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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME DE EXECUÇÃO PERMANENTE
NATUREZA DO CRIME
PRESCRIÇÃO
RESULTADO MORTE
NEXO DE CAUSALIDADE
NE BIS IN IDEM
CASO JULGADO
Sumário
O crime de violência doméstica é um crime de execução permanente o que significa que se prolonga e persiste no tempo havendo uma voluntária manutenção da situação antijurídica até que a execução cesse. Assim o prazo de prescrição do crime é de pelo menos 10 anos, na sua forma simples e de 15 anos na sua forma agravada. Para efeitos de escolha e decisão da lei aplicável (como seja da natureza pública do crime e consequente legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal), quer para efeitos de contagem do prazo de prescrição, o determinante é a data da execução do último facto praticado, isto é, o dia em que cessou a sua consumação. O Ne bis In Idem não é só a proibição de condenação pelos mesmos factos, é também a proibição de duplicação de atuações repressivas, pelos mesmos factos, respeitante à mesma pessoa jurídica e cúmulo de qualificações jurídicas numa única ação. O caso julgado, visa garantir a credibilidade do exercício de funções jurisdicionais, evitando contradição de julgados e reforçando a presunção de validade das decisões dos tribunais. Um despacho de arquivamento nos termos do artigo 277º, nº 2 do CPP, não impede que se no decurso do inquérito sobre o crime se vierem a descobrir indícios de outro crime público e entre ambos existir uma relação de conexão processualmente relevante - art.º 24.º do CPP , o objeto do inquérito se alargue a novos crimes e, havendo arquivamento não há certezas, não há seguranças, não há caso julgado. Apenas existe caso julgado relativamente a decisões judiciais, o que não é o caso dos despachos proferidos pelo MP que não têm efeitos preclusivos. Existe nexo de causalidade entre a actuação do arguido quando, sujeitando permanentemente a vitima portadora de múltiplas doenças, e com debilidades físicas e psicológicas, a violências e actos contra a sua dignidade, sendo enfermeiro a expulsa do domicilio comum abandonando-a à sua sorte e conhecendo o seu estado frágil e doente, acarretando-lhe perigo para a vida que resultou na morte da mesma.
Texto Integral
Acórdão proferido na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
Nos presentes autos veio AM_______ interpor recurso da decisão proferida em 1ª Instância decidiu
- Condenar o arguido AM_______ pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, agravado pelo resultado morte, previsto e punido pelo art.º 152º, nºs. 1, als. b) e d), 2, al. a), e 3, al. b) do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos e 9 (nove) meses de prisão, e na pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
- Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente/demandante AC_______ ; e, em consequência, condenar o arguido/demandado AM_______, a pagar à assistente/demandante, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela ofendida MF______, transmitida por via sucessória, a quantia de € 50.000,00
Apresentou para tanto as conclusões que se resumem
A–1- QUESTÃO PRÉVIA–DA PRESCRIÇÃO DE ALGUNS FACTOS
1.- Feito o resumo cronológico das condutas atribuídas ao arguido, na Tabela I supra, verifica-se que entre uma conduta e outra mediou sempre um hiato temporal significativo, nuns casos de 4 ou 5 anos entre uma conduta e outra, noutros casos de 1 ano entre uma conduta e outra, e noutros casos de 5 meses.
(...)
6.- Vertendo esta Jurisprudência e esta doutrina para o caso em apreço, terá de ser considerado que as condutas dadas como provadas no douto Acórdão de que se recorre, terão sido praticadas pelo arguido em 2002; 2003 e depois novamente em 2007 ou 2008 e depois novamente em 2011; 2012; 2013; 2014; 2015; 2016 e depois novamente em 2018, existindo, pelo meio, lapsos temporais significativos, dos quais se têm de retirar as devidas consequências.
8.- Os procedimentos criminais das condutas atribuídas ao arguido nos anos de 2002; 2003 e depois novamente em 2007 e depois novamente em 2011 prescreveram, mesmo que se considere que integram o crime de maus tratos, actualmente, violência doméstica, conforme melhor explanado nas motivações de recurso para onde se remete.
9.- Desta forma, o douto Acórdão de que se recorre deve ser revogado e substituído por outro que absolva o arguido dos factos relativos a 2002; 2003; 2007; e 2011 (correspondentes aos pontos 8 a 17 e 47,48 da matéria de facto dada como provada).
10.- Em consequência deve a medida da pena que foi concretamente aplicada ao arguido quanto ao crime de violência doméstica, ser reapreciada na sua globalidade e substituída por outra, a qual deverá ser inferior àquela a que o arguido foi condenado e, eventualmente, suspensa na sua execução.
11.- Também em sequência do supra exposto, deve o arguido ser parcialmente absolvido do pedido de indemnização civil deduzido pela assistente, devendo ser o mesmo alterado e substituído por outro, o qual deverá ser inferior àquele a que o arguido foi condenado a pagar.
12.–B - 2.3 QUESTÃO PRÉVIA - DA VIOLAÇÃO DO DIREITO DE DEFESA E DO DIREITO
13.- O douto Acórdão de que se recorre também dá como provada matéria que não se encontra concretizada temporalmente, o que impede que o arguido exerça a sua defesa de forma plena, tal como se esquematizado na Tabela II, para onde se remete.
14.- São usadas as expressões: “Numa ocasião”, “em data não concretamente apurada”, “Igualmente”, “O arguido, identicamente”, “Por mais do que uma vez”, “Noutra ocasião”, “Em data não concretamente apurada”, “Noutra ocasião”, “em data próxima à situação acima referida”.
15.- Trata-se de descrições vagas e imprecisas, que não estão temporalmente concretizados, o que impede que o arguido exerça o seu direito de defesa de forma plena, bem como impede o direito ao contraditório.
16.- O direito de defesa do arguido e o princípio do contraditório, são direitos constitucionais, consagrados no Art.º 32.º, n.º 1 e n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
17.- A sua violação deve levar à absolvição do arguido.
18.- Em sequência do acima exposto, deve o arguido ser absolvido dos pontos 40 a 46 e 49 a 57 da matéria de facto dada como provada e, consequentemente, deve a medida da pena que lhe foi concretamente aplicada quanto ao crime de violência doméstica, ser ser reapreciada na sua globalidade e substituída por outra, a qual deverá ser inferior àquela a que o arguido foi condenado e, eventualmente, suspensa na sua execução.
19.- Também em sequência do supra exposto, deve o arguido ser parcialmente absolvido do pedido de indemnização civil deduzido pela assistente, devendo ser o mesmo alterado e substituído por outro, o qual deverá ser inferior àquele a que o arguido foi condenado a pagar.
C– 3.a QUESTÃO PRÉVIA
20.- O arguido foi julgado e condenado por factos sobre os quais já tinha, anteriormente, recaído um despacho de arquivamento que consolidou o decidido.
21.- Consequentemente, o arguido não podia ter sido julgado e condenado pelos mesmos factos.
C.l– Do Inquérito NUIPC n.º 341/16.5GBMFR
22.- A matéria provada nos pontos 26 a 34 e 126, a), do douto acórdão de que se recorre, foi objecto do Inquérito NUIPC n.º341/16.5GBMFR, cuja certidão se encontra junta aos presentes autos.
23.- De fls. 834 e ss. dos presentes autos e de fls. 842 dos mesmos, retira-se que no âmbito do inquérito NUIPC n.º 341/16.5GBMFR, o Ministério Público fez uma análise e valoração dos factos e das provas que lhe foram apresentados, e fez o respectivo enquadramento jurídico dos factos, considerando-o um crime de ofensa à integridade física simples, crime de natureza semi-pública, cujo procedimento criminal depende de queixa.
24.- A ofendida não apresentou queixa e o processo foi objecto de arquivamento por inadmissibilidade do procedimento criminal, nos termos do nº 1 do artigo 277º do Código de Processo Penal.
C.2– Do Inquérito NUIPC n.º 512/16.4PKLRS
25.- Os Pontos 35 a 37 da matéria dada como provada foram objecto do Inquérito NUIPC n.º 512/16.4PKLRS que se encontra apensado por linha aos presentes autos (cfr. fls. 80 e 49 dos autos).
26.- Também neste caso, foi proferido despacho de arquivamento ao abrigo do Art.º 277.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, após análise fáctica da situação, do respectivo enquadramento jurídico e da ofendida declarar não desejar procedimento criminal.
Em ambos os casos terá de se dizer:
27.- Embora as decisões do Ministério Público não sejam decisões jurisdicionais, estamos perante uma decisão que consolida, que solidifica, que estabiliza o caso concreto. Trata-se de uma situação análoga, paralela ao caso julgado.
(...)
28.- Não podia o arguido ser julgado e condenado pelos mesmos factos, sob pena de violação dos princípios da segurança e da certeza jurídicas.
29.- Ao decidir como decidiu, o douto Acórdão de que se recorre violou a estabilidade, a segurança e a certeza jurídicas, princípios basilares do Estado de Direito Democrático (Art.º 2.º da Constituição da República Portuguesa) e que implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado.
30.- Ademais, violou o princípio ne bis in idem, na sua vertente de caso julgado, por paralelismo (Art.º 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa).
31.- Desta forma, o douto Acórdão de que se recorre deve ser revogado e substituído por outro que absolva o arguido dos factos constantes dos pontos 26 a 34 e 126, a), bem como dos pontos 35 a 37 da matéria dada como provada da matéria dada como provada.
32.- Consequentemente, por tais factos não poderem ser considerados para a determinação da medida concreta da pena aplicável, deve a pena ser reapreciada na sua globalidade e substituída por outra, a qual deverá ser inferior àquela a que o arguido foi condenado e, eventualmente, suspensa na sua execução.
33.- Também em sequência do supra exposto, deve o arguido ser parcialmente absolvido do pedido de indemnização civil deduzido pela assistente, devendo ser o mesmo alterado e substituído por outro, o qual deverá ser inferior àquele a que o arguido foi condenado a pagar.
34.- Por seu turno, deve o arguido ser absolvido do pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, E.P.E., na parte que se refere aos cuidados de saúde em episódio de urgência e MCDT'S (meios complementares de diagnóstico) no dia 03-07-2016, no Serviço de Urgência, importando o custo respectivo em €731,60 (setecentos e trinta e um euros e sessenta cêntimos).
D– MATÉRIA DE FACTO
35.- (...) D.1- Das agressões
Ponto 8 a 17 e 47, 48 da matéria de facto dada como provada:
36.- Caso os Exm.ºs Senhores Juízes Desembargadores, não colham os argumentos expostos em “A- 1.a QUESTÃO PRÉVIA - DA PRESCRIÇÃO DE ALGUNS FACTOS", o que por mera hipótese académica se coloca e sem prescindir no que fica supra dito, sempre se dirá que os factos dados como provados nos pontos 8 a 17 e 47,48, apenas são a versão da ofendida, a qual não foi corroborada por nenhuma testemunha.
Ponto 21 da matéria de facto dada como provada:
37.- Trata-se da versão da ofendida, sem que exista qualquer testemunha que a confirme.
38.- Aliás, no auto de inquirição da ofendida, a fls. 158, esta refere que não se recorda do modo concreto da agressão.
39.- Consequentemente, não pode o Tribunal substituir-se à ofendida e dar como provado o que nem sequer a mesma concretizou: nem no decurso do inquérito levado a cabo no âmbito do Proc.º 62/15.6PKLRS, nem no auto de inquirição constante a fls. 158 dos presentes autos.
40.- Sob pena de estar a ser violado o princípio da investigação, da acusação, bem como as garantias de defesa do arguido e o princípio “in dubio pro reo”.
Ponto 23 e 24 da matéria de facto dada como provada:
41.- No auto de inquirição da ofendida constante a fls. 158 dos autos, apenas consta: “Confirma as situações descritas nos Inquéritos 4/16.1PKLRS e ..."
42.- Não é feita qualquer concretização fáctica.
43.- Nem do decurso do inquérito do processo 4/16.1PKLRS a ofendida esclareceu fosse o que fosse. Também não foi indicada ou ouvida nenhuma testemunha com conhecimento directo e presencial deste facto.
44.- Não pode o Tribunal substituir-se à ofendida e dar como provado o que nem a mesma concretizou.
45.- Sob pena de estar a ser violado o princípio da investigação, da acusação, bem como as garantias de defesa do arguido e o princípio “in dubio pro reo”.
Ponto 35 da matéria de facto dada como provada
46.- Caso os Exm.ºs Senhores Juízes Desembargadores, não colham os argumentos expostos em “C- 3. QUESTÃO PRÉVIA / C.2 - Do Inquérito NUIPC n.º 512/16.4PKLRS", o que por mera hipótese académica se coloca e sem prescindir no que fica supra dito, sempre se dirá que o facto dado como provado no ponto 35, mais não é do que a versão da ofendida, a qual não foi corroborada por nenhuma testemunha com conhecimento directo e presencial desse facto.
47.- No auto de inquirição da ofendida constante a fls. 158 dos autos, apenas consta: “Confirma as situações descritas nos Inquéritos ... e 512/16APKLRS.", sem que seja feita qualquer concretização fáctica.
48.-Nem do decurso do inquérito do processo 512/16.4PKKLRS a ofendida esclareceu fosse o que fosse.
49.- Mais uma vez, não pode o Tribunal substituir-se à ofendida e dar como provado o que nem a mesma concretizou.
50.- Sob pena de estar a ser violado o princípio da investigação, da acusação, bem como as garantias de defesa do arguido e o princípio “in dubio pro reo”.
Pontos 40 a 46 da matéria de facto dada como provada
51.- Caso os Exm.ºs Senhores Juízes Desembargadores, não colham os argumentos expostos em “B - 2.^ QUESTÃO PRÉVIA - DA VIOLAÇÃO DO DIREITO DE DEFESA E DO DIREITO AO CONTRADITÓRIO", o que por mera hipótese académica se coloca e sem prescindir no que fica supra dito, sempre se dirá que os factos dados como provados nos pontos 40 a 46, mais não é do que a versão da ofendida, a qual não foi corroborada por nenhuma testemunha com conhecimento directo e presencial desse facto.
52.- Ademais, o ponto 43 da matéria de facto dada como provada, é meramente conclusivo.
53.- Essa versão não foi confirmada por nenhuma testemunha com conhecimento directo e presencial desses factos.
54.- Assim, devem ser dados como não provados os pontos 40 a 46 da matéria de facto e, consequentemente, ser o arguido absolvido do mesmo, sob pena de estar a ser violado o princípio “in dubio pro reo”.
Pontos 71 e 72 da matéria de facto dada como provada
55.- Mais uma vez, não há nenhuma testemunha com conhecimento directo e presencial dos factos.
56.-O martelo nem sequer estava próximo da ofendida.
57.- Os vestígios hemáticos da ripa, não se coadunam com o tipo de agressões a que a ofendida diz ter sido sujeita.
58.- Ademais vai contra o senso comum que alguém estando inconsciente e a sofrer pancadas na cabeça, recupere os sentidos.
59.- A ofendida continuou a gritar, sem ninguém estar perto dela e já estando no local um vizinho e um agente da PSP, o que leva a duvidar se o arguido estaria, primeiro, junto da ofendida e segundo, a cometer algum destes factos quando os vizinhos começaram a ouvir a ofendida gritar por socorro.
60.- Não é tão descabido assim, até é bastante viável, que a ofendida se tenha desequilibrado e caído sozinha, já que perto de si não estava nem canadianas, nem andarilho, aparelhos com que costumava andar.
61.- Pelo exposto e também porque ninguém, efectivamente assistiu à alegada agressão, deve dar-se o benefício da dúvida ao arguido, em nome do princípio “in dubio pro reo”.
62.- Pelo que, os pontos 8 a 17 e 47, 48, 21, 23 e 24, 35, 40 a 46, 71 e 72 da matéria de facto dada como provada, deviam ter sido dados como não provados, absolvendo- se o arguido dos mesmos
D.2 - Da pressão para a ofendida sair da residência do arguido
Pontos 77 a 79, 110, 113, 115 da matéria de facto dada como provada
63.- Não existiu qualquer pressão por parte do arguido para a ofendida sair da residência, propriedade do arguido.
64.- O arguido e a sua legítima esposa a Sr.ã D. LM______, mais não fizeram do que exercer o seu direito de propriedade sobre o imóvel.
65.- A ofendida não tinha qualquer título que a legitimasse a permanecer no imóvel sem o consentimento/tolerância dos seus legítimos proprietários, e nem sequer tinha direito a qualquer tipo de protecção legal, já que a relação que mantinha com o arguido não pode ser considerada união de facto, à luz do Art.º Art.º 2.º, al. c) da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio e Art.º 3.º, al. a) da mesma lei.
66.- Por outro lado, foi a ofendida que sempre manifestou intenção de abandonar a residência voluntariamente, tal como manifestou a agentes da PSP, nas suas declarações, o que levou a que essa intenção fosse reconhecida pela própria Juiz de Instrução Criminal.
67.- E acresce que a ofendida tinha outras opções: tinha rendimentos, conforme resulta das suas declarações a de fls. 160 dos autos, que lhe permitiam arrendar um imóvel e também tinha a alternativa de ir residir com a filha (ainda que temporariamente).
68.- Pelo que, não podia ser dado como provado os pontos 77 a 79, 110, 113 e 115, devendo o arguido ser absolvido dos mesmos.
D.3 - Da perseguição do arguido à ofendida
Pontos 80 a 82 e 84, 86, 88 a 108 da matéria de facto dada como provada
69.- Os pontos acima referidos, resultam dos vários aditamentos feitos aos autos, na maioria, senão todos eles, elaborados pelo Sr. Agente da PSP PC______, com base no que a ofendida lhe dizia.
70.-Trata-se da versão da ofendida, vertida pelos OPC nos aditamentos constantes dos autos.
71.- Nenhuma testemunha com conhecimento directo e presencial dos factos, confirmou que o arguido tenha praticado o que aí é relatado e que foi dado como provado, ou que o arguido tenha seguido ou perseguido a ofendida.
72.- Ademais o arguido não estava impedido de circular e de fazer a sua vida normal, sendo perfeitamente razoável que a ofendida visse o arguido a circular por O_____ a fazer a sua vida.
73.-E isso não pode significar que o arguido estivesse atrás dela.
74.- Mesmo na situação em que a ofendida relatou estar a ser perseguida pelo arguido e que embateu numa viatura que estava estacionada, ninguém viu o arguido a persegui-la, nem foi recolhida prova nesse sentido.
75.- Por outro lado, não foi apurado na investigação que os números de telemóvel pertencessem ao arguido e que este tenha contactado a ofendida através desse números.
76.-Portanto, os pontos 80 a 82 e 84, 86, 88 a 108 da matéria de facto dada como provada, não devem ser dados como provados, devendo o arguido ser absolvido dos mesmos.
Ponto 109 da matéria dada como provada
77.- Também não resulta do autos qualquer prova de que o arguido se tenha furtado a todas as diligências para a instalação do mecanismo de controlo, que deve ser dado com o não provado.
78.- Em sequência de tudo quanto fica supra exposto em toda a parte D do presente recurso, devem ser dados como não provados os pontos da matéria de facto dada como provada (melhor identificados supra) em por via disso, ser o arguido absolvido dos mesmos.
79.- Consequentemente, deve a pena aplicada ao arguido ser reapreciada na sua globalidade e substituída por outra, a qual deverá ser inferior àquela a que o arguido foi condenado e, eventualmente, suspensa na sua execução.
80.- Também em sequência do supra exposto, deve o arguido ser parcialmente absolvido do pedido de indemnização civil deduzido pela assistente, devendo ser o mesmo alterado e substituído por outro, o qual deverá ser inferior àquele a que o arguido foi condenado a pagar.
81.- Por seu turno, deve o arguido ser absolvido do pedido de indemnização civil deduzido pela SGHL - Sociedade Gestora do Hospital de Loures, S.A. - pontos 120 a 124 da matéria de facto dada como provada.
E - DO AGRAVAMENTO PELO RESULTADO MORTE
82.- De acordo com o certificado de óbito, de fls. 656 dos autos, e conforme também consta do relatório clínico de fls. 651 a 655, as causas da morte da ofendida foram:
• Choque séptico refratário com falência multiorgânica (hematológica, renal, cardiovascular)
• ARDS grave
• Pneumonia bilateral hipoxemiante
• Artrite reumatoide
83.- Choque séptico refratário é o termo médico usado para designar a falência de órgãos, é de causa infecciosa.
84.- É um infecção provocada por germes como bactérias, fungos e vírus, levando a septicemia e comprometimento do sistema circulatório e várias outras disfunções orgânicas como insuficiência renal, hepática e respiratória etc.
85.- Como consta do relatório médico a fls. 652 dos autos:
86.- "Confirmo que foi estabelecido um diagnóstico de infecção com manifestações sistémicas que condicionaram um estado de falência múltipla de órgão, situação conhecida pela terminologia técnica de choque séptico;"
87.- Ou seja, a ofendida, faleceu devido a esta infecção que veio a originar uma falência múltipla de órgãos e aos seus problemas de saúde, que eram vastos e antigos e que se encontram melhor descritos no ponto 6 da matéria dada como provada.
88.- Assim, mesmo que fosse considerado provado que o arguido perseguiu e pressionou a ofendida para sair da residência, o que por mera hipótese de raciocínio se coloca e sem prescindir do que foi acima dito quanto a esta matéria, ainda assim não estaria estabelecida qualquer ligação entre essa perseguição e pressão e o resultado morte.
89.- Ainda assim, não existiria qualquer elo de ligação, não existiria qualquer nexo de causalidade entre a conduta do arguido e a morte da ofendida.
90.- E, salvo melhor opinião, não resulta provado que tenha sido a actuação do arguido que deu causa ao resultado morte da ofendida.
91.- Pelo que, não pode o arguido ser condenado pelo agravamento pelo resultado morte, pois não foi o que aconteceu.
92.- Consequentemente, deve o arguido ser absolvido do agravamento pelo resultado morte.
93.- Em sequência deve a pena aplicada ao arguido ser reapreciada na sua globalidade e substituída por outra, a qual deverá ser inferior àquela a que o arguido foi condenado e, eventualmente, suspensa na sua execução.
94.- Também em sequência do supra exposto, deve o arguido ser parcialmente absolvido do pedido de indemnização civil deduzido pela assistente, devendo ser o mesmo alterado e substituído por outro, o qual deverá ser inferior àquele a que o arguido foi condenado a pagar.
95.- Por seu turno, deve o arguido ser absolvido do pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, E.P.E., pelo internamento dos dias 16 a 17 de Dezembro de 2018 - ponto 126, alínea b) da matéria de facto dada como provada.
F- EM ABONO DO ARGUIDO
96.- Existem elementos em abono do arguido, que ponderam a seu favor:
• A situação sócio profissional;
• A idade - 75 anos de idade,
• A incapacidade de 64% desde 1995,
• Os seus problemas de saúde, ao ombro, à coluna, e o meningioma com cerca de 30mm de diâmetro antero-posterior e 10mm de diâmetro transversal, bem como o seu defeito cognitivo ligeiro
• A ausência de antecedentes criminais
97.- Ademais, resulta do relatório social do arguido junto aos autos a fls.... que o mesmo sempre foi uma pessoa trabalhadora e que dá valor ao trabalho, que mostrou sempre interesse em estudar, evoluir, dedicada, responsável, norteando o seu comportamento pelos princípios transmitidos pelos pais.
98.- Todos estes elementos devem ser (re)ponderados na determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido, e ter peso para a aplicação de uma pena suspensa na sua execução.
99.- Em resumo, e sem prescindir das conclusões supra, tudo ponderado, devia levar a considerar:
• prescritos alguns factos de que o arguido vem acusado, em virtude do lapso temporal existente entre condutas, que devem levar a que algumas condutas sejam reapreciadas individualmente e consequentemente a que se julguem prescritos os procedimentos criminais;
• que os despachos de arquivamento proferidos no âmbito dos inquéritos NUIPC n.º 341/16.5GBMFR e NUIPC n.º 512/16.4PKLRS consolidam o decidido como se de caso julgado se tratasse e que o arguido não podia ser condenado pelos mesmos factos, em prol da segurança e certeza jurídicas e respeito do principio “ne bis in idem”;
• que a matéria dos pontos 8 a 17 e 47, 48, 21, 23 e 24, 35, 40 a 46, 71 e 72 não deviam ter sido dados como provados, por resultarem da versão da ofendida, sem o conhecimento presencial e directo de qualquer testemunha;
• que inexistiu qualquer pressão sobre a ofendida para esta sair de casa ou qualquer perseguição à mesma, não devendo ser dados como provados os pontos 77 a 79, 110, 113, 115, 80 a 82 e 84, 86, 88 a 108, 109, sendo que muitos desses pontos dados como provados também resultam da versão da ofendida, transmitida aos OPC e vertida em aditamentos, sem testemunhas presenciais e directas;
• que não existe qualquer nexo de causalidade entre qualquer conduta do arguido e o resultado morte da ofendida, pois está provado nos autos com a certidão de óbito e relatório médico que a causa da morte foi uma infecção, conhecida como choque séptico refratário com falência multiorgânica, bem como foi causada pelas doenças de que a ofendida padecia, devendo ser dados como não provados os Pontos 110, 111, 113, 115;
• que existem elementos sócio-profissionais e de saúde, bem com a ausência de antecedentes criminais a favor do arguido, que devem ser (re)ponderados para determinação da medida da pena a aplicar;
Por todo o exposto e no demais de Direito que os Exm.ºs Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa doutamente suprirão, deve o presente recurso ser considerado procedente e, em sequência, o Acórdão de que se recorre ser revogado e substituído por outro que considere:
• que o arguido deve ser absolvido de alguns factos, quer por via da prescrição, quer por via da consolidação do decidido em inquéritos anteriores, quer porque alguns factos apenas são a versão da arguida, sem que exista qualquer testemunha presencial e directa dos mesmos;
• que aplique ao arguido uma pena ajustada a todo o exposto e que deve ser inferior àquela a que o arguido foi condenado em primeira instância, bem como suspensa na sua execução;
• que considere que o arguido deve ser parcialmente (senão totalmente) absolvido do pedido de indemnização civil deduzido pela assistente e absolvido dos demais pedidos de indemnização civil.
Assim se fazendo a devida JUSTIÇA!
****
Respondeu o MP em 1ª Instância
(...)
Não assiste no entender do Ministério Público, razão alguma ao arguido.
2º
Versando o recurso matéria de facto, deve especificar-se os pontos de facto incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa e que provas que devem ser renovadas, com referência às respectivas gravações, tendo lugar a transcrição.
3º
O que não manifestamente não sucede no caso em concreto, pelo que não deve tal matéria ser conhecida em sede de recurso.
4º
O arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, agravado pelo resultado, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2 e 3 do Código Penal.
6º
O bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é a saúde, entendida esta enquanto saúde física, psíquica e mental e, por conseguinte, podendo sair afectada por uma diversidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento de uma pessoa e/ou afectem a dignidade pessoal e individual do cônjuge.
7º
II (...)
8º
(...)
11º
A "prática de maus tratos entre cônjuges parece então poder analisar-se na perpetração de qualquer acto de violência que afecte, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal igualitária" - sublinhado nosso.
12º
Por outro lado, aquele crime pode ser cometido através de um só acto, enquanto que o crime de maus-tratos pressupõe alguma reiteração das condutas, de modo a inculcar um carácter de habitualidade.
13º
Na jurisprudência dos Tribunais Superiores Portugueses, foi surgindo uma corrente jurisprudencial segundo a qual, em casos de especial violência, uma única agressão seria bastante para preencher o tipo legal.
14º
Assim, com referência à redacção do preceito resultante da 3.a alteração ao CP, operada pelo DL 48/95, de 15-03, extrai-se do Ac. de 1411-1997, Proc. n.º 1225/97 - 3.a (CJSTJ, 1997, tomo 3, pág. 235 e ss.), que:
- «A actual redacção (...) mais não significa (...) do que a incriminação, decorrente da lei penal, de condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, que se revistam de gravidade suficiente para poderem ser enquadradas na figura dos maus tratos. Não são, assim, todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do referido artigo 152.º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade ou, dito de outra maneira, que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou, até vingança desnecessária, da parte do agente" .
15º
E, aqui chegados cumpre esclarecer que face ao que supra se disse, inequivocamente é esta a Nossa posição, a qual vimos defendendo, aliás, de há já largos anos a esta parte, a de que não é qualquer ofensa que permite imputar ao denunciado a prática do crime de maus-tratos ao invés do crime de ofensas à integridade física simples, pelo que na nossa mui modesta opinião, não são todas as ofensas que cabem na previsão criminal do referido artigo 152.º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade ou, dito de outra maneira, que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou, até, vingança desnecessária, da parte do agente.
16º
Só assim será, se aquele acto de violência, em concreto, quando isolado, afecte por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal igualitária (não olvidando, sem qualquer sobra de dúvida, que qualquer ofensas à integridade física simples ou injúria, entristece e(/ ou afecta o lesado).
17º
No crime em causa nos autos e conforme refere o Acórdão da Relação do Porto, de 03.11.1999, in Colectânea de Jurisprudência, 1999, tomo 5, fls. 223 e Acórdão da Relação do Porto, de 05.11.2003, in www.dgsi.pt:
- "As condutas típicas podem ser de várias espécies: maus tratos físicos (ofensas corporais simples) e maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, ameaças mesmo que não configuradoras, em si, do crime de ameaça)", e continua referindo que "Pode, pois, dizer-se que o bem jurídico protegido é a saúde, enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental que pode ser afectado por toda uma multiplicidade de comportamentos que atinjam a dignidade pessoal do cônjuge ou equiparado", radicada na dignidade da pessoa humana, acrescentamos nós.
18º
(...)
22º
Concluindo, no crime de violência doméstica ao cônjuge, o bem jurídico protegido pela incriminação é a saúde, nas suas vertentes física, psíquica e mental, radicada na dignidade da pessoa humana, fazendo-se a imputação objectiva desse resultado a conduta comissiva ou omissiva, nos maus tratos e elemento implícito uma reiteração de condutas que irão produzir o resultado típico que é a lesão do bem jurídico tutelado.
23º
No que respeita ao tipo objectivo, as condutas ilícitas tanto podem ser:
- de ofensas corporais a vítima - que tem uma especial relação com o agressor, sendo por isso mesmo um crime específico,
-como podem consistir em ofensas morais, tratamentos cruéis, excessivos ou desumanos (nestes se incluindo por exemplo a exigência de esforço desmedido nas lides domésticas ou a pratica forçada da prostituição).
24º Da prescrição
Feita esta introdução, refletiremos sobre a alegada prescrição de parte dos factos e da procedibilidade penal de parte dos factos;
25º
No ano 2000, através da Lei nº 7/2000, de 27 de Maio, e na sequencia de discussão publica que envolveu mais audivelmente políticos, técnicos, associações de mulheres e outras associações cívicas militantes, veio a dar-se uma nova redacção ao artigo 152.º do Código Penal.
26º
Na solução adoptada ressalta a consagração da tese que sustentava a natureza publica do crime como meio de "atacar" o até agora subsistente problema de um grande número de arquivamentos de processos por vontade expressa, embora com questionável liberdade, da vítima. Por isso hoje o procedimento, quaisquer que sejam as circunstância, já não depende da vontade da vítima.
27º
Concretamente, as principais inovações são as seguintes:
a)-Atribuiu-se natureza pública ao crime, pondo fim ao expediente anteriormente introduzido, que permitia a vítima pôr termo ao processo ainda que o mesmo se tivesse iniciado sem a sua queixa;
b)-O campo de tutela passou a abranger também os progenitores de descendente comum, passando, nesta matéria, o âmbito da protecção penal para fora das paredes da casa de morada da família e do agregado familiar assim entendido.
c)-Por forma a melhor colmatar as deficiências apontadas ao anterior regime, nomeadamente no que respeita a recorrente oposição da vitima ao prosseguimento do processo, previu-se agora uma outra solução, que reside no novo enquadramento e redacção do instituto da suspensão provisória do processo, previsto nos artigos 281.º e 282.º do C.P.P., abrindo-se a possibilidade de, em processo pelo crime de maus tratos entre cônjuges ou entre quem conviva em condições análogas, se decidir por aquela suspensão, a qual ate poderá ser requerida pela própria vitima;
d)-Previu-se ainda a possibilidade de ser aplicada ao condenado a pena acessória de proibição de contacto com a vítima, incluindo a obrigação de afastamento da residência desta, até ao máximo de dois anos.
28º
Conclui-se assim, que o crime de maus-tratos é público e, como tal, não existe prazo para apresentar queixa.
29º
Assim, mesmo os processos crime em que houve desistência (nos termos do regime legal anterior a Lei nº 7/2000), nas agressões em que teve acompanhamento médico ou solicitou a intervenção das autoridades policiais, ainda que sem iniciar um processo crime esses momentos, são um rastro que poderá vir a constituir prova de um crime de maus-tratos continuado.
30º
Ou seja, mesmo antes da Lei 7/2000, sempre poderia o Ministério Público iniciar o procedimento em benefício da vítima.
31º
Pelo que não tem acolhimento a tese defendida pelo recorrente.
32º
E, ainda que assim não se entenda, relembramos, ainda alguma jurisprudência a propósito do assunto:
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 03 de Abril
- "A crime de maus tratos a cônjuge de previsão do artigo 152 n.2 do Código Penal é de execução permanente, que se prolonga e persiste no tempo, porque há uma voluntária manutenção da situação antijurídica até que a execução cesse, ficando só então o crime exaurido.
O prazo de caducidade do direito de queixa só tem início após ter cessado a execução...".
33º
(...)
35º
Concluindo, não serão os meros actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus-tratos (artº 152º, n.2 do CP).
36º
O que importa e que as agressões, isoladas ou reiteradas, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal.
37º
O crime de violência doméstica a cônjuge ou a pessoa com quem se vive em condições análogas, da previsão do artigo 152º n. 2 do Código Penal é de execução permanente, que se prolonga e persiste no tempo, porque há uma voluntária manutenção da situação antijurídica até que a execução termine, só então ficando o crime exaurido.
38º
Mais se refere que o prazo de prescrição do crime em causa nos autos é de pelo menos 10 anos, na sua forma simples e de 15 anos na sua forma agravada, que é o caso dos autos.
39º
Os primeiros factos reportam-se ao ano de 2003, repetindo-se pelo menos e no que foi possível contextualizar, em 2007, 2008, 2011, 2015, 2016, 2017 e 2018.
40º
Há sempre uma linha de continuidade da resolução criminosa e renovação da decisão criminógena do recorrente.
41º
Ou seja, entre dois factos nunca decorreu muito tempo, sendo o crime continuado e motivado sempre pela mesma resolução, salvo melhor opinião a tese do recorrente não pode prevalecer, quanto à prescrição de parte dos factos .
42º
Logo salvo melhor opinião, nesta questão não assiste razão ao recorrente, não existindo prescrição dos factos.
43º
Da alegada violação do Direito de Defesa e do Direito ao contraditório
Salvo melhor opinião, o Recorrente confunde estes dois conceitos, no entanto tentaremos o seu enquadramento em sede de Direito e correlacionar os mesmos, nomeadamente com os factos dados como provados no Acórdão.
44º
Esta temática é frequentemente abordada a propósito do crime de violência doméstica, quanto aos termos em que são descritos os factos integradores do ilícito, mais concretamente no relevo conferido à imputação de factos genéricos.
45º
O nosso direito acolheu o princípio do processo justo e equitativo, quer por imposição constitucional, decorrente do art. 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, quer por via do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
46º
Trata-se de um conceito complexo, que vai ganhando vida à medida que se compõe o seu conteúdo, integrado por princípios vários, uns que consubstanciam aquisições recentes, outros que estão adquiridos há, já, longos anos.
47º
Um destes princípios, antigos, que o integram e sem o qual ele não vive, é o princípio do contraditório, que também merece consagração expressa na nossa Constituição da República Portuguesa, no nº 5 do art. 31º.
48º
Pelo princípio do contraditório garante-se a cada uma das partes do processo que exponha as suas razões, ofereça as suas provas e se pronuncie sobre as razões e provas apresentadas pelos demais. Do mesmo modo, na sua formulação negativa, este princípio proíbe qualquer limitação do direito de defesa, designadamente o direito de se pronunciar sobre elementos juntos ao processo.
49º
Do exposto resulta que o arguido em processo crime tem o direito de se pronunciar sobre todas as suspeitas que impendam sobre si. E para se pronunciar tem que conhecer os factos cuja autoria lhe seja atribuída, porque só conhecendo todos esses factos é que os pode rebater, ou seja, é que se pode defender convenientemente.
50º
E então estamos perante mais um dos princípios integradores do processo equitativo, qual seja o direito que o arguido tem de ser informado dos factos cuja prática lhe é imputada (art. 6º, nº 3, al. a), da C.E.D.H.).
51º
Se as imputações genéricas não são factos, se violam os direitos de defesa do arguido violam, por isso, o princípio do processo equitativo, resultando daqui que não podem sustentar uma condenação penal .
52º Há duas teses base neste domínio, a saber:
1)-A tese que defende que desde que esteja balizado o período em que o comportamento criminoso persistiu, com indicação do início e termo, resulta cumprida a formalização da concretização não havendo, por isso, violação de qualquer direito do arguido,
2)-A tese que defende que sempre que a reiteração e intensidade da acção estão no centro da definição de tipos penais muito amplos, como é o caso dos maus-tratos, da violência doméstica, do tráfico de droga, a precisão e concretização dos factos necessários à integração de tais tipos é essencial à imputação, por um lado, e ao respeito pelo direito de defesa, por outro.
53º
Analisando o artigo 283º, nº 3, al. b), do C.P.P. apura-se que este dispõe que:
- «a acusação contém, sob pena de nulidade:
A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada».
54º
Perante um tipo legal com a estrutura do crime de violência doméstica a aceitação da imputação de factos genéricos, sem qualquer concretização, significaria a multiplicação da imputação deste tipo legal uma vez que bastaria ao seu preenchimento cobrir toda uma vida em comum com a nuvem da violência, bastando para tanto dizer que o agente desde sempre/desde o casamento deu pontapés na vítima, lhe chamou vaca, etc .
55º
As dificuldades de investigação, instrução e prova são condicionantes neste tipo de crime ocorrido entre paredes.
56º
Mas, tal não permite a inversão dos princípios gerais do Direito, comprometendo a defesa do arguido.
57º
Com isso não pode o Ministério Público pactuar, nomeadamente porque funciona como garante dos direitos, liberdades e garantias.
58º
Antes a absolvição de um culpado, do que a condenação de um inocente!
59º
Acima de tudo, o Ministério Público pugna pela verdade material e por um processo justo.
60º
Se é verdade que o crime de violência doméstica pode consumar-se com um único acto ou no âmbito de uma relação de curta duração, em que a datação dos actos será relativamente fácil, casos há em que o crime se prolonga por muito tempo, décadas até, em que os actos são repetidamente praticados e em que a concretização do lugar e do tempo já é muito difícil.
61º
E aqui chegados quid iuris?
Nesta situação será razoável exigir à vítima, que o foi ao longo de tanto tempo, quantas vezes anos, que date com exactidão (dia, hora e lugar) cada um dos comportamentos agressivos de que foi vítima?
62º
As regras da experiência explicam que há factos especialmente relevantes que permanecem permanentemente na memória mas relativamente aos quais muitos pormenores se apagam (por exemplo a vitima não recorda a data da respectiva ocorrência, mas recorda que aconteceu perto de uma data festiva, etc).
63º
Se a vítima tem direito à tutela penal, o arguido tem direito a conhecer os factos imputados, os concretos factos que fundamentam a condenação.
64º
Há, pois, que tentar alcançar o equilíbrio entre estes direitos, sendo de realizar uma ponderação caso a caso, atendendo sempre às eventuais dificuldades de datação dos factos quando estas se revelem compreensíveis, mas também aos direitos do arguido.
65º
(...)
66º
Revertendo para o acórdão em causa, apuramos que os factos que foram dados como provados, o foram sempre com o rigor que se impõe, convocando datas especificas e situando os acontecimentos com suportes factuais e documentais alargados (datas de operação documentadas, datas de descoberta de doenças, idade da filha da ofendida, idade da neta da ofendida, datas das participações criminais de factos presenciados pelas forças de segurança, para enquadrar os factos, acrescidas de outras referências, como seja o local onde ocorreu "quando vinham da E...", após uma festa de casamento).
67º
Face ao supra exposto, é parecer do Ministério Público que neste concreto não pode colher a argumentação do Recorrente, não existindo qualquer violação do Direito de defesa e do direito do contraditório.
66º
O principio "ne bis in idem"
Vem o recorrente alegar ainda que, quanto a parte dos factos os mesmos não poderiam ter sido reapreciados, porque sobre os mesmos recaíra em tempos, um despacho de arquivamento (nos termos do artigo 277º, nº 2 do CPP, refira-se).
67º
A regra do « ne bis in idem » (ou « non bis in idem ») é um princípio clássico do processo penal, já conhecido do direito romano, segundo o qual « ninguém pode ser perseguido ou punido penalmente pelos mesmos factos».
68º
Esta regra, que responde a uma dupla exigência de equidade e de segurança jurídica, é reconhecida e aplicada na ordem jurídica interna por um conjunto de países respeitadores do Estado de direito.
69º
A Constituição da República Portuguesa consagra, no n.º 5 do artigo 29.º, o referido princípio "ne bis in idem" dizendo que «ninguém pode ser julgado mais de uma vez pela prática do mesmo crime".
70º
Desta enunciação do princípio decorre a proibição de aplicar mais de uma sanção com base na prática do mesmo crime e também a de realizar uma pluralidade de julgamentos criminais com base no mesmo facto delituoso.
71º
Como defendem os Professores J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, no seu livro " CRP Constituição da República Portuguesa Anotada, em anotação ao art. 29.º, "o princípio "ne bis in idem" comporta duas dimensões:
- (a) Como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo);
- (b) Como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto."
72º
No Código de Processo Penal existem, apenas, duas disposições normativas que se reportam à figura em causa - o caso julgado, que são:
- O artigo 84º, respeitante à decisão que conhece do pedido civil;
- O artigo 467º, n.º 1, ao estatuir que, as decisões penais condenatórias, logo que transitadas, possuem força executiva.
73º
Assim, mediante recurso à regra do artigo 4º, do Código de Processo Penal, aplicar-se-iam as regras processuais civis previstas nos artigos 493º a 498º, do Código de Processo Civil.
74º
Desta forma, será à luz de tais disposições que cumpre, antes de mais, apreciar se estamos perante uma situação que implique a violação da proibição do princípio da proibição do "ne bis in idem"
75º
Convém frisar que a estrutura do processo penal português é de índole acusatória .
76º
O objecto do processo penal é o facto humano de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais, ou seja, o crime na definição dada pelo art. 1.º n.º1, a) do CPP.
77º
O Ministério Público terá sempre legitimidade para prosseguir o processo, pois tem legitimidade para proceder por qualquer crime público.
78º
De igual modo, se no decurso do inquérito sobre o crime se vierem a descobrir indícios de outro crime público e entre ambos existir uma relação de conexão processualmente relevante (art. 24.º do CPP), o objecto do inquérito pode alargar-se aos novos crimes.
79º
Em caso de hipótese de arquivamento do inquérito nos termos do art. 277.º do CPP, pode manter-se ainda numa certa indefinição, quanto ao objecto do processo, que tem como consequência que em caso de reabertura do inquérito os factos podem ser ampliados, restringidos ou ser qualificados diversamente.
80º
É este o caso dos autos!
81º
É que o art. 277.º do CPP apenas exige a prova de que os factos noticiados, com os desenvolvimentos que o inquérito entretanto propiciou, não constituam crime ou que não se indicie suficientemente que o constituam,mas não que não constituam um determinado crime.
82º
O arquivamento do inquérito, ao abrigo do disposto no art. 277.º do CPP, não tem efeitos preclusivos, pois o inquérito pode ser reaberto nos termos do art. 279.º n.º1 do mesmo diploma, ou seja, caso surjam novos factos ou elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento.
83º
O despacho de arquivamento neste âmbito é da exclusiva competência do Ministério Público e nele não há qualquer intervenção judicial.
84º
A decisão não é, pois, jurisdicional e consequentemente, não é suscetível de recurso, nem de trânsito em julgado.
85º
Em termos conceptuais, entende-se que o despacho de arquivamento produz efeitos extraprocessuais (ao contrário do que sucede com a acusação que produz efeitos endoprocessuais), pois, decorridos os prazos peremptórios para a sua impugnação/revogação (através da abertura da instrução ou intervenção hierárquica), tem a força de caso decidido, apenas mutável e susceptível de reavaliação se surgirem novos elementos que ponham em causa os efeitos da decisão de abstenção, no âmbito do mesmo processo .
86º
A relevância da motivação do despacho de arquivamento propaga-se para além dos momentos da sua sindicabilidade (intra- orgânica ou judicial) aos efeitos futuros do despacho que vale como caso decidido, pois os novos elementos de prova têm de por em causa esses fundamentos e não apenas a bondade da decisão.
87º
Em face do que fica dito, temos como certo que não ocorre qualquer violação do princípio "ne bis in idem", como pretende o Recorrente.
88º
Invoca ainda o recorrente o erro notório na apreciaçao da prova
O erro notório só pode referir-se a factos que caibam no "thema probandum" e este é definido pelo objecto do processo (Ac. do STJ de 17-4-1997, BMJ 466-209).
Este vício ocorre quando:
a)- da análise do texto da sentença recorrida;
b)- por si ou conjugada com as regras da experiência (Ac. do S.T.J. de 27-1-1999, BMJ 483-140);
c)- qualquer homem medianamente dotado (Ac. do S.T.J. de 243-1999, BMJ 485-, 281);
d)- se apercebe da existência de vícios notórios - o erro é notório
quando é notado ou sabido de todos, ou quando se apresenta como manifesto, evidente, transparente. Insofismável (Ac. do S.T.J. de 25-31999, BMJ 485-286).
89º
O erro notório tem de resultar da análise da matéria de facto.
90º
Logo, os motivos de facto que fundamentaram a decisão não se confundem com os factos provados nem com os meios de prova.
91º
Trata-se dos elementos que à luz das regras da experiência e de acordo com critérios lógicos de pensamento racional, levam a que a convicção do Tribunal se forme num certo sentido.
92º
E, não existe qualquer erro notório.
93º
Daí a dificuldade sentida pelo Recorrente em especificar o vício alegado, limitando-se a referir generalidades e circunstâncias genéricas, bem como extratos aleatórios e desenquadrados das declarações (escolhidas a bel-prazer do Recorrente) de onde, salvo o devido respeito, não se podem extrair quaisquer conclusões.
94º
Aliás, as "passagens"invocadas pelo recorrente e desenquadradas, dizem respeito a factos que foram levados pelo colectivo de juízes "a quo", para o elenco dos factos provados.
95º
Tais passagens desenquadradas de todo o raciocínio lógico e do discurso integral da testemunha, escolhendo de acordo com a dinâmica que lhe é mais favorável, os trechos dos depoimentos prestados pelas testemunhas, adaptando-os às partes dos factos dados como provados, que se lhe afiguram dissonantes com tal passagem!
96º
Por fim em conclusão, sempre diremos que nos pareceu inequívoco que durante anos o arguido agiu injuriando e ameaçando a vitima, estando a filha ou a neta desta presentes, quando o arguido consentia na sua presença.
97º
Os factos dados como provados, foram na conjugação dos diversos elementos analisados na audiência de discussão e julgamento, desde relatórios médicos e clínicos com a descrição das mazelas sofridas, quer com a os relatos efectuados pela vitima nas participações criminais por esta apresentada, quer ainda nos depoimentos de diversas testemunhas, uma vez que o Recorrente não se inibia de exibir o seu génio, fosse à frente de quem fosse.
98º
Quanto ao modo de execução, o arguido não usou qualquer sofisticação; a gravidade das consequências foi relevante, porquanto a ofendida andava num permanente "stress ", sendo brutalizada pelo arguido:
i)- sexualmente (pouco tempo após as cirurgias obrigava a vítima a cumprir o "débito conjugal", mesmo quando esta lhe dizia que tinha dores e que não conseguia manter o relacionamento naquele momento), ii)- fisicamente - ficaram-nos gravadas na memória as descrições das testemunhas que relataram que a vítima estava deitada no chão a gemer e o arguido estava impávido e sereno, ou que após a empurrar pelas escadas abaixo, provocando-lhe diminuição considerável da locomoção lhe instalou um elevador em casa para a "compensar", ou os murros que lhe desferiu na cara e cabeça, enquanto o arguido conduzia e com a neta no banco de trás a assistir, iii)- psicológicamente - afastando-a do convívio com a filha e com a neta mais velha, só vindo a conhecer as netas mais novas no final da sua vida, ou após a doença e por já não ser fisicamente atraente, nem sexualmente activa devido às debilidades que a enfermaram, persegui-la e escorraçá-la daquela que foi a casa de morada de família, e onde habitavam juntos há mais de 15 anos, invocando nessa altura que nunca se havia divorciado da primeira mulher ao contrário do que sempre afirmara e arregimentando tal argumento, para reivindicar de forma sórdida o usufruto exclusivo da casa para si, tendo a escalada de violência perpetrada pelo arguido o seu epilogo na consequência morte da ofendida.
99º
Compulsados os autos e procedendo-se à audição das declarações prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento, apura-se que dos elementos coligidos face aos factos dados como provados, pode aferir-se da intensidade das ofensas físicas e verbais do medo sentido, das ameaças e perseguições sofridas pela ofendida, o que nos leva a concluir que se considera violado o bem jurídico protegido pela norma em causa, e, por outro, provaram-se as consequências, directas ou indirectas, da conduta do arguido.
100º
Também quanto às declarações da testemunha Am_____ - filha da vítima, que ficou de tal forma psicologicamente marcada pelas situações que descreveu e que viu o arguido a fazer à sua mãe, o obrigar a mãe a que a filha saísse de casa aos 15 anos, porque tinha engravidado e ao afastamento entre ambas, que o arguido face à sua supremacia psicológica impôs, a qual relatou pormenores que só quem vivenciou a situação a pode descrever como foi descrita, com o sofrimento e dor revelados.
101º
É esta testemunha -Am_____, filha da falecida vítima, a par de documentos juntos aos autos e da descrição do elemento da PSP PC______, que fazia o patrulhamento de proximidade nas vítimas de violência doméstica, que nos permitem compreender o terror vivido por MF______ nos últimos dias da sua existência.
102º
A falecida era doente crónica, com dificuldades de locomoção (agravadas pela queda da escada provocada pelo arguido), muito debilitada psicologicamente pelos anos de afastamento da única filha e pela pressão a que o arguido a sujeitou para sair da casa comum nos meses que antecederam a sua morte, acabou por procurar refúgio numa rulote, habitualmente utilizada pelo casal para passar férias, instalada num Parque de campismo, situado na E..., sujeita ao frio e à chuva típicas do mês de Dezembro, longe de tudo (hospitais e médicos que habitualmente a seguiam) e de todos (filha e netas).
103º
Tal estado de saúde da falecida era sobejamente conhecido do arguido, o qual ante de aposentado tinha a profissão de enfermeiro, tendo por isso conhecimentos acrescidos na área da saúde humana e tendo como dever deontológico o cuidado com o próximo!
104º
Se ao homem comum, na posição do arguido era exigível que se apercebesse que a mudança de uma habitação numa moradia, para uma rulote num parque de campismo, em Dezembro e face às agruras atmosféricas seria potenciador de uma maior fragilidade para a ofendida, ao arguido - um enfermeiro, um cuidador, mais será de exigir nesse âmbito!
105º
O arguido aniquilou a existência de MF______, primeiro afastando-a da filha e netas e depois afastando-a daquela que era a sua casa e abandonando-a doente e só, quando a mesma já nada tinha para lhe oferecer - nem juventude, nem beleza, nem saúde.
106º
Nestes termos, da matéria de facto dada como assente, resulta de um modo inequívoco e indubitável que o arguido praticou o tipo legal de crime pelo qual está condenado em sede de primeira instância, não oferecendo dúvidas o preenchimento do respectivo tipo legal, quer ao nível dos elementos objectivo, quer subjectivo.
107º
Mostram-se, assim, preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do crime de violência doméstica, p. e p. nos números 1, alínea, b), e nº 2 e 3, ambos do art. 152º do Código Penal.
108º
Nada justifica (nem mesmo que o arguido já não quisesse ter qualquer vida em comum com a ofendida) a actuação do arguido perante a sua, então, companheira há mais de 18 anos, que se viu obrigada a aceitar o jugo controlador que o arguido lhe impôs, situação que durou inúmeros anos, sendo que o arguido a injuriava, ameaçando-a, estando presentes a filha ou a neta, em inúmeras situações, e agredindo a mesma com uma violência pouco comum.
109º
Aliás, foi público na audiência de discussão e julgamento o desespero e a dor da filha da ofendida quando recordou tais vivências.
110º
Foi ainda notório o estado psicológico da ofendida descrito por quem com ela privou, que se viu impedida de orientar a sua vida nos mais diversos parâmetros, desde a gestão do dinheiro, sobre qual a sua opinião sobre como educar a filha ou relativamente à sua determinação sexual, porquanto o arguido impondo a sua supremacia psicológica e física, obtida através de anos consecutivos de enxovalhos, humilhações e diminuições, bem como de ofensas físicas violentas subjugou a ofendida às suas vontades.
111º
Se o arguido considerava que a sua mulher não preenchia os requisitos domésticos que o mesmo pretendia, deveria ter dialogado com aquela ou, no limite, devia ter-se separado, mas nunca deveria ter tido tais atitudes.
112º
Assim, da conjugação e ponderação de todos os elementos probatórios disponíveis era inevitável se dessem como provados os factos constantes do acórdão condenatório.
113º
Resultando demonstradas as lesões corporais e os danos psíquicos, deveras relevantes para a ofendida, bem como que aquele comportamento se repercutiu, de forma acentuada na saúde física, psíquica, emocional e moral, da ofendida, de forma a abalar a sua auto- estima , inferiorizando-a e atemorizando-a e coartando a sua capacidade de determinação e de ação (vejam-se os depoimentos prestados e que constam das gravações), e determinando o seu afastamento e isolamento, que confluiu para o final trágico da ofendida, a qual mercê das condições impostas pelo arguido e ao seu débil estado de saúde, não resistiu à estadia numa rulote, num parque de campismo, em pleno dezembro, o que SMO permite imputar ao arguido o crime de violência doméstica, na sua forma agravada.
114º
Sem necessidade de tecer outros considerandos, cumpre afirmar que na decisão recorrida não existe qualquer erro judiciário e muito menos um erro tão crasso que salte aos olhos, sem necessidade de qualquer exercício mental.
115º
Em conclusão, da análise e simples leitura do acórdão recorrido, não resulta que a prova produzida haja sido erroneamente apreciada, nem, tão pouco, que a fundamentação não tenha sido tão exaustiva quanto por lei se impõe.
116º
"A livre apreciação da prova a que alude o artigo 127º do Código de Processo
"A livre apreciação da prova a que alude o artigo 127º do Código de Processo Penal não é reconduzível a um íntimo convencimento, a um convencimento meramente subjectivo sem possibilidade de justificação objectiva, mas a uma liberdade de apreciação no âmbito das operações lógicas probatórias que sustentem um convencimento qualificado pela persuasão racional do juízo e que, por isso, também externamente possa ser acompanhado no seu processo formativo segundo o princípio da publicidade da actividade probatória" (Ac. do S.T.J. de 3-3-1999 (P. 29/98) de 3-Mar1999, Bol. do Min. da Just., 485, 248).
117º
Muito pelo contrário, o tribunal a quo fundamentou de forma assaz exaustiva, quanto à sua convicção dos testemunhos.
118º
Em relação à credibilidade das testemunhas, dispõe o artigo 127º do Código de Processo Penal que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e livre convicção.
119º
Conforme Acórdão da Relação de Lisboa de 3-3-1999 "1- A mais importante inovação introduzida pelo Código de Processo Penal em matéria de apreciação de prova consiste na consagração de um sistema que obriga a uma correcta fundamentação fáctica das decisões que conheçam a final do objecto do processo de modo a permitir-se um efectivo controlo da sua motivação, sem prejuízo dos demais actos decisórios proferidos no decurso do processo terem de ser sempre fundamentados - de facto e de direito - pela entidade que os profira - Código de Processo Penal, artigos 374º, 97º, nº 4, 379º e 283º. II - A obrigatoriedade de tal motivação não poderá limitar-se a uma genérica remissão para os diversos meios de prova fundamentadores da convicção do tribunal à semelhança do que tradicionalmente vinha sucedendo no domínio do Código de Processo Penal de 1929" (Bol. do Min. da Just., 485, 480).
120º
Concluindo, ponderados os argumentos invocados pelo Recorrente na motivação do seu recurso, não podemos deixar de considerar que não lhe assiste qualquer razão e que o acórdão recorrido não merece reparo algum.
121º
A decisão de direito, em matéria criminal, baseia-se apenas nos factos previamente dados como provados em sede de audiência de discussão e julgamento.
122º
Tendo isto como ponto assente e analisados os factos que o Tribunal a quo deu como provados na decisão recorrida constata-se que a condenação do arguido, ora recorrente, resultou da convicção que o Tribunal a quo formou com base na prova, frisase, em toda a prova produzida e examinada em sede de audiência de discussão e julgamento.
123º
Assim, e ao contrário do que pretendem fazer crer o Recorrente, o Tribunal a quo socorreu-se de uma apreciação ponderada e conjugada de toda a prova produzida, a qual permitiu ao mesmo Tribunal concluir pela condenação do arguido.
124º
Afigura-se-nos que, no essencial, o Recorrente se prevalece do direito de discordar da apreciação efetuada pelo Tribunal a quo relativamente à apreciação da matéria de facto.
125º
E, pese embora o facto do Recorrente poder discordar da posição assumida na decisão recorrida quanto à valoração da matéria de facto por não se conformar com o valor concedido pelo julgador ao depoimento prestado por uma testemunha em detrimento de outra ou outras, de sentido divergente, a verdade, porém, é que tal divergência de opinião não constitui fundamento legal de reexame da matéria de facto que, enquanto tal, é insindicável.
126º
É que não pode deixar de ter-se presente que, no ordenamento jurídico onde nos movemos vigora um princípio fundamental: o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127ºdo Código de Processo Penal.
127º
Tal princípio é válido para todas as fases processuais e para as diversas "entidades competentes", às quais é permitido apreciar a prova existente nos autos ou produzida perante si, com base exclusivamente na livre valoração destas e na convicção pessoal - cfr. Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal, pág. 199.
128º
Não se verificando, como não se verificam, quaisquer das situações excepcionais, há que acatar a posição assumida pelo Mmº Juiz no exercício do poder jurisdicional que lhe foi conferido e ao abrigo da liberdade de apreciação da prova que lhe assiste (vide, por todos, o Acórdão do STJ, de 13.02.91, AJ nº 15/16, 7 "(...) se o Recorrente alega vícios da decisão recorrida a que se refere o nº 2 do art.º 410º do Código de Processo Penal, mas fora das condições previstas neste normativo, afinal impugna a convicção adquirida pelo Tribunal a quo sobre determinados factos, em contraposição com a que, sobre os mesmos, ele adquiriu em julgamento, esquecido da regra da livre apreciação da prova inserta no art.º 127º (...)").
129º
Por todo o exposto, e considerando o que acima ficou dito quanto à prova produzida em audiência de julgamento, afigura-se que não tem razão o Recorrente quanto às questões afloradas na sua motivação, uma vez que, tendo em atenção a factualidade dada como provada, outra não poderia ser a conclusão a retirar pelo Tribunal a quo, quer quanto às designadas "agressões" - ponto d1), das pressões para a ofendida sair da residência - relativamente ao ponto d2), da perseguição - d3), e do agravamento pelo resultado morte - e).
130º
A pretensão do Recorrente de que os factos não permitem concluir pela integração da conduta do arguido no resultado morte
Quanto ao agravamento do tipo legal pelo resultado morte, previsto no artigo 15º, nº 3 do CP e face à matéria de facto dada como provada, dúvidas não subsistem que se encontram preenchidos quer o elemento objectivo, quer o elemento subjectivo.
131º
Recordando os factos apurados e concatenando os mesmos com o direito é possível concluir que:
1)-A falecida era doente crónica, com dificuldades de locomoção (agravadas pela queda da escada provocada pelo arguido),
2)-Estava muito debilitada psicologicamente pelos anos de afastamento da única filha
3)-E pela pressão a que o arguido a sujeitou para sair da casa comum nos meses que antecederam a sua morte,
4)-Pelo que a ofendida acabou por procurar refúgio numa rulote, habitualmente utilizada pelo casal para passar férias, instalada num Parque de campismo, situado na Ericeira, sujeita ao frio e à chuva típicas do mês de Dezembro, longe de tudo (hospitais e médicos que habitualmente a seguiam) e de todos os que a estimavam (filha e netas).
5)-Tal estado de saúde da falecida era sobejamente conhecido do arguido, o qual ante de aposentado tinha a profissão de enfermeiro, tendo por isso conhecimentos acrescidos na área da saúde humana e tendo como dever deontológico o cuidado com o próximo!
6)-Se ao homem comum, na posição do arguido era exigível que se apercebesse que a mudança de uma habitação numa moradia, para uma rulote num parque de campismo, em Dezembro e face às agruras atmosféricas seria potenciador de uma maior fragilidade para a ofendida, ao arguido - um enfermeiro, um cuidador, mais será de exigir nesse âmbito!
132º
Foi neste quadro, precipitado pela atuação do arguido que a morte de MF______ sobreveio, uma vez que o arguido:
a)- A meio do mês de Dezembro de 2018, obrigou MF______ a sair da casa onde habitava há mais de 15 anos,
b)- Através de perseguições diárias, enxovalhos e agressões físicas e psicológicas,
c)- Encurralou a vítima de tal modo que, a mesma em fuga procurou refúgio onde lhe foi possível - uma rulote, num parque de campismo, para escapar às represálias que o arguido lhe moveu, em pleno mês de dezembro;
d)- Sabendo da condição física e psicológica de MF______, a obrigou-a a viver num local inadequado ao seu estado de saúde e onde contraiu uma infecçao respiratória grave, agravada pelo quadro patológico pré-existente e que era bem conhecido do arguido,
e)- Deixando-a só e doente, longe de tudo e de todos, completamente isolada do mundo exterior,
f)- Foi na rulote, caída no chão no seu interior que a vitima foi encontrada já inconsciente, devido ao quadro de pneumonia que se instalou e gravou face ao ambiente natural que a envolvia - uma rulote num parque de campismo, em Dezembro (o qual evoluiu para uma septicémia generalizada);
g)- A vítima nunca recuperou do estado em que foi encontrada, vindo a falecer dois dias depois.
133º
O arguido aniquilou a existência de MF______, primeiro afastando-a da filha e netas e depois afastando-a daquela que era a sua casa e abandonando-a doente e só.
134º Decompondo a actuação do arguido apuramos que:
a)-A primeira actuação do arguido é o afastamento da residência de ambos, forçando-a a ir viver para uma rulote, inserida num parque de campismo;
b)-A segunda, uma vez que o arguido sabia dos problemas de saúde que afligiam a mesma e que era incomportável uma pessoa na condição da vitima, ficar isolada e sem assistência médica ou familiar, instalada numa rulote, num parque de campismo em pleno mês de Dezembro, consagradamente frio e potenciador das doenças e problemas respiratórios e conformou-se com a possibilidade de daí poder resultar a morte da ofendida, como veio a acontecer.
135º
Nestes termos, da matéria de facto dada como assente, resulta de um modo inequívoco e indubitável que o arguido praticou o tipo legal de crime pelo qual está condenado em sede de primeira instância, não oferecendo dúvidas o preenchimento do respectivo tipo legal, quer ao nível dos elementos objectivo, quer subjectivo.
136º
Repetimos, resultando demonstradas as lesões corporais e os danos psíquicos, deveras relevantes para a ofendida, bem como que aquele comportamento se repercutiu, de forma acentuada na saúde física, psíquica, emocional e moral, da ofendida, de forma a abalar a sua auto-estima , inferiorizando-a e atemorizando-a e coarctando a sua capacidade de determinação e de acção (vejam-se os depoimentos prestados e que constam das gravações), e determinando o seu afastamento e isolamento, que confluiu para o final trágico da ofendida, a qual mercê das condições impostas pelo arguido e ao seu débil estado de saúde, não resistiu à estadia numa rulote, num parque de campismo, em pleno dezembro, o que SMO permite imputar ao arguido o crime de violência doméstica, na sua forma agravada.
137º
Da medida da pena - prevenção especial
Da medida da pena
Conforme refere JESCHECK (Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, II, 1194),
-"o pomo de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois só partindo dos fins das penas claramente definidos se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para afixação da pena".
138º
Nos termos do artigo 40º do Código Penal, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
139º
A prevenção geral positiva ou de integração é a finalidade primordial a prosseguir, enquanto objectivo de estabilização contrafáctíca das expectativas comunitárias na validade da norma violada (FIGUEIREDO DIAS, Sobre os Fundamentos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, pp.106), mas nunca pode pôr em causa a própria dignidade humana do agente, que o princípio da culpa justamente salvaguarda (artigo 40º, n.º 2 do Código Penal).
140º Da prevenção especial
Atentos os factos dados como provados nos autos, não se nos afigura a existência de quaisquer atenuantes de relevo que deponham a favor do arguido, mormente porque os factos dados como provados nos autos nos permitem concluir que os mesmos foram levados a cabo ao longo de alguns anos, tendo resultado do julgamento a convicção de que o ambiente familiar propiciado pelo arguido foi de índole autoritarista, impondo as suas vontades pela força e recusando o diálogo, num clima de guerra aberta, física e psicológica contra a ofendida.
141º
Se tomarmos em linha de conta que o objectivo final do comportamento violento é submeter o outro mediante o uso da força e que toda a violência (a doméstica incluída), assenta em relações de dominação e de força, concluímos que para combater a violência doméstica não basta proteger e ajudar as vítimas, sendo necessário que a sociedade se ocupe também da pessoa violenta, a fim de a recuperar e a reeducar para o direito, prevenindo a prática de comportamentos idênticos, fazendo-o sentir a seriedade e a ilegalidade da sua conduta.
142º
Assim, ponderadas estas considerações somos do entendimento que existe a necessidade de se alterar o padrão de comportamento do arguido e atenta a personalidade demonstrada pelo arguido e a sua conduta posterior, que nos fazem crer que a pena a que o mesmo foi condenado é claramente suficiente e adequada, pois só assim as finalidades de prevenção especial serão atingidas pela pena.
143º
Atentos os factos dados como provados nos autos, não se nos afigura a existência de quaisquer atenuantes de relevo que deponham a favor do arguido, nomeadamente o facto de não ter antecedentes criminais, o que não significa que o arguido tenha tido boa conduta anteriormente, mormente porque os factos dados como provados nos autos nos permitem concluir que os mesmos foram levados a cabo ao longo de alguns anos, tendo resultado do julgamento a convicção de que o arguido destruiu a pessoa da ofendida, quer na sua vertente física, quer psicológica e sexual, acabando por fim por originar o quadro fáctico que fez agravar o estado clinico de MF______ de tal forma, que lhe sobreveio o resultado morte.
144º Da culpa
As qualidades da personalidade do arguido, manifestadas nos factos relevam por via da culpa, agravando-a, na medida em que constituem índices de uma elevada desconformidade da personalidade do arguido face ao direito.
145º
É certo que também, quer o comportamento anterior do arguido, quer o seu comportamento posterior, quer o seu comportamento durante o desenrolar do processo, não revelaram quaisquer circunstâncias que devam ser valoradas a favor do recorrente.
146º
Atentas as causas de prevenção geral, mormente o facto do crime de violência doméstica continuar a ter expressão significativa na sociedade portuguesa, estando profundamente enraizado na nossa sociedade, em relação ao mesmo, um sentimento desculpabilizante (veja- se a própria ofendida que não pretende a prisão do arguido) que urge coarctar pelo que a pena e a medida da pena a aplicar devem ter sempre um carácter que permita à sociedade em geral compreender a importância.
147º
Como é sabido, no artigo 71º do Código Penal encontram-se elencados os factores que devem nortear o julgador na determinação do quantum concreto da pena a aplicar ao arguido.
148º
Ora, transpondo tais critérios para o caso dos autos, constata- se que os mesmos foram tidos em consideração pelo Tribunal na fixação da pena aplicada ao arguido.
149º
Revertendo para o caso concreto, concordamos com a medida da pena aplicada ao arguido, desde logo atenta a fundamentação da medida da pena efectuada na sentença, na qual o Meritíssimo colectivo de Juízes "a quo" considerou que:
- a actuação do arguido revestiu-se de muita gravidade atento o período de tempo em que decorreram os comportamentos;
- o arguido agiu na modalidade mais intensa do dolo - dolo directo e com intensidade elevada;
- como consequência da conduta do arguido, a sua companheira, sofreu lesões físicas e psíquicas, que culminaram na sua morte;
- se revelava particularmente censurável o modo de execução dos factos e as motivações para a prática dos mesmos.
150º
Face a várias motivações, com as quais o Ministério Público concordou, o acórdão em concreto, entendeu que deveria ser aplicada uma pena privativa da liberdade.
151º
Atentas as consequências dos factos e o modo de execução dos mesmos, entende o Ministério Público que o grau de ilicitude das suas condutas é elevado.
152º As necessidades de prevenção especial, são algo elevadas, considerando a gravidade, a extensão, a intensidade do dolo do Recorrente, dúvidas não restam de que não há qualquer fundamento suscetível de alicerçar uma diminuição da medida da pena.
153º
Atento o artigo 71º, nº 2, a), do Código Penal, facilmente se conclui que o grau de ilicitude do facto é elevado, avaliado em função das circunstâncias em que o arguido agiu.
154º
Quanto ao modo de execução, o arguido não usou qualquer sofisticação e a gravidade das consequências foi relevante, porquanto a ofendida andava num permanente "stress ", sendo brutalizada física, sexualmente e psicologicamente, pelo arguido.
155º
Devendo alertar-se a denominada "consciência comunitária" para a reprovação das condutas tidas pelo arguido, as pessoas devem afastar o costume ancestral, de não intervir na vida de um casal ou de um agregado familiar, e denunciar às autoridades situações como a dos autos.
156º E, atento o facto de que o arguido não demonstrou arrependimento algum, tendo inclusive, adotando no decorrer do julgamento uma postura de falta de arrependimento e de falta de autocrítica, entendendo o seu comportamento justificável face às situações em causa nos autos.
157º
Assim, entendemos não merecer qualquer reparo a medida concreta da pena que foi aplicada ao arguido nos presentes autos.
Vossas Excelências, no entanto, e MINISTÉRIO PÚBLICO decidindo, farão a costumada justiça.
****
Neste Tribunal Pronunciou-se a Exmª Srª. Procuradora Geral Adjunta no sentido de que da improcedência do recurso interposto.
**** Da decisão sob recurso resulta:
- O arguido AM______ e MF______ partilharam cama, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, no período compreendido entre os anos de 1997 e 30 de Setembro de 2018.
1- Entre os anos 1997 e 2002, o arguido e MF______ residiram na habitação sita na Rua .... .... - Vvª .... - C... N... - C..., em O.... e, a partir de 2002, mudaram-se para a habitação, construída de raiz, sita na Rua ... ..., n.º ..., Bº C... C... ..., S... A... - R... em - O..., onde residiram juntos até 30 de Setembro de 2018.
2- Durante a construção da habitação sita no C... C..., MF______ contribuiu designadamente com a compra de móveis e decoração do interior da casa.
3- MF_____ tinha uma filha, de um anterior casamento, AC_____, nascida em 28 de Fevereiro de 1982, que viveu com a mãe e com o arguido até aos 15 anos de idade.
4- Durante o período em que viveram juntos, o arguido e MF_______ conviveram, frequentemente, com familiares daquele, nomeadamente com a sua mãe, com o seu filho e com os seus irmãos, sobrinhos e primos.
5- MF______ apresentava um quadro de saúde muito debilitado, padecendo de algumas doenças, nomeadamente:
-artrite reumatóide seropositiva, diagnosticada em 2000;
-hipertensão arterial;
-dislipidemia;
-síndrome depressivo;
-neoplasia da mama, tendo sido submetida a mastectomia parcial e esvaziamento axilar direito, com tratamentos de quimioterapia;
-fibromioma do ovário, tendo sido operada em 2013;
-foi operada à coluna lombar em 20/07/2012, por compromisso neurológico de recidiva de hérnia discal: foraminectomia bilateral L4-L5, discectomia L4-L5, excisão de quisto sinovial e artrodese lombar combinada: intersomática e transpedicular posterior, o que era do conhecimento do arguido.
6- Em virtude das doenças de que padecia, MF______ caminhava com recurso a canadianas.
7- Em data não concretamente apurada, mas durante o ano de 2002, o arguido começou a alterar o seu comportamento com MF______ e disse-lhe “estúpida, cabra, andas a inventar doenças ”.
8- Em data não concretamente apurada, mas situada no ano de 2003, após MF______ ter sido operada a um cancro da mama e se encontrar a fazer sessões de quimioterapia, necessitando de transporte para os tratamentos, o arguido proferiu-lhe as seguintes expressões: “puta, vaca do caralho, não sabes o caminho para casa, eu não sou teu motorista”.
9- Seis meses após a dita operação a um cancro da mama, quando se encontravam na garagem da residência, o arguido começou uma discussão com MF______, pois esta, como não se sentia muito bem, recusou-se a acompanhá-lo a um almoço com os sócios.
10- Acto contínuo, o arguido desferiu vários estalos na cara de MF______, tendo esta caído no chão da garagem.
11- Quando MF_______ estava caída no chão, o arguido deu- lhe pontapés na zona da barriga e pernas e nos braços que aquela usava para defender a zona onde tinha sido operada, o que lhe provocou, directa e necessariamente, dores.
12- Após, o arguido deixou-a no chão e saiu da residência.
13- No referido contexto, o arguido iniciou discussões com MF_______ quando estava zangado por motivos profissionais.
14- E passou a dormir com uma pistola pequena debaixo da almofada como forma de atemorizar MF______.
15- Em data não concretamente apurada, mas entre os anos 2007 e 2008, o arguido, no interior da residência, iniciou uma discussão com MF______ e desferiu-lhe um estalo na cara, na presença da filha desta, do seu companheiro e da sua neta, na altura, menor de idade.
16- No dia 6 de Abril de 2011, cerca das 19h00, no interior da residência, o arguido empurrou MF______ pelas escadas abaixo e atirou uns vasos com terra e flores à cabeça desta.
17- Na sequência desta situação, MF_______ teve necessidade de receber tratamento médico no Hospital de Santa Maria, em Lisboa.
18- Como consequência, directa e necessária, da descrita actuação do arguido, MF_______ sofreu traumatismo craniano com perda de conhecimento, equimose ocular direita e ferida incisa parietal esquerda sangrante, no tórax, região lombar e membros inferiores.
19- Tais factos deram origem ao Inquérito NUIPC n.º 227/11.0PKLRS, que correu termos na 2.a Secção do DIAP de Loures, o qual foi arquivado pois, MF_______, temendo a reacção do arguido, que lhe disse, de modo sério, que ia “dar cabo dela e da sua filha”, não quis prestar declarações.
20- No dia 13 de Fevereiro de 2015, pelas 23h00, no interior da residência, o arguido desferiu murros na cara, na cabeça e nos braços de MF______, o que lhe provocou, directa e necessariamente, dores.
21- Tais factos deram origem ao Inquérito NUIPC n.º 62/15.6PKLRS, que correu termos na 2.a Secção do DIAP de Loures, o qual foi arquivado pois, MF_______, temendo a reacção do arguido, não quis prestar declarações.
22- No dia 2 de Janeiro de 2016, pelas 19h45m, na cozinha da residência, o arguido desferiu murros na cabeça e nos braços e pontapés nas pernas de MF_______, o que lhe provocou, directa e necessariamente, dores.
23- Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, partiu uma garrafa e atirou uma vassoura, uma cadeira e cestos ao chão.
24- Tais factos deram origem ao Inquérito NUIPC n.º 4/16.1PKLRS, que correu termos na 2.a Secção do DIAP de Loures, o qual foi arquivado pois, MF______, temendo a reacção do arguido, não quis prestar declarações.
25- No dia 2 de Julho de 2016, o arguido e MF_______ foram a um casamento em Mafra.
26- Cerca das 00h30m do dia seguinte, quando se encontravam na festa do referido casamento, o arguido, ao ver que o irmão do noivo colocou uma mão no ombro de MF_______, proferiu-lhe as seguintes expressões, em voz alta e à frente dos restantes convidados: “puta do caralho,és uma vaca,estás aqui a roçar-te nos outros homens ”.
27- Acto contínuo, agarrou no braço de MF_______ e obrigou-a a entrar no seu veículo automóvel, de matrícula XX-XX-XX, marca TOYOTA, modelo LAND CRUISER, de cor verde e abandonou o local conduzindo a viatura.
28- Já com o veículo em andamento, e quando circulava no Km 26,500 da Estrada .... ..., em V... G..., o arguido desferiu murros na cara de MF_______.
29- Como esta pediu que parasse, o arguido agarrou na sua cabeça por trás e empurrou-a na direcção do volante onde bateu com a cara várias vezes, até MF______ perder os sentidos.
30- Em virtude de tal situação, o arguido foi interveniente em acidente de viação registado com o n.º 167/2016, no Posto Territorial da Guarda Nacional Republicana da M....
31- Na sequência desta situação, MF______ teve necessidade de receber tratamento médico no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde deu entrada às 02h37m do dia 3 de Julho de 2016.
32- Como consequência, directa e necessária da descrita actuação do arguido, MF______ sofreu traumatismo crânio-encefálico com perda de conhecimento, traumatismo da coluna vertical e lombar com alteração da sensibilidade dos membros inferiores e traumatismo abdominal, tendo ficado internada até ao dia 6 de Julho de 2016, data em que teve alta contra parecer médico, após ter conversado com o arguido.
33- Tais factos deram origem ao Inquérito NUIPC n.º 341/16.5GBMFR, que correu termos no DIAP de Mafra, o qual foi arquivado pois, MF_______, temendo a reacção do arguido, afirmou que nunca foi agredida pelo arguido.
34- No dia 9 de Dezembro de 2016, pelas 17h00, na cozinha da residência, o arguido agarrou MF______ pelos braços e desferiu vários murros na sua face e cabeça.
35- Como consequência, directa e necessária da descrita actuação do arguido, MF_______ sofreu equimose na região externa do cotovelo direito com 54/32mm, equimose na região exterior do punho direito, com 68/36mm, equimose na região dorsal da mão esquerda, a nível do 1.º espaço interdigital, com 34/26mm e edema na região occipital com diâmetro de 32mm, os quais demandaram um período de 21 (vinte e um) dias de doença, sem incapacidade para o trabalho.
36- Tais factos deram origem ao Inquérito NUIPC n.º 512/16.4PKLRS, que correu termos na 2.a Secção do DIAP de Loures, o qual foi arquivado pois, MF_______, temendo a reacção do arguido, e porque este lhe disse que “conhecia uma pessoa no Tribunal e que os processos não iam dar nada”, afirmou que não aconteceram mais conflitos e que pretendia desistir do procedimento criminal.
37- Para além das condutas supra descritas, em 2011, o arguido proibiu MF______ de contactar e estar com a sua filha, Am_____, o que se manteve até 2018, e, em 2016, proibiu a neta daquela, Af______, de entrar lá em casa para ver a avó.
38- MF______ falava com a filha às escondidas do arguido por temer a reacção do arguido se descobrisse.
39- Numa ocasião, em data não concretamente apurada, a filha, Am______, foi visitar a mãe, após mais um episódio de violência do arguido e, quando se encontravam as duas sentadas numas escadas na traseira da casa, o arguido proferiu a seguinte expressão: “O que é que este monte de merda está aqui a fazer?”.
40- Igualmente, o arguido disse a MF______ que os seus familiares só lá iam a casa para comer e beber e que faziam dela criada e, por isso, proibiu-os de entrarem lá em casa, o que levou a que estes deixassem de falar com aquela.
41- O arguido, identicamente, pôs fim aos convívios que efectuavam com os vizinhos e disse a MF______ que, o facto de ela falar com as vizinhas era falar de mais sobre a vida lá de casa e que elas eram umas “quadrilheiras ”.
42- Tudo isto levou a que MF_______ ficasse cada vez mais isolada.
43- Por mais do que uma vez, o arguido disse a MF______, “para que é que te andas a embonecar tanto, é para agradar a quem ”.
44- Noutra ocasião, quando iam para um almoço, o arguido disse-lhe para vestir umas calças e não o vestido que tinha, pois iam para um almoço onde estavam muitos homens.
45- Nesse almoço estavam os colegas de curso do arguido e as respectivas mulheres.
46- Quando voltou das cirurgias a que foi submetida, à do cancro, à do útero/ovários e às duas na coluna, o arguido quis manter relações sexuais com MF______.
47- Apesar de lhe ter pedido para esperar mais uns dias, o arguido pôsse em cima dela, abriu-lhe as pernas e penetrou o seu pénis na vagina de MF______.
48- Em data não concretamente apurada, quando se encontravam na cozinha da residência, o arguido proferiu as seguintes expressões a MF______, na presença da sua neta, Af______, na altura com 15 ou 16 anos de idade, “filha da puta, cabra de merda, não vales nada”.
49- Acto contínuo, o arguido puxou os cabelos com força a MF______, o que levou a que esta caísse no chão, e desferiu-lhe pontapés nos braços e nas pernas.
50- A neta de MF______, Af______, disse, então, ao arguido “avô não faças isso, a avó não te fez mal nenhum”, ao que o arguido retorquiu dizendo “não tens nada a ver com isso, vai-te embora lá para cima”.
51- Como a neta se recusou a deixar a avó, o arguido saiu de casa.
52- Noutra ocasião, em data próxima à situação acima referida, Af______ estava na cama com MF______ quando ouviram os passos do arguido a chegar, de madrugada, tendo esta dito à neta para fingirem que estavam a dormir.
53- Depois de o arguido ter entrado no quarto e de o terem ouvido a vomitar na casa-de-banho ali existente, o arguido, em voz alta, disse: “ninguém dorme nesta casa”.
54- Af______, então, levantou-se e pediu ao arguido para se deitar e deixar a avó descansar, ao que aquele respondeu dizendo que não ia deixar ninguém descansar e mandou-a para o seu quarto.
55- MF______ levantou-se para ir com a neta para o seu quarto.
56- Acto contínuo, o arguido retirou a pistola que tinha sempre debaixo da almofada e, apontando-a na direcção de MF______, disse, de modo sério, referindo-se à ofendida e à sua neta “se é assim, ou vão as duas recambiadas ou levam um tiro”.
57- Noutra ocasião, também na presença de Af______, na altura com 17 anos, quando vinham da E______ onde almoçaram, o arguido, após ter ingerido bebidas alcoólicas, estava a conduzir o veículo com alguma velocidade.
58- MF______ chamou-o à atenção por causa da velocidade e pediu para que a deixasse conduzir o veículo.
59- Acto contínuo, o arguido, deu um murro, com a sua mão direita, na cara de MF______ o que levou a que esta batesse com a cara no vidro do carro.
60- Após, o arguido parou o carro na berma e, como MF______ se encontrava a chorar, desferiu-lhe murros na cara e no nariz de onde ficou a sangrar.
61- Depois, o arguido saiu do carro e dirigiu-se à porta do pendura, lugar onde estava MF______, e disse-lhe “Sai do carro! Tu agora vais ficar aqui”, tendo aquela respondido que “Não ia ficar ali pois se a tinha trazido também ia levá-la a casa”, ao que aquele respondeu “Estou farto de ti! Estou farto das tuas merdas e das tuas coisas ”.
62- Já no interior do veículo, e até chegar a casa, o arguido continuou a discutir dizendo a MF______, entre outras coisas, “Tu não vales nada! És uma merda! Não prestas”.
63- Quando chegaram a casa, a neta de MF______, Af______, disse à avó que tirava as coisas que tinham trazido da Ericeira do carro ao que o arguido disse: “Não tiras nada daí porque as coisas são minhas”.
64- O arguido quando viu que a neta de MF______ levou as coisas para dentro de casa proferiu a seguinte expressão: “Tu também és uma cabra como a tua avó, por isso tu só fazes aquilo que ela manda, se eu disse para não trazer porque é que as trouxeste? ”.
65- Acto contínuo, o arguido começou a pontapear as coisas, que consistiam em utensílios de cozinha, tendo-os partido ao mesmo tempo que disse que “As coisas são minhas, posso partir tudo ”.
66- MF______ perguntou, então, ao arguido por que motivo é que ele estava a partir a loiça, ao que este respondeu “Se quisesse partir a casa toda partia, que a casa é só minha”.
67- Como MF______ lhe disse que a casa era dos dois e que se ele quisesse partir coisas que partisse as dele, o arguido atirou-lhe um lenço sujo para a cara, disse “Mereces isto e muito mais” e cuspiu-lhe na cara.
68- Como MF_______ começou a chorar e virou-lhe costas, o arguido puxou-a pelo cabelo e desferiu-lhe chapadas na cara e pontapés nas pernas, tendo o nariz daquela começado a sangrar outra vez.
69- MF______ pediu, inúmeras vezes, à sua neta Af_______ que não contasse a ninguém o que assistia lá em casa, dizendo-lhe “Nunca contes nada porque ele pode sempre fazer mais”, manifestando-lhe receio “pois um dia podia não acordar por ele lhe ter feito alguma coisa”.
70- No dia 30 de Setembro de 2018, pelas 16h30, no interior da residência, após MF______ ter pedido ao arguido para fazer menos barulho porque queria descansar, este atirou um martelo de orelhas, com cabo em madeira, que tinha numa das mãos na direcção daquela acertando-lhe na zona abdominal, o que provocou a sua queda e perda dos sentidos.
71- Acto contínuo, o arguido, munido de uma ripa em madeira com 64cm de comprimento por 3cm de largura, desferiu-lhe diversas pancadas na cabeça, e só parou porque aquela, quando recuperou a consciência, gritou por socorro.
72- Na sequência desta situação, MF______ teve necessidade de receber tratamento médico no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures.
73- Como consequência, directa e necessária, da descrita actuação do arguido, MF______ sofreu traumatismo crânio-encefálico com perda de conhecimento, contusão cerebral, equimose da região anterior, punho direito, 18/14, equimose da região posterior, terço distal antebraço esquerdo e região dorsal da mão esquerda 142/38, equimose do cotovelo direito 45/26 e hematoma na região púbica e no hipogastro, os quais demandaram um período de 21 (vinte e um) dias de doença, sem incapacidade para o trabalho.
74- Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido tinha na sua posse:
- Uma arma de fogo de marca P. Beretta, calibre 6,35mm, com o número de série A25412V, com o respectivo carregador contendo no seu interior 7 (sete) munições do mesmo calibre e um coldre;
- Três caixas de munições contendo no seu interior 144 (cento e quarenta e quatro) munições de calibre 6,35mm;
- Uma espingarda de caça de marca Benelli, de calibre 12, com o número de série F123995;
- Uma espingarda pressão de ar de calibre 4,5;
- Um martelo de orelhas, com cabo em madeira;
- Uma ripa em madeira com 64cmx3cm, com vestígios hemáticos;
- Um livrete de manifesto da arma P. Beretta de calibre 6,5mm;
- Um livrete de manifesto da arma Benelli, de calibre 12.
75- Em 1 de Outubro de 2018, o arguido foi sujeito a primeiro interrogatório judicial na qualidade de detido, tendo-lhe sido aplicadas as medidas de coacção de termo de identidade e residência, proibição de adquirir, usar ou deter na sua disponibilidade quaisquer armas e proibição de contactar por qualquer meio com MF______ com sujeição a fiscalização electrónica.
76- Após o interrogatório judicial, o arguido tentou de diversas formas que MF______ saísse daquela que foi a sua residência nos últimos quase 20 anos, o que conseguiu.
77- Assim, no dia 2 de Outubro de 2018, o filho do arguido, AA______, acompanhado da Ilustre mandatária do arguido, Dra. DM______, deslocou-se àquela residência, tendo dito a MF______ que teria que abandonar a residência, pois pertencia ao arguido e este não poderia contactar com ela.
78- No dia 9 de Outubro de 2018, o arguido, através da sua Ilustre mandatária, Dra. DM_______, enviou a MF______ uma carta, na qual lhe comunicou que tinha que abandonar a referida residência, no prazo de 3 dias, sob pena de ser instaurada acção judicial e queixa-crime, advertindo- a, ainda, que, se não saísse da residência naquele prazo, ser-lhe-ia cobrado € 50,00 por dia, a título de sanção pecuniária compulsória.
79- No dia 12 de Outubro de 2018, pelas 11h15m, o arguido deslocouse à residência de MF______ e tentou abrir a porta das traseiras que dá acesso à cave, não tendo conseguido subir para o piso superior, pois esta tinha trancado a porta que dá acesso ao rés-do-chão.
80- Acto contínuo, o arguido dirigiu-se à porta de entrada da residência e tentou convencer MF_______ a abrir a porta pois tinha que ir buscar um pertence seu, o que aquela recusou.
81- Nesse mesmo dia, entre as 14h00 e as 17h00, aproveitando que MF______ se ausentou de casa para ir a uma consulta e tratamentos hospitalares, o arguido entrou no interior da residência, retirou e levou consigo as chaves de todas as portas, trancou o escritório, local onde MF______ tinha documentação pessoal importante, e uma divisão onde esta tinha roupa e deixou uma das portas que dá acesso à cave destrancada.
82- Com a ajuda dos Agentes da PSP que se deslocaram ao local, MF_______ reforçou a porta que foi destrancada com uma cómoda com um tampo de mármore e uma escada em ferro, de modo a que não fosse possível a entrada.
83- No dia 16 de Outubro de 2018, pelas 16h45, o arguido tentou entrar pela porta da cozinha da residência de MF_______, o que não conseguiu por se encontrar trancada.
84- No interior da residência, encontrava-se MF_______ e a sua filha, Am______, que chamaram logo a PSP.
85- Como não conseguiu entrar, o arguido sentou-se no interior do seu veículo, de matrícula XX-XX-XX, de marca TOYOTA, modelo LAND CRUISER, que se encontrava à frente daquela residência, e ali permaneceu.
86- À chegada da PSP, o arguido, ao falar de MF______, proferiu a seguinte expressão: “Eu sei como isto vai acabar”.
87- No dia 20 de Outubro de 2018, pelas 18h00, o arguido, conduzindo o veículo TOYOTA acima identificado, seguiu MF______ a um supermercado, sito na Rua ... ... - na R______.
88- Enquanto aquela fazia compras, o arguido permaneceu dentro do interior do seu veículo à espera.
89- Quando MF______ saiu do referido supermercado, e entrou no seu veículo para ir para casa, o arguido foi atrás dela, fazendo o mesmo trajecto que aquela estava a fazer.
90- Quando chegou a casa, MF_______ refugiou-se dentro do seu interior, tendo o arguido continuado a conduzir naquela rua, em baixa velocidade, e a olhar para o interior da habitação.
91- No dia 23 de Outubro de 2018, pelas 19h00, o arguido seguiu MF_______ à Clínica Hospital da Luz, sita na Rua Pulido Valente, em O...., quando aquela ali se deslocou para fazer tratamentos.
92- MF_______, após sair da clínica, apercebeu-se da presença do arguido, pelo que se dirigiu no seu veículo até ao supermercado supra referido em 88, tendo sido seguida até àquele local pelo arguido.
93- No dia 22 de Outubro de 2018, pelas 10h00, o arguido seguiu MF_______ e a sua filha, Am_____ , até este Tribunal quando aquelas vieram prestar depoimento no âmbito dos presentes autos.
94- No dia 25 de Outubro de 2018, pelas 17h00, o arguido passou várias vezes em frente a um restaurante, sito na Rua ... ... - na R______, onde se encontrava MF_______ e a sua filha Am_____ .
95- No dia 26 de Outubro de 2018, pelas 13h38, o arguido, usando o número de telemóvel 91......., telefonou para o telemóvel de MF______.
96- No dia 12 de Novembro de 2018, pelas 13h00, o arguido, conduzindo o seu veículo, perseguiu MF_______ quando esta se encontrava a conduzir o seu veículo na R_______.
97- MF______, numa tentativa de evitar a perseguição, percorreu algumas artérias daquela localidade.
98- Ao entrar na Rua ... ... - na R______, pensando que já estaria segura, MF_______ avistou o arguido pelo espelho do retrovisor que ainda continuava no seu encalce.
99- Em consequência, e por se encontrar bastante nervosa com a situação, MF_______ acabou por embater com o seu veículo num veículo que se encontrava estacionado perto da referida artéria, causando estragos em montante não concretamente apurado.
100- Após, o arguido abandonou o local.
101- No dia 16 de Novembro de 2018, cerca das 17h30, o arguido dirigiu- se à residência de MF_______ e, como aquela não estava em casa, escondeu-se junto à porta de acesso ao alpendre.
102- Ao chegar a casa, MF_______ avistou o arguido e, numa tentativa de se proteger, fugiu para rua.
103- Acto contínuo, o arguido saiu da residência em sentido contrário ao de MF______ pelo que esta aproveitou o momento para tentar entrar em casa.
104- Quando estava a entrar em casa, o arguido apareceu e proferiu a seguinte expressão: “Fernanda preciso de falar contigo”.
105- MF_______ não respondeu ao arguido e entrou dentro de casa, onde se trancou para se sentir segura.
106- No dia 18 de Novembro de 2018, pelas 18h35, o arguido, usando o número de telefone 21......., telefonou duas vezes a MF______, sendo que na primeira chamada não falou e, na segunda chamada, disse “Fernanda não desligues, preciso de falar contigo ”.
107- No dia 1 de Dezembro de 2018, pelas 17h00, o arguido dirigiu-se à residência de MF_______ e ali permaneceu, dentro do seu veículo, a fotografar a mudança que aquela se encontrava a fazer.
108- Desde o dia em que lhe foram aplicadas as acima referidas medidas de coacção, em especial a de proibição de contactar com MF_______ com fiscalização por vigilância electrónica, o arguido furtou-se a todas as diligências tendentes à instalação e efectivação do aludido mecanismo de controlo, mormente as levadas a cabo pela Equipa de Vigilância Electrónica da DGRSP.
109- No dia 14 de Dezembro de 2018, após se sentir pressionada a abandonar a sua casa e com medo do arguido pelos factos supra descritos, MF______ mudou de residência para uma roulotte sita no Parque de Campismo de ... ..., na E...., sem condições de habitabilidade para uma pessoa com um estado de saúde tão debilitado como era o seu, o que era do conhecimento do arguido.
110- Em consequência disso, no dia 16 de Dezembro de 2018, pelas 12h21m, MF______ deu entrada nas urgências do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, por insuficiência respiratória por embolia pulmonar, onde acabou por falecer, no dia 17 de Dezembro de 2018, pelas 11h00 devido a um choque séptico refractário com falência multiorgânica, ARDS (síndrome de dificuldade respiratória aguda) grave, pneumonia bilateral hipoxemiante e artrite reumatóide.
111- Por despacho proferido em 19 de Dezembro de 2018, foi aplicada ao arguido, para além das medidas de coacção descritas em 76, a medida de coacção de não permanecer na residência onde a ofendida habitava, sita na Rua ... C..., Lote ... - R______.
112- Como consequência, directa e necessária da descrita actuação do arguido, para além das lesões e dores acima descritas, MF______ sentiu vexame e humilhação e profundo receio pela sua integridade física e vida, tanto assim que, no dia 18 de Outubro de 2018, foi determinada a sua inserção no programa de protecção por teleassistência e, no dia 14 de Dezembro de 2018, acossada pelo arguido para abandonar aquela que sempre foi a sua residência, acabou por fazê-lo indo viver para uma roulotte na E..., sem condições para o efeito não só dado o seu débil estado de saúde, como ainda pelas circunstâncias meteorológicas que se faziam sentir, acabando por falecer.
113- O arguido sabia que, com as condutas acima descritas, cometidas de forma reiterada, molestava física, sexual e psiquicamente MF______, mulher com quem viveu em união de facto, infligindo-lhe maus- tratos físicos, sexuais e psíquicos, humilhando-a, ofendendo-a na sua honra e consideração pessoal, e que condicionava a sua vida e bem-estar psicossocial, ofendendo-lhe a respectiva dignidade humana, criando e potenciando na ofendida sentimentos de vergonha, humilhação, diminuição e frustração, o que fez maioritariamente naquela que foi a residência do casal, bem conhecendo o perigo que a sua conduta representava para a sua saúde e equilíbrio mental, tanto mais que era bem sabedor das doenças de que padecia.
114- Mais sabia que ao persistir na sua actuação iria fazer com que MF______ saísse da habitação e que a mesma, por não dispor de alternativa de residência, iria viver para uma roulotte num parque de campismo na E..., em condições inaptas para a sua frágil condição de saúde, como efectivamente sucedeu, vindo a falecer passados dois dias da mudança para o referido local.
115- O arguido agiu sempre de forma livre, consciente e voluntária, ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
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Do pedido de indemnização civil deduzido pela assistente/demandante AC_____ :
116- A assistente/demandante é filha única de MF______, tendo em 21-12-2018 procedido à habilitação de herdeiros, no Cartório Notarial de SN______, na qualidade de única herdeira.
117- Em 06-12-2018, quando a ofendida MF______ compareceu no Tribunal para realizar um exame médico de avaliação, encontrava-se debilitada, com recurso a uma cintura à volta do corpo, e deslocando-se com uma canadiana, tal como retratado nas fotografias de fls. 1083 e verso.
118- Com a actuação supra descrita, o arguido/demandado causou na ofendida MF_______ lesões físicas, dores, ofensas verbais, perseguição, violação da sua saúde e liberdade pessoal, humilhação, e vexame na sua honra e liberdade de determinação.
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Do pedido de indemnização civil deduzido pela demandante SGHL - Sociedade Gestora do Hospital de Loures, S.A.:
119- A demandante SGHL - Sociedade Gestora do Hospital de Loures,S.A., é uma sociedade comercial que se dedica às actividades de gestão e operação clínica do Hospital de Loures (Hospital Beatriz Ângelo), em regime de concessão, incluindo o exercício de todas as actividades, a título principal ou acessório, nos termos do disposto no contrato de gestão, celebrado no âmbito do concurso para a celebração do contrato de gestão para a concessão do Hospital de Loures, tendo celebrado com o Estado Português um contrato de gestão do Hospital Beatriz Ângelo, em regime de Parceria Público-Privada, obrigando-se a prestar serviços de saúde aos utentes do Serviço Nacional de Saúde da sua área de abrangência.
120- No exercício da sua actividade a demandante prestou assistência médica e hospitalar à ofendida MF_______, utente do Serviço Nacional de Saúde n.º 37......3, no dia 30 de Setembro de 2018.
121- A ofendida deu entrada no serviço de urgência médico-cirúrgica do Hospital Beatriz Ângelo, pelas 17h50m do dia 30 de Setembro de 2018, apresentando à observação a seguinte situação clínica «Agressão física: TCE com embate occipital, ferida incisa no punho dto, trauma da anca esq ..., tem vários hematomas nos membros superiores que refere ser de agressões anteriores», tendo sido observada e assistida por médico na urgência, efectuando uma ecografia do abdómen superior, uma radiografia à bacia, uma radiografia à anca unilateral, uma tomografia computorizada do crânio e uma ecografia pélvica por via supra púbica.
122- A ofendida teve alta às 16h07m do dia 01 de Outubro de 2018.
123- O custo da assistência médica prestada na urgência à ofendida, de acordo com o preço tabelado para os hospitais do Serviço Nacional de Saúde, correspondeu ao montante de € 201,34 (duzentos e um euros e trinta e quatro cêntimos), não incluindo taxas moderadoras que não foram cobradas à utente, dado a ofendida beneficiar da dispensa D023 não tendo a demandante recebido o pagamento dessa quantia.
****
Do pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, E.P.E.:
124- O demandante é uma pessoa colectiva de direito público, integrado no Serviço Nacional de Saúde.
125- Em consequência da actuação do arguido/demandado, o demandante, no exercício da sua actividade, prestou a seguinte assistência hospitalar à ofendida MF______:
a)- Cuidados de saúde em episódio de urgência e MCDT’S (meios complementares de diagnóstico) no dia 03-07-2016, no Serviço de Urgência, importando o custo respectivo em € 731,60 (setecentos e trinta e um euros e sessenta cêntimos).
b)- Cuidados de saúde em episódio de urgência e internamento no dia 16-12-2018 a 17-12-2018, importando o custo respectivo em € 1.220,93 (mil duzentos e vinte euros e noventa e três cêntimos).
126-Até à data o demandante não recebeu o pagamento das referidas quantias, no valor total de € 1.952,53 (mil novecentos e cinquenta e dois euros e cinquenta e três cêntimos).
**** Mais se provou:
127- O percurso de desenvolvimento e de socialização do arguido AM______ decorreu em P..., - F... V..., onde residiu até aos dezasseis anos de idade, altura em que, na senda de ocupação laboral, migrou para a capital.
128- Mais novo de três descendentes, o arguido cresceu num agregado familiar que viveu com os proveitos das actividades agrícolas e piscatórias exercidas pelos progenitores. Apesar das modestas condições económicas, não experienciaram privações na supressão das necessidades elementares.
129- A dinâmica relacional nuclear surge retratada como isenta de problemáticas de relevo, assente na veiculação de valores pró-sociais que considera importantes na estruturação da personalidade, mormente a honestidade, o espírito de trabalho e a valorização da poupança. A figura materna assumiu um papel afectivo e protector, sobretudo na ponderação do estilo de educação rígido do progenitor. O arguido adopta uma postura de desvalorização e de legitimação quanto à interacção entre os progenitores, pontuada por discussões relativamente frequentes, momentos que sublinha nunca terem perpassado para ofensas físicas. A relação com os irmãos foi norteada pelo espírito de entreajuda, não se apurando a qualidade do vínculo que mantêm na actualidade.
130- As primeiras experiências laborais do arguido ocorreram no fim da adolescência, tendo desenvolvido tarefas como aprendiz de sapateiro. Na fase em que esteve ao serviço da Marinha, tirou o curso de enfermagem, ramo onde exerceu a actividade. Até se reformar, por incapacidade permanente, há vinte e cinco anos, desempenhou funções de chefia num Centro de Saúde. Paralelamente, desde 1984, constitui-se sócio de duas empresas - casas de repouso.
131- No plano económico não se verificaram mudanças comparativamente à data dos factos, mantendo o arguido uma condição económica estável, subsistindo com o montante das pensões de reforma no valor de cerca de € 1.500,00 mensais, contemplando as suas despesas regulares dispêndios domésticos e medicação, não sendo indicadas situações de dívida.
132- O arguido contraiu matrimónio aos vinte e oito anos de idade, relacionamento do qual tem dois filhos com quarenta e oito e quarenta e dois anos de idade.
133- No contexto desta união, em 1993, o arguido conheceu a falecida ofendida, com quem viveu em união de facto entre 1997 e 2018.
134- O arguido apresenta várias patologias que são clinicamente monitorizadas e cumpre terapêutica medicamentosa. Para além da hipertensão e diabetes, o arguido teve o diagnóstico de problemas de natureza neurológica (meningioma cerebral), aludindo as fontes documentais clínicas a alterações sugestivas de defeito cognitivo ligeiro na fase inicial.
135- O resultado da avaliação neuropsicológica, datada de 29-11-2019, assinala que, apesar de o arguido não referir alterações nas actividades diárias, a nível comportamental indicia «... maior isolamento, diminuição da flexibilidade mental e sintomatologia do tipo depressivo.».
136- De acordo com o relatório social, o discurso do arguido face ao processo judicial «denota um posicionamento de desresponsabilização e dificuldades de descentração na análise crítica das acusações que lhe são imputadas.».
137- Do certificado de registo criminal do arguido AM______ nada consta.
**** FACTOS NÃO PROVADOS:
Com relevância para a presente decisão não resultaram provados quaisquer outros factos, Designadamente, não se provou:
1- Que aquando do referido em 57 da factualidade provada, o arguido também tenha apontado a pistola na direcção de Af______, neta da ofendida.
2- Que em consequência da conduta descrita em 71 e 72 da factualidade provada, a ofendida tenha sofrido hematomas subdurais e epidurais, e hemorragia sulcocisternal.
3- Que o valor dos estragos mencionados em 100 da factualidade provada correspondesse ao montante de € 10.000,00.
**** MOTIVAÇÃO:
A convicção do Tribunal para o apuramento dos factos provados fundamentou- se na análise conjugada e crítica:
1- das declarações do arguido AM______, prestadas no final da audiência de julgamento.
Em termos globais o arguido negou a autoria dos factos imputados na acusação, mencionando expressamente, sem revelar qualquer arrependimento ou espírito de autocrítica, que «dei-lhe uma vez um sopapo porque ela espalhou-se ao comprido», referindo que tal ocorreu na sequência de a ofendida de ter chamado «filho da puta», referindo expressamente «e a mim quem me chamar isso leva na tromba».
Referiu ainda que dormia com a pistola por debaixo da almofada para se proteger de um eventual assalto; e que conhecia toda a situação clínica da ofendida.
2- das declarações da assistente AC______, filha da ofendida MF______.
No essencial, de forma coerente, consistente, convicta e objectiva, num relato sofrido, descreveu a cronologia e dinâmica dos acontecimentos que presenciou, bem como aqueles que lhe foram transmitidos pela ofendida.
Assim, começou por referir que conhece o arguido desde os onze/doze anos de idade, tendo vivido com o mesmo e com a sua mãe até aos quinze anos de idade, altura em que a declarante engravidou e o arguido «pô-la fora de casa».
Mencionou que a relação da declarante com a sua mãe sofreu alterações, com a entrada do arguido na vida de ambas, sendo o mesmo possessivo, autoritário, sentindo que o arguido «estava a roubar-lhe a mãe», afastando-a da ofendida, e que a opinião da ofendida não contava.
No período em que a declarante viveu com a ofendida e com o arguido habitaram na Rua ... ... - Vª... ... - ... ... - C_____ e que, depois da gravidez, a ofendida ajudou muito a declarante, tendo feito um esforço para se reaproximar após o nascimento da sua filha mais velha.
Confrontada com a factualidade constante do ponto 3 da acusação, confirmou que a ofendida contribuiu para a construção da habitação, tendo adquirido móveis e decorado o interior da residência sita no C... C....
Referiu que o arguido tinha conhecimento de todas as doenças de que a sua mãe padecia, e que o mesmo acompanhava a ofendida às consultas.
Mencionou que muitas vezes o arguido dirigia expressões injuriosas à ofendida, quer em casa, quer em locais públicos, sem qualquer motivo, chamando-lhe «puta do caralho, filha da puta, cabra»; que o mesmo gozava com a mãe pelo facto de a mesma estar doente, dizendo-lhe que «só tinha o que merecia», que «andava a inventar doenças», e que «estava farto de andar com a mãe, não era motorista».
Na fase em que a ofendida efectuava tratamentos de quimioterapia, numa ocasião em que a declarante estava presente, porque a ofendida se demorou a arranjar- se para o almoço, o arguido na presença da declarante, desferiu uma chapada muito forte na ofendida, no quarto onde esta se estava a arranjar, tendo a ofendida caído, após o que o arguido chamou-lhe «puta de merda», bateu com a porta e foi-se embora, referindo que nessa ocasião a declarante colocou-se na frente da ofendida, não tendo havido mais agressões.
Referiu que o arguido era sócio de uma casa de repouso e de um centro de enfermagem, tendo sido a ofendida que tratou das questões relacionadas com a abertura do «Lar de C_______», tendo a sua mãe e o arguido discussões por motivos profissionais.
Tinha conhecimento que o arguido andava sempre com uma arma no bolso do casaco, nunca o tendo questionado a tal respeito porque tinha medo, tendo a ofendida dito à declarante que o arguido andava com a pistola porque tinha muito dinheiro dos lares, e que a partir de determinada altura o arguido passou a dormir com a pistola debaixo da almofada.
Mencionou que o arguido ingeria bebidas alcoólicas em excesso, e por vezes chegava a casa embriagado.
Referiu que o arguido disse expressamente à ofendida que a mesma estava proibida de falar com a declarante; e que, de 2011 a 2018 esteve sete anos sem falar com a sua mãe, tendo estado na origem de tal situação o facto de o arguido ter dito que a filha da declarante, Af______, «ia para uma escola para putas e drogados», reportando-se ao facto de a declarante ter inscrito a sua filha na Escola A... P...; e que, durante esse período, o elo de ligação entre a ofendida e a declarante era através da sua filha, tendo algumas vezes falado com a ofendida através de um número desconhecido, dizendo-lhe a sua mãe que não podia falar, referindo que no dia 2 ou 3 de Outubro de 2018 recebeu um telefonema da sua mãe a pedir perdão e a pedir-lhe ajuda.
Confrontada com a factualidade imputada ao arguido no ponto 16 da acusação, confirmou a ocorrência da mesma, referindo que «do nada» o arguido levantou-se e «deu um chapadão» na ofendida, fazendo com que a sua mãe caísse no chão, colocando-se o companheiro da declarante na frente, tendo o arguido expulsado de casa a declarante, o companheiro e a filha de ambos.
Quanto à factualidade a que se reportam os pontos 17 a 20, 21 e 22, 23 a 25, 26 a 34 e 35 a 37, não presenciou tais factos.
A respeito da factualidade a que se reporta o ponto 40 da acusação referiu que recebeu um telefonema da sua mãe; que a ofendida só chorava, motivo pelo qual se deslocou à residência, tendo a ofendida dito à declarante para se ir embora; que quando a mesma abriu o portão e viu o estado em que a ofendida se encontrava, «não havia um sítio do corpo que não estivesse negro», havia sangue por todo o lado na sala das máquinas, referindo que a ofendida não queria que a declarante visse, pretendendo que a mesma se fosse embora antes de o arguido chegar; e que, entretanto o arguido chegou, tendo proferido a expressão mencionada no ponto 40 da acusação.
De igual modo confirmou a factualidade a que aludem os pontos 41 e 42 da acusação, mencionando que a sua mãe no início da relação de união de facto com o arguido afastou-se dos irmãos; e que a mesma tinha um bom relacionamento com a sua vizinha da frente, de nome Cristina, tendo muitas vezes fugido para casa desta, tendo o arguido proibido a ofendida de falar com as vizinhas, o que levou cada vez mais ao isolamento social da sua mãe.
Referiu que a ofendida sempre soube arranjar-se e vestir-se muito bem; e que um dia o arguido disse à sua mãe que «parecia um palhaço», por esta ter pintado os lábios, dizendo-lhe que não precisava de se arranjar, ou para trocar de roupa.
A respeito do relacionamento da ofendida com o arguido, mencionou que a sua mãe fazia tudo para agradar ao arguido; e que durante alguns anos, devido ao sofrimento pelo facto de a mãe ter perdido o amor da sua vida, com o falecimento do progenitor da declarante, quando conheceu o arguido «achou que não podia viver sem ele», o que fazia com que a ofendida tivesse uma atitude de submissão relativamente ao arguido, referindo expressamente que «depois percebeu que não era amor, era medo».
Quanto aos factos ocorridos no dia 30 de Setembro de 2018, referiu que não presenciou os mesmos, tendo-se deslocado posteriormente com a ofendida ao tratamento, para esta ir mudar o penso, mencionando expressamente que quando parou ao portão, não queria acreditar que estava na presença da sua mãe, «era uma velhinha», estando a mesma com um colete à volta da zona abdominal, com canadianas, e tinha marcas de buracos na cabeça e nas pernas, tendo a ofendida dito à declarante que tinha sido agredida pelo arguido com um martelo.
Referiu que depois dessa situação não mais «largou» a sua mãe, telefonando- lhe várias vezes ao dia, à hora do almoço, e antes de se ir deitar.
Mencionou que a ofendida dizia-lhe que o filho do arguido, AA______, pedia-lhe para sair de casa, o que a ofendida recusava porque «era ali a sua vida», tendo a declarante chegado a insistir com a ofendida para ir viver consigo.
A respeito da factualidade a que alude o ponto 82 da acusação mencionou que acompanhou a ofendida ao tratamento, e que, quando chegaram a casa o quarto onde a sua filha Af_____ dormia estava fechado, faltava roupa do arguido, tendo desaparecido as chaves das portas; e que, perante tal situação, chamaram a P.S.P. ao local, tendo barrado a porta, designadamente com um escadote, para que não fosse possível ao arguido abrir a porta de entrada.
Quanto à factualidade a que se reportam os pontos 88 a 96 da acusação confirmou a ocorrência da mesma, referindo a respeito dos factos ocorridos no dia 2610-2018 que a ofendida mostrou-lhe o telemóvel contendo o registo da chamada efectuada pelo arguido.
No que respeita aos factos ocorridos no dia 12-11-2018, os quais não presenciou, referiu que a sua mãe telefonou-lhe a chorar, dizendo-lhe que tinha embatido num veículo automóvel, tendo sido o companheiro da declarante que se deslocou ao local do acidente, cruzando-se com o arguido.
Relativamente aos factos ocorridos no dia 16-11-2018, mencionou que tomou conhecimento dos mesmos pela sua mãe que lhe telefonou a chorar, relatando-lhe o sucedido.
A respeito da saída da ofendida da habitação onde residia com o arguido, referiu que a sua mãe decidiu sair de casa com medo do arguido, tendo a mesma começado a arrumar os seus pertences de forma gradual, tendo estado alguns dias em casa da declarante antes de ir para o Parque de Campismo da E..., mencionando que aquele era o local de refúgio da ofendida, sendo nesse local que se sentia mais segura dado existir vigilância permanente, tendo a ofendida retirado o nome do arguido do contrato de utilização do parque de campismo, tendo informado por escrito que aquele estava proibido de entrar no parque, sendo do conhecimento do arguido que aquele era o local de refúgio da sua mãe, mencionando que a mesma não quis ficar em casa da declarante por ter medo de pôr a filha e netas em risco.
Referiu que levou a ofendida na quinta-feira ao final da tarde, tendo falado com a mesma na sexta-feira sem notar alterações; e que, quando falou com a ofendida no sábado notou que esta estava com uma voz estranha, tendo insistido com a mãe para a ir buscar, ao que a mesma lhe disse que estava apenas cansada.
No domingo quando telefonou para a ofendida a sua mãe não atendeu, após várias insistências telefonou para a recepção do parque de campismo, tendo o recepcionista encontrado a sua mãe desmaiada, sendo a mesma transportada para o Hospital de Santa Maria onde veio a falecer.
Por último questionada sobre a forma como tratava o arguido, referiu que o tratava por «Marquês»; e que não nutria pelo mesmo afecto paterno, esclarecendo quando confrontada com os postais exibidos no decurso das declarações, juntos a fls. 1220 e 1221, que apenas escreveu o texto constante dos mesmos para agradar ao arguido, porque era uma forma de proteger a sua mãe.
3- das declarações prestadas pela ofendida MF______ perante o Ministério Público, em sede de inquérito, constantes de fls. 155 a 160, a cuja leitura se procedeu em audiência de julgamento, verificados os pressupostos a que alude o n.º 4 do art. 356º do C.P.P.
No essencial a ofendida começou por relatar o seu relacionamento com o arguido desde a data em que começaram a viver em união de facto, em 1997, o período a partir do qual o mesmo alterou o seu comportamento para com a depoente, que relaciona com o ano de 2002, passando a proferir expressões injuriosas dirigidas à mesma, a agredi-la fisicamente, situação que se intensificou com o aparecimento dos problemas de saúde da ofendida, mencionando inclusive que o arguido passou a ser mais ausente, não a acompanhando na maior parte aos tratamentos e consultas, dizendo-lhe que «inventava doenças» e que «não era seu motorista», descrevendo a dinâmica dos acontecimentos no que respeita às agressões de que foi vítima, às humilhações, comportamentos vexatórios, ofensas sexuais, e à violência psicológica exercida pelo arguido, nos termos que resultaram provados, relacionada inclusivamente com a proibição da ofendida contactar com a sua filha e netas, com familiares próximos e com vizinhos, o que levou ao seu isolamento social; ao medo que sentia e que fez com que, aquando da assistência hospitalar na sequência das agressões de que foi vítima, designadamente em 03 de Julho de 2016, fez com que a mesma no hospital apresentasse uma versão diferente da realidade, e que determinou a que a ofendida não prestasse declarações na sequência dos autos de notícia que deram origem a alguns processos de inquérito, com receio das ameaças que o arguido lhe fazia, confirmando nas declarações prestadas em 22-10-2018 a factualidade constante dos autos de notícia que deram origem aos NUIPC nºs. 227/11.0PKLRS, 62/15.6PKLRS, 4/16.1PKLRS, 341/16.5GBMFR, e 512/16.4PKLRS.
A depoente confirmou ainda o descrito nos aditamentos ao auto de denúncia, infra mencionados, correspondendo a informações prestadas pela mesma.
4- do depoimento da testemunha Af_______, filha da assistente, e neta da ofendida MF_______.
No essencial mencionou que no período das férias escolares e aos fins-de- semana passava muito tempo com a avó, a ofendida MF_______, tendo presenciado várias vezes o arguido a bater na sua avó.
Referiu que numa ocasião o arguido chegou a casa alcoolizado estando a ofendida na cozinha, no piso inferior, tendo o arguido chamado a ofendida de «puta», dizendo-lhe que «estava farto dela e das doenças dela», tendo empurrado a ofendida para o chão, batendo-lhe, ficando a sua avó com o sobrolho marcado, mencionando que no chão, o arguido continuou a bater na ofendida, desferindo-lhe socos e pontapés, atingindo-a nos braços, pernas, barriga, «onde apanhasse», tendo proferido a expressão mencionada no ponto 51 da acusação.
Após agredir a ofendida o arguido foi-se embora, tendo a depoente telefonado para a mãe e para o padrasto, que se deslocaram até ao portão da residência, onde não puderam entrar porque a mãe da depoente estava proibida pelo arguido de entrar em casa, dizendo o arguido que «a casa era dele».
Referiu que a sua avó não tinha muita força devido às doenças de que padecia, bastando tocar-lhe que ficava logo com marcas; e que a avó ficava triste porque gostava do arguido, «eram como marido e mulher», mencionando a respeito dos sentimentos que nutria pelo arguido que «gostava dele, «sempre o viu como um avô, chamava-lhe avô», mas que, devido à actuação do mesmo para com a ofendida «depois já era um monstro».
Entre os quinze e os dezassete anos soube pela ofendida que o arguido também a tinha proibido de entrar em casa, deixando de frequentar a residência nessa altura porque não queria que a avó tivesse problemas, combinando com a ofendida pelo telefone encontraremse, referindo que a sua avó tinha medo do arguido.
A respeito dos factos imputados ao arguido no ponto 58 e seguintes da acusação, mencionou que nessa ocasião o arguido estava alcoolizado, e no trajecto de regresso a casa a avó pediu-lhe para fazer um desvio, ao que o arguido respondeu negativamente, tendo a ofendida falado num tom mais alto, começando ambos a discutir, tendo o arguido parado o veículo, batendo na ofendida, desferindo-lhe murros com a mão direita, tendo a avó batido no vidro do retrovisor interior, tendo o arguido saído da viatura, dirigindo-se ao lado do pendura, onde se encontrava a ofendida, tendo aberto a porta, dizendo à avó para sair do carro, continuando a agredir a ofendida, tendo esta batido com a cara no vidro do carro, referindo que quando chegaram a casa o arguido disse para não levar as coisas que estavam no carro, «porque não eram dela, eram dele», confirmando as expressões proferidas pelo arguido, designadamente no ponto 67 da acusação.
Mencionou que viu a arma, que descreveu como uma pistola preta, que o arguido tinha debaixo da almofada, tendo-a visto quando estava a ajudar a avó a fazer as camas; e que uma ou duas vezes viu o arguido apontar a pistola em direcção à avó.
A tal respeito referiu que numa ocasião em que estava a dormir com a avó, o arguido chegou tarde, tendo a avó ficado com medo, fingindo que estavam a dormir, tendo o arguido mandado a depoente ir para o quarto, dizendo-lhe que já não tinha idade para dormir com a avó, tendo a avó com medo ido para o quarto, sendo uma das ocasiões em que o arguido apontou a pistola na direcção da avó, chamando-lhe «cabra, filha da puta», dizendo-lhe «não vales nada», e para ambas «levam um tiro», mencionando que nessa ocasião o arguido estava alcoolizado, e que quando chegou fez muito barulho nas escadas.
Referiu ainda de numa ocasião recordar-se de ter visto o arguido atirar um lenço sujo com ranho em direcção à ofendida, tendo a sua avó começado a chorar, virando- lhe costas; e que numa ocasião em que a ofendida virou costas ao arguido, este puxou- lhe os cabelos.
Mencionou que o arguido não deixava a avó falar com os vizinhos, e que a mesma só podia ir ao café ou ao minimercado.
Soube pela mãe que a avó tinha ido para o parque de campismo da Ericeira, tendo a depoente falado com a ofendida pelo telefone, referindo que era ali que a avó se sentia bem, «em segurança», porque a mesma tinha medo que o arguido «lhe batesse tanto que podia não acordar.».
Referiu que nos episódios que presenciou e que descreveu o arguido estava alcoolizado, tendo o mesmo também agredido a ofendida sem estar alcoolizado, mencionando expressamente que «quando discutiam o ambiente tornava-se assustador»; e que o arguido batia na ofendida quer estivesse alcoolizado ou não; e que nunca chamaram a polícia porque a avó com medo não queria, dizendo que se o fizessem o arguido ficava mais revoltado.
5- do depoimento da testemunha TS______.
No essencial mencionou que conhece o arguido de vista desde 2006; e, a respeito dos factos ocorridos no dia 30-09-2018, que, entre as 16h30m e as 17 horas, quando estava a sair de casa dos sogros, onde tinha ido almoçar, ouviu a ofendida gritar aflita «acudam».
Nessa altura começou a gritar do portão «o que se passa?», tendo o arguido aberto o portão, vendo o mesmo com sangue, começando o arguido a falar com o depoente, dizendo-lhe que a ofendida o tinha mordido e tinha-se atirado para o chão.
De onde estava conseguia aperceber-se que a ofendida estava no chão, vendo as pernas da mesma, tendo o arguido dito ao depoente para entrar, ao que o mesmo respondeu negativamente.
Referiu que permaneceu no local até chegar a ambulância, cerca das 18 horas; e que a ofendida continuava deitada, a chamar por ajuda, gritando «acudam», sentindo a mesma aflita até chegar a polícia; e que, enquanto a ofendida gritava, o arguido permaneceu junto do depoente, nunca se tendo aproximado.
Por último mencionou que já tinha visto a ofendida algumas vezes no café, sozinha, e de passagem com o arguido no jeep que este conduzia.
6- do depoimento da testemunha CR______, gerente da pastelaria «CR». No essencial mencionou que conhecia a ofendida por ser cliente do seu café há cerca de dois anos; e que o arguido costumava parar o veículo em frente ao café para ir buscar a ofendida, tendo-os visto esporadicamente juntos a frequentarem o café. Referiu que costumava ver a ofendida com feridas, e que a mesma estava sempre com os braços tapados com pensos; e que, numa ocasião em que a mesma «estava toda ferida no braço», a ofendida disse-lhe que o arguido lhe tinha batido por causa de um carregador do telemóvel.
Nas últimas vezes que frequentou o café a ofendida apresentou-lhe a filha, tendo-lhe dito que o arguido não a deixava ver as netas, falando-lhe do amor que sentia pela neta mais velha.
Mencionou que quando a ofendida ia sozinha no seu veículo permanecia mais tempo no café; e que notava que a mesma ficava muito stressada na presença do arguido; e que nessas ocasiões queria despachar-se.
Referiu que a ofendida tremia muito e tinha uma aparência muito debilitada, queixando-se das doenças de que padecia; e que dizia quando se ausentava para o parque de campismo da Ericeira.
7- do depoimento da testemunha PC_______, Agente da P.S.P., em exercício de funções na Esquadra da P.S.P. de C______.
No essencial mencionou que à data dos factos exercia funções de acompanhamento de pessoas referenciadas como vítimas de violência doméstica, sendo a ofendida uma das vítimas que mais necessidade teve da sua intervenção.
No início do acompanhamento que efectuou, já depois de terem sido aplicadas as medidas de coacção ao arguido, fizeram uma avaliação de risco, considerado elevado, o que motivou a que mantivessem com a ofendida um contacto quase diário, várias vezes ao dia.
Referiu que logo no contacto inicial teve a percepção que a ofendida se tratava de uma vítima bastante fragilizada, física e emocionalmente; que a mesma tinha tido alta hospitalar e andava em tratamento hospitalar, deslocando-se com o auxílio de canadianas; e que transmitia sentir bastante medo, estando apavoradíssima, com medo que o arguido lhe pudesse fazer mal.
Após ter tido alta hospitalar a ofendida reportou-lhe a pressão por parte do filho do arguido para que a mesma abandonasse a residência, situação que o depoente consignou no aditamento n.º 3 com data de 09-10-2018, ao qual juntou a carta de fls. 106, enviada a ofendida, a que se reporta o ponto 76 da acusação, tendo a ofendida relatado inclusive que tinham deixado caixas preparadas para a mesma colocar os seus pertences e efectuar a mudança.
Referiu que a ofendida estava muito abalada com a situação, dizendo que não podia contactar com os amigos e com os familiares próximos, tendo o depoente nesse dia visto o arguido a rondar a casa, mencionando que o local onde aquele se encontrava trata-se de uma rua de sentido único, que só dá acesso às residências.
Numa outra ocasião, a que se reporta a factualidade constante do ponto 80 e seguintes da acusação, o depoente viu o arguido parado junto à residência, no veículo, tendo abordado o mesmo e efectuado uma revista sumária, ao que o arguido respondeu que a casa era dele, podia estar onde quisesse, e que a ofendida não tinha autorização para receber a filha em casa.
Nesse dia entraram na habitação, estando a ofendida acompanhada da filha, demonstrando medo e chorando compulsivamente, tendo consignado a situação no aditamento n.º 6 de fls. 96.
Nessa altura a ofendida relatou-lhe que tinha sido perseguida pelo arguido até à Clínica de Santo António; e que, quando chegou com a filha ao seu domicílio as chaves de casa tinham desaparecido e a porta do escritório estava trancada.
Referiu que nessa altura a ofendida já estava muito debilitada fisicamente, não comia, refugiava-se muito em casa, tendo sido necessário a intervenção do ponto de vista da acção social para o fornecimento de refeições à ofendida, porque a mesma já não saía à rua com medo de encontrar o arguido, trancando-se em casa, barrando as portas com armários e mata-moscas, para impedir o acesso do arguido ao interior da habitação, e ouvir barulho dos objectos a cair caso houvesse uma tentativa de entrada, referindo que a ofendida vivia num pavor constante.
Mencionou que muitas vezes deslocavam-se de manhã para a porta de casa, de modo a que a ofendida pudesse dormir e descansar.
Referiu que sempre que abordado o arguido manifestava uma postura arrogante, dizendo «a casa é minha, faço o que quiser», confirmando a expressão proferida pelo arguido no dia 16-10-2018, constante do ponto 87 da acusação, que interpretou no sentido de o arguido poder concretizar algo mais grave, acreditando que a situação pudesse evoluir para algo mais grave, dada a violência física e emocional, a dependência económica e o isolamento social a que a ofendida estava sujeita, controlando o arguido tudo o que a ofendida fazia.
A este respeito mencionou que a ofendida verbalizou que se sentia duplamente vitimizada pelo sistema, completamente insegura, não acreditando numa protecção eficaz; que a mesma estava a tentar adquirir uma casa no parque de campismo da E...; e que não queria ir para uma Casa Abrigo porque «não se sentia criminosa», e tinha restabelecido laços com a filha e a netas, referindo que tal era o sentimento de medo, insegurança e descrença da ofendida que a mesma chamava ao depoente e Colegas os «anjos dela», sendo uma situação que mais marcou o depoente em termos de especial vulnerabilidade da ofendida.
Quanto à factualidade a que se reporta o ponto 84 e seguintes da acusação, confirmou o relatado pela ofendida, que consignou no aditamento n.º 7 de fls. 141.
Referiu que estiveram sempre em articulação com as entidades hospitalares, estando ao corrente da situação clínica da ofendida; e que a mesma informou o depoente que durante um período deslocou-se em cadeira da rodas devido a uma queda das escadas por causa de um empurrão do arguido, tendo sido na sequência do ocorrido que foi instalado o elevador de acesso ao primeiro piso.
O depoente confirmou igualmente o relatado pela ofendida que consignou no aditamento n.º 17 de fls. 299, factualidade a que se reportam os pontos 102 a 106 e 107 da acusação, tendo ainda a ofendida relatado ao depoente que surpreendeu o arguido a fotografar a mudança que a mesma estava a efectuar, referindo ainda que a ofendida já tinha bloqueado os números de telefone do arguido, e que só o facto de o telefone tocar já a deixava em sobressalto.
Quanto ao aditamento n.º 21, de fls. 557, referiu que tomaram conhecimento pela ofendida que a mesma ficou poucos dias em casa da filha antes de ir para o parque de campismo da E..., e que já tinham aconselhado a ofendida a sair de casa, informando-a que a residência já não seria um local seguro para a mesma, mencionando que informaram a recepção do parque de campismo da E... da fragilidade da situação da ofendida, e que esta sentia-se mais segura nesse local devido à existência de vigilância permanente, tendo a ofendida efectuado um pedido para que fosse vedado o acesso do arguido como visitante ao parque de campismo.
Por último mencionou que no dia do acidente de viação a que se reporta o ponto 97 e seguintes da acusação, confirmou junto dos proprietários dos estabelecimentos que viram o arguido passar no local; e que, viu a ofendida com a cara inchada, com marcas nos braços, e com a cabeça ligada.
8- do depoimento da testemunha AR______, Agente da P.S.P.
No essencial mencionou as diligências em que participou no âmbito do inquérito, referindo que no dia 02-01-2016 deslocou-se ao local da ocorrência, estando a ofendida nervosa, com marcas visíveis de agressão, na cabeça, braços e pernas, com hematomas ligeiros recentes e arranhões, e sinais visíveis de desalinho na cozinha, estando uma vassoura fora do sítio, uma garrafa partida e vidros no chão, tendo sido elaborado o auto de notícia que deu origem ao NUIPC n.º 4/16.1PKLRS apenso, referindo que a ofendida recusou-se a assinar o expediente, dizendo que a casa era do companheiro e este não autorizava a entrada.
9- do depoimento da testemunha AD_______, Agente da P.S.P.
No essencial mencionou as diligências em que participou no âmbito do inquérito, relacionadas com os factos ocorridos no dia 09-12-2016, a que se reporta a factualidade constante dos pontos 35 a 37 da acusação, mencionando que a ofendida tinha marcas visíveis de dedos nos braços, escoriações nas mãos e na face, e pequenos arranhões, queixando-se de ter sido agredida com murros na face, na região ocular e na cabeça, existindo objectos partidos na cozinha da residência, no piso inferior, tendo sido elaborado o auto de notícia de fls. 2 e seguintes do NUIPC n.º 512/16.4PKLRS apenso, tendo a ofendida verbalizado que tinha desistido das queixas com medo do arguido, confirmando a factualidade constante do ponto 37 da acusação.
10- do depoimento da testemunha PM_______, Guarda da G.N.R., em exercício de funções na Escola da G.N.R. em Q....
No essencial, relativamente aos factos ocorridos na madrugada de 03 de Julho de 2016, mencionou que cerca da 01 hora circulava no seu veículo pessoal, com as suas mulher e filha na Estrada ... ... - , em V.. G..., quando viu um veículo parado no meio da estrada, tendo reduzido a velocidade e um indivíduo pediu-lhe ajuda dizendo-lhe que no veículo jeep estava um indivíduo a agredir a mulher.
Nessa altura imobilizou o veículo que conduzia, deslocaram-se ao jipe, tentaram abrir a porta do condutor, tendo dito ao arguido para parar de agredir a ofendida, mencionando que mesmo na presença do depoente o arguido não abrandou as agressões, continuando a bater na ofendida, e que o mesmo com uma mão agarrava os cabelos e a cabeça da ofendida, e com a outra mão desferia-lhe murros e estaladas na zona da cabeça.
Referiu que o veículo estava imobilizado em plena faixa de rodagem, no meio do tracejado que separa as duas vias, estando com os máximos ligados, o que originou a colisão de um veículo na viatura que parou para pedir ajuda.
Conseguiu agarrar o arguido com o braço esquerdo, e com a mão direita puxou- o para fora o jeep, permanecendo sempre a ofendida no interior do veículo, tendo entretanto chegado os bombeiros e a G.N.R. ao local, tendo os seus Colegas elaborado o auto de acidente de viação.
Mencionou que mexeu na ofendida, não tendo a mesma qualquer reacção, chamava-a e não respondia, estando com a cabeça tombada para o lado direito; e que, no interior do veículo apenas estavam o arguido e a ofendida.
11- do depoimento da testemunha TA______, Agente da P.S.P., que em 2018 exercia funções na Esquadra da P.S.P. de Santo ... ..., tendo elaborado o auto de notícia por detenção de fls. 24 a 27.
Assim, no essencial mencionou que no dia 30-09-2018 deslocou-se ao local da ocorrência, estando o arguido e a testemunha TS______ no pátio, e a ofendida no anexo, em pânico, deitada no chão, a pedir socorro, tendo várias escoriações na boca, referindo quando confrontado com a fotografia de fls. 37 que o corpo da ofendida estava entre os dois azulejos, onde existiam vestígios hemáticos.
Referiu que ao abordar a ofendida a mesma disse-lhe que estava a descansar, tendo chamado a atenção do arguido para o facto de este estar a fazer barulho, recordando-se de ter acordado com o arguido a agredi-la com uma ripa de madeira.
A ripa de madeira encontrava-se no chão, a cerca de 50 cm do corpo da ofendida, e o martelo noutro local, no interior do anexo.
Por último mencionou que a ofendida estava consciente, mas em pânico, só se tendo acalmado quando chamaram os meios de socorro; e que o arguido estava calmo, como se nada tivesse acontecido.
12- do depoimento da testemunha PP______, Agente da P.S.P. que em 2015 exercia funções na Esquadra da P.S.P. de C_____.
No essencial, a respeito da factualidade constante do ponto 21 e seguintes da acusação, mencionou que na data da ocorrência deslocou-se ao local, tendo tocado à campainha, sendo a ofendida que abriu a porta, embora não tenha respondido de imediato, não tendo a mesma aceitado que entrassem na residência, sendo perceptível que estava com medo, e sendo visíveis hematomas nos braços e a cara inchada, tendo dito que tinha sido agredida pelo arguido, confidenciando que era doente oncológica, referindo ainda que na ocasião o arguido teve uma postura agressiva para com o depoente, dizendo que «não mandavam nada» e que «conhecia gente na polícia».
13- do depoimento da testemunha LL_______, companheiro da assistente AC_______.
No essencial mencionou que vive em união de facto com a assistente desde 2003, tendo o relacionamento entre ambos tido uma interrupção entre 2012 e 2016, tendo em comum três filhas com a assistente, com 12 e 8 anos de idade.
Referiu que conhece o arguido por «Marquês»; e que o mesmo proibiu a sua companheira de frequentar a residência onde vivia com a ofendida em 2008/2009, só tendo recomeçado a falar com a ofendida nos últimos quatro meses da vida desta; e que, quando estava proibida de contactar com a filha, a ofendida «ligava a medo».
Mencionou que começou a falar com a ofendida porque esta lhe pediu ajuda; e que a ofendida disse-lhe que tinha sido maltratada, tinha muitas mazelas no corpo; que a vida dela era um inferno e queria estar sozinha.
Numa ocasião acompanhou a ofendida a Tribunal para que a mesma efectuasse um exame médico, a pedido desta.
A respeito da factualidade ocorrida no dia 12-11-2018 referiu que após o acidente deslocou-se ao local para ajudar a ofendida, tendo visto o arguido passar.
Referiu que inicialmente a relação com o arguido era boa, frequentando a residência e o parque de campismo da E..., mencionando que a ofendida tinha um bom relacionamento com a assistente, apenas existindo tensões quando a assistente sabia que a ofendida era maltratada pelo arguido e que a mesma não fazia nada.
Presenciou numa ocasião uma discussão, tendo o arguido chamado à ofendida «puta do caralho», dizendo-lhe «não prestas para nada», referindo que o arguido exaltava-se muito e que na presença do depoente nunca pediu desculpa à ofendida.
Por último mencionou que antes de ir para o parque de campismo da E... a ofendida esteve cinco/seis dias em casa do depoente; e que chegou a ver a ofendida com hematomas nas mãos, nas pernas e na cara.
14- do depoimento da testemunha JP______, sócio do arguido nas Casa ... ... ... e de C______ há vinte e três anos, conhecendo o mesmo desde há quarenta anos.
No essencial mencionou que foi colega de trabalho do arguido, como enfermeiro, em 1978, morando na mesma rua, não frequentando muito a casa do arguido, nunca tendo presenciado nada de estranho entre o arguido e a ofendida.
Referiu que as tarefas do arguido nos lares de que são sócios estão relacionadas com a aquisição de bens e equipamentos necessários.
Convivia com a ofendida nas festas anuais das sociedades, tendo a ofendida há cerca de vinte e oito/vinte e nove anos sido funcionária do Lar C______, tendo deixado de trabalhar quando começou a adoecer, há cerca de seis /sete anos.
Quando conheceu a ofendida a mesma era alegre e bem-disposta, referindo que a última vez que a viu tinha a perna esquerda toda ligada.
Mencionou que o arguido acompanhava a ofendida aos hospitais e às consultas, andando aborrecido e triste, sabendo que a mesma estava muito mal de saúde, e que, agora o arguido está mais triste e abatido.
Por último mencionou que o arguido consome bebidas alcoólicas mas não em excesso.
15- do depoimento da testemunha AA_______, filho do arguido.
No essencial mencionou que o arguido continua casado com a sua mãe há quarenta e nove anos, tendo-se separado da mesma há cerca de vinte anos, sabendo que o pai vivia em união de facto com a ofendida desde essa data, tendo-a conhecido nessa altura.
A respeito do relacionamento do depoente com a ofendida referiu que tinham uma relação funcional, não sendo uma relação próxima nem afectiva, e que almoçava com o pai e com a ofendida quando o arguido organizava almoços.
Mencionou que nos últimos três anos de vida a ofendida tinha dificuldades de locomoção, deslocando-se de cadeira de rodas, canadianas ou andarilho, e utilizando um colete de compressão, tendo dificuldade em aceitar os problemas de saúde de que padecia, dado retirarem-lhe qualidade de vida.
No dia 30-09-2018 foi contactado pela testemunha JP_____ que lhe disse para ir a casa do arguido porque estavam veículos policiais à porta, referindo que quando chegou o pai tinha um golpe enorme no dedo da mão e sangrava do dedo, tendo sabido pelos Agentes da P.S.P. que a ofendida tinha ido para o Hospital Beatriz Ângelo.
No dia do primeiro interrogatório judicial depois de sair do Tribunal foi à residência acompanhado da Ilustre mandatária do arguido, tendo o seu pai ficado no veículo automóvel, estando a ofendida sentada na sala.
Referiu que nessa altura a ofendida disse que a casa era do arguido, e que precisava de três dias para sair de casa; e que, depois disso, já disse que não queria sair.
Mencionou que com a instauração deste processo o arguido ficou com a vida toda virada do avesso; ficou perdido quando se viu privado de correspondência, deslocando-se menos vezes à Casa de Repouso dado sentir vergonha.
Referiu ainda que o arguido todos os dias «acende uma vela» à ofendida; e que o mesmo foi manifestando preocupação pela degradação física da ofendida, comportando-se como cuidador da mesma, mencionando ainda que a presença dos bens da ofendida em casa estão a afectar o arguido, concretizando a tal respeito, que tal deve-se ao facto de serem cerca de duzentas malas que ocupam espaço.
Referiu ainda que era a ofendida quem gostava mais de estar no parque de campismo da E...; que na residência foi instalada uma placa elevatória que dá acesso à entrada do quarto do arguido; que nunca viu um mau ambiente entre o arguido e a ofendida; e que a relação com a ofendida tornou-se mais difícil após a institucionalização da neta desta, Af______.
16- do depoimento da testemunha MC______, Director- Geral da GIATUL, desde 2013, empresa responsável pela gestão do parque de campismo da E....
No essencial mencionou que desde 2006 foi director do parque de campismo da E..., estando permanentemente nas instalações do mesmo até 2013, conhecendo o arguido e a ofendida como utentes do parque de campismo, nunca se tendo apercebido de nada estranho entre ambos.
Confrontado com o documento de fls. 567 referiu que entre os dias 14 e 16-122018 não houve registo de visitantes para a ofendida.
Mencionou que o contrato estava inicialmente em nome do arguido, tendo sido cedida a titularidade do mesmo à ofendida, cerca de dois anos antes do óbito desta, sendo a ofendida a única titular, estando o registo de propriedade da roulotte em nome do arguido.
17- do auto de notícia por detenção de fls. 24 a 27, e aditamento n.º 1, de fls. 32, no que respeita à data, hora e local da ocorrência, que deu origem à detenção do arguido pelos factos ocorridos em 30-09-2018, e apresentação do mesmo a primeiro interrogatório judicial para aplicação de medidas de coacção.
18- do auto de apreensão das armas, ripa de madeira e martelo, que se encontravam na posse do arguido, no dia 30-09-2018, de fls. 32.
19- da reportagem fotográfica ao local onde ocorreram os factos em 30092018, de fls. 36 e 37, e do local onde se encontravam as armas de fogo, munições e documentos respectivos, de fls. 38 e 39.
20- dos autos de exame e avaliação das armas de fogo e munições apreendidas, de fls. 40-41, 42-43, 44-45, e 46-47.
21- do aditamento ao auto de denúncia n.º 6, de fls. 96, no que respeita à factualidade a que aludem os pontos 79 a 83 dos factos provados.
22- de cópia da carta de fls. 106, comprovativa da factualidade a que alude o ponto 79 dos factos provados.
23- do aditamento ao auto de denúncia n.º 7, de fls. 141-142, relativo aos factos ocorridos em 16-10-2018, a que se reporta a factualidade a que aludem os pontos 84 a 87 dos factos provados.
24- dos aditamentos ao auto de denúncia n.º 9, de fls. 165, n.º 10, de fls. 180, n.º 14, de fls. 201-202, n.º 16, de fls. 293, n.º 17, de fls. 299-300, e n.º 19, de fls. 470, a que se reporta a factualidade a que aludem os pontos 88 a 108 dos factos provados.
25-da reportagem fotográfica ao martelo de orelhas e à ripa em madeira com vestígios hemáticos, apreendidos em 30-09-2018, de fls. 317 e 318.
26-do relatório do exame pericial para pesquisa de vestígios biológicos e análise de ADN na ripa de madeira (item 1) e martelo (item 2), de fls. 968 a 969, constando da respectiva conclusão:
« - Nos itens 1 e 2 detectaram-se vestígios de sangue. - De acordo com a análise de ADN, para o conjunto de loci de STRs autossómicos estudados: No item 1 (recolhas R1 e R2) obteve-se um perfil único, proveniente de indivíduo do sexo feminino. No item 1 (recolha R3) obteve-se um perfil de maior contribuidor, proveniente de indivíduo do sexo masculino. No item 2 (recolha 2) obteve-se um perfil de mistura de mais de um indivíduo, da qual não podem ser excluídos os perfis detectados no item 1. - No item 2 (recolha 1) não se obtiveram resultados ou estes não foram concludentes, pelo que não é possível proceder a qualquer tipo de estudo comparativo.».
27- do relatório do exame pericial de fls. 983 a 985, tendo por objecto a determinação do perfil genético da amostra referência recebida e a investigação de maternidade relativa a AC______ e à dadora do perfil feminino obtido no exame pericial de fls. 967 a 969, constando da respectiva conclusão:
«A dadora do perfil do sexo feminino obtido nos itens 1R1 e 1R2 do Exame Pericial n.º 201904027-BBG não pode ser excluído de ser mãe biológica de AC_______, apresentando uma probabilidade de maternidade de 99,99999903%.».
- da documentação clínica da ofendida, designadamente, boletim clínico relativo à assistência hospitalar no Hospital Beatriz Ângelo, na sequência das lesões apresentadas em 30-09-2018, em consequência da actuação do arguido, de fls. 321 a 322; e boletim clínico relativo à assistência hospitalar prestada no Hospital de Santa Maria, na sequência das lesões sofridas pela ofendida em 03-07-2016, em consequência da actuação do arguido, de fls. 577 a 593, constando expressamente de fls. 593 verso «Destino de alta: Abandono/Saída contra parecer médico», factualidade a que se reporta o ponto 33 dos factos provados.
28- do auto de exame directo de fls. 464-465.
29- do auto de notícia de fls. 2 a 4, e do relatório de urgência do Hospital de Santa Maria, relativo às lesões apresentadas pela ofendida em consequência da actuação por parte do arguido, de que foi vítima em 06-04-2011, e assistência hospitalar prestada na sequência das mesmas, constante de fls. 15 a 19 do NUIPC n.º 227/11.0PKLRS Apenso, a que se reporta a factualidade provada referida em 17 a 19.
30- do auto de notícia de fls. 2 a 4 do NUIPC n.º 62/15.6PKLRS
Apenso, no que respeita à data e local da ocorrência, a que se reporta a factualidade provada referida em 21.
31- do auto de notícia de fls. 4 a 6 do NUIPC n.º 4/16.1PKLRS Apenso, no que respeita à data e local da ocorrência, a que se reporta a factualidade provada referida em 23 e 24.
32- da certidão de fls. 727 a 855 relativa ao NUIPC n.º 341/16.5GBMFR, a que se reporta a factualidade provada referida em 26 a 33.
33- do auto de notícia de fls. 2 a 4 do NUIPC n.º 512/16.4PKLRS
Apenso, no que respeita à data e local da ocorrência, e do auto de exame directo de fls. 28 do mencionado Apenso, relativamente às lesões apresentadas pela ofendida, a que se reporta a factualidade provada referida em 35 e 36.
34- de cópia do assento de óbito de fls. 480, comprovativo do óbito da ofendida em 17-12-2018, no estado de viúva.
35- da documentação clínica do Hospital de Santa Maria, de fls. 654655, comprovativo da certificação do óbito da ofendida, com diagnóstico de «Pneumonia bilateral hipoxemiante; Choque séptico refractário com falência multiorgânica (hematológica, renal, cardiovascular); ARDS grave», e dos antecedentes pessoais; do certificado de óbito da ofendida, de fls. 656 a 657, e da documentação clínica relativa à assistência hospitalar prestada à ofendida no Hospital de Santa Maria em 16-12-2018 até ao óbito em 17-12-2018, de fls. 658 a 659, e 669 a 671, a que aludem os pontos 6 e 111 da factualidade provada.
36- de cópia da escritura de habilitação de herdeiros, lavrada em 21-122018, de fls. 681 a 682.
37- das fotografias da ofendida constantes de fls. 1083 e verso, comprovativas do estado de debilidade física da mesma, e do auxílio necessário à locomoção, em 06-12-2018.
38- da factura comprovativa do custo da assistência hospitalar prestada à ofendida no Hospital Beatriz Ângelo, de fls. 1050.
39- das facturas comprovativas do custo da assistência hospitalar prestada à ofendida no Hospital de Santa Maria - Centro Hospitalar de Lisboa Norte, E.P.E., de fls. 1054 a 1057.
40- do relatório social de fls. 1359 a 1361 relativamente às condições sociais e características de personalidade do arguido.
41- do certificado de registo criminal de fls. 1208.
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Da análise conjugada e crítica da prova produzida, designadamente as declarações prestadas pelo arguido no final da audiência de julgamento, negando a autoria dos factos imputados, adoptando uma postura totalmente vitimizadora e desresponsabilizadora dos factos imputados na acusação, no que foi contrariado pelas declarações da ofendida prestadas em sede de inquérito, que descreveu a actuação de que foi vítima por parte do arguido, o contexto, os locais e as circunstâncias em que ocorreram os actos ilícitos praticados pelo mesmo, declarações que se revelaram intrinsecamente consistentes e corroboradas pelas declarações prestadas pela assistente AC______, e pelos depoimentos das testemunhas, designadamente Af______, TS______, PC______, e PM_______, que corroboraram de forma consistente, coerente e objectiva as declarações prestadas pela ofendida, relativamente aos factos que presenciaram, sendo as declarações da assistente e os depoimentos das testemunhas Af_______ e PC______ convergentes quanto à descrição da vulnerabilidade e debilidade física da ofendida, que sofreu um progressivo agravamento, e ao estado emocional da mesma, designadamente no que respeita ao medo que sentia relativamente ao comportamento do arguido, e que a coarctou na sua liberdade de determinação no que respeita ao facto de só em 22-10-2018 ter prestado declarações relatando os factos de que foi vítima, e descrevendo o motivo pelo qual não o tinha feito até à data relativamente aos processos de inquérito apensos, aliado à documentação clínica comprovativa das lesões apresentadas pela ofendida, aos demais elementos probatórios, periciais e documentais supra mencionados, conjugado com as regras da experiência comum, permitiram ao Tribunal a fundamentação da convicção quanto à autoria pelo arguido AM______ dos factos ilícitos imputados na acusação, nos termos que resultaram provados.
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Quanto aos factos não provados, o Tribunal formou a sua convicção com base na ausência de prova concludente produzida em audiência de julgamento.
Enquadramento jurídico-penal dos factos:
Encontra-se o arguido AM______ acusado da prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica agravado pelo resultado morte, previsto e punido pelo art. 152º, n.º 1, als. b) e d), e 3, al. b) do Código Penal, a que corresponde na redacção actualmente em vigor o art. 152º, nºs. 1, als. b) e d), 2, al. a) e 3, al. b) do diploma mencionado, e com penas acessórias de proibição de uso e porte de arma, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, nos termos do n.º 4 do mencionado art. 152º.
No que respeita ao crime de violência doméstica, considerando que de acordo com a factualidade provada os factos praticados pelo arguido ocorreram no período temporal compreendido entre 2002 e Dezembro de 2018, verifica-se uma sucessão de leis no tempo reguladoras do ilícito criminal em apreço, impondo-se desde logo a determinação da lei aplicável ao caso concreto.
Assim, dispunha o art. 152º do Código Penal, na redacção da Lei n.º 7/2000, de 2705, sob a epígrafe «Maus tratos e infracção de regras de segurança»:
«1- Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e:
a)- Lhe infligir maus tratos físicos ou psíquicos ou a tratar cruelmente;
b)- A empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou
c)- A sobrecarregar com trabalhos excessivos;
é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo artigo 144º.
2- A mesma pena é aplicável a quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos.
3- A mesma pena é também aplicável a quem infligir a progenitor de descendente comum em 1º grau maus tratos físicos ou psíquicos.
)».
Com a alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04-09, o legislador autonomizou o crime de violência doméstica relativamente ao crime de maus tratos, estipulando o art. 152º do Código Penal, sob a epígrafe «Violência doméstica»:
«1-Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a)- Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b)- A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c)- A progenitor de descendente comum em 1º grau; ou
d)- A pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2- No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3- Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
(...)
b)- A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
- Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
(...)».
Com a alteração introduzida pela Lei n.º 19/2013, de 21-02, consagrou a al. b) do n.º 1 do art. 152º do Código Penal, um alargamento dos elementos constitutivos objectivos do tipo do ilícito criminal em apreço, passando a previsão típica a abranger «A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação».
Por último, com a alteração introduzida pela Lei n.º 44/2018, de 09-08, com início de vigência em 01-09-2018, estipulam os nºs 2, al. a) e 3, al. b) do mencionado art. 152º do Código Penal:
«2-No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou (...) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3- Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
(...)
b)- A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.».
A previsão da citada disposição abrange determinadas condutas, abarcando os maus tratos físicos (incluindo os castigos corporais e as ofensas corporais simples), os maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, ameaças), privações da liberdade e ofensas sexuais.
O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, autonomizado do crime de maus tratos a que alude o art. 152º-A do Código Penal, com a revisão do Código Penal introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04-09, continua a ser plural, complexo, destinando-se o citado preceito incriminador a salvaguardar a saúde, em sentido amplo, abrangendo quer a saúde física, quer a saúde psíquica ou mental, punindo todos os comportamentos que afectem a saúde física do ofendido, ou que dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade, afectando a dignidade pessoal do ofendido, em contexto de relação conjugal ou análoga, mesmo após cessar essa relação.
Salienta a este respeito o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra de 24-04-2012 (http://www.dgsi.pt) «No círculo das vítimas de violência doméstica surgem na al. b) do n.º 1 do art.º 152º do Código Penal, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.
Com a Revisão de 2007, deixa de ser necessária a coabitação e, consequentemente, de se exigir a ideia de comunhão de cama e habitação, mas não pode deixar de se exigir, no tipo objectivo, um carácter mais ou menos estável de relacionamento amoroso, aproximado ao da relação conjugal de cama e habitação.
Neste sentido, o Dr. André Lamas Leite, sustenta que se exige no crime de violência doméstica a existência de “uma proximidade existencial efectiva”. Do mesmo passo, meros namoros passageiros, ocasionais, fortuitos, flirts, relações de amizade, não estão recobertas pelo âmbito incriminador do art.º 152º, n.º 1, al. b).”.
Por outras palavras, sublinha este autor, que “ter-se-á de provar que há uma relação de confiança entre agente e ofendido, baseada em fundamentos relacionais mais ou menos sólidos, em que cada um deles é titular de uma «expectativa» em que o outro, por via desse laço, assuma um dever acrescido de respeito e abstenção de condutas lesivas da integridade pessoal do parceiro (a).”». - (cf. André Lamas Leite, A Violência Relacional Íntima: Reflexões Cruzadas entre o Direito Penal e a Criminologia, Revista Julgar, N.º 12 (especial), pág.
25 e segs.).
Quanto ao elemento subjectivo constitutivo deste tipo de ilícito, punido exclusivamente a título de dolo, exige o conhecimento e vontade de realização da conduta antijurídica, com consciência da ilicitude da mesma.
Com a alteração na redacção do art.º 152º do Código Penal, introduzida pela Lei n.º 19/2013, de 21-02, com início de vigência em 24-03-2013, verificou-se um alargamento no que respeita aos elementos constitutivos do tipo objectivo, relacionado com a enumeração das vítimas de violência doméstica, consagrando expressamente a al. b) do n.º 1 da mencionada disposição, as situações em que o «agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro, ..., ainda que sem coabitação».
Salienta o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa de 23-04-2015, http://www.dgsi.pt «O tipo da violência doméstica pune o exercício de maus- tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais sobre o cônjuge ou ex-cônjuge; pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; progenitor de descendente comum em 1º grau; ou pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite.
Os maus-tratos previstos neste tipo são os actos que, pelo seu carácter violento, sejam, por si só, ou conjugados com outros, idóneos a reflectir-se negativamente sobre a saúde física e psíquica da vítima, ou, noutra formulação, são os actos que provocam “... lesões graves, pesadas da incolumidade corporal e psíquica do ofendido, diríamos que no campo da tensão entre os tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos e a tutela da integridade física e moral...”
O bem jurídico que o tipo da violência doméstica visa proteger é a saúde enquanto integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica, sendo um crime de perigo, porque não pressupõe a verificação da lesão.
Para que integre a violência doméstica, a acção do agente há-de constituir o comportamento violento, visto em toda a sua amplitude, que “... seja tal que, pela sua brutalidade ou intensidade, ou pela motivação ou estado de espírito que o anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde física ou psíquica da vítima. ...”. (...)».
No mesmo sentido, citando o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto de 26-09-2012, www.dgsi.pt «No ilícito de violência doméstica é objectivo da lei assegurar uma “tutela especial e reforçada” da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto ao perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima. Visa tutelar a dignidade humana dos sujeitos passivos aí elencados, mormente na vertente da sua saúde, seja a nível físico ou psíquico, ou na vertente da sua privacidade, seja da liberdade pessoal ou de autodeterminação sexual.
O bem jurídico protegido por este tipo legal é, assim, primordialmente, a saúde da vítima, entendida nas suas vertentes de saúde física, psíquica e mental, visando a incriminação protegê-la de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento de uma pessoa, afectem a dignidade pessoal e individual da pessoa que com o agente mantém (ou manteve) vínculos relacionais estreitos e/ou duradouros.
Trata-se de um crime específico porquanto pressupõe que o sujeito activo se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo, a vítima dos seus comportamentos. As condutas típicas preenchem-se com a inflição de maus tratos físicos (ofensas à integridade física simples) e maus tratos psíquicos (ameaças, humilhações, provocações, molestações). Estes maus tratos podem ser infligidos de modo reiterado ou não (conduta isolada).».
Quanto ao elemento subjectivo constitutivo deste tipo de ilícito, punido exclusivamente a título de dolo, exige o conhecimento e vontade de realização da conduta antijurídica, com consciência da ilicitude da mesma.
Relativamente à previsão da al. b) do n.º 3 do citado art.º 152º do Código Penal, a imputação do crime agravado pelo resultado parte da base de que o agente agiu com negligência na produção desse mesmo resultado.
Salienta a este respeito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-031990, www.dgsi.pt/ «No crime preterintencional, o evento agravante e, consequentemente, o tipo legal preterintencional, só podem ser imputados ao agente quando este tenha actuado em relação àquele evento com negligência.».
Por seu turno, na doutrina, conforme refere o Professor Eduardo Correia (Direito Criminal, I, pág. 424 e segs) «É um nexo de causalidade adequada que vem a fixar objectivamente os deveres de previsão que, quando violados, podem dar lugar à negligência, ou seja, que vem dizer quando se deve prever um resultado como consequência duma conduta em si ou na medida em que se omitem as cautelas e cuidados adequados a evitá-los.».
Transpondo tais considerações para o caso em apreço, verifica-se no confronto com a factualidade provada que, a actuação do arguido, nos termos que resultaram provados é reveladora de uma postura de total insensibilidade no trato do arguido relativamente à ofendida MF_______, com quem o mesmo viveu em condições análogas às dos cônjuges, com coabitação, no período de vinte e um anos, compreendido entre 1997 e 30-09-2018, correspondendo os actos praticados reiteradamente pelo arguido no período da coabitação desde 2002 a 30-092018, e posteriormente, até 14 de Dezembro de 2018, consubstanciados nas agressões físicas à ofendida, pessoa particularmente indefesa em razão das múltiplas doenças de que padecia, mencionadas em 6 da factualidade provada, sendo toda a situação clínica da mesma do conhecimento do arguido, enfermeiro de profissão, e que, nas situações referidas em 1 a 19, 26 a 33, 34 a 36 e 71 a 74, determinaram a necessidade de tratamento hospitalar à ofendida, utilizando o arguido na situação ocorrida em 30-092018 como instrumentos de agressão, um martelo de orelhas e uma ripa em madeira, ofensas sexuais, nas expressões injuriosas, humilhantes e ameaçadoras também reiteradamente proferidas, levando inclusive a que a ofendida desistisse das queixas apresentadas ou não recorresse a tratamento hospitalar, com receio do comportamento posterior do arguido, actos praticados no interior no domicílio comum e nalgumas situações na presença da filha e da neta da ofendida, e à violência psicológica exercida sobre a mesma, nos termos que resultaram provados, desde a proibição de contacto com familiares e vizinhos, levando ao isolamento social da ofendida, à pressão para abandonar a residência, ao conceito de maus tratos físicos e psíquicos, consubstanciadores de uma atitude vexatória e desrespeitosa de acordo com as regras sociais, voluntariamente praticada na pessoa da ofendida, a quem agrediu, ofendeu sexualmente, e dirigiu expressões injuriosas, vexatórias e ameaçadoras nos termos que resultaram provados.
Provado ficou igualmente que o arguido actuou da forma descrita, livre e conscientemente, sabendo que com as suas condutas, molestava física e psiquicamente a ofendida infligindo-lhe maus tratos físicos, sexuais e psíquicos, e que condicionava a vida, liberdade e bem-estar psicossocial da mesma, ofendendo-a na dignidade humana, criando e potenciando na ofendida sentimentos de vergonha, humilhação, diminuição e frustração, ciente da proibição e punição das suas condutas.
A actuação do arguido nos termos que resultaram provados, reconduz-se assim à prática pelo arguido AM______, em autoria material, de um crime de violência doméstica.
Tratando-se de actos ilícitos criminais reiteradamente praticados pelo arguido num período de dezasseis anos, cumpre por conseguinte determinar a lei aplicável, face à sucessão de leis no tempo.
Salienta a este respeito o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto de 30-10-2012, http://www.dgsi.pt/:
«Com a reforma operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, o legislador não se limitou a autonomizar o crime de violência doméstica em relação ao tipo legal de maustratos a cônjuge, tal como este estava configurado no art.º 152º, n.º 2 do Código Penal: alargou o âmbito das condutas tipicamente relevantes da violência doméstica, prevendo-se que, para o preenchimento do tipo legal, a inflição de maus tratos pode concretizar-se de modo reiterado ou não.
É defensável afirmar-se que, com essa formulação, foi acolhido o entendimento segundo o qual um só acto de ofensas corporais já configura um crime de violência doméstica.
O crime de violência doméstica não é um crime de execução continuada, nem sequer um crime habitual (em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada), podendo falar- se, simplesmente, em “factos reiterados”, isto é, “acções sucessivamente adequadas no seu conjunto a produzir o resultado ”. Entendendo-se que a reiteração de factos deve ser globalmente apreciada e valorada como integrando um comportamento repetido, dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social e que, portanto, consubstancia um só crime de maus tratos/violência doméstica, a sua consumação ocorre com a prática do último acto de execução.».
No mesmo sentido, salienta o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, de 08-05-2019, http://www.dgsi.pt/:
«Em regra, a estrutura normativa do crime de violência doméstica compreende a realização repetida de actos ilícitos parciais, ocorrendo a consumação daquele ilícito penal com a prática do último acto de execução.
Consequentemente, verificando-se sucessão de leis no tempo reguladoras do dito crime, o momento idóneo à determinação da lei aplicável ao caso ocorrido é a data da execução do último acto integrante.».
E assim, tendo em conta a posição jurisprudencial citada, considerando que a prática do último acto ilícito cometido pelo arguido, integrador da previsão típica do crime de violência doméstica, ocorreu em Dezembro de 2018, ao caso em apreço é aplicável o disposto no art.º 152º do Código Penal, na redacção actualmente em vigor.
Provado ficou ainda que o arguido, sabendo as doenças de que padecia a ofendida, actuou ciente do perigo que a sua conduta representava para a saúde e equilíbrio mental da mesma; e que, ao persistir na sua actuação, fazia com que MF_______ saísse da habitação, como veio a suceder, indo viver para um roulotte no parque de campismo da E..., sem condições de habitabilidade dada a sua frágil condição de saúde, que sofreu um progressivo agravamento ao longo do tempo, vindo a ofendida a falecer em 17 de Dezembro de 2018, pelas 11 horas, devido a um choque séptico refractário com falência multiorgânica, síndrome de dificuldade respiratória aguda grave, pneumonia bilateral hipoxemiante e artrite reumatóide.
Analisada a conduta do arguido nos termos que resultaram provados, verifica-se que o arguido, enfermeiro de profissão e conhecer da situação clínica da ofendida, deveria e poderia ter previsto que atendendo à especial vulnerabilidade da mesma, devido às múltiplas doenças de que padecia, com a sua conduta ilícita, culminando com a saída do domicílio pela ofendida, nas circunstâncias descritas e na situação particularmente débil em que se encontrava, e que acarretou um perigo para a vida da ofendida, tal perigo poderia concretizarse, como ocorreu, na morte da vítima, agindo por consequência com negligência na produção do resultado morte da ofendida, sendo o crime base da violência doméstica imputado ao arguido a título doloso, e a agravação pelo resultado, prevista na al. b) do n.º 3 do art.º 152º do Código Penal, imputada a título de negligência.
Pelo que, a actuação do arguido AM______ nos termos que resultaram provados reconduz-se à autoria de um crime de violência doméstica, agravado pelo resultado morte, previsto e punido pelo art.º 152º, nºs 1, als. b) e d), 2, a) 3, al. b) do Código Penal.
**** Determinação da medida da pena:
A determinação da moldura penal abstracta resultante da subsunção dos factos praticados pelo arguido ao tipo de ilícito em causa - crime de violência doméstica, agravado pelo resultado morte, previsto e punido pelo art.º 152º, nºs. 1, als. a) , e d), 2, al. a) e 3, al. b) do Código Penal - é de prisão de 3 (três) anos a 10 (dez) anos.
Quanto à determinação da medida concreta da pena, de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 71º do Código Penal, far-se-á em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, quer de prevenção especial de socialização, quer geral positiva ou de reintegração, relacionadas com a necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e com a estabilização das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida.
Com relevância quer para a culpa quer para a prevenção, surgem as circunstâncias enunciadas no n.º 2 do art.º 71º do Código Penal que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências; a intensidade do dolo; as condições pessoais do agente e a sua situação económica e, a conduta anterior ao facto e a posterior a este.
Aplicando as considerações anteriormente formuladas ao caso em análise, considerando nomeadamente:
-as elevadas exigências de prevenção geral, tendo o crime de violência doméstica consequências extremas nas vítimas deste tipo de crime, sendo as condutas ilícitas criminais praticadas pelo arguido objecto de elevada reprovação social.
-o grau de ilicitude dos factos praticados pelo arguido, que se considera muito elevado no que respeita ao crime de violência doméstica, tendo em conta designadamente as agressões físicas perpetradas reiteradamente ao longo de dezasseis anos, a intensidade da violência e os instrumentos utilizados na prática de algumas das agressões, concretamente um martelo de orelhas e uma ripa em madeira, o facto das agressões perpetradas em 03-07-2016, ocorridas na via pública, não terem sofrido qualquer abrandamento, continuando o arguido a agredir a ofendida na presença de terceiros que o tentaram demover da persistir na sua actuação ilícita criminal, sendo reflexo da violência utilizada pelo arguido e do receio causado na ofendida caso a mesma recorresse a assistência hospitalar ou apresentasse queixa, o facto de aquando da agressão ocorrida em 03-07-2016, a ofendida ter mentido quanto à causa da agressão, afirmando que nunca tinha sido agredida pelo arguido, e ter tido alta hospitalar contra parecer médico, após ter conversado com aquele, e as expressões injuriosas, ameaçadoras, vexatórias e humilhantes dirigidas à ofendida, e a pressão psicológica exercida sobre a mesma, quer presencialmente quer por telefonemas, e as consequências delas resultantes para a ofendida, revelando o arguido com a sua actuação uma total indiferença pelas consequências provocadas na saúde, ao nível do bem-estar físico e psíquico da ofendida, sendo conhecedor da especial vulnerabilidade da ofendida devido às múltiplas doenças de que a mesma padecia, do perigo para a vida da ofendida que potenciava com a sua actuação, inclusivamente o isolamento social a que sujeitou a mesma, provocando um progressivo agravamento da fragilidade do seu estado de saúde físico e psíquico, que se concretizou na morte da ofendida, após a mesma ter saído do domicílio de ambos, pressionada para o efeito, e ter-se deslocado para o parque de campismo da E..., local sem condições de habitabilidade devido à fragilidade da sua situação de saúde, factos do conhecimento do arguido.
-a intensidade dolosa, na modalidade de dolo directo quanto ao tipo base do crime de violência doméstica.
-a total ausência de interiorização do desvalor da respectiva conduta por parte do arguido, escudando-se o mesmo numa postura de vitimização e desresponsabilização, reclamando maiores exigências em termos de prevenção especial, denotando por parte do arguido uma indiferença pelos bens jurídicos protegidos pelas normas incriminadoras.
-as condições sociais do arguido.
-não obstante a ausência de antecedentes criminais, as elevadas exigências de prevenção especial de ressocialização, não só devido ao facto da conduta ilícita criminal ter sido reiterada pelo arguido ao longo de dezasseis anos, como também em face das características de personalidade do mesmo, nomeadamente a ausência de sentido crítico, e de capacidade de descentração, o que, constitui factor de risco em termos de reinserção, reforçando as maiores exigências de prevenção especial.
Afigura-se assim adequada a aplicação ao arguido AM_______ela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, agravado pelo resultado morte, previsto e punido pelo art.º 152º, nºs. 1, als. b) e d), 2, al. a), e 3, al. b) do Código Penal, a pena de 6 (seis) anos e 9 (nove) meses de prisão, acrescida nos termos do n.º 4 do mencionado art.º 152º, em face da gravidade objectiva dos factos e das elevadas exigências de prevenção especial nos termos supra mencionados, da pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
**** Do pedido de indemnização civil deduzido pela assistente/demandante AC_______:
De acordo com o disposto no art.º 129º do Código Penal, a indemnização emergente de crime tem natureza civil, regendo-se pelos pressupostos da obrigação de indemnizar regulados pela lei civil (cf. arts. 483º e segs. do Código Civil).
Recai assim sobre o arguido/demandado o dever de indemnizar todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela ofendida MF_______ que resultaram provados, visando tal indemnização, de acordo com a teoria da diferença, repor os lesados na situação que teria se não tivessem sido cometidos os crimes e compensá-los quanto aos danos não patrimoniais (cfr. arts. 562º, 563º, 564º e 566º do Código Civil).
De acordo com o disposto nos arts. 496º, n.º 3 e 494º do Código Civil, haverá que atender como critério de determinação equitativa para o equivalente económico dos danos não patrimoniais sofridos pelos demandantes enquanto titulares do direito a indemnização, à natureza e intensidade do dano, ao grau de culpa, à situação económica do lesado, ao valor actual da moeda e aos critérios jurisprudenciais.
Em relação aos danos não patrimoniais reclamados pela assistente/demandante, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela ofendida, que pela sua gravidade merecem indiscutivelmente a tutela do direito, resultaram provados em síntese, as dores em consequência das agressões perpetradas pelo arguido/demandado, a angústia, vergonha, humilhação, medo, mal-estar físico e psicossocial, e o sofrimento e tristeza causados na ofendida, em consequência da conduta ilícito criminal perpetrada pelo arguido/demandado, reiteradamente num período de dezasseis anos, com quem viveu em união de facto, no domicílio comum, durante vinte e um anos.
A respeito do critério de determinação equitativa para o equivalente económico dos danos não patrimoniais sofridos, salienta o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 11-022009 (http://www.dgsi.pt/) «A tutela compensatória da indemnização a arbitrar pelos danos não patrimoniais tem inscrita a função de conceder uma satisfação ao lesado, a qual nunca se poderá reconduzir a um papel meramente simbólico, mas significar uma adequada compensação aferida segundo critérios de equidade, procurar um justo grau de “compensação ”, sendo fundamental, pois, a determinação do mal efectivamente sofrido. Na verdade, a reparação dos danos não patrimoniais, na impossibilidade de repristinar a situação anterior, pois que tal é impossível, visa apenas compensar indirectamente a vítima, pelos sofrimentos, pela dor e pelos desgostos sofridos, atribuindo-lhe uma quantia em dinheiro que lhe permita alcançar, de certo modo, e noutros planos ou actividades, uma qualidade de vida que minimize a gravidade da ofensa de que foi alvo.».
Transpondo tais considerações para o caso em apreço, atendendo aos danos não patrimoniais sofridos nos termos que resultaram provados, e tendo em conta a situação económica do arguido/demandado e os demais critérios jurisprudenciais, considera-se adequada a atribuição à assistente/demandante da quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela ofendida MF______, indemnização transmitida à assistente/ /demandante por via sucessória, acrescida de juros desde a data da presente decisão, à taxa legal de 4% ou à taxa legal que vier a vigorar até integral pagamento (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de uniformização de jurisprudência, n.º 4/2002, DR n.º 146, de 2706-2002), absolvendo o arguido/demandado do remanescente peticionado.
Dos pedidos de indemnização civil deduzidos pela demandante SGHL - Sociedade Gestora do Hospital de Loures, S.A. e pelo demandante Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, E.P.E:
De acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 6º do Dec. Lei nº 218/99, de 15-07, as «instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde podem constituir-se partes civis em processo penal relativo a facto que tenha dado origem à prestação de cuidados de saúde, para dedução de pedido de pagamento das respectivas despesas.».
Nos termos do estipulado no art.º 129º do Código Civil, a indemnização emergente de crime tem natureza civil, regendo-se pelos pressupostos da obrigação de indemnizar regulados pela lei civil (cf. arts. 483º e segs. do Código Civil).
Considerando a factualidade provada, verifica-se um nexo de causalidade adequada entre os danos reclamados pelos demandantes e a actuação do arguido/demandado AM______, no que respeita à assistência hospitalar prestada à ofendida MF_______, na sequência das lesões sofridas em 30-09-2018, relativamente à demandante SGHL, S.A., e em 03-072016 e 16 a 17-12-2018, relativamente ao demandante Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, E.P.E., em consequência da actuação do arguido/demandado, tendo os demandantes demonstrado a prestação de cuidados de saúde à ofendida MF______, como lhes incumbia, face ao preceituado no n.º 1 do art.º 5º do Dec. Lei nº 218/99, de 15-07.
Recai assim sobre o arguido / demandado AM______ o dever de indemnizar a demandante SGHL - Sociedade Gestora do Hospital de Loures, S.A., no montante de € 201,34 (duzentos e um euros e trinta e quatro cêntimos), e o dever de indemnizar o demandante Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, E.P.E., no montante de 1.952,53 (mil novecentos e cinquenta e dois euros e cinquenta e três cêntimos), correspondente ao custo da assistência hospitalar prestada pelos demandantes à ofendida MF_______, na sequência das lesões sofridas por esta, em consequência directa e necessária da actuação do arguido/demandado, acrescido dos prejuízos causados pelo incumprimento da prestação, que corresponde aos juros a contar da data em que se considera efectuada a notificação do arguido/demandado para contestar o pedido de indemnização civil, à taxa legal de 4%, resultante da Portaria n.º 291/2003, de 08-04, ou à taxa legal que vier a vigorar até integral pagamento (cf. arts. 804º, 805º, nºs. 2, al. b) e 3 e 806º, nºs. 1 e 2 do Código Civil).
**** III-DECISÃO
Pelo exposto, acordam as Juízes que compõem este Tribunal Colectivo em julgar procedente, por provada, a acusação; e, em consequência decidem:
1- Condenar o arguido AM______ pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, agravado pelo resultado morte, previsto e punido pelo art.º 152º, nºs. 1, als. b) e d), 2, al. a), e 3, al. b) do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos e 9 (nove) meses de prisão, e na pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
2- Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente/demandante AC______; e, em consequência, condenar o arguido/demandado AM______, a pagar à assistente/demandante, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela ofendida MF_______, transmitida por via sucessória, a quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), acrescida de juros desde a data da presente decisão, à taxa legal de 4%, ou à taxa legal que vier a vigorar até integral pagamento.
3- Julgar procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante SGHL - Sociedade Gestora do Hospital de Loures, S.A.; e, em consequência, condenar o arguido/demandado AM______, a pagar à demandante a quantia de € 201,34 (duzentos e um euros e trinta e quatro cêntimos), acrescida de juros a contar da data em que se considera efectuada a notificação do arguido/demandado para contestar o pedido de indemnização civil, à taxa legal de 4%, ou à taxa legal que vigorar até integral pagamento.
4- Julgar procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, E.P.E.; e, em consequência, condenar o arguido/demandado AM______, a pagar ao demandante a quantia de € 1.952,63 (mil novecentos e cinquenta e dois euros e sessenta e três cêntimos), acrescida de juros a contar da data em que se considera efectuada a notificação do arguido/demandado para contestar o pedido de indemnização civil, à taxa legal de 4%, ou à taxa legal que vigorar até integral pagamento.
****
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar artºs 403º e 412º nº 1 CPP sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - art.º 410º nº 2 CPP.
**** Cumpre decidir
Alega o recorrente que
Se verifica a prescrição de factos;
Foi violado o Direito de defesa e o Direito ao Contraditório
Há violação do Princípio Ne bis in iden
Já foi ordenado arquivamento quanto aos factos
Existência de erro notório quanto ao resultado morte por falta de nexo de causalidade
Pede absolvição
Vejamos:
Nos termos do nº 3 do art.º 412º do CPP, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a)- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e
c)- as provas que devem ser renovadas.
O nº 4 do mesmo artigo acrescenta que, tratando-se de prova gravada, as indicações a que se referem as alíneas b) e c) do nº 3 se fazem por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, segundo o estabelecido no nº 6.
Ou seja, o recorrente terá de indicar, com toda a clareza e precisão, o que é que, na matéria de facto, concretamente, quer ver modificado, apresentando a sua versão probatória e factual alternativa à decisão de facto exarada na sentença que impugna, e quais os motivos exatos para tal modificação, em relação a cada facto alternativo que propõe.
Assim, quanto à especificação dos concretos pontos de facto, a mesma «só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e se considera incorretamente julgado» (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª. ed., 2009, nota 7 ao art.º 412º., pág. 1144).
Portanto, só os factos controvertidos por efeito das provas cujo conteúdo seja adequado à conclusão de que se impõe uma decisão diferente da recorrida, segundo a motivação do recorrente, é que são objeto de sindicância pelo Tribunal da Relação.
Já a especificação das concretas provas, «só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida.
Por exemplo, é insuficiente a indicação genérica de um depoimento. Ou seja, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação (…) das passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento» (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª. ed., 2009, nota 8 ao artº 412º., pág. 1144).
Quando se trate de depoimentos de testemunhas, de declarações de arguidos, assistentes, partes civis, peritos ou consultores técnicos, o recorrente tem, pois, de individualizar, no universo das declarações prestadas, quais as particulares passagens, nas quais ficaram gravadas as frases que se referem ao facto impugnado.
Acresce que a reapreciação da matéria de facto em sede de recurso só pode determinar a sua alteração, se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não quando apenas se constatar que seria possível uma decisão diferente.
Caso se limite a indicar as declarações prestadas por um certo número de testemunhas, na sua globalidade, não pode considerar-se cumprido o ónus, nem viabilizada a possibilidade de reapreciação da matéria de facto, pelo Tribunal de recurso.
Tal forma genérica de impugnação, além de permitir converter em regra uma exceção, desvirtuando completamente o regime do duplo grau de jurisdição da matéria de facto, prejudica e pode mesmo inviabilizar o exercício legítimo do princípio do contraditório pelos demais sujeitos processuais com interesse juridicamente relevante no desfecho do recurso. «(…) Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação
dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorretamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorretamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exato sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório». ( Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012).
A forma minuciosa e exigente como está previsto e regulado este tríplice ónus de especificação ilustra como o duplo grau de jurisdição da matéria de facto não implica a formulação de uma nova convicção por parte do tribunal de recurso, em substituição integral da formada pelo tribunal da primeira instância, nem equivale a um sistema de duplo julgamento, antes se cingindo a pontos concretos e determinados da matéria de facto já fixada e que, de acordo com a prova já produzida ou a renovar, devem necessariamente ser julgados noutro sentido.
Assim, convém ter presente que o tribunal de 2.ª Instância não faz um novo julgamento, “(...) o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorretamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida – art.º 412º, nº 3, als. a) e b) do C.P.P. e levam à transcrição (nº 4 do art.º 412º do C.P.P.).
Ora não cumpriu o recorrente com o que lhe é exigido por lei, pelo que este Tribunal apenas apreciará a decisão em si e a sua fundamentação, verificando se existe algum dos vícios que o recorrente aponta e tratando as questões prévias que avança. Antes de analisarmos qualquer outra questão, delineemos o crime de violência doméstica
Até à entrada em vigor da Lei 59/2007, de 04.09, que manteve a incriminação e a moldura penal respetiva, o crime, então, de maus tratos pressupunha, em regra, uma reiteração de condutas, sustentando-se que «O tipo de crime em análise pressupõe, segundo a ratio da autonomização deste crime, uma reiteração das respetivas condutas. Um tempo longo entre dois ou mais dos referidos actos afastará o elemento reiteração ou habitualidade pressuposto, implicitamente, por este tipo de crime» (vd. Américo Taipa de Carvalho, Ob. cit, pág. 334).
Face à nova redação dada - Quem, de modo reiterado ou não (...) -, o crime de violência doméstica pode ser cometido mesmo que não haja reiteração de condutas, muito embora só em situações excecionais o comportamento violento único, pela gravidade intrínseca do mesmo, preencherá o tipo de ilícito (cfr. Maria Elisabete Ferreira, Da Intervenção do Estado na Questão da Violência Conjugal em Portugal, Almedina, 2005, pág. 106/107; e Ac. STJ de 24/4/2006, in Proc. 06P975 - cfr. www.dgsi.pt) - vd. Acórdão do STJ de 12.03.2009, in http://www.dgsi.pt/jstj.
Mesmo anteriormente à revisão do Código Penal, operada pela Lei 59/2007, de 04.09, vingou corrente jurisprudencial segundo a qual a atual redação (...) mais não significa (...) do que a incriminação, decorrente da lei penal, de condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, que se revistam de gravidade suficiente para poderem ser enquadradas na figura dos maus tratos. Não são, assim, todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do referido artigo 152º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade ou, dito de outra maneira, que, fundamentalmente, traduzem crueldade, ou insensibilidade, ou, até, vingança desnecessária, da parte do agente (Acórdão do STJ de 14.11.1997, in CJSTJ, 1997, tomo 3, pág. 235 e ss.).
Nessa senda, a solução legislativa vertida na atual redação do artº 152º, do Cód. Penal, veio harmonizar-se com a exposta corrente jurisprudencial que, face a anterior redação do preceito, o interpretava no sentido de não ser exigida a reiteração, desde que a conduta maltratante fosse especialmente grave (vd. Acórdão do STJ de 02.07.2008, in http://www.dgsi.pt/jstj).
Acrescentamos que entendemos que o bem jurídico protegido é na sua essência a dignidade da vítima. Neste sentido também AUGUSTO SILVA DIAS, Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, 2.a Ed., Lisboa: AAFDL, 2007 p.49, e numa posição aproximada, JORGE DOS REIS BRAVO, A actuação do Ministério Público no Âmbito da Violência Doméstica. Revista do Ministério Público, nº 102, Abril-Junho 2005, Lisboa-Editorial Minerva.
O que o legislador pretende é punir a violência em todas as suas formas, sendo que a vítima não tem que aceitar ofensas à sua dignidade, logrando ser tratada com respeito e, não sendo medida pelo número de pancadas, nomes chamados ou gritos proferidos, empurrões dados ou privações sofridas, que se determina se estamos perante violência doméstica ou qualquer outro crime.
O que sucede é que se observa a existência de um atentado á dignidade da pessoa humana ( o valor base da nossa Lei Fundamental), no âmbito de uma relação de proximidade entre a vitima e o agressor e, em que, esta perde todo o laço de confiança eventualmente existente entre si e quem a agride.
Não concordam com esta posição dominante na Jurisprudência e por nós seguida, o Professor Figueiredo Dias e Nuno Brandão, dizendo este último que, assumir o princípio da dignidade humana por si só como bem jurídico protegido pela norma do artº 152º, acaba por levar a que só estejam abrangidas pelo tipo penal, as condutas que conduzam a vítima a uma condição infra-humana, condutas que atingem uma gravidade muito superior aquelas que a norma penal da violência doméstica pretende englobar.
Esta assunção da dignidade humana como bem jurídico conduz a problemas, tanto no caso do crime ser classificado como crime de perigo ou crime de dano. Para o autor, caso o crime fosse considerado crime de perigo abstracto, o bem jurídico deixaria de ter utilidade enquanto padrão crítico da interpretação, tendo em conta a vasta amplitude e intangibilidade do princípio da dignidade humana. Caso o crime fosse considerado crime de dano, esvaziar-se-ia a tutela da norma, na medida em que seriam deixadas fora do seu âmbito de aplicação, a maior parte das condutas censuráveis e carentes de protecção, por não levarem a uma lesão na dignidade humana da vítima.
Mas é claro que o o tipo incriminador não se reconduz simplesmente à punição das agressões em que se traduzem os comportamentos de violência doméstica, reconduz-se também à protecção da integridade pessoal, liberdade e segurança da vítima que é ameaçada através da prática das ofensas praticadas sejam elas sucessivas ou únicas agressões físicas, sucessivas ou simultâneas agressões físicas e psíquicas.(2)
Vejamos então as questões prévias que o recorrente foi levantando a par e passo: Prescrição dos factos
A argumentação do arguido é de que existe um concurso real entre os crimes que foi praticando e dos quais foi a vítima o seu objeto.
Sucede que atenta a natureza do crime e tendo em conta que resultou provado que desde o ano de 2002 que a vitima MF_______ era alvo de discussões quando o arguido vinha alterado por motivos profissionais, que passou a dormir com uma pistola pequena debaixo da almofada como forma de atemorizar MF______, que a proibiu de contactar com a filha, Am_____, e que manteve este comportamento até 2018 tendo também em em 2016, proibido a neta daquela, de entrar lá em casa para ver a avó , que a agrediu violenta e reiteradamente mantendo um elo de continuidade na sua conduta violenta e descontrolada, apesar de nos dizer que tais “factos foram arquivados” há que ter em conta que, o crime em causa é um crime de execução permanente o que significa que se prolonga e persiste no tempo havendo uma voluntária manutenção da situação antijurídica até que a execução cesse.
Assim o prazo de prescrição do crime é de pelo menos 10 anos, na sua forma simples e de 15 anos na sua forma agravada, que é o caso dos autos.
Se os primeiros factos se reportam ao ano de 2003, repetindo-se pelo menos e no que foi possível contextualizar, em 2007, 2008, 2011, 2015, 2016, 2017 e 2018 temos uma franca linha de continuidade da sua conduta e uma renovação constante da vontade de ofender, agredir física e verbalmente a vitima, amesquinhá-la psicologicamente e reduzi-la ao que acabou por chegar isolando-a da família e acabando por expulsá-la da casa onde com ela viveu durante 15 anos. Ele, enfermeiro de profissão, que deveria , nem que fosse por dever de ofício e humanismo, aperceber-se do mal físico que causava á vitima já que do sofrimento psíquico parece nem ter querido aperceber-se.
Não há sequer sombra de prescrição.
Até para efeitos de escolha e decisão da lei aplicável (como seja da natureza pública do crime e consequente legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal), quer para efeitos de contagem do prazo de prescrição, o determinante é a data da execução do último facto praticado, isto é, o dia em que cessou a sua consumação.
Dúvida não há, e o recorrente também aí não chega, de que durante o espaço de tempo referido o recorrente aqui arguido, sempre sujeitou a vitima a tratamentos degradantes quer em termos físicos quer psíquicos e, como também muito bem diz o MP na sua resposta ao recurso, os factos que levaram ao arquivamento dos processos englobam-se nos factos aqui vertidos que se conjugaram no tempo mostrando claramente preenchido o conceito de reiteração.
Não há pois violação do princípio ne bis in idem que nos diz que ninguém pode ser condenado duas vezes pelo mesmo delito. Princípio este de vigência universal, constitucionalmente consagrado e garante de que uma vez julgado/condenado por determinados factos, não voltaremos a sê-lo.
Podemos olhá-lo como um princípio limitador do Poder do Estado em favor do individuo, uma GARANTIA DO RESPEITO pelos direitos individuais do cidadão, uma vertente dos princípios da legalidade de da virtualidade, uma garantia de segurança perante os poderes públicos.
O princípio ne bis in idem assumiu ultimamente um carácter transnacional universal para além do regional. Tem a importância de um principio que, aplicado no sentido de devidamente observado por instituições que têm por obrigação aplicar o Direito, as obriga a articularem-se entre si de forma a respeitar o indivíduo e o seu Direito a um respeito e proteção por parte do Poder de Punir do Estado.
O Ne bis In Idem não é só a proibição de condenação pelos mesmos factos, é também a proibição de duplicação de atuações repressivas, pelos mesmos factos, respeitante à mesma pessoa jurídica e cúmulo de qualificações jurídicas numa única ação.
Há que distinguir este conceito do conceito de caso julgado embora ambos se possam confundir.
O Ne bis in idem protege o indivíduo e assegura que todo o que for visado ou julgado ou condenado relativamente a certos factos não volte a ser alvo de nova actuação punitiva relativamente aos mesmos factos.
Por seu turno o caso julgado, visa garantir a credibilidade do exercício de funções jurisdicionais, evitando contradição de julgados e reforçando a presunção de validade das decisões dos tribunais.
Ambos vivem interligados uma vez que o princípio que aqui nos chama hoje só se faz sentir relativamente às decisões que transitaram em julgado.
Ora, um despacho de arquivamento nos termos do artigo 277º, nº 2 do CPP, não impede que se no decurso do inquérito sobre o crime se vierem a descobrir indícios de outro crime público e entre ambos existir uma relação de conexão processualmente relevante - art.º 24.º do CPP , o objeto do inquérito se alargue a novos crimes e, havendo arquivamento não há certezas, não há seguranças, não há caso julgado – desde logo porque apenas existe caso julgado relativamente a decisões judiciais, o que não é o caso dos despachos proferidos pelo Mº Pº - o que implica que nada impeça que se investiguem factos em tudo semelhantes ao que foi objeto de arquivamento, desde que novos elementos probatórios surjam.
Acresce que o tribunal a quo já se pronunciou quanto a esta questão prévia no início do acórdão aqui porto em causa e terminou concluindo que ainda que se considerasse existir uma nulidade dependente de arguição, o que por mera hipótese de raciocínio se concede, dada a interpretação do despacho proferido a fls. 80 dos autos, nos termos sobreditos, a mesma não foi invocada nos prazos de que o arguido dispunha para o efeito, o que significa que, não tendo sido expressa e tempestivamente arguida, considera-se sanada, não invalidando os actos processuais subsequentes ao despacho proferido a fls. 80, podendo por conseguinte ser tidos em conta todos os factos constantes da acusação, para todos os efeitos legais.
Refira-se ainda que, aquando do primeiro interrogatório judicial, foi o arguido informado dos factos concretamente imputados que determinaram a sujeição do mesmo a tal interrogatório, inclusive os factos a que aludem os pontos 17 a 20, 21 a 22, 23 a 25, e 35 a 37 da acusação, tendo o mesmo na referida data tomado conhecimento que tais factos eram objecto de investigação, não tendo por conseguinte sido precludido o seu direito de defesa quanto aos mesmos.
Assim, não se verifica qualquer violação do n.º 5 do artigo 29.º CRP.
Como diz e bem o MP nas suas contra alegações o arquivamento do inquérito, ao abrigo do disposto no art.º 277.º do CPP, não tem efeitos preclusivos, pois o inquérito pode ser reaberto nos termos do art. 279.º n.º1 do mesmo diploma, ou seja, caso surjam novos factos ou elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento.
Vejamos agora quanto à invocada impossibilidade de defesa do arguido invocada no recurso.
Também aqui claudica o recurso do arguido.
Se nos termos do disposto no artº 283º, nº 3, al. b), do C.P.P a acusação contém, sob pena de nulidade:
a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; a indicação da data dos factos pode parecer fácil e sê-lo-á em alguns casos, de qualquer forma, mesmo quando não o é, há sempre elementos que demonstram a ciência das testemunhas e que correlacionam a factualidade entre si.
Nos vários depoimentos exigidos ás vitimas, durante o decurso do processo será razoável exigir a quem depõem que seja preciso em datar os factos?
Quem aprecia a prova sabe que não o é e que fará sempre a interligação entre as razões de ciência apresentadas para chegar a uma certeza quanto aos factos.
A psicologia do testemunho diz-nos que há factos especialmente relevantes que permanecem na memória, mas relativamente aos quais muitos pormenores se apagam como por exemplo a data precisa.
Os factos a que o recorrente alude mostram-se suficientemente enunciados e balizados em sede temporal para que, sobre os mesmos, tenha possibilidade de apresentar a sua defesa, já que aí consta a circunscrição, a um determinado segmento preciso de tempo, a descrição especificada do que era imputado ao arguido ter feito, em termos de agressão – não se afirma que agrediu (o que consubstanciaria uma conclusão), antes se descreve o que o arguido fez, em cada um desses segmentos temporais.
Há que ter em conta que de acordo com o princípio da livre apreciação da prova – artº127º C.P.P., não se encontra o julgador sujeito às regras rígidas da prova tarifada, o que não significa que a atividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum.
Ou seja, o julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja“vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório. Essa apreciação livre da prova não pode ser confundida com a apreciação arbitrária da prova nem com a mera dúvida gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova, obedece sim a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio.
Todas as provas trazidas ao processo são importantes e produzem efeitos arrumando os factos nos provados e nos não provados. Mas essa “arrumação” é feita pelo tribunal após apurar e apreciar a prova, decantando os factos que lhe são trazidos e a forma como o são, segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação e análise cuidada de todos os factores envolventes dos acontecimentos.
O acórdão e a respetiva fundamentação conjugam-se com as regras da livre apreciação da prova
O acórdão recorrido deu como provados factos que fundamentou facilmente e de forma clara referindo datas especificas e situando os acontecimentos com suportes factuais e documentais alargados , datas de operação documentadas, datas de descoberta de doenças, idade da filha da ofendida, idade da neta da ofendida, datas das participações criminais de factos presenciados pelas forças de segurança, para enquadrar os factos, acrescidas de outras referências, como seja o local onde ocorreu "quando vinham da E...", após uma festa de casamento.
Conjugou tudo isso com a forma de depor de cada um dos intervenientes processuais não houve qualquer violação do direito de defesa do arguido que durante a audiência tudo ouviu, que dos autos tudo conhecia, a quem nada foi negado, nomeadamente o direito ao contraditório.
Claudica ainda aqui o recurso do arguido.
Vejamos agora a matéria de facto e a invocada falta de nexo de causalidade entre o resultado morte e a falta de respeito demonstrada pela saúde e pela vida da vítima, e o trato que lhe foi dado pelo arguido.
Para além de toda a sua conduta dada como provada, o arguido, enfermeiro de profissão (e uma vez enfermeiro sempre enfermeiro ainda que reformado), abandonou a vítima doente e incapacidade á sua sorte numa roulotte que fora de ambos para fazerem férias. Apesar de saber das suas incapacidades em nada se importou com ela, com uma frieza que coincide com a forma como resultou provada que sempre a tratou. Um total desrespeito pela dignidade e pela vida da vítima.
O que nos leva a uma situação reiterada de maus tratos e á condenação pelo crime de violência doméstica, pressupondo os maus tratos que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável é todo um conjunto de condutas e da sua reiteração que revelam um apuramento da indiferença e da frieza de um arguido, ainda por cima enfermeiro. No crime de violência doméstica está em causa como já supra referido, a proteção da pessoa individual, da sua dignidade, o bem jurídico protegido é a saúde física, psíquica, bem jurídico este que pode ser afetado por toda a multiplicidade de comportamentos, como os levados a cabo e dados como provados.
Trata-se de crime específico que pressupõe uma determinada relação, obviamente muito próxima, entre os sujeitos ativo e passivo, cuja prática pode ser ou não reiterada no tempo tendo sempre em conta o desenvolvimento e realidade do caso concreto. E essa proximidade, ainda que incomodasse o recorrente existia necessariamente.
Podemos defrontar-nos com maus tratos físicos ou humilhações, provocações, ameaças, mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça. O tipo subjetivo de ilícito exige o dolo, bastando o dolo de perigo de afetação da saúde, aqui o bem-estar psíquico, a dignidade do sujeito passivo.
Ora, desde logo e face à prova produzida e fixada, contrariamente à vontade do recorrente, que o que pretende é que a prova foi mal apreciada, apreciando-a e fazendo dela um juízo diferente, desenha-se claramente violência doméstica quase que se diria, com “requintes de malvadez”.
O recorrente apenas se opõe à apreciação feita pelo Tribunal pretendendo a sua absolvição o que é completamente impossível conceber no quadro que se desenrolou aos olhos do tribunal da 1ª Instância e que chegou ao Tribunal de recurso.
Não existe erro notório nem contradição entre a fundamentação e a prova, nem sequer a falta de nexo de causalidade entre o tratamento dado á vitima, o seu abandono deliberado e o resultado a que chegou
Estabelece o artigo 127.º do CPP como já supra defendido que "salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente".3
Acresce que dependendo o juízo de credibilidade da prova por declarações do carácter e probidade moral de quem as presta e não sendo tais atributos apreensíveis, em princípio, mediante exame e análise dos textos processuais onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto com as pessoas, é evidente que o tribunal superior, salvo casos de exceção, deve adotar o juízo valorativo formulado pelo tribunal a quo.
O erro notório na apreciação da prova aqui invocado e previsto no art.º 410º, nº 2, al. c), do CPP, como se vem reafirmando constantemente, não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a do próprio recorrente e, só
3 Como diz Maia Gonçalves, in "Código de Processo Penal, anotado", 9.ª ed., pág. 322, "... na livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica...”
Já Germano Marques da Silva, em "Curso de Processo Penal", II, pág. 126 e ss., defende que a livre apreciação da prova tem de se traduzir
numa “valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão. Com a exigência de objetivação da livre convicção poderia pensar-se nada restar já à liberdade do julgador, mas não é assim. Num primeiro aspeto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova).
Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão “regras da experiência", existe quando, do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta por demais evidente a conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal. ...” (cfr. Acórdão do S.T.J. de 24-03-1999, Proc. nº 176/99 – 3.ª Secção).
Ora, mais uma vez e, como é normal nos recorrentes que não se conformam com a decisão proferida e, nomeadamente com a pena fixada, invoca-se erro na apreciação da prova e pretende-se uma interpretação diferente da feita pelo Tribunal esquecendo totalmente o princípio da livre apreciação da prova plasmado no artº 127º do CPP e a clareza dos factos vertidos em audiência.
Existe erro notório na apreciação da prova quando esse erro é de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta. Por isso é notório e não só visível aos juristas.
Analisada a decisão em recurso e o recurso da mesma, verificamos, pois, que não encontramos nada disso, nem uma apreciação arbitrária, nem sequer uma dúvida no espírito do julgador pelo que nem sequer foi colocado em causa um dos princípios basilares do nosso ordenamento jurídico que é o princípio do In dubio pro reo corolário da presunção de inocência, consagrada constitucionalmente no art.º 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. Constitui um dos direitos fundamentais dos cidadãos - art.º 18 º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa; 11 º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem; 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos e Liberdades Fundamentais, e 14.º, n.º 2, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
Com efeito, por força deste, enquanto não for demonstrada a culpabilidade do arguido, não é admissível a sua condenação. O que quer significar que só a prova de todos os elementos constitutivos de uma infracção permite a sua punição. Mas esse é um problema de direito probatório em processo penal.
Como acentua Hans Heinrich Jescheck, in “Tratado de Derecho Penal”, Parte General, 4.ª ed., pág. 127 e segs., tal princípio "serve para resolver dúvidas a respeito da aplicação do Direito que surjam numa situação probatória incerta".
Vem tudo isto a propósito de que, da leitura da fundamentação da decisão recorrida, resulta que o Tribunal a quo não teve dúvidas quanto à prática dos factos que deu como assentes, dúvidas que este Tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, também não tem, pois que só se a fundamentação revelasse que o tribunal a quo, face a algum ou alguns factos, tivesse ficado em dúvida "patentemente insuperável", como se referiu no Ac. do STJ de 15-6-00, publicado na Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 2.000, II-228, ou se, embora o tribunal "a quo" não reconhecesse o estado de dúvida, ele resultasse do texto da decisão recorrida só por si ou em conjugação com as regras da experiência comum.
A fundamentação da decisão de facto da sentença recorrida não evidencia qualquer dúvida que tenha sido solucionada em desfavor do arguido antes se mostra claríssima, pormenorizada e segura.
Não existe nenhuma dúvida incontornável de que se deva retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido e não resulta de um mero capricho ou vontade de absolver por parte do juiz, resulta sim, da prova que foi produzida e causou no espírito do Juiz a dúvida que este não consegue ultrapassar para condenar em consciência. Já não há só uma presunção de inocência, há também uma dúvida forte sobre a culpabilidade, mas também sobre a inocência.
A dúvida tem que assumir uma natureza irredutível, insanável, sem esquecer que, nos actos humanos, nunca se dá uma certeza contra a qual não haja alguns motivos de dúvida – cfr., a este propósito, Cristina Monteiro, “In Dubio Pro Reo”, Coimbra Editora,
1997.
No entanto o Tribunal tem por certo que após a apreciação de toda a prova produzida em julgamento à luz das regras da experiência, nos termos do artigo 127.º do CPP, chegará a uma conclusão de necessidade ou desnecessidade de aplicação deste princípio in dubio pro reo.
Acontece que, no caso em análise, não existe qualquer dúvida por parte do julgador que determine de forma razoável a absolvição do recorrente sendo a fundamentação lógica e sequencial. O Tribunal ao decidir, fundamentou clara e pormenorizadamente a sua decisão na prova produzida em audiência, na prova junta aos autos e em regras de lógica, na razão e experiência comum, analisando detalhadamente os depoimentos e os factos também de acordo com esta lógica e, fundamentou a sua decisão, afastando o que lhe pareceu ser de afastar fundamentando o afastamento.
De acordo com o artº 374º, nº 2 a fundamentação da decisão consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa mesmo que concisa ou sucinta, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal feito de forma clara e compreensível ou apreensível, não bastando ao tribunal fazer a indicação dos concretos meios de prova tidos em conta para formar a sua convicção.
É necessário ainda que se expresse o modo como se alcançou essa convicção, o processo racional seguido e explicando a análise e ponderação criticamente comparativa, das diversas provas produzidas, para que se siga e conheça a motivação que fundamentou a opção por um certo meio de prova em detrimento de outro, ou sobre qual o peso que determinados meios tiveram no processo decisório.
Ou seja, "deverá fazer-se por indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, o que compreenderá não só a especificação dos concretos meios de prova, mas também a enunciação das razões ou motivos substanciais por que eles relevaram ou obtiveram credibilidade no espírito do julgador" (cfr. Lopes do Rego, "Comentário ao Código de Processo Civil", p. 434). Tudo isso o Tribunal recorrido fez.
Sabemos que o tribunal mais apto a apreciar a prova é o tribunal a quo que ouve e vê as testemunhas, as suas reações, as suas pausas, os seus gestos.
Quem sabe da psicologia do testemunho, sabe que nem todas as pessoas, no mesmo local e à mesma hora, apreendem os factos da mesma forma e com a mesma perceção, pelas mais variadas razões quer endógenas quer exógenas.
O estado emocional de uma testemunha a concordância entre a linguagem oral e a expressão, ou a postura revelada pela testemunha, pelas atitudes e pelo olhar, são também aspetos importantes isto porque, a linguagem do corpo é mais verdadeira, mais fiável e de mais difícil simulação.
Tal não é esquecido ao ser ouvida uma testemunha. Sabemos que o facto nunca será relatado por ninguém como exatamente aconteceu tendo sempre as “pinceladas” a visão própria da testemunha no momento do acontecimento do facto e, ainda no momento do relato do facto. A uns chama a atenção determinado facto a outro um som ou um gesto, ou uma palavra. E quantas vezes no meio de 20 testemunhas, apenas uma merece credibilidade, apenas uma, convence o Tribunal?
O local ou momento de preferência para apreciar valorativa e criticamente as provas é, a audiência de julgamento em que o julgador dispõe das melhores condições para tocar de perto a prova que se vai produzindo, ou, a falta dessa mesma prova.
É frente à prova testemunhal, à forma como são prestados os depoimentos, para analisar todas as questões relevantes e suscetíveis de serem ponderadas, de acarear os depoimentos contraditórios para, de um modo geral, criar a convicção necessária à fixação dos factos de observar os mais pequenos gestos e expressões, de escutar as entoações e os silêncios, é aí que o Juiz melhor apura e aprecia a prova. Diria que é aí, olhos nos olhos, que o Juiz é absolutamente capaz de “observar e sentir” a prova.
A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de racionalidade, pois que, «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador - juiz se assimila, de algum modo, à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível. Mas o papel do Juiz anda muito próximo do psicólogo que observa e capta quase por instinto o mais breve gesto ou a mais clara hesitação. Não assiste razão ao recorrente.
Conjugando os factos provados com regras de experiência comum e de lógica, a experiência diz-nos que o tribunal encontrou o dolo mas este, e porque é o elemento subjetivo, concluiu-se de uma atuação, de um conjunto de elementos, de uma impossibilidade de ser razoável que alguém naquelas circunstâncias tenha praticado determinada acção com este ou aquele querer diferente do querer agredir e maltratar, amesquinhar e desprezar. Agrava-lhe o comportamento e o conhecimento e, portanto a culpa, o facto de ser enfermeiro e conhecer da situação clínica da ofendida, sendo absolutamente evidente que deveria e poderia ter previsto que atendendo à especial vulnerabilidade da mesma, devido às múltiplas doenças de que padecia, com a sua conduta ilícita, culminando com a saída do domicílio pela ofendida, nas circunstâncias descritas e na situação particularmente débil em que se encontrava, tudo acarretou um perigo para a vida da ofendida, havia perigo para a Vida da ofendida como realmente aconteceu resultando na morte da mesma.
O arguido que pretende ser absolvido agiu com total indiferença, de forma negligente na produção do resultado morte da ofendida e sendo o crime base da violência doméstica imputado ao arguido a título doloso, e a agravação pelo resultado, prevista na b) do n.º 3 do art. 152º CP é imputada a título de negligência.
Relativamente à pena de 6 (seis) anos e 9 (nove) meses de prisão, e na pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica nada há a censurar.
O tribunal limitou-se a aplicar uma pena à medida da culpa do recorrente tendo em conta os fins das penas, de acordo com o artigo 40.º do CP, a necessidade de proteção de bens jurídicos em causa, não podendo esquecer que estamos perante uma vitima diminuída gradualmente ao ponto de se tornar incapaz de reagir ou defender-se ou libertar-se da sua influência, nem podendo esquecer que estamos perante um crime que vem ganhando terreno e fazendo vítimas, e ter em conta que as exigências de prevenção geral são elevadíssimas não sendo menores as exigências de prevenção especial perante um perfil completamente á margem dos valores de uma vivência normal em sociedade.
Relativamente à indemnização nada há a censurar também
Ora, tendo em conta o disposto no artº21.º, nº 2 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, é atribuído o direito de indemnização às vítimas de violência doméstica, havendo sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.
Por sua vez, estatui o artigo 82.º-A do Código de Processo Penal que:
“1— Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham.
No caso dos autos recai sobre o arguido/demandado o dever de indemnizar todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela ofendida MF_______ - arts. 562º, 563º, 564º e 566º do Código Civil).
De acordo com o disposto nos arts. 496º, n.º 3 e 494º do Código Civil, haverá que atender como critério de determinação equitativa para o equivalente económico dos danos não patrimoniais sofridos pelos demandantes enquanto titulares do direito a indemnização, à natureza e intensidade do dano, ao grau de culpa, à situação económica do lesado, ao valor actual da moeda e aos critérios jurisprudenciais.
Em relação aos danos não patrimoniais reclamados pela assistente/demandante, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela ofendida, que pela sua gravidade merecem indiscutivelmente a tutela do direito, resultaram provados em síntese, as dores em consequência das agressões perpetradas pelo arguido/demandado, a angústia, vergonha, humilhação, o medo, o sofrimento físico e psicológico , o sofrimento e tristeza causados na ofendida, em consequência da conduta ilícito criminal perpetrada pelo arguido/demandado, reiteradamente num período de dezasseis anos, com quem viveu em união de facto, no domicílio comum, durante vinte e um anos.- Acórdão de 11-02-2009 (http://www.dgsi.pt/)
Assim, o montante indemnizatório atribuído pelos danos não patrimoniais sofridos pela ofendida MF______, indemnização essa transmitida à assistente/demandante por via sucessória, acrescida de juros mostra-se justo e equilibrado tendo em conta toda a factualidade envolvente e dada como provada, os 16 anos de sofrimento e violência, terror e indignidade provocados pelo recorrente.
Nos termos do estipulado no art.º 129º do Código Civil, a indemnização emergente de crime tem natureza civil, regendo-se pelos pressupostos da obrigação de indemnizar regulados pela lei civil (cf. arts. 483º e segs. do Código Civil).
Os sofrimentos provocados pelo recorrente prolongaram-se no tempo. O recorrente desvalorizou, completamente, o sofrimento causado
Resultam os pressupostos da responsabilidade civil por actos ilícitos do art.º 483.º, n.º 1 do CC:
a)-o facto do agente - um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou numa forma da conduta humana - que pode traduzir- se numa acção ou numa omissão;
b)-a ilicitude, ou antijuricidade que pode revestir a modalidade de violação de direito alheio - direito subjectivo - e a violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios;
c)-o nexo de imputação do facto ao lesante ou culpa do agente, em sentido amplo, o que significa que a sua conduta merece a reprovação ou censura do direito e que pode revestir a forma de dolo ou negligência; d)-o dano, como prejuízo sofrido em bens jurídicos alheios em virtude do facto ilícito culposo; e) o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima. Cfr. A. Varela, in “Das Obrigações em Geral”, I.º Vol., 4a Ed., p. 447.
Está bem calculada a indemnização e dentro dos critérios legais abarcando todas as consequências dos actos lesivos - art.º 496.º, n.ºs 1 e 3 do CC
Nada há a censurar à decisão de que recorre o arguido.
Assim sendo:
Nega-se provimento ao recurso interposto por manifestamente improcedente mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 Ucs com a taxa adicional em 2 Ucs pela manifesta improcedência. – artº 521º CPP. DN. DN
Lisboa 16.11.2020
Adelina Barradas de Oliveira
Margarida Ramos de Almeida
_______________________________________________________
(1)-«(…) Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação
dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorretamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorretamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exato sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório». ( Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012).
(2)-Neste sentido TERESA FÉRIA, Ousar Vencer a Violência sobre as Mulheres na Família - Guia de Boas Práticas Judiciais, cap. I, APMJ, 2006, ponto 2.6.1, exposição referente ao enunciado legal anterior à reforma de 2007
(3)-Como é sabido a atual redação do n º 2 do art.º 374º CPP (Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto), foi introduzida pela reforma operada pela
Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, sendo aditada em relação à redação anterior a exigência de exame crítico das provas nos mesmos que são exigidos no processo civil – art.º 653º, nº 2 CPC na redação introduzida pelo Dec. Lei nº 39/95, de 2 de Fevereiro – tendo em vista as exigências de fundamentação da sentença e a necessidade de se avaliar a validade da prova (cfr. José Luís Lopes da Mota, "A Revisão do Código de Processo Penal", RPCC, ano 8º2º, p. 196).
(4)-Entende tanto a doutrina como a jurisprudência que, em determinadas circunstâncias, alguns dos factos sobre os quais não é possível
produzir e analisar prova direta, têm, necessariamente, de ser retirados ou elididos dos factos objetivos e dados como provados e "vistos" à luz da normalidade das coisas, permitindo-se, deste modo, retirar a verosimilhança ou verdade daqueles (cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, pág. 187; Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, II, pág. 279; Acs. STJ de 86.04.02, BMJ 365-122 e de 91.04.03, BMJ 406-314).
Para isso deve o tribunal explicitar no exame crítico da prova, à luz de que raciocínios lógicos e dedutivos alicerçados nos factos provados –
sobre os quais foi realizada prova direta – e "crivados" pelas regras da experiência comum ou da normalidade das coisas, como concluiu de certa forma ou extraiu determinadas ilações de forma de tal maneira clara e segura que, qualquer pessoa ao ler a fundamentação fique convencida de que outro não podia ter sido o caminho, outra não podia ter sido a conclusão, outra não podia ter sido a prova analisada, outra não podia ser a análise lógica e razoável da mesma e as necessárias conclusões nunca seriam outras.