias já prestadas. Note-se que mediante o aval o 2.º Réu assumiu uma obrigação de garantia: assegurar o pagamento da livrança. Em seu entender, trata-se antes de uma novação da dívida, contrariamente ao declarado pelos outorgantes nesse acordo de 2013.

2. Recordando a cronologia dos atos negociais, tal como resulta dos factos considerados como provados, verifica-se que o sindicato bancário em que a Autora se integra concedeu um financiamento à 1.ª Ré, em 2006, no valor global de € 10.100.000,00, através da celebração de um contrato de mútuo com constituição de hipotecas e penhores. Em 2007, teve lugar um aditamento ao referido contrato de concessão de crédito, nos termos do qual o montante emprestado foi aumentado para € 11.100.000,00, ficando o capital então emprestado, de € 1.000.000,00, titulado por três livranças em branco (uma para cada um dos bancos do sindicato bancário), subscritas pela 1.ª Ré e avalizadas pelos 2.º e 3.º Réus, acompanhadas do respetivo pacto de preenchimento. Em 2013, o mesmo contrato de mútuo foi objeto de segundo aditamento, tendo o capital emprestado e em dívida sido reduzido a € 6.050.000,00, em virtude da cessão parcial do crédito no montante, em capital, de € 5.050.000,00, por parte do sindicato bancário. Nos termos desse mesmo “segundo aditamento”, o capital em dívida de € 5.050.00,00 foi titulado por três livranças em branco (uma para cada um dos bancos do sindicato bancário) subscritas pela 1.ª Ré e avalizadas pelo 3.º Réu e por CC. Ou seja, tendo presente o montante de capital em dívida, reconfigurado para o valor de 6.050.000,00, verifica-se que as livranças em branco avalizadas pelo 3.º Réu e por CC apenas garantiam parte do mesmo, mais concretamente o valor de € 5.050.000,00.

3. Deste modo, segundo o Tribunal a quo, o único sentido que se pode atribuir ao estipulado, que mantém em vigor todas as garantias prestadas, designadamente as livranças em branco entregues aquando da outorga do aditamento de 2007, é aquele da preservação das livranças em branco onde se encontra o aval do 2.º Réu, entregues para garantia do capital de € 1.000.000,00 então emprestado. Com efeito, é a soma desta quantia com o montante máximo de capital garantido pelas livranças em branco avalizadas pelo 3.º Réu e por CC (€ 5.050.000,00) que perfaz o capital em dívida reconfigurado (€ 6.050.000,00). O aval prestado pelo 2.º Réu a 3 de dezembro de 2007 visou garantir o cumprimento do aditamento ao contrato de concessão de crédito – celebrado pela 1.ª Ré -, que o aumentou no montante de € 1.000.000,00 (no que toca à Autora, correspondendo ao valor de € 277.200,00). O aval aposto na livrança em apreço garante, pois, o acordo de 3 de dezembro de 2007, e não os que se lhe seguiram.

4. Conforme o acórdão recorrido, na medida em que nas estipulações de 2013 não se encontra qualquer declaração no sentido de as livranças entregues em 2007 poderem ser preenchidas por forma distinta daquela acordada aquando da respetiva entrega, designadamente no que respeita ao valor máximo de capital que titulam, torna-se claro que, ainda que o 2.º Réu não tenha ficado vinculado pelas declarações constantes do documento onde se formalizou o acordo de 2013, não deixou de estar vinculado pelas declarações constantes da escritura de 2007 e pela sua posição de avalista nas livranças então entregues, uma a cada um dos bancos integrantes do sindicato bancário15.

5. Assim, ainda que no acordo de 2013 tenha existido uma reconfiguração do capital em dívida, a par da titulação de parte do mesmo pelas livranças então entregues, isso não significa que tivessem deixado de subsistir as garantias anteriormente prestadas, desde logo as livranças em branco em que se encontra o aval do 2.º Réu (e do 3º Réu), para além das hipotecas e dos penhores.

6. Ou seja, porque o acordo de 2013, no qual o 2.º Réu não participou, em nada afeta a validade do aval por si prestado na livrança em branco que foi entregue à Autora, na sequência do acordo de 2007, não se encontra obstaculizado o exercício do direito da Autora à reforma judicial desse título de crédito que se perdeu, no que respeita à referida posição do 2.º Réu como avalista. Com efeito, não se afigurava de qualquer modo atendível a pretensão do 2.º Réu, dirigida à Autora no início de 2014, no sentido da devolução da referida livrança em branco.

7. Parece claro que o acordo de 2013 não tornou inútil a subsistência da disciplina garantística anteriormente estabelecida. Não se poderia assim falar de uma novação extintiva (rectius, extintiva da relação obrigacional antecedente e constitutiva de uma outra relação obrigacional com características a se stanti), pois os outorgantes quiseram a manutenção da relação obrigacional anterior, não a tendo substituindo por outra. Por conseguinte, não pode falar-se de novação objetiva, pois não há qualquer declaração expressa da vontade de novar – animus novandi (vontade expressa de extinguir a relação anterior - art. 859.º). A novação não se presume, pois pressupõe uma manifestação de vontade efetiva nesse sentido.

8. De resto, a LULL não permite a desvinculação unilateral do avalista.

9. O 2.º Réu - AA - invoca a inconstitucionalidade da interpretação do art. 484.º do Cód. Comercial e do art. 32.º da LULL operada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, já que aquela por si preconizada se consubstancia na única conforme aos princípios que convoca, i.e., aos princípios da “relatividade dos contratos” (que se reconduz à dimensão da segurança e da proteção da confiança) e do respeito pela ordem pública. Todavia, perante o referido supra e acolhendo a decisão do Tribunal recorrido, pode dizer-se que os princípios constitucionais em apreço se mostram inteiramente respeitados. É que a dimensão ordinária dos mesmos, desde logo como resulta do art. 32.º da LULL e do art.º 406.º do CC, determina não ser possível afirmar o direito do 2.º Réu de declarar unilateralmente a extinção da obrigação cambiária que contraiu – i.e., do aval em branco que livre e voluntariamente prestou. Do mesmo modo, a relação cambiária sub judice, tal como se manteve após o acordo alcançado em 2013, não pode ser considerada contrária à ordem pública, entendida esta como o “conjunto dos princípios fundamentais imanentes ao ordenamento jurídico e formando as traves-mestras em que se alicerça a ordem económica e social16. Em virtude de a ordem pública corresponder a um conjunto de normas e princípios que prosseguem um interesse geral e, nessa medida, sendo insuscetíveis de afastamento pela vontade dos sujeitos, é o princípio geral da eficácia relativa dos contratos, consagrado no art. 406.º do CC, que deve nortear a interpretação da relação cambiária em apreço, mesmo após o acordo de 2013. Como já se apurou que esta relação cambiária não sofreu qualquer modificação em consequência do acordo celebrado em 2013, a manutenção dessa mesma relação cambiária não a torna contrária à ordem pública apenas porque o 2.º Réu entendeu que devia deixar de estar obrigado cambiariamente.

10. In casu, não tendo a Autora agido abusivamente, na modalidade de supressio ou Verwirkung, não se verifica qualquer inobservância do princípio da segurança jurídica, subjacente à estabilidade das relações jurídicas e principal protetor da confiança.

11. Pelo que, também nesta parte, improcedem as conclusões do recurso de revista interposto pelo 2.º Réu.

12. Refira-se, por fim, que as citações doutrinais e jurisprudenciais efetuadas pelo 2.ª Réu se reportam mais à exequibilidade17 da livrança do que à admissibilidade da sua reforma judicial, que é precisamente do que se cura no caso sub judice.

IV - Decisão

Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente o recurso de revista interposto pelo 2.º Réu - AA -, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelo Réu/Recorrente.

Lisboa, 10 de Outubro de 2023


Maria João Vaz Tomé (Relatora)

Jorge Arcanjo

António Magalhães

_____________________________________________


1. Cf. Pedro Pais de Vasconcelos, “Aval em Branco”, in Revista de Direito Comercial, 2018-03-09, pp.387-388 - disponível para consulta in https://static1.squarespace.com/static/58596f8a29687fe710cf45cd/t/5b2b4edf758d46759ea212a0/1529564897269/2018-09.pdf.↩︎

2. Cf. José Alberto dos Reis. Processos Especiais, volume II, Coimbra, Coimbra Editora, 1982, pp. 56-57.↩︎

3. Cf. Acórdão de 30 de setembro de 2010 (Alberto Sobrinho), proc. n.º 2616/07.5TVPRT-A.P1.S1 - disponível para consulta in www.dgsi.pt.↩︎

4. Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de outubro de 2017 (Rosa Tching), proc. n.º 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1 - disponível para consulta in www.dgsi.pt.↩︎

5. Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de maio de 2017 (Fonseca Ramos), proc. n.º 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1 - disponível para consulta in www.dgsi.pt.↩︎

6. Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de outubro de 2022 (Isaías Pádua), proc. n.º 3070/20.1T8LLE-A.E1.S1 - disponível para consulta in www.dgsi.pt.↩︎

7. Cf. Pedro Pais de Vasconcelos, “Aval em Branco”, in Revista de Direito Comercial, 2018-03-09, p.384 - disponível para consulta in https://static1.squarespace.com/static/58596f8a29687fe710cf45cd/t/5b2b4edf758d46759ea212a0/1529564897269/2018-09.pdf; Paulo Melero Sendim, Letra de Câmbio, II, Coimbra, Almedina, 1980, p.149.

Via de regra, o pacto de preenchimento submete o preenchimento do título à verificação da eventualidade do incumprimento da relação fundamental.↩︎

8. Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de maio de 2017 (Fonseca Ramos), proc. n.º 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1 (“V - (...) o avalista pode opor ao credor exequente as excepções no que concerne ao preenchimento abusivo da livrança, mas, antes de o portador do título o completar, não é condição de exequibilidade do mesmo, que o credor/exequente informe e discuta com o avalista o incumprimento da relação extracartular, de que o primeiro não foi parte. VI – A lei cambiária não impõe ao portador do título que antes de accionar o avalista do subscritor lhe dê informação acerca da situação de incumprimento que legitima o preenchimento do título que o próprio autorizou.”) – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/38f33c44b0c8358280256879006bc013?CreateDocument.↩︎

9. Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de junho de 2018 (Henrique Araújo), proc. n.º 10855/15.9T8CBR-A.C1.S1 - disponível para consulta in www.dgsi.pt.↩︎

10. Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de outubro de 2017 (Rosa Tching), proc. n.º 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1 - disponível para consulta in www.dgsi.pt.↩︎

11. “É muito frequente, no actual contexto prático-jurídico, que o avalista venha a ser demandado pelo credor cambiário que é contraparte do avalizado na relação fundamental, na sequência da recusa ou impossibilidade deste último cumprir” – cf. Carolina Cunha, Manual de Letras e Livranças, Coimbra, Almedina, 2016, p.123.↩︎

12. Cf. Carolina Cunha, Manual de Letras e Livranças, Coimbra, Almedina, 2016, pp. 205-206.↩︎

13. Não são deveres orientados para o interesse no cumprimento do dever principal de prestação, mas antes deveres que, “tendo por fonte uma cláusula contratual, uma norma legal ou o princípio da boa-fé auxiliam, não o cumprimento dos deveres principais, mas a cabal satisfação dos interesses globais visados pela relação obrigacional complexiva.” – cf. Carlos Alberto da Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, Coimbra, Atlântida Editora, 1970, p. 339.↩︎

14. “(…) a utilização do título em branco compreende-se como uma prestação de garantia num contexto de relativa incerteza. Supõe, normalmente, uma relação fundamental que comporta um direito de crédito ainda não inteiramente definido (porque falta determinar o respectivo montante, ou porque se aguarda o seu vencimento), ou no seio da qual se prevê como apenas eventual a constituição de um direito de crédito. Ocorre, sobretudo, no âmbito de relações duradouras com prestações pecuniárias como expediente para fazer face ao espectro do incumprimento. Ou seja, determinante do recurso à letra em branco é tanto o caráter ilíquido da dívida como o seu caráter futuro e incerto.” - cf. . Carolina Cunha, Manual de Letras e Livranças, Coimbra, Almedina, 2016, pp. 165-166. “(…) se estivermos perante um aval simples prestado sobre um título em branco, não será a mera perda da qualidade de sócio susceptível de desencadear uma qualquer desvinculação.” - cf. . Carolina Cunha, Manual de Letras e Livranças, Coimbra, Almedina, 2016, p. 207.↩︎

15. De resto, res inter alios acta.↩︎

16. Cf. João Baptista Machado, “Do princípio da liberdade contratual”, in Obra Dispersa, Vol. I, Braga, Scientia Iurídica, 1991, p. 642.↩︎

17. “O preenchimento deve ser entendido como mero pressuposto de eficácia, no que respeita à cobrabilidade, um pressuposto de exequibilidade da letra e da livrança na sua cobrança. Antes de a letra estar completamente preenchida, as assinaturas dos seus intervenientes cambiários já os obrigam, já os vinculam, a cada um deles, perante quem vier a ser portador ao tempo do vencimento.” – cf. . Pedro Pais de Vasconcelos, “Aval em Branco”, in Revista de Direito Comercial, 2018-03-09, p. 388 - disponível para consulta in https://static1.squarespace.com/static/58596f8a29687fe710cf45cd/t/5b2b4edf758d46759ea212a0/1529564897269/2018-09.pdf. Pedro↩︎