INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO À RELAÇÃO DE BENS
DÍVIDA EXCLUSIVA DO EX-CÔNJUGE
BENS COMUNS
CRÉDITO
Sumário


I- No caso de, por dívida de um só cônjuge terem respondido bens comuns, o valor dos bens comuns usados para o efeito é objeto de um direito de crédito do património comum sobre o cônjuge devedor, a ser efetivado no momento da partilha; como em regra o que se partilha no inventário deve ser objeto de relacionação, tal crédito deve ser relacionado.
II- No âmbito de ações executivas e de um arresto propostas contra um dos cônjuges por dívidas da sua exclusiva responsabilidade, tendo sido penhorados e arrestados bens imóveis ( bens comuns do casal), rege o atual art. 740º do CPC e caso tenha sido requerido o inventário para a separação de bens, conforme o caso em apreço, a execução fica suspensa até à partilha: se nessa operação, os bens penhorados ou arrestados não couberem ao cônjuge executado, poderão ser penhorados outros bens que lhe tenham cabido na partilha, permanecendo a anterior penhora até à nova apreensão, pelo que não se vislumbra necessidade da intervenção no inventário de tais credores com ação autónoma proposta e com trâmites próprios de uma ação por dívida própria do cônjuge executado, com a penhora a fazer-se nos termos do art. 1696,nº1 e eventualmente pelo nº2 do mesmo preceito.

Texto Integral


Relatora: Anizabel Sousa Pereira
Adjuntos: Raquel Rego e
Sandra Melo

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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
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I- Relatório:

O cabeça de casal nos autos de Inventário que correm termos no Juízo De Família e Menores ...- J...- proc. 3044/18.2.T8BCL-B.G1 - por não se conformar com a decisão proferida no âmbito da reclamação deduzida à relação de bens e que pôs termo a este incidente, do mesmo vem agora interpor o competente recurso de apelação, alegando e concluindo que:
 “1º Nos presentes autos de inventário por divórcio, o cabeça de casal, aqui Recorrente, apresentou a relação de bens, na qual relacionou os bens móveis e imóveis que integram o património comum do extinto casal, procedeu ainda à relacionação do passivo comum do então casal, bem como relacionou dívidas ( passivo) da exclusiva responsabilidade da ex-cônjuge mulher.
2º No que se refere a estas últimas, identificou os respetivos credores, aludindo ainda ao facto de estas dividas estarem garantidas por penhora e arresto, juntando as respetivas descrições prediais.
3º As referidas garantias foram constituídas /registadas sobre os dois imóveis e um veiculo automóvel, bens comuns do extinto casal e devidamente relacionados na relação de bens.
4º Oportunamente, o cabeça de casal requereu se procedesse à citação dos credores para, querendo, reclamarem o seu crédito.
5º O douto tribunal a quo entendeu que, por se tratar de dívidas da exclusiva responsabilidade da Requerida - e não do extinto casal- e ainda que créditos estejam garantidos com bens imóveis comuns do casal, não haveria de citar os credores, sendo de eliminar o passivo constante das verbas nºs 5 a 10.
6º O Recorrente não se conforma com a decisão, porquanto, entende que, apesar de se tratar de dívidas da exclusiva responsabilidade da Requerida, o certo é que para garantia de pagamento das mesmas foram constituídas garantias que oneram bens comuns.
7º Não sendo os respetivos credores citados para os presentes autos de inventário, os ónus que pendem sobre os bens ( imóveis e móveis) manter-se-ão, ainda que sejam licitados e adjudicados ao Recorrente.
8º Por sua vez, a Requerida vê preenchida a sua meação ( cujo direito à mesma se encontra arrestado) em dinheiro, não resultado dos presente qualquer obrigação de entregar o montante aos respetivos credores.
9º Subsistindo os ónus e encargos que sobre os imóveis e móveis pendem, e sendo estes adjudicados ao Recorrente, ao mesmo não restará alternativa que não seja pagar aos credores o valor devido, de forma a evitar a venda dos mesmos em processo de execução, o que se mostra de todo incompreensível.
10º Nos presentes autos, os credores são conhecidos e estão devidamente identificados.
11º Não sendo considerado o passivo que o douto tribunal a quo decidiu eliminar, tudo se passará como se o mesmo inexistisse - mesmo para efeito de avaliação dos bens, e que determina, não raras vezes, o valor base para efeitos de licitações.
12º Na verdade, a manter-se a decisão do tribunal a quo os direitos do Recorrente saem extremamente limitados, assim impossibilitado de licitar os bens em face do valor ( económico) dos mesmos e do valor do passivo que as garantias em causa asseguram.
13º Quer o arresto, quer a penhora, são garantias especiais, que não sendo uma garantia real, conferem, ainda assim, aos respetivos titulares, uma proteção especial.
14º Se é certo que por norma só deverão ser relacionadas dividas da responsabilidade de ambos os cônjuges, não será de descorar que, in casu, os bens comuns encontram-se onerados com garantias especiais, para pagamento de dívidas da exclusiva responsabilidade da Requerida – penhora e arresto ( direito à meação).
15º E não será de descorar o vertido no artigo 1696º nº 1 do Código Civil, quando refere que “ Pelas dividas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges respondem os bens próprios do cônjuge devedor e, subsidiariamente, a sua meação nos bens comuns”.
16º Ora, o referido normativo refere que os bens comuns do casal – a meação nos bens comuns – respondem, ainda que a titulo subsidiário, pelas dividas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges.
19º Pelo que, não vislumbramos razão válida para que, os credores com garantias especiais sobre os bens comuns não possam ser citados para reclamarem o seu crédito nos presentes autos de inventário por divórcio.
20º Assim, e contrariamente ao vertido pelo douto Tribunal a quo, seria de aplicar o previsto no artigo 1088 nº 2 do C.P.C., com as consequências dai decorrentes.
21º Violou, assim, o Tribunal a quo o disposto no artigo 1696 nº 1 do Código Civil e 1088º do Código de Processo Civil, ao determinar a eliminação das verbas nº 5 a 10 e ao não determinar a citação dos credores..”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Após ter sido recebido o recurso neste tribunal, foram colhidos os vistos legais, pelo que cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, é a seguinte a questão a apreciar e decidir:
- é a de saber qual o tratamento processual, em sede de inventário, da dívida relacionada pelo cabeça-de-casal sob a verba n.º 5 a 10.
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III. Fundamentação de facto.

Para além do que consta no relatório, importa referir que na relação de bens o cabeça de casal fez constar, além do mais as verbas nº5 a 10, nos seguintes termos ( dando-lhe nova redação por requerimento de 07-07-2022):
“ Assim, as verbas indicadas sob o nº 5, 6, 7, 8, 9 e 10 passam a ter a seguinte redação: Dividas/passivo da exclusividade da ex-cônjuge mulher:
Verba nº 5
Divida no montante de 1.833,86€ contraída junto da Autoridade Tributária e Aduaneira – Serviço de Finanças de ..., com sede na Praça ..., ..., ..., encontrando-se registada penhora no imóvel identificado na verba nº 1º dos Bens Imóveis,          a favor da AT, mediante AP nº 550 de 2013/09/13. Conforme doc nº 2 junto
Verba nº 6
Divida no montante de 3.437,94€ contraída junto da Autoridade Tributária e Aduaneira – Serviço de Finanças de ..., com sede na Praça ..., ..., ..., encontrando-se registada penhora no imóvel identificado na verba nº 1º dos Bens Imóveis           a favor da AT, mediante AP nº 1821 de 2013/11/27. Conforme doc nº 2 junto
Verba nº 7
Divida no montante de 3.188,01€ contraída junto da Autoridade Tributária e Aduaneira – Serviço de Finanças de ..., com sede na Praça ..., ..., ..., encontrando-se registada penhora no imóvel identificado na verba nº 1º dos Bens Imóveis,          a favor da AT, mediante AP nº 273 de 2014/05/16. Conforme doc nº 2 junto
Verba nº 8
Divida no montante de 4.063,82€ contraída junto da Autoridade Tributária e Aduaneira – Serviço de Finanças de ..., com sede na Praça ..., ..., ..., encontrando-se registada penhora no imóvel identificado na verba nº 1º dos Bens Imóveis           a favor da AT, mediante AP nº 2978 de 2014/11/25. Conforme doc nº 2 junto
Verba nº 9
Divida no montante de 3.312,07€ contraída junto da Autoridade Tributária e Aduaneira – Serviço de Finanças de ..., com sede na Praça ..., ..., ..., encontrando-se registada penhora no imóvel identificado na verba nº 1º dos Bens Imóveis           a favor da AT, mediante AP nº 440 de 2017/01/30 . Conforme doc nº 2 junto
Verba nº 10
Divida no montante de 35.000,00€ contraída junta da sociedade B..., Lda., NIPC ..., com sede no ..., Fração ..., Lugar ..., ..., ..., ..., com arresto registado no imóvel identificado na     verba nº 1 e 2 dos Bens Imóveis mediante a Ap. nº 4045 de 2018/05/17 - cujo cancelamento será requerido na parte respeitante à meação do cabeça de casal. Conforme doc nº 2 e 4 junto”

- Foi proferido despacho datado de 21-03-2023, nos termos do qual além do mais, foi apreciada a reclamação e ainda o seguinte, quanto às verbas nº 5 a 10 relacionadas:
“ No que respeita ao passivo, cumpre suscitar e apreciar uma questão que, apesar de não ter sido levantada pela requerida, deve ser conhecida pelo tribunal, por ser susceptível de influenciar na partilha.
Segundo dispõe o artigo 1097º, nº 3, al. b) do Código de Processo Civil, quando seja o cabeça-de-casal o requerente do inventário (como aqui sucede), deve logo juntar com o requerimento inicial a relação dos créditos e das dívidas da herança, acompanhada das provas que possam ser juntas.
Os interessados directos na partilha, uma vez citados, podem, no prazo de 30 dias, impugnar os créditos e as dívidas da herança, como previsto no artigo 1104º, nº 1, al. e) do Código de Processo Civil. No caso vertente, no seguimento da sua citação, podia a requerida impugnar o passivo relacionado pelo cabeça-de-casal – o que fez, como se viu, embora não adiantasse quaisquer justificações.
Segundo dispõe o artigo 1106º, nº 1 do Código de Processo Civil, as dívidas que não hajam sido impugnadas pelos interessados directos consideram-se reconhecidas, sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo 574º, devendo a sentença homologatória da partilha condenar no respectivo pagamento.
Sendo impugnadas, opondo-se os interessados ao reconhecimento das dívidas, caberá ao juiz apreciar a sua existência e montante, quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados. É o que resulta do disposto no nº 3 do artigo 1106º do Código de Processo Civil.
Este último normativo “(…) continua a atribuir uma importância determinante à prova documental, dado que a decisão do juiz acerca da dívida impugnada exige que os documentos apresentados forneçam um critério decisório suficiente e permitam uma pronúncia segura sobre a dívida. Se tal não suceder, nomeadamente quando se trate de relações creditórias cujos factos constitutivos se não conseguem demonstrar através de prova documental, o juiz deve abster-se de decidir o litígio acerca do débito controvertido e remeter os interessados para os meios comuns (cfr. --» artigo 1094º, nº 1)” – Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, «O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil», Almedina, 2020, págs. 92 e 93.
Pois bem.
Analisada a relação do activo e do passivo apresentada pelo cabeça-de-casal, verifica-se que além de “Dívidas comuns do extinto casal” aquele relaciona ainda, sob as verbas nºs 5 a 10, passivo que qualifica como “Dívidas da exclusividade da ex-cônjuge mulher”.
Quanto a estas, no requerimento que apresentou com data de 07.07.2022 (cfr. fls. 56 e segs.), para além de clarificar que se trata de dívidas contraídas na pendência do casamento, da exclusiva responsabilidade da ex-cônjuge mulher, solicita o cabeça-de-casal que as verbas nºs 5 a 10 do passivo passem a ter a nova redacção aí indicada. E requer ainda o cabeça-de-casal que os respectivos credores sejam notificados para virem aos presentes autos, querendo, reclamar os seus créditos.
Ora, afigura-se que aquelas dívidas da exclusiva responsabilidade da interessada mulher não devem ser relacionadas neste inventário. E, por consequência, não haverá que citar os respectivos credores para virem aqui reclamar os seus créditos, tal como previsto no artigo 1088º, nº 2 do Código de Processo Civil; ainda que, como diz o cabeça-de-casal, estejam garantidos com bens imóveis comuns do casal.
Como ensinava já Lopes Cardoso (in «Partilhas Judiciais», Vol. III, 4ª ed., Almedina,1991, a págs. 391), “Ao cabeça-de-casal competirá também relacionar o passivo.
Mas que passivo?
Em primeiro lugar o que onera o património comum, isto é, o que se considera como da responsabilidade de ambos os cônjuges, responsabilidade essa a apurar segundo os comandos dos artigos 1691º, 1693º-2 e 1694º-1 e 2, todos do Código Civil).
(….)
As dívidas da responsabilidade exclusiva de um dos cônjuges (incomunicáveis), essas não têm que relacionar-se, e até nem mesmo algumas vezes seria possível relacioná-las por permanecerem ignoradas do cabeça-de-casal.
Os credores respectivos farão valer os seus direitos pelos meios próprios; aí obterão o pagamento do devido e, por força dos bens adjudicados ao seu devedor, usando, quando caso disso, do procedimento cautelar adequado”. – Cfr., no mesmo sentido, Carla Câmara, «O Processo de Inventário Judicial e o Processo de Inventário Notarial», Almedina, 2021, pág. 112; Na jurisprudência, cfr. o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 17.05.2011, proc. nº 481/03.0TBMLD-C, publicado em www.dgsi.pt
Assim sendo, deverão ser eliminadas da relação do passivo as verbas aí constantes sob os nºs 5 a 10, não havendo que citar os respectivos titulares activos, como requerido pelo cabeça-de-casal.”.
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É deste segmento do aludido despacho que o cabeça de casal vem recorrer por entender, em síntese, que deverão ser relacionados como passivo aquelas dívidas da responsabilidade exclusiva do cônjuge mulher e garantidas por penhoras e arrestos em bens comuns ( imóveis), ao contrário do entendimento do tribunal a quo, o qual ordenou a sua eliminação da relação de bens.
Vejamos.
Prima facie, importa dizer que as dívidas relacionadas pelo cabeça de casal nas referidas verbas n.º 5 a 10, tal como descritas, configuram dívidas entre os cônjuges e, cujo regime está regulado no art.º 1689.º n.º 3 do CC que estatui que, “Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro, são pagos pela meação do Cônjuge devedor no património comum: mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.”
Trata-se de créditos de compensação também previstos no art.º 1697.º do CC, mas que só são exigíveis no momento da partilha, quando cessadas as relações patrimoniais dos cônjuges.
O art. 1697º,nº1 e nº2  do CC aborda as compensações devidas pelo pagamento das dívidas do casal.
Em termos gerais, poderá dizer-se que são devidas compensações quando as dívidas comuns forem pagas com bens próprios de um dos cônjuges, bem como quando as dívidas de um só dos cônjuges forem pagas com bens comuns ( o caso vertente).
A questão que agora se coloca é a de saber se estes créditos devem ser relacionados em sede de inventário.
Na decisão recorrida entendeu-se que, tais créditos, não deveriam ser relacionados, seguindo a o entendimento de Lopes Cardoso, no sentido de que estes créditos não devem ser objeto de relacionamento, apesar de serem considerados no momento da partilha para serem pagos, argumentando que estes créditos não respeitam ao património comum do casal, mas ao património individual do cônjuge credor (cf. Partilhas Judiciais 3.ª edição Vol III pags 391 e 392, no mesmo sentido, Acórdão da RC de 17-05-2011 e citado na decisão recorrida.).
Contudo, entendimento contrário tem sido avalizado pela doutrina e pela jurisprudência (veja-se o Acórdão desta Relação de Guimarães de 17-12-2013, proc. 1305/10 e que segue de perto AC da Relação de Coimbra de 15/02/2005 e nesta Relação de Guimarães, o Acórdão de 17/01/2013, ambos publicados em www.dgsi.pt.; mais recentemente AC da desta Relação de Guimarães, de 07.03.2019, proferido no processo 170/11.2TBEPS.G2 (relatado por Sandra Melo); ac RG de 27-01-2022, proc. 4218/21.4T8BRG-A.G1, relatado por Joaquim Boavida).
Repare-se que as duas teses enunciadas apenas divergem quanto à questão da necessidade ou não da prévia relacionação, porquanto ambas consideram que a dívida/crédito deve ser considerada no momento da partilha.
Quid iuris?
Desde já, importa, atentar na redação dos seguintes preceitos:
O artigo 1689º (Partilha do casal - Pagamento de dívidas): “1. Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património.
2. Havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum, e só depois as restantes.
3. Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.”
E o que dispõe o artigo 1697º:
“1. Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação.
2. Sempre que por dívidas da exclusiva responsabilidade de um só dos cônjuges tenham respondido bens comuns, é a respectiva importância levada a crédito do património comum no momento da partilha.”.
Estamos no âmbito da problemática do regime da responsabilidade por dívidas dos cônjuges entre si e face a terceiros, mais especificamente, importa ter presente o regime das compensações nascidas no decurso da vida conjugal e devidas pelo pagamento de dívidas.
Como adverte Cristina Dias “ Se se aplicassem os princípios gerais do Direito das Obrigações, a situação seria simples: as dívidas contraídas pelos dois cônjuges seriam comunicáveis (e, além disso, seriam, no direito civil – não comercial – em regra, conjuntas, nos termos do art. 513.º do Cód. Civil; as dívidas contraídas por um só dos cônjuges seriam incomunicáveis, próprias desse cônjuge (cada pessoa só pode vincular-se a si mesma)” .
Realça a mesma autora ( in ob cit, p. 10), “ A inevitável osmose patrimonial que ocorre em virtude da comunhão de vida exige a previsão de determinados mecanismos destinados a realizar um justo equilíbrio patrimonial entre os cônjuges. Na constância do matrimónio é possível que ocorram transferências de valores entre as diferentes massas de bens em presença. Tais transferências darão origem, no final do matrimónio, a créditos e débitos recíprocos: os patrimónios próprios podem ser credores do comum, este daqueles e os próprios de cada um podem ser devedores dos próprios do outro. O que se pretende evitar com tais mecanismos é o enriquecimento de um dos cônjuges à custa do empobrecimento do outro, procurando salvaguardar um certo equilíbrio patrimonial…
… Por isso, as compensações entre as diferentes massas patrimoniais só são devidas no final da comunhão de vida e partilha dos bens”.
“ De facto, o art. 1697.º, n.ºs 1 e 2, refere expressamente o “momento da partilha”. As razões da proibição da partilha dos bens comuns antes de cessarem as relações patrimoniais entre os cônjuges prendem-se com a ideia da proteção de um património comum especialmente afetado às necessidades da vida familiar. Têm a ver, além disso, com a própria natureza deste património comum, regulado pela lei como um património coletivo, tendo os cônjuges apenas direito a uma meação, em regra, só concretizável após a dissolução do casamento. Faz sentido, portanto, que a liquidação da comunhão ocorra somente no momento da dissolução da mesma e que só nessa altura se concretize o direito de cada um dos cônjuges sobre os bens que fazem parte da comunhão. Permite-se, assim, a correção dos desequilíbrios entre as várias massas, através do estabelecimento de uma conta entre cada um dos cônjuges e o património comum. O respetivo saldo dá lugar a uma compensação em benefício da massa empobrecida, restabelecendo-se o equilíbrio perturbado durante a vida conjugal. Tal princípio pode deduzir-se também do art. 1689.º, n.ºs 1 e 3, onde se prevê a ordem das operações da partilha, estabelecendo uma hierarquia das dívidas e determinando as massas patrimoniais prioritariamente responsáveis. Assim, no momento da partilha, cada um dos cônjuges deve conferir ao património comum, e este aos patrimónios próprios dos cônjuges, tudo o que lhe dever.” ( in ob. cit, p. 13, 14).
Em suma, em face da relevância que aqueles créditos têm na liquidação efetiva das responsabilidades dos cônjuges e destes perante terceiro e na própria partilha propriamente dita, entendemos que quando por dívidas incomunicáveis tenham respondido os bens comuns - conforme ocorreu no caso sub judicio ( pois é inquestionável que se trata de dívidas da exclusiva responsabilidade de um só dos cônjuges e em que se encontram penhorados e arrestados, ou seja, a responderem, bens comuns, penhoras e arrestos esses realizados antes da propositura da ação de dissolução do casamento), surge um crédito patrimonial comum perante o património do cônjuge, a tomar em conta no momento da partilha ( art. 1697,nº2 do CC).
Ou seja, o valor dos bens comuns usados para o efeito é objeto de um direito de crédito do património comum sobre o cônjuge devedor, a ser efetivado no momento da partilha.
Por conseguinte, devem os mesmos ser relacionados, embora com referência à sua origem, tanto mais que, o art.º 1696.º n.º 1 do CPC dispõe que “cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges estes devem receber os seus bens próprios e a sua meação no património comum”.
Em suma, para se chegar à partilha propriamente dita é necessário previamente determinar, por exemplo, se existe um direito de crédito do património comum sobre o cônjuge devedor no valor dos bens comuns usados para responderem a dívidas da exclusiva responsabilidade do um só deles, a ser efetivado no momento da partilha. Essa é uma questão que influencia a partilha.
Ora, como no inventário devem ser solucionadas todas as questões emergentes da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges com influência na partilha do património comum, designadamente as que respeitam à liquidação das compensações devidas pelo pagamento de dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges suportado apenas por um deles ou, como no caso, se existe um direito de crédito do património comum sobre o cônjuge devedor no valor dos bens comuns usados para responderem a dívidas da exclusiva responsabilidade do um só deles, é adequado, com vista à oportuna dilucidação de tal questão, que o crédito seja relacionado.
Essa relacionação permite estabilizar o objeto da partilha, alcançar o mencionado objetivo e garantir uma partilha completa.
Em resumo, no caso de por dívida de um só cônjuge terem respondido bens comuns, o valor dos bens comuns usados para o efeito é objeto de um direito de crédito do património comum sobre o cônjuge devedor, a ser efetivado no momento da partilha; como em regra o que se partilha no inventário deve ser objeto de relacionação, tal crédito deve ser relacionado. Não é curial deixar de relacionar um crédito que vai ser considerado na partilha, uma vez que a satisfação de tal crédito naquela fase pressupõe que anteriormente foi objeto de discussão e definição; para ser satisfeito na partilha, é necessário que previamente se verifique se existe e qual o seu montante. Isso pressupõe a relacionação e a sua subsequente discussão com vista à definição do direito, daí a nossa adesão à tese de que deverá ser relacionado.
Neste sentido, tem procedência o recurso, contudo, conforme acima aludido, ou seja, deverá ser relacionado o crédito de compensação entre cônjuges.
E o que dizer a respeito da pretendida citação dos credores com garantias especiais sobre os bens comuns para reclamarem o seu crédito nos presentes autos de inventário por divórcio, e, nessa medida, ser de aplicar o previsto no artigo 1088 nº 2 do C.P.C., com as consequências dai decorrentes, conforme pretendido pelo recorrente?
Ora, no caso sub judicio, temos a seguinte situação: no âmbito de ações executivas e de um arresto propostas contra um dos cônjuges por dívidas da sua exclusiva responsabilidade, foram penhorados e arrestados bens imóveis ( bens comuns do casal).
Nesses casos, rege o atual art. 740º do CPC e, caso tenha sido requerida a separação de bens, conforme o caso em apreço, a execução fica suspensa até à partilha: se nessa operação, os bens penhorados ou arrestados não couberem ao cônjuge executado, poderão ser penhorados outros bens que lhe tenham cabido na partilha, permanecendo a anterior penhora até à nova apreensão, pelo que não se vislumbra necessidade da intervenção de tais credores com ação autónoma proposta e com trâmites próprios de uma ação por dívida própria do cônjuge executado, com a penhora a fazer-se nos termos do art. 1696,nº1 e eventualmente pelo nº2 do mesmo preceito.
Note-se que tudo isso não impede, como vimos, que, em sede própria, ao abrigo dos art. 1697º do CC, se opere a compensação a que haja lugar, numa discussão que envolverá somente os dois cônjuges, com tal crédito por compensação relacionado, como já analisámos e voltamos a frisar.
Em suma, isto será assim, uma vez que a partilha do casal desdobra-se em operações distintas: entrega dos bens próprios ( art. 689º,nº1, 1ª parte); liquidação da comunhão ( que inclui o apuramento e pagamento das dívidas ( art. 1689º,nº2) e a avaliação e cálculo das compensações ( art. 1689º,nº1, 2ª parte e nº3); e partilha dos bens comuns.
Assim, e seguindo a lição da Prof. Cristina Dias   “ em primeiro lugar, devem ser entregues a cada um dos cônjuges, ou a um deles e aos herdeiros do outros ( no caso de dissolução por morte), os seus bens próprios. Trata-se de uma operação prévia e preliminar da partilha propriamente dita.
Após a entrega dos bens próprios a cada um dos cônjuges, inicia-se uma fase, em rigor, prévia, mas que, na prática, será quase simultânea à partilha: a liquidação da comunhão onde se integra o cálculo das compensações e apuramento do saldo final.
Cada um dos cônjuges deverá conferir ao património comum o que lhe dever, em virtude dos pagamentos efetuados por esse património, de dívidas próprias, de acordo com o disposto no art. 1697º,nº2. Esta “ conferência” implica o apuramento do saldo final das contas de compensações e a existência de um saldo credor a favor da comunhão. O cônjuge devedor deverá compensar, nesse momento, o património comum pelo enriquecimento obtido no seu património próprio à custa da comunhão. É, aliás, o que decorre do art. 1697º, nº2, ao dispor que o valor pago pelos bens comuns é levado a crédito do património comum no momento da partilha.
Uma vez apurada a existência de uma compensação a efetuar à comunhão, o seu pagamento efetuar-se-á por imputação do valor ( atualizado) da compensação  devida na meação do cônjuge devedor que, assim, receberá menos nos bens comuns, ou, na falta de bens comuns, mediante bens próprios do cônjuge devedor de forma a completar a massa comum.
Feita a conferência dos bens devidos à massa comum, deverá proceder-se à divisão desta, à partilha propriamente dita, entregando a cada um dos cônjuges a sua meação, que não será igual a metade do património comum, atendendo às eventuais compensações que possam surgir e ao seu eventual pagamento por imputação na meação do cônjuge.
Quando, porém, haja dívidas a pagar, uma vez completada a massa comum pelas compensações devidas por um dos cônjuges ao património comum, o nº2 do art. 1689, manda efetuar primeiro o pagamento das dívidas comunicáveis, à custa do património comum. Só depois de saldadas tais dívidas poderão ser pagas, à custa dos bens comuns, as dívidas restantes ( cfr.art. 1696). Se o património comum não for suficiente para o pagamento integral da dívida comum, poderá ser paga à custa dos bens próprios, de acordo com as regras específicas do regime que vigora ( ou vigorou) entre os cônjuges ( art. 1695) (…)
(…)Há também que atender às compensações devidas pela comunhão ao património próprio de um dos cônjuges, quando por dívidas comuns tenham respondido bens próprios de um dos cônjuges ( nº1 do art. 1697)” .
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Decisão:

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que admita a relacionação do alegado crédito que integra a verba nº 5 a 10, direito de crédito esse do património comum sobre o cônjuge devedor no valor dos bens comuns usados para responderem àquelas dívidas da exclusiva responsabilidade de um só deles.
Custas pela Recorrida.
Guimarães, 12 de outubro de 2023

Relatora: Anizabel Sousa Pereira,
Adjuntas: Raquel Rego e
Sandra Melo ( com voto vencida nos seguintes termos:

Concordo totalmente com o regime exposto no acórdão quanto à relacionação das “dívidas entre cônjuges”.
No entanto, no presente caso, em que se estará perante dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges (perante terceiros), não pagas e sem que por elas tenha respondido qualquer bem do património comum ou do património próprio do cônjuge não devedor ou que onere tais patrimónios, entendo que não existe qualquer dívida entre cônjuges, nem necessidade de compensações entre patrimónios. A mera existência de penhora sobre bens comuns resolver-se-á por recurso ao disposto no artigo 740º do Código de Processo Civil, sem que qualquer um dos cônjuges fique credor do outro.)
Confirmaria o despacho recorrido).