SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE
TAXA MODERADORA
DIREITO FUNDAMENTAL
DISCRIMINAÇÃO
Sumário

– O Direito à Saúde e à prestação de cuidados de saúde constitui um direito fundamental;
– A sua restrição apenas pode ocorrer pelos motivos constantes da Constituição;
– É ilegal e inconstitucional fazer depender o acesso à saúde, nomeadamente a meios de diagnóstico, ao pagamento de dívidas provenientes de taxas moderadoras.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Acordam os juízes que compõem a Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa

I–Relatório

Inconformado com a decisão do Tribunal da  a qual manteve in totum a decisão da Entidade Reguladora da Saúde que o condenou, pela prática de uma contraordenação respeitante ao incumprimento das regras relativas ao acesso aos cuidados de saúde, em concreto, violação do direito de acesso universal e equitativo à prestação de cuidados de saúde no SNS, por via de uma prática de rejeição infundada de um utente no Hospital de Santo André, explorado pelo infrator, no pagamento de uma coima no valor de €2.500,00 veio o CENTRO HOSPITALAR DE LEIRIA, E.P.E., com o NIPC 509.822.932, com sede na Rua das Olhalvas, Pousos, 2410-197 Leiria, recorrer para este Tribunal da Relação formulando, após motivações as seguintes conclusões:
1ª– Tem por objecto o presente recurso, a d. Sentença que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida pelo recorrente e assim confirmou a decisão da Entidade Reguladora da Saúde, (ERS), que a condenou na coima de 2.500,00€ por "...violação das regras relativas ao acesso aos cuidados de saúde, em concreto, violação do direito de acesso universal e equitativo à prestação ode cuidados de saúde no SNS, por via de uma prática de rejeição infundada de um utente, em estabelecimento de saúde do SNS por aquele explorado, contraordenação prevista e punida pelas disposições conjugadas das alíneas a) e b) do artigo 12º e das subalíneas i) e ii) da alínea b) do nº 2 do artigo 61º todas dos Estatutos da ERS, aprovados pelo Decreto-Lei ne 126/2014, de 22 de Agosto.".
2ª– Desconsiderando factos-conclusão insertos na d. matéria assente, apurada com rejeição da prova que em sede de impugnação o recorrente indicou, constituem os elementos factuais relevantes para apreciação da conduta deste, os relativos ao teor da interpelação do utente (ponto 6), aos cuidados de saúde a este prestados (pontos 13 a 16 e 19) e ao procedimento que utilizou (pontos 20 e 21).
3ª– Emerge também, da delimitação negativa da matéria assente e com relevância para a apreciação da conduta do recorrente, que o utente não evidenciou qualquer carência económica para pagamento das taxas moderadoras, qualquer situação que conduzisse à respectiva isenção, ou sequer que tivesse abordado o Centro Hospitalar no sentido de lhe manifestar qualquer dificuldade de pagamento de taxas em dívida ou de lhe invocar qualquer interesse ou direito.
4ª– Porém, e neste circunstancialismo factual, o Tribunal a quo entendeu que o CHL actuou em sentido oposto às determinações constitucionais de um SNS universal, geral e tendencialmente gratuito, violando o direito de acesso universal e equitativo à prestação de cuidados de saúde.
5ª– Em que medida? Rejeitando e discriminando infundadamente um utente, em estabelecimento de saúde do SNS por aquele explorado, o Hospital de Santo André.
6ª– Com base numa prática que adoptou perante os com taxas moderadoras em dívida, consistente no seguinte: quando os seus serviços prestadores de cuidados de saúde prescreviam ao utente a realização de meios complementares de diagnóstico e terapêutica a realizar externamente, o CHL suportava o preço desse exame mas, relativamente aos utentes devedores de taxas moderadoras, interpelava-os no sentido de pagarem as mesmas, para que o procedimento tivesse o andamento devido.
7ª– Não sem, na mesma interpelação, os informarem de que poderiam solicitar o pagamento em prestações e que, em caso de dificuldades financeiras, se deveriam dirigir aos serviços sociais da Instituição.
8ª–  Sendo que, o Conselho de Administração vinha a permitir o desbloqueamento dos procedimentos e, assim, a pagar exames a utentes do SNS solicitados pelos seus médicos, mas que extravasavam as suas valências, isto é, as competências em matéria de prestação de cuidados de saúde, suportando os respetivos preços, mesmo que aqueles mantivessem taxas moderadoras em dívida.
9ª– Esta era a prática. In casu, o utente interpelado não manifestou qualquer dificuldade económica ou redução de meios de qualquer natureza, e não respondeu o solicitou o que quer que fosse ao recorrente.
10ª– E assim o procedimento não teve desenvolvimento.
11ª– Ora, o recorrente vem condenado pela alegada violação das disposições do art. 12º, al. a) e b), e art. 61º, nº 2, al. b), subalíneas i) e ii), todas dos Estatutos da ERS.
12ª– Tais normas decorrem do princípio constitucional previsto no art.º 64º da C.R.P., nomeadamente do nº 2, al. a) que estabelece o direito à proteção da saúde através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito.
13ª– O cumprimento de tal direito não obsta à imposição e cobrança de taxas moderadoras devidas pelos serviços de prestação de saúde, aliás, introduzidas em Portugal desde 1980.
14ª– No que diz respeito à cobrança de taxas moderadoras, o direito de acesso à saúde universal e equitativo garante que nenhum utente pode ser privado dos cuidados de saúde que necessita por não ter condições económicas para pagar tais cuidados, sendo que de uma forma geral todos os utentes devem comparticipar nos custos de serviços de saúde através do pagamento das ditas taxas moderadoras.
15ª– Pois bem, à luz do regime jurídico aplicável, é perfeitamente legítima a interpelação do utente com taxas moderadoras em dívida para que as pague.
16ª– Aliás, à data da prática dos factos, a falta de pagamento das taxas moderadoras constituía contraordenação, nos termos do artigo 8º-A do Decreto-Lei nº 113/2011, de 29 de Novembro, evidenciando-se por essa via o elevado desvalor ético-jurídico da inadimplência nesta matéria.
17ª– Já não é legítimo discriminar os utentes exigindo taxas moderadoras a quem as não possa pagar, ou negando o acesso á prestação de cuidados de saúde disponibilizáveis, a utentes, por deverem taxas moderadoras.
18ª– Como se demonstra por força da matéria assente, ao arguido não pode ser imputada tal conduta.
19ª– Por um lado, nada existe demonstrado relativamente a qualquer tipo de insuficiência ou incapacidade de pagamento por parte do utente.
20ª– Por outro lado o recorrente continuou, ininterruptamente, a prestar cuidados de saúde ao utente.
21ª– Donde, salvo o devido respeito, não se pode considerar que o CHL violou o princípio da igualdade nem o da universalidade no acesso ao SNS ou que tenha recusado a realização de exames infundadamente ou por razões discriminatórias e muito menos que tenha negado cuidados de saúde por razões de condição económica ou social.
22ª– Ao utente JC... não foi negado o acesso aos cuidados de saúde nem o mesmo foi alvo de qualquer prática de rejeição ou discriminação infundada nos serviços e estabelecimento do SNS.
23ª– Para concluir como o fez, a d. Sentença recorrida omitiu toda a matéria de facto que descreve os termos da interpelação ao utente e da prática que vigorou, no sentido das opções que a este foram indicadas.
24ª– Bem como omitiu ou desvalorizou, na sua fundamentação, os pontos de facto que evidenciam que o recorrente sempre prestou cuidados de saúde ao utente, independentemente da interpelação que lhe fez para pagar taxas moderadoras em dívida, e que o exame em concreto em questão extravasava o âmbito das suas valências em matéria de cuidados de saúde e implicava o pagamento de um preço a terceiro.
25ª– Estando em causa a cobrança de taxas moderadoras previstas na lei e devidas pelo utente não se pode afirmar que o CHL violou o princípio da tendencial gratuitidade do SNS ou que não teve em conta as condições económicas e sociais do utente em causa - já que como se referiu nada consta na matéria de facto provada quanto a este aspecto.
26ª– Pela mesma razão não se pode afirmar que o CHL violou a equidade no acesso dos utentes, a qual tem o objetivo de atenuar os efeitos das desigualdades económicas, geográficas e quaisquer outras no acesso aos cuidados.
27ª– Acresce que nos termos do disposto no art.º 24º da Lei nº 15/2014, de 21.03 bem como da Base XIV, nº 2, al. e) da Lei nº 48/90, de 24.08, constitui dever legal do utente dos serviços de saúde o pagamento dos encargos que derivem da prestação dos cuidados de saúde, quando for caso disso. Subsidiariamente:
28ª– O princípio da legalidade previsto no art. 29-, nº 1 da CRP estabelece que ninguém pode ser punido senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão.
29ª– Tal acção ou omissão tem, pois, que estar minimamente concretizada na Lei, não podendo assentar em conceitos indeterminados.
30ª– Ora, as normas incriminatórias, subalíneas i) e ii) da alínea b) do nº 2 do artigo 61º, todas dos Estatutos da ERS, aprovados pelo Decreto-Lei nº 126/2014, de 22 de Agosto, remetem para os conceitos aludidos no artigo 12º alíneas a) e b), que daqui remete, quanto à delimitação dos conceitos, para a Constituição da República Portuguesa e para a Lei de Bases da Saúde, e complementarmente para o regime jurídico das taxas moderadoras.
31ª– É através de uma análise científica, que se constrói a delimitação da conduta punida, isto é, dos elementos objectivos do ilícito em questão.
32ª– Na verdade, as normas incriminatórias em questão não estão suficientemente especificadas ou concretizadas, ainda que por via de remissão, de modo a que o destinatário possa saber em concreto que práticas integram ou não a contraordenação, devendo por isso ser qualificadas como normas contraordenacionais indeterminadas ou em branco.
33ª– E tanto assim é, que na condenação se envolve a infracção a duas subalíneas, i) e ii) da alínea b) do artigo 61-, sem que em alguma circunstância de determine a conduta do recorrente que se subsume na previsão de uma dessas alíneas, e a conduta que se subsume na outra.
34ª– Isto é, é de tal modo complexa devido á remissão para normas que consagram conceitos indeterminados, que o julgador em momento algum da sua decisão soube distinguir e fundamentar a conduta do recorrente, face a cada uma das referidas subalíneas.
35ª– Ocorre, pois, violação do princípio da legalidade, da tipicidade e da segurança jurídica, porquanto obsta do ponto de vista prático à determinabilidade objetiva das condutas proibidas e dos demais elementos de punibilidade requeridos.
36ª– Pelo que as normas incriminatórias constantes do art.º 12º, als. a) e b), e art.º 61º, nº 2, al. b), subalíneas i) e ii), todas dos Estatutos da ERS estão feridas de inconstitucionalidade material por se tratarem de verdadeiras normas penais em branco que violam os princípios da legalidade e da segurança jurídica, vício que aqui expressamente se invoca.
37ª– Por outro lado, caso se entenda que a norma, não obstante a utilização de conceitos indeterminados, permite ainda assim a integração de condutas que sejam fundamento para práticas de rejeição terá que se concluir que a recusa injustificada de um utente em pagar taxas moderadoras em dívida, sem invocação de qualquer motivo de facto nomeadamente de natureza económica e/ou social, ou qualquer motivo de direito, como sejam a prescrição, caducidade, etc., constitui fundamento legítimo para um prática de rejeição, e nessa medida, não está preenchida a parte final da norma "prática de rejeição ou discriminação infundada".
38ª– Nesta hipótese, o entendimento vertido na d. Sentença recorrida na medida em que não considera a recusa injustificada do pagamento de taxas moderadoras por parte do utente um fundamento legítimo para a retenção de um exame complementar de diagnóstico, é inconstitucional por violar o disposto no art.º 12º, al. a) e b), e art.º 61º, nº 2, al. b), subalíneas i) e ii), todas dos Estatutos da ERS, bem como os princípios da universalidade e igualdade previstos nos art.ºs 12º e 13º da C.R.P., o princípio da legalidade decorrente do art.º 29º da C.R.P. e o próprio direito à saúde previsto no art.º 64º da C.R.P. Ainda subsidiariamente:
39ª– O recorrente vem condenado a título de negligência, sendo o valor mínimo da coima de 750,00 €.
40ª– Sem conceder relativamente ao antedito, sempre se dirá que ao demonstrar-se, como se demonstrou, ainda que a posteriori, que o exame prescrito em 2014 não era necessário, não houve qualquer omissão de cuidados de saúde, uma vez que integra o correspondente direito a necessidade desses cuidados.
41ª– Logo, a infração nunca se consumou efetivamente, por falta, ao que se crê, atenta a difusão dos conceitos, desse elemento.
42ª– Estaríamos, portanto, nesta hipótese, perante uma mera tentativa, punível nos termos do nº 5 do artigo 61º dos Estatutos da ERS, com a coima especialmente atenuada.
43ª– Acresce, que o valor mínimo da coima praticado com dolo é de 1.500,00€.
44ª– Isto é, in casu, a coima a aplicar deve seguir as regras da atenuação especial ou, não se considerando desse modo, não exceder o montante de 1.500,00€ correspondente ao mínimo legal para punição da conduta dolosa, pelo que se Requer a revogação da d. Sentença recorrida, substituindo-a por outra que reduza a coima para montante correspondente ao limite mínimo previsto para a conduta negligente, ou não se entendendo assim, não superior a 1.500,00€.
45ª– A d. Sentença recorrida, ao condenar o recorrente nos termos da decisão administrativa impugnada, violou as normas indicadas nas presentes conclusões, incluindo as disposições dos artigos art.º 12º, al. a) e b), 61º, nºs 2, al. b), subalíneas i) e ii) e 5, todas dos Estatutos da ERS, bem como os princípios da universalidade e igualdade previstos nos arts. 12º e 13º da C.R.P., o princípio da legalidade decorrente do art.º 29º da C.R.P. e o próprio direito à saúde previsto no art.º 64º da C.R.P.
Termos em que, deve a d. Sentença recorrida ser revogada, absolvendo-se o recorrente e determinando-se o arquivamento do respetivo procedimento contraordenacional, ou não se entendendo assim, reduzindo-se a coima com recurso a atenuação especial, em montante não superior a 750,00 €, com o que se fará”
Ao recurso responderam o Ministério Público e a Entidade Reguladora da Saúde (ERS).
Refere o primeiro que o recurso não merece provimento em nenhum dos seus pontos.
A ERS pugna, de igual sorte, pela improcedência formulando as seguintes conclusões:
“A)– O direito à protecção da saúde constitucionalmente consagrado (cfr. art. 64º do CRP) impõe a sua realização através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito, sendo que incumbe ao Estado garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação;
B)– Em sede do regime jurídico das taxas moderadoras, apesar de se estabelecer o modo de cobrança de taxas moderadoras (artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 113/2011, de 29 de Novembro), em situação alguma a mesma lei estabelece que os estabelecimentos responsáveis pela cobrança podem fazer depender a prestação de cuidados de saúde do pagamento daquelas taxas;
C)– Como resulta vivamente dos factos provados, a Recorrente efectivamente condicionou a realização de um determinado exame ao pagamento de taxas moderadoras que o utente em causa teria em dívida.
D)– Independentemente da existência de maiores ou menores condições económicas, a Arguida não poderia em caso algum fazer condicionar a realização do exame prescrito ao pagamento de taxas moderadores que o utente tivesse em dívida num determinado momento.
E)– O acesso aos cuidados de saúde necessários não pode servir de instrumento à cobrança de taxas moderadoras em dívida.
F)– Nada de há de impreciso ou indeterminado nas normas incriminatórias em causa, porquanto as mesmas são suficientemente claras no que respeita à conduta proibida e punível. 
G)– Com efeito, e reportando-nos agora ao caso dos autos, a lei é clara a proibir e punir uma prática, no sentido de acto ou conduta, de rejeição (como foi o caso, porquanto o utente não teve acesso ao exame em causa) infundada (ou seja, sem base factual, legal ou regulamentar para o efeito) de acesso a cuidados de saúde (no caso dos autos um meio complementar de diagnóstico e terapêutica).
H)– Não merece provimento a invocada inconstitucionalidade nem, consequentemente, a desaplicação das normas com tal fundamento;
I)– A contraordenação consumou-se no momento que a Recorrida condicionou a realização do exame ao pagamento das taxas moderadoras em dívida.
J)– A necessidade do exame, para o que interessa nos presentes autos, foi verificada em momento anterior à prática da contraordenação, mais concretamente no momento da sua prescrição por profissional de saúde habilitada.
K)– No momento da sua prescrição, a avaliação clínica subjacente determinou a realização daquele exame, sendo esse é o momento determinante para a verificação da necessidade ou não da realização do exame.
L)– Não estamos, por isso, perante a prática da contraordenação sob a forma tentada, não se justificando, consequentemente, qualquer atenuação especial.
Termos em que, com o sempre mui Douto suprimento de V. Exas. deve o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a Sentença recorrida nos seus exatos termos.”
Subidos os autos a este Tribunal, a Srª Procuradora Geral Adjunta teve vista nos autos pugnando por
Os autos foram a vistos e à conferência.
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II–Das questões a tratar e da decisão recorrida
O objecto do recurso deve ater-se às conclusões apresentadas pelo recorrente (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, in www.dgsi.pt : “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…)”, sem prejuízo, obviamente da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95).
Analisadas as conclusões formuladas pelo recorrente temos que as mesmas são:
– omissão por parte do Tribunal recorrido da matéria de facto que descreve os termos da interpelação do utente pelo CHL e da prática que implementou (conclusão 23ª) e omissão da fundamentação “os pontos de facto que evidenciam que a recorrente sempre prestou cuidados de saúde independentemente da interpelação ao utente para pagamento das taxas moderadoras em dívida “(conclusão 24ª) [conclusões 18ª a 27ª];
– violação dos princípios da legalidade, da tipicidade e da segurança por a contra ordenação pela qual foi condenada constituir norma em branco (conclusões 28ª a 36ª):
– a existência de fundamento legítimo de recusa (conclusões 37ª e 38ª);
– a aplicação da coima pelo mínimo (conclusões 39ª a 44ª).
Antes de analisarmos as questões em concreto recordaremos os factos provados e não provados e a respectiva fundamentação.
Assim deu-se como provado que (transcrição):
1.– O Centro Hospitalar de Leiria, E.P.E (doravante, CHL) é titular do NIPC 509822932, tem sede na Rua das Olhalvas, em Leiria, encontra-se inscrito no SRER da ERS, sob o n.º 21485, desde 30 de Março de 2012 e é responsável por três estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde do SNS, que se passam a identificar:
a)- Hospital de Santo André, que está registado, no SRER da ERS, sob o n.º 103454;
b)- Hospital Distrital de Pombal, que está registado, no SRER da ERS, sob  o n.º 106574;
c)- Hospital Bernardino Lopes de Oliveira de Alcobaça, que está registado,  no SRER da ERS, sob o n.º 125858.
2.– Em 3 de Novembro de 2014, no âmbito da consulta hospitalar de medicina 1, efetuada no CHL, foi prescrito ao utente JC... o exame “broncofibroscopia com lavado”;
3.– À data, o CHL não realizava o exame em questão, mas encaminhava os utentes para outros estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde, sendo que, in casu, estava previsto que o exame se realizasse no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, E.P.E. (doravante CHUC); 
4.– Para o efeito, era emitido um termo de responsabilidade em nome do utente visado, dirigido ao estabelecimento de saúde executante;
5.– Caso o exame se realizasse, o CHL teria de pagar o respetivo preço ao CHUC, de acordo com as tabelas de preços das instituições e serviços integrados no SNS que fosse aplicável na data em questão;
6.– Em 21/01/2015, o CHL enviou carta ao utente JC... com o seguinte teor, designadamente, utilizando o modelo que costumava utilizar para situações similares: “O Serviço de Gestão de Doentes no âmbito da emissão de Termo de Responsabilidade para a realização de exame de “broncofibroscopia com lavado”, constatou, após consulta dos nossos registos informáticos, que está por liquidar a importância de 80.62 €, relativos a taxas moderadoras em dívida (...).
“Desta forma, solicita-se a V. Exa. a regularização da dívida em referência para o normal prosseguimento do processo.
“Informamos ainda que, caso necessário, poderá requerer ao Serviço de Gestão de Doentes o pagamento faseado da importência em dívida ou, em alternativa, caso existam dificuldades de pagamento excepcionais. Poderá solicitar o apoio do Serviço Social do HSA (...).”
7.– Desde a data da prescrição do exame de broncofibroscopia com lavado (na consulta de dia 3 de Novembro de 2014) até à consulta seguinte, o utente JC... não realizou o exame em questão porquanto o CHL perante a falta de pagamento das taxas em dívida por parte do utente não enviou o termo responsabilidade para o CHUC:
8.– No dia 15 de junho de 2015, o utente JC... foi então à consulta de medicina 1 e foi informado pela médica que não tinha feito o exame de broncofibroscopia com biópsia e sedação, que havia sido prescrito no dia 3 de Novembro de 2014, porquanto o mesmo teria taxas moderadoras em dívida ao CHL;
9.– As taxas moderadoras a que o CHL se reportava eram relativas a cuidados de saúde prestados ao utente, no período compreendido entre 24 de abril de 1995 e 2 de outubro de 2001, no valor de 80,62 EUR; 
10.– Em 26 de Novembro de 2015, o utente JC... efectuou um pagamento no valor de € 44,41 referente a taxas moderadoras por cuidados de saúde prestados no período compreendido entre 24 de Abril de 1995 e 30 de Maio de 1997;
11.– Em 25 de Julho de 2016, o utente efetuou novo pagamento no valor de € 31,22, relativo a taxas moderadoras por cuidados de saúde prestados no período compreendido entre 21 de Outubro de 1997 e 25 de Março de 2000;
12.– Em 24 de Janeiro de 2017, o CHL emitiu um aviso para pagamento de taxas moderadoras, em nome do utente JC..., no valor total de € 29,99, no qual eram indicadas as seguintes taxas moderadoras:
a)- Taxa moderadora no valor de €4,99, relativa a cuidados de saúde prestados em 2 de Outubro de 2001;
b)- Taxas moderadoras no valor de €12,50, por cuidados de saúde prestados em 22 de Setembro de 2015;
c)- Taxas moderadoras no valor de €12,50, por cuidados de saúde prestados em 7 de Março de 2016;
13.– Desde a data em que foi prescrito o exame de broncofibroscopia com lavado (em 3 de Novembro de 2014), o utente JC... continuou a ser seguido na consulta hospitalar de medicina 1 no CHL, tendo tido consultas nas seguintes datas:
a)- 15 de Junho de 2015;
b)- 25 de Julho de 2016;
c)- 5 de Junho e 27 de Novembro de 2017;
d)- 26 de Fevereiro e 3 de Setembro de 2018;
e)- 4 de Março de 2019;
14.– Depois de 03/11/2014 — data em que foi prescrito o exame de broncofibroscopia pelo médico do serviço de Medicina I - o utente JC... teve consultas de Pneumologia no CHL nas seguintes datas:
a)- 24/04/2015; 
b)- 18/08/2015;
c)- 02/12/2015;
d)- 18/05/2016;
e)- 03/11/2017;
f)- 07/06/2018;
g)- 01/03/2019;
15.– Desde a data em que foi prescrito o exame de broncofibroscopia com lavado (em 3 de novembro de 2014), o utente JC... teve acesso, no CHL, a exames de imagiologia (TC do Toráx), patologia clínica, espirometrias, provas de broncodilatação e oximetrias de pulso;
16.– Na consulta de pneumologia de 24/04/2015, foi prescrito ao utente designadamente o exame de PSG nível II o qual também teve que ser requisitado a serviços externos ao CHL e acabou por ser realizado pelo utente em 29/06/2015;
17.– Desde Outubro de 2015, o CHL deixou de requisitar a realização de quaisquer exames de broncofibroscopia com lavado, a entidades externas;
18.– O termo de responsabilidade, inicialmente emitido para realização do exame de broncofibroscopia com lavado no CHUC foi anulado pelo CHL em 26 de Fevereiro de 2016;
19.– Nas consultas posteriores à consulta de 3 de Novembro de 2014 e até à presente data, não foi prescrito ao utente, no CHL, novo exame de broncofibroscopia com lavado;
20.– De acordo com o procedimento internamente instituído no CHL, desde, pelo menos, 15 de Março de 2006, quando exista uma requisição para prestação de cuidados de saúde a um utente a realizar numa entidade externa, é previamente verificado se este tem valores em dívida;
21.– Em caso afirmativo, e ainda segundo o referido procedimento interno, é remetido ao utente visado um ofício com os seguintes dizeres: 
“(...) O Serviço de Gestão de Doentes no âmbito da emissão de Termo de Responsabilidade para realização de exame de constatou, após consulta dos nossos registos informáticos, que está por liquidar a importância de euros relativos a taxas moderadoras em dívida. cujo aviso se anexa.
“Desta forma, solicita-se a V. Ex.ª a regularização da dívida em referência para o normal prosseguimento do processo.
“Informamos ainda que, caso seja necessário, poderá requerer ao Serviço de Gestão de Doentes o pagamento faseado da importância em dívida ou, em alternativa, caso existam dificuldades de pagamento excepcionais, poderá solicitar o apoio do Serviço Social dc HSA”)
22.– O sobredito procedimento interno decorre do disposto no ponto 6 da circular informativa do CHL n.º 21, de 15 de Março de 2006, com o seguinte teor: “Todas as prestações e serviços proporcionados aos utentes que tenham taxas moderadoras em dívida, ficam sujeitos ao seu prévio pagamento, a confirmar pelo SGD [Serviço de Gestão de Doentes] nos respectivos suportes de requisição (pedidos de relatórios, ajudas técnicas e prestações análogas, MCDT [Meios Completares de Diagnóstico e Terapêutica] a realizar no exterior, etc.).”
23.– A circular acima transcrita teve como destinatários os serviços de prestação de cuidados, o serviço de gestão de doentes, o serviço de gestão financeira e a comissão de informática do CHL;
24.– Na data em que foi proferida a decisão administrativa, a circular informativa do CHL n.º 21 de 15 de Março de 2006 permanecia ainda em vigor;
25.– Os ofícios dirigidos aos utentes para comunicar a existência de taxas moderadoras em dívida, são enviados por correio normal;
26.– O CHL não fica com comprovativo do envio dos referidos ofícios aos utentes; ao invés, apenas se os ofícios forem devolvidos ao CHL pelos CTT é que os serviços do CHL averiguam a ocorrência de eventuais problemas no envio, designadamente, alterações de morada e repetem o envio da carta; 
27.– O CHL não tem forma de verificar, caso a caso, o pagamento de taxas moderadoras, daí pedir aos utentes que contactem o serviço de gestão de doentes para que desbloqueie o termo de responsabilidade que estiver pendente desse pagamento;
28.– Nas hipóteses em que os utentes contactam o CHL a comunicar impossibilidade de pagamento de taxas moderadoras, a questão é analisada por um membro do Conselho de Administração do CHL que, por regra, determina o andamento do processo e a realização dos exames no exterior, mesmo sem a regularização das taxas moderadoras;
29.– O CHL não teve o cuidado e a diligência que lhe era exigida, porquanto, em concreto, deveria saber que não podia fazer depender a realização do exame que havia sido prescrito ao utente JC... do pagamento de taxas moderadoras;
30.– No ano de 2015, o CHL teve um prejuízo fiscal de 3.859.827,49 EUR;
31.– No ano de 2016, o CHL teve um prejuízo fiscal de 2.177.597,80 EUR;
32.– Em 30 de Novembro de 2017, os resultados negativos do CHL acumulados no exercício computavam-se em - 2.218.078,94 EUR;
33.– Não são conhecidos antecedentes contraordenacionais do CHL no que se refere à prática sancionatória da ERS.
b)- Factos Não Provados:
Não se considerou provado que:
1.– O arguido sempre actuou com a convicção de que não praticava qualquer acto de efectiva limitação no acesso a cuidados de saúde nem qualquer prática restritiva ou discriminatória de utentes.
Consigna-se que a demais matéria quer constante da acusação, quer alegada pelo Arguido que não se compreendeu nem na matéria dada como provada nem na não provada se reporta a matéria considerada pelo tribunal como irrelevante para a boa decisão da causa, matéria de direito, de cariz meramente conclusivo ou meras remissões para meios de prova que não relevam para efeitos de subsunção dos factos ao direito.
Motivação da decisão de facto:
A fim de formar a sua convicção, o tribunal baseou-se na análise ponderada e crítica do conjunto de toda a prova produzida , de molde a reconstituir a factualidade ora em causa, tendo por base o princípio da plena jurisdição do presente tribunal, ínsito no disposto no n.º 3 do artigo 67.º dos Estatutos da Entidade Reguladora da Saúde, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22.08.
Numa primeira aproximação, importa mencionar que a existência de dissidio entre a Recorrente e a ERS acerca dos factos que devem ser considerados provados e que resultam da prova produzida é mais aparente do que efectiva, considerando-se que, no fundo, inexiste sobre a imagem global da factualidade uma verdadeira divergência, de acordo com a análise atenta das peças processuais que foram juntas nos autos.
Desta forma, no que tange aos factos n.ºs 1 a 5, primeira parte do facto n.º 7 a 9 a 13, 15, 18 a 28 (excepto no facto 20, a questão do exame ser requisitado a entidade externa) e 30 a 33, o tribunal considerou a factualidade dada como provada em sede da decisão administrativa, junta a fls. 178- 192 verso dos autos, a qual não foi colocada em questão pela Arguida em sede de requerimento de interposição de recurso de fls. 279-304, sendo certo que tal factualidade já se encontrava devidamente comprovada em sede de fase administrativa.
Assim, foram também tidos em consideração os seguintes documentos juntos nos autos, cuja validade e fidedignidade nunca foi colocada em causa:
– a informação constante do sítio eletrónico “Portal MJ - Publicações On-Line de Acto Societário”, junta a fls. 18, 19 e 171 dos autos e informação constante do SRER da ERS, junta a fls. 20 a 28 e 172 a 175 dos autos, documentos estes relevantes para se considerar comprovados os factos n.ºs 1 e 33. 
– carta de fls. 3 enviada pela Recorrente ao utente João da Costa, onde confirma a existência de um exame de broncofibroscopia com lavado, que seria realizado no “CHUC”, atestando ainda que tal terá sido solicitado em consulta de 03.11.2014 e que foi remetida carta ao utente datada de 21.01.2015, sendo expressamente referido que essa carta informava “que o envio do respectivo termo de responsabilidade estava pendente do pagamento das taxas que se encontram em dívida (...)” - vide factos n.ºs 2, parte do n.º 3, 4 e 9;
–  carta de fls. 8 a 17 (expediente de entrada n.º EXP/3897/2017), da Recorrente para a ERS, em sede da qual acaba por confirmar a data da primeira consulta ao utente em causa, o exame prescrito, a necessidade de tal exame ser realizado por entidade externa, o facto do utente ter sido informado “de que o envio do termo de responsabilidade estava pendente por taxas moderadoras em dívida” e os respectivos períodos e montantes a que se reportavam, os pagamentos que foram realizados pelo utente posteriormente, as consultas de medicina I em que o utente foi seguido em datas subsequentes, a data de anulação do termo de responsabilidade, o facto de não voltar a ter sido prescrito outro exame de broncofibroscopia com lavado ao mesmo utente em consultas posteriores e o procedimento que é adoptado pela Recorrente sempre que existem requisições para prestação de serviços a utentes (vide factos provados n.ºs 2 a 4, 7 a 13, 18 a 20).
– facturas recibos de fls. 11 e 12 e emissão de aviso de fls. 13 (factos n.ºs 10 a 12);
– Circular Informativa de fls. 14-15, da qual se extrai os factos n.ºs 20, 22 e 23;
– declarações de IRC e demonstrações de resultados de fls. 86-100 (factos n.ºs 30 e 32);
–  email de fls. 144 e anexo de fls. 145, onde é enviada às várias equipas do Recorrente o modelo de ofício a enviar aos utentes com taxas moderadoras em dívida e lhes tenham sido prescritos, nomeadamente, exames no exterior (vide facto n.º 20 e 21);
– registos de consultas e exames de fls. 146-168 realizados ao utente (facto n.º 13 e 15);
Para além disso, foi ainda considerado o teor do depoimento da testemunha JS..., o qual assentou a sua razão de ciência no facto de ser trabalhador do Recorrente, desde 01.04.2009, exercendo as funções de administrador hospitalar, na direcção do serviço de gestão de doentes, o que lhe confere, de acordo com critérios de normalidade, um conhecimento bastante profundo acerca das questões suscitadas nos autos.
Nessa senda, a testemunha, no que tange aos factos supra descritos, confirmou os constantes dos n.ºs 2 a 5, primeira parte do facto n.º 7, 18 a 22 e 24 a 28.
Quanto aos demais factos foram atendidas as seguintes provas:
No que se reporta ao facto n.º 6, o mesmo resultou da conjugação da carta explicativa de fls. 8 a 17 (expediente de entrada n.º EXP/3897/2017), da Recorrente para a ERS, com o teor do modelo de fls. 145 e ainda com o teor do depoimento da indicada testemunha, sendo certo que o próprio Recorrente, em sede de defesa, defende exactamente o que se mostra provado, como sendo o envio ao utente do modelo que havia sido divulgado junto dos serviços do Recorrente quando existia taxas moderadoras em dívida e eram prescritos exames junto de entidades externas.
No que tange à segunda parte do facto n.º 7 (que corresponde à situação do utente não ter realizado o exame de broncofibroscopia com lavado desde a primeira até à segunda consulta porque tão somente, perante a falta de pagamento das taxas em dívida por parte do utente, o Recorrente não enviou o termo responsabilidade para o CHUC), apesar de parecer que o Recorrente impugna esse motivo de não realização do exame, salvo melhor opinião, tal resulta à saciedade de toda a prova produzida, incluindo das primeiras explicações dadas pelo próprio Recorrente, som se verá.
Desde logo o expediente de entrada n.º EXP/3897/2017, junto a fls. 8 a 17 dos autos, consistente numa nota explicativa emitida pela própria Vogal Executiva do Recorrente para a ERS, declara expressamente que o utente foi informado “de que o envio do termo de responsabilidade estava pendente por taxas moderadoras em dívida’’ e que sempre que existem casos de utentes com valores em dívida, o utente é avisado e a respectiva requisição fica pendente a aguardar a regularização (ponto 3).
Ora, não é preciso lançar complexos critérios interpretativos sobre tais asserções para se perceber que, em vez de enviar o termo de responsabilidade para efeitos de prossecução do exame a entidade externa, o Recorrente retinha o termo de responsabilidade, informava o utente acerca das dívidas e apenas enviava o dito termo, no caso dessas mesmas dívidas serem liquidadas, o que se traduz em fazer depender a realização do exame do pagamento de taxas.
Também a própria Circular Informativa de fls. 14 e 15 é esclarecedora quando no ponto 6 diz expressamente que “Todas as prestações e serviços proporcionados aos utentes que tenham taxas moderadoras em dívida, ficam sujeitos ao seu prévio pagamento, a confirmar pelo SGD
E se dúvidas existissem, o próprio modelo de carta que é enviado aos utentes e que também foi adoptado na situação do utente em causa nestes autos, conforme a própria Arguida refere, é contundente para que se possa concluir nos moldes que se derem como provados.
Com efeito, na carta é expressamente referido que o processo do termo de responsabilidade apenas prossegue caso exista a regularização das dívidas detectadas - vide segundo parágrafo da carta.
A própria testemunha acima mencionada também confirma esse procedimento da Recorrente.
Também estes meios de prova foram cruciais para dar como provado o segmento do facto provado n.º 20, consistente "numa entidade externa’’, já que dos mesmos se extrai que o procedimento do Recorrente que se vem aludindo apenas era realizado no caso dos exames ou afins terem de ser solicitados a entidades externas.
No que se reporta aos factos n.ºs 14 e 16, o tribunal ateve-se nos documentos de fls. 305-317 dos autos, os quais também não foram colocados em causa.
O facto n.º 17 resulta do depoimento da mesma testemunha JS..., que o confirmou.
Finalmente, no que se reporta aos factos dados como provados atinentes ao elemento subjectivo (n.º 29), há que atentar para a actividade que o Recorrente se propôs a exercer, o que desde logo faz recair sobre si um especial dever de informação relativamente ao cumprimento das normas dirigidas particularmente à sua actividade.
O circuito económico e laboral em que se inseriu o Recorrente faz com que tenha que se informar acerca dos normativos que contendem com a sua actividade, a fim de garantir o integral cumprimento das normas em causa. Estão aqui em causa juízos de “ética profissional” ou “ética nos negócios”, subjacentes a uma culpa ético-profissional, em que é maior a exigibilidade de conhecimentos pelos profissionais que são os destinatários directos das normas jurídicas, pelo que o tribunal concluiu no mesmo sentido que a entidade administrativa, no sentido de não terem sido empreendidas pelo Recorrente todas as cautelas que lhe eram exigíveis e estavam ao seu alcance a fim de não cometer os ilícitos em causa.
Acresce ainda os argumentos que importam ser aduzidos por referência ao facto de cariz subjectivo que se deu como não provado.
Com efeito, quanto ao facto de que o Recorrente sempre actuou com a convicção de que não praticava qualquer acto de efectiva limitação no acesso a cuidados de saúde nem qualquer prática restritiva ou discriminatória de utentes, o mesmo teve de ser necessariamente considerado como não provado.
Adrede, estamos a falar de normas com assento constitucional que determinam, de forma expressa, que inexista qualquer tipo de impedimento no acesso universal e equitativo à prestação de cuidados de saúde no SNS, nomeadamente não podendo ser rejeitados tratamentos por motivos económicos. Esses normativos são densificados pelos diplomas que infra se identificarão em sede da motivação de direito, os quais são diplomas que não são, de todo, recentes e que têm um alvo muito especifico que é precisamente entidades que se integram no SNS, como é o caso do próprio Recorrente.
Ora, qualquer pessoa de médio entendimento, ao tomar conhecimento acerca das normas que estão em causa e que implicam que não possa existir um constrangimento na prestação de cuidados de saúde por força de motivos, designadamente, económicos, consegue perceber facilmente, sem grande esforço interpretativo, que ao se fazer depender a realização de determinados exames do pagamento de eventuais taxas moderadoras ou afins que se encontrem em dívida, se está a condicionar um acesso universal ao SNS.
De tal forma que assim é, que o próprio utente que está em causa nos autos, JC..., apresentou a reclamação que consta de fls. 2.
Ora, se isto, de acordo com critérios de experiência comum, é facilmente apreendido por qualquer cidadão cuja literacia nem sequer precisa de ser aprofundada, muito mais teve de ter essa consciência o Recorrente, através dos seus Representantes, que necessariamente maior percepção têm acerca dos princípios que subjazem à actividade exercida pelo Recorrente.
É certo que se poderia argumentar que caso a Recorrente tivesse consciência dessa ilicitude, não se atreveria a criar uma circular e a enviar cartas para os utentes onde faz exactamente depender a realização da prestação de cuidados médicos no exterior do pagamento das dívidas preexistentes. Ainda assim consideramos e isso está subjacente ao depoimento da testemunha JS..., que o intuito primordial era pressionar os utentes a pagar, isso mesmo porque o próprio Recorrente também é pressionado para proceder à cobrança das taxas moderadoras pela tutela. O procedimento adoptado teria a intensão principal de constranger os utentes que necessitavam de, nomeadamente, exames prescritos por médicos e perante essa necessidade fazer com que os mesmos se consciencializassem que deveriam pagar.
Todavia, esse procedimento de consciencialização dos utentes jamais poderia ser realizado mediante a paralisação dos termos de responsabilidade, até que fossem pagas pelos utentes as dívidas anteriores. Aquilo que o Recorrente, um Hospital que se encontra inscrito no SRER da ERS já desde 30 de Março de 2012 e é responsável por três estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde do SNS, não poderia deixar de ignorar, por todos os motivos que já ficaram expostos, designadamente porque qualquer entidade que integre o SNS terá de ser conhecedora, de acordo com critérios de normalidade, dos princípios, designadamente constitucionais, que regem a sua actividade, aquilo que o Recorrente não poderia deixar de ignorar, dizíamos, era que estava a obstar o acesso ao SNS por motivos económicos, embora num intento secundário. 
Nesta conformidade, consideramos que o Recorrente não pôde deixar de prever a realização do ilícito, não tendo observado o cuidado que, de forma objectiva, lhe era exigível, existindo uma atitude pessoal de quem actuou em seu nome descuidada ou leviana perante o dever-ser jurídico- contraordenacional.”
*
III–Do Direito
Como é sabido, e resulta do disposto nos artº 368º e 369º ex-vi artº 424º nº 2 , todos do Código do Processo Penal, aplicável ao regime das contraordenações, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.
Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto, e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada (matéria que não tem aplicação em sede contraordenacional por este Tribunal conhecer de Direito) e depois dos vícios previstos no artº 410º nº 2 do Código do Processo Penal.
Por fim, das questões relativas à matéria de Direito.
Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas pelo recorrente.
A primeira questão prende-se com o facto do recorrente referir que na decisão recorrida não foram considerados factos que deveriam ter sido.
Ora, neste particular o recorrente parece esquecer ou querer esquecer que este Tribunal da Relação é, em matéria contraordenacional, a última instância e que, por tal via, conhece apenas e só de matéria de Direito (artº 75º nº 1 do RGCO). Apenas os vícios referidos no artº 410º nº2 do C.P.P. (vícios que são do conhecimento oficioso e que devem ser conhecidos nesta sede contraordenacional como referido no artº 74º nº 4 do RGCO) podem ser conhecidos.
Ora, lida a decisão recorrida não vislumbramos nenhum dos vícios referidos no dito art.º 410º nº 2 do CPP (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; erro notório na apreciação da prova) nem o recorrente os invoca.
Pelo exposto improcede o recurso nesta parte mantendo-se, na íntegra, a factualidade constante da decisão recorrida.
O recorrente refere, como segunda questão a apreciar, o facto da decisão recorrida atentar contra os princípios da legalidade, da tipicidade e da segurança por a contraordenação pela qual foi condenada constituir norma em branco (conclusões 28ª a 36ª).
Aceita-se como argumento que todas as normas, estabelecidas em remissão umas das outras, são complicadas, que a simples leitura de um diploma não assegura a percepção do verdadeiro alcance do que se pretende.
Contudo, a recorrente não é um qualquer utente que se coloca numa sala de espera de um hospital e se põe a ler os panfletos ali existentes. E mesmo o utente visado no caso concreto, sem grande esforço, percebeu que os seus direitos estavam a ser atropelados a pontos de se queixar. Dificilmente se compreende como pode a recorrente não saber as normas que a regem.
E se não as abe por se tratarem de normas em branco é caso para se perguntar afinal o que anda a fazer ?
A recorrente é um Centro Hospitalar. As normas aqui em presença são de natureza técnica e mal se compreende a afirmação da recorrente de as considerar normas em branco (que não são).
O que a recorrente fez foi simples: condicionou a oferta de um exame médico tido por necessário por um médico ao pagamento de dívidas anteriores referentes a taxa moderadoras.
E para além disso ao pagamento de quantias que estavam prescritas e que não poderiam ser obtidas coercivamente se a prescrição fosse invocada, não tendo a recorrente como um centro hospitalar. A recorrente tem como função prestar cuidados de saúde. Não cobrar dívidas e muito menos, ao arrepio dos mais básicos preceitos constitucionais, fazer depender cuidados de saúde do pagamento de dívidas. Em Portugal, por muito pobres que sejamos em comparação com outros, ninguém, mas ninguém mesmo, fica à porta de um hospital porque não tem dinheiro. Ninguém, mas ninguém mesmo, pode ver os seus cuidados de saúde dependentes do pagamento da factura. Tenha muitas dívidas, seja alto, baixo, magro, novo, velho, boa ou má pessoa, branco, preto ou de todas as cores, rico ou pobre nunca, por nunca, os cuidados de saúde podem faltar. Se faltarem para um é porque faltam para todos. Isto é universalidade e igualdade.
Mal anda a recorrente senão percebe isto.
Mas se não percebe iremos explicar …
A al. b) do n.º 2 do artigo 61.º dos Estatutos da ERS (DL n.º 126/2014, de 22 de Agosto) prescreve que constitui contraordenação “a violação das regras relativas ao acesso aos cuidados de saúde:
“i)- A violação da igualdade e universalidade no acesso ao SNS, prevista na alínea a) do artigo 12.º;
“ii)- A violação de regras estabelecidas em lei ou regulamentação e que visem garantir e conformar o acesso dos utentes aos cuidados de saúde, bem como práticas de rejeição ou discriminação infundadas, em estabelecimentos públicos, publicamente financiados, ou contratados para a prestação de cuidados no âmbito de sistemas e subsistemas públicos de saúde ou equiparados, nos termos do disposto nas alíneas a) e b) do artigo 12.º’’.
O direito à protecção da saúde está consagrado no artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), do qual decorre, nomeadamente, que tal direito é realizado através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito, sendo que incumbe ao Estado garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação (n.º 2, al. a) e n.º 3, al. a)).
Nessa sequência, porque o direito à saúde está dependente de uma intervenção legislativa, a Lei de Bases da Saúde (à data da comissão dos factos a Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto e, na data presente, a Lei n.º 95/2019, de 4 de setembro) concretiza o direito à saúde, em conformidade com os parâmetros constitucionais. 
Decorria da Base XXIV da anterior Lei 48/90 que “o Serviço Nacional de Saúde caracteriza-se por.
“a)- Ser universal quanto à população abrangida;
“b)- Prestar integradamente cuidados globais ou garantir a sua prestação;
“c)- Ser tendencialmente gratuito para os utentes, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos;
“d)- Garantir a equidade no acesso dos utentes, com o objectivo de atenuar os efeitos das desigualdades económicas, geográficas e quaisquer outras no acesso aos cuidados;
“e)- Ter organização regionalizada e gestão descentralizada e participada.”
A Lei actualmente em vigor mantém, exactamente os mesmos direitos (aliás de génese constitucional), prescrevendo na Base 20 nº 2:
“- O SNS pauta a sua atuação pelos seguintes princípios:
a)- Universal, garantindo a prestação de cuidados de saúde a todas as pessoas sem discriminações, em condições de dignidade e de igualdade;
b)- Geral, assegurando os cuidados necessários para a promoção da saúde, prevenção da doença e o tratamento e reabilitação dos doentes;
c)- Tendencial gratuitidade dos cuidados, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos;
d)- Integração de cuidados, salvaguardando que o modelo de prestação garantido pelo SNS está organizado e funciona de forma articulada e em rede;
e)- Equidade, promovendo a correção dos efeitos das desigualdades no acesso aos cuidados, dando particular atenção às necessidades dos grupos vulneráveis;
f)- Qualidade, visando prestações de saúde efetivas, seguras e eficientes, com base na evidência, realizadas de forma humanizada, com correção técnica e atenção à individualidade da pessoa;
g)- Proximidade, garantindo que todo o país dispõe de uma cobertura racional e eficiente de recursos em saúde;
h)- Sustentabilidade financeira, tendo em vista uma utilização efetiva, eficiente e de qualidade dos recursos públicos disponíveis;
i)- Transparência, assegurando a existência de informação atualizada e clara sobre o funcionamento do SNS.”
Se dúvidas alguma vez existiram (e não existiram) sobre os direitos dos utentes do SNS, designadamente o de fazer depender os cuidados de saúde o pagamento de dívidas ao SNS, as mesmas só poderiam advir de uma leitura desconforme aos textos legais e Constitucional.
Como justamente se salientou na decisão recorrida “A universalidade do Serviço Nacional de Saúde pressupõe que todos os cidadãos, sem excepção, estejam sob a égide das políticas de promoção e protecção da saúde e possam aceder aos serviços prestadores de cuidados de saúde.
(…)  o artigo 4.º da Lei n.º 15/2014, de 21 de Março estabelece o seguinte.
“1– O utente dos serviços de saúde tem direito a receber, com prontidão ou num período de tempo considerado clinicamente aceitável, consoante os casos, os cuidados de saúde de que necessita.
“2– O utente dos serviços de saúde tem direito à prestação dos cuidados de saúde mais adequados e tecnicamente mais correctos.
“3– Os cuidados de saúde devem ser prestados humanamente e com respeito pelo utente.”
No que tange à característica da tendencial gratuitidade, tal implica que seja constitucionalmente admissível a cobrança de determinados valores que possuam uma função de moderação do consumo de cuidados de saúde, tal como prosseguido pelas taxas moderadoras, desde que não seja vedado o acesso a esses cuidados por razões económicas, nem sejam postas em causa as situações de isenção (e de dispensa) do pagamento de taxas moderadoras legalmente previstas (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 731/95, de 14 de Dezembro, in www.tribunalconstitucional.pt  ).
Nestes termos e no que importa realçar, é que o Serviço Nacional de Saúde deverá estar sujeito a regras que garantam que um qualquer utente obterá, em qualquer situação, os cuidados de saúde que efectivamente necessite e que sejam adequados à satisfação das necessidades em causa, necessidades essas que devem ser aferidas e igualmente satisfeitas tendo por base o estado da arte e da técnica.
Como salientam Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.a ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1993, pag. 342-343), “as características do serviço nacional de saúde (SNS) contidas no texto constitucional vinculam directamente as entidades (sobretudo legislativas e administrativas) que têm o dever constitucional de criar este serviço. Ele terá de ser universal, ou seja dirigido à generalidade dos cidadãos; geral, isto é, deve abranger todos os serviços públicos de saúde e todos os domínios e prestações médicos; tendencialmente gratuito, tendo as pessoas direito a este serviço sem qualquer encargo ou através do pagamento de «taxas», as quais, de qualquer forma, não podem impedir o acesso ao SNS em virtude de condições económicas e sociais. (...) A gratuitidade tendencial significa rigorosamente que as prestações de saúde não estão em geral sujeitas a qualquer retribuição ou pagamento por parte de quem a elas recorra, pelo que as eventuais taxas (v. g. as chamadas «taxas moderadoras») são constitucionalmente ilícitas se, pelo seu montante ou por abrangerem as pessoas sem recursos, dificultarem o acesso a esses serviços’’.
Por outra via e como de forma impressiva se refere no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 731/95, de 14 de Dezembro, in www.tribunalconstitucional.pt  “o artigo 64.º, n.º 2, alínea a), da Lei Fundamental não veda, pois, ao legislador a instituição de «taxas moderadoras ou outras», desde que estas não signifiquem a retribuição de um «preço» pelos serviços prestados, nem dificultem o acesso dos cidadãos mais carenciados aos cuidados de saúde.’’
Como salienta com propriedade o Ministério Público na resposta que apresentou “Como concreta destinatária da norma do art. 61º, nº 2, b), i) deste DL 126/2014, de 22/08, cabe à arguida, e não ao utente, ter presente aquele conceito de “universalidade no acesso". Nesta acepção, sendo a arguida destinatária da norma, como entidade que exerce atividade profissional e exclusiva de prestação de cuidados de saúde, integrada na rede do SNS, e considerando que a expressão “universalidade no acesso” é apreensível até pelos “gentios”, é forçoso concluir que não nos deparamos com um conceito indeterminado que implique para a arguida dificuldade entre distinguir o certo do errado, o que é legal do que é ilegal. Em suma não implica para a arguida qualquer dúvida quanto à apreensão do sentido e alcance contido no tipo de proibição.
(…)  importa relembrar que o TC já validou o uso de cláusulas gerais, de conceitos normativos e até indeterminados na definição dos tipos contraordenacionais, sem que tal implique afronta ao princípio da legalidade (v. 3o e 4o §§ do ponto 6. da fundamentação do Ac. do TC 76/2016 citado no 1º § da p. 26 da sentença ), princípio que no contexto penal encontra guarida na norma do art. 29º, nºs 1, 3 e 4 da Constituição. Este princípio assegura que não poder haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia, estrita e certa e por isso tem a função preservar os cidadãos do arbítrio e dos excessos do Estado- quando exerce o poder de punitivo. O princípio da tipicidade cumpre a exigência de determinabilidade do conteúdo do tipo.
No caso das contraordenações estes princípios são menos exigentes, desde que seja respeitado um mínimo de determinabilidade do tipo, como sublinhado no ponto 7. da fundamentação do mesmo Ac. do TC 76/2016. Este mínimo de determinabilidade será respeitado, e por isso satisfará a exigência de lei certa, «se for razoavelmente possível a sua concretização através de critérios lógicos, técnicos ou da experiência que permitam prever, com segurança suficiente, a natureza e as características essenciais das condutas constitutivas da infração tipificada» (idem).
O simples facto de o tipo contraordenacional pp pelo art.º 61º, nº 2, b), i) do DL 126/2014, de 22/08, «dever ser lido em conjugação com outras normas presentes no mesmo diploma não viola, por si só, qualquer princípio constitucional. Trata-se de uma técnica de tipificação dos ilícitos contraordenacionais através de remissões materiais, em que o tipo sancionatório remete para deveres tipificados no próprio Código. Neste contexto, ao contrário da generalidade dos tipos incriminadores que preveem condutas proibidas e, em imediata conexão com elas, uma pena, a técnica legislativa no Direito de mera ordenação social não tem de obedecer a este paradigma rígido da tipicidade. Pelo contrário, nesta área as funções heurística e motivadora das normas não se identificam com a norma de sanção, mas sim com a norma de conduta. Neste sentido, algumas funções da tipicidade penal são, no Direito de mera ordenação social, assumidas pelas próprias normas substantivas que impõem deveres, (...). Assim, a técnica de tipificação no Direito de mera ordenação social pode inclusivamente ser mais precisa para o destinatário da norma, já que descreve expressamente as normas de conduta (nos ‘pré-tipos’), ao contrário do que acontece nos tipos penais onde as normas de conduta surgem, na generalidade dos casos, apenas implícitas na matéria da proibição". Em suma, “a exigência de tipicidade não tem no Direito de mera ordenação social de obedecer à mesma técnica dos tipos penais incriminadores" (Frederico da Costa Pinto, O novo regime dos crimes e contraordenações no Código dos valores mobiliários, Almedina, 2000, p. 28)» - cfr. 9.2. da fundamentação do Ac. do TC 85/2012.
Ainda que se esteja perante um conceito indeterminado, é assim de concluir que não viola nenhum preceito ou princípio constitucional a utilização, pelo legislador, no domínio contraordenacional, de “normas em branco”, desde que, como é o caso, o núcleo essencial da ilicitude decorra do tipo legal em causa (no sentido apontado cfr. ainda os Acs. do TC 115/2008, 78/13, 612/14, 138/2016, Decisão Sumária 476/2018, Ac. RL de 08/03/2018, in P. 305/17.1YUSTR.L1 , Ac. RL de 16/12/2015, in P. 89/15.8 YUSTR.L, 3a secção (…)”
Assim, improcede o sustentado pela recorrente.
A terceira questão a tratar prende-se com o direito de recusa invocado.
A recorrente alega que lhe assiste o direito de recusar o acesso aos cuidados de saúde ao utente quando este se recuse a pagar taxas moderadoras em dívida sem invocação de qualquer motivo (conclusão 37ª) , sob pena de inconstitucionalidade material dos arts., 61º, nº 2, b), i) e ii) 12º, a) e b), i) e ii) do DL 126/2014, de 22/08 por violação das normas dos arts. 12º, 13º, 29º e 64º da CRP (conclusão 38ª).
Começar-se-á desde logo por dizer que a recorrente labora em manifesto erro pois que não está provado que o utente haja, uma vez que seja, recusado qualquer pagamento. Aliás os factos apenas sustentam o seu silêncio quanto à questão.
A recorrente, ao contrário dos seus deveres como instituição pública, assumiu foi que o silêncio equivalia a recusa de pagar.
Ao fazê-lo agiu contra lei e como cobradora de dívidas, ambas condutas que lhe estão vedadas.
Em primeiro lugar o silêncio não tem, excepto em determinados casos pré-ordenados, qualquer valor declarativo.
Dir-se-á mesmo que se algo resulta da factualidade foi que o utente até pagou dívidas que estavam há muito prescritas.
O Ministério Público refere e bem que “O que se impunha à arguida, através dos seus profissionais de saúde e dos seus serviços administrativos e de cobrança, era tratar com lealdade os seus utentes, o que implicava, no caso concreto, alertar o Sr. JC... que estava obrigado a pagar as taxas moderadoras nos termos legais, quer dizer, apenas as taxas que se constituíram nos termos da Lei, relativamente às quais era exigível o pagamento (créditos não prescritos) e sem que da falta de pagamento possa resultar recusa no acesso aos cuidados de saúde necessários.
A arguida revelou ser ineficiente na gestão do pagamento das taxas, ineficiência que é infelizmente a “imagem de marca” e estrutural do Estado, pois não teve o cuidado de obter o pagamento no prazo de prescrição legal de 3 anos e teve ainda a má-fé de exigir o pagamento de uma obrigação natural 15 anos depois da prescrição!”
Dir-se-á ainda no que respeita aos argumentos avançados do porquê da actuação que não se discute aqui se o utente deveria pagar ou não o valor das taxas moderadoras. Este não é o objecto do recurso. O que está em causa é sancionar a recorrente pelo facto de fazer depender a realização do acto médico do pagamento das taxas em falta. Como salienta a ERS na sua resposta “a Recorrida mantém-se a laborar num equívoco: o de que é possível impedir a prestação de cuidados de saúde com fundamento da existência de dívidas relativas a taxas moderadoras.”
É verdade que o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 113/2011, de 29 de Novembro que “Regula o acesso às prestações do Serviço Nacional de Saúde por parte dos utentes no que respeita ao regime das taxas moderadoras e à aplicação de regimes especiais de benefícios” sob a epígrafe de “cobrança de taxas moderadoras” estabelece o seguinte:
““1– As taxas moderadoras são cobradas no momento da realização das prestações de saúde, salvo em situações de impossibilidade do utente resultante do seu estado de saúde ou da falta de meios próprios de pagamento, bem como de regras específicas de organização interna da entidade responsável pela cobrança.
“2– As taxas moderadoras são cobradas pela entidade que realize as prestações de saúde, salvo disposição legal ou contratual em contrário.
“3– Nos casos em que as taxas moderadoras não sejam cobradas no momento da realização do ato, o utente é interpelado para efetuar o pagamento no prazo de 10 dias subsequentes a contar da data da notificação.
“(...)
“5– As entidades responsáveis pela cobrança das taxas moderadoras devem adoptar procedimentos internos de operacionalização do sistema de cobrança, céleres e expeditos, dando prioridade, sempre que possível, à utilização de meios electrónicos de cobrança ou notificação, nomeadamente através da instalação de sistemas e terminais de pagamento automático com cartão bancário.”
Contudo, este nº 5 não legitima, sob a capa de “adoptar procedimentos internos de operacionalização do sistema de cobrança” que condicionem a prestação de cuidados de saúde ao pagamento das taxas moderadoras, como a recorrente fez.
A cobrança de quantias devidas a título de taxas moderadoras, se devidas e não pagas voluntariamente, terá de ocorrer nos moldes e seguindo os meios coercivos ao dispor do Estado (que, diga-se, não são assim tão poucos). Quanto aos cuidados de saúde a Constituição (e a demais legislação infra constitucional respeitante à matéria) não permitem que a um utente sejam negados cuidados de saúde.
Quanto às invocadas inconstitucionalidades dir-se-á apenas que são os preceitos invocados pela recorrente aqueles que fundamentam a justeza da decisão recorrida. É a obrigação de um sistema de saúde universal e igualitário que justifica que a conduta assumida seja ilegal. Como salientou o Ministério Público a inconstitucionalidade invocada “Trata-se de uma inversão completa do sentido destes preceitos e das demais disposições pertinentes já citadas, pelo que são as normas constitucionais dos artigos 12º, 13º e 64º da CRP alegadas pela recorrente que fundamentam a rejeição da sua pretensão e não o seu acolhimento.”
Aproveita-se o ensejo para salientar que a este Tribunal está vedado o agravamento da sanção não obstante o disposto no artº 67º nº 3 do D.L. 126/2014, de 22.08.
Este preceito prevê que o TCRS aumente o valor da coima. O Tribunal a quo não usou dessa faculdade pelo que o montante máximo da coima está fixada. Houvera o MP recorrido de tal montante e estaríamos a falar noutros valores.
O que ficou dito traz-nos à questão da medida da coima (e sua qualificação, esta necessariamente anterior) que é a última questão a tratar.
A arguida pretende a aplicação da coima pelo mínimo porque o exame que foi prescrito ao utente em 2014 revelou-se desnecessário entretanto, circunstância que legitima a punição a título de mera tentativa (conclusões 39ª  a 44ª).
Cumpre esclarecer que a infracção ocorre a infração se consumou a partir do momento em que a arguida não deu andamento ao procedimento para realização do exame prescrito ao utente. Ela não ocorre quando, mais tarde, se considera o exame desnecessário. Não há qualquer tentativa. Há uma consumação. Não se deu seguimento à prática de um acto médico devido a considerações financeiras.
A moldura abstrata da coima aplicável é de €1500 a €44.891,81 em caso de dolo e de €750 a €22.445, 91 em caso de negligência (art.º 61º nº 2 e o nº 4 do DL 126/2014).
Não deixamos de salientar que, com algum esforço é que admitimos a condenação a título de negligência. Na verdade, a recorrente quis subordinar a prestação do acto médico a uma condição sabendo que a mesma não fosse cumprida o resultado (não prestação do acto médico) seria conseguido.
Mas, mais uma vez, a questão não nos foi trazida pelo que não a iremos equacionar. Negligência, então (pelo menos para efeitos de medida abstracta da coima).
A douta decisão recorrida considerou quanto à medida da coima:
- (…) a gravidade do ilícito e a culpa decorrentes do incumprimento do regime jurídico das taxas moderadoras e, consequentemente,da violação do direito de acesso do utente JC... a cuidados de saúde prestados pelo SNS (em concreto, um MCDT);
- o procedimento geral e reiterado, instituído pelo infractora, desde o ano de 2006, em virtude do disposto no ponto 6 da circular informativa interna n.º 21;
- as finalidades de prevenção geral assumem especial acuidade, na vertente prevenção geral negativa, incutindo na sociedade a responsabilização efectiva do infrator, bem como na vertente positiva, assegurando a confiança geral na garantia da boa e eficiente realização da regulação e supervisão dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde;
- o comportamento posterior do infractor, que continuou, pelo menos, a assegurar o acesso do utente visado a consultas hospitalares de medicina 1, bem como a outros MCDT, realizados internamente;
-  a difícil situação económica do infractor; e,
(…)a ausência de antecedentes contraordenacionais.
Por todos estes factores o Tribunal a quo considerou “adequada à conduta, proporcional à culpa e suficiente para realizar as exigências de prevenção, a condenação do infractor por violação das regras relativas ao acesso aos cuidados de saúde, em concreto, violação do direito de acesso universal e equitativo à prestação de cuidados de saúde no SNS, por via de uma prática de rejeição infundada de um utente, na coima de 2.500,00 EUR (dois mil e quinhentos euros)"
A este argumentário a recorrente nada contrapõe para além da sustentação da tentativa (a qual não merece acolhimento) e a argumentação de que o mínimo da coima devida pela conduta dolosa é de 1500 €, parecendo querer sugerir que se assim é a conduta negligente não deve ultrapassar tal valor por a negligência ser menos grave e esquecendo-se que a negligência tem medida abstracta própria.
Ora, tendo a decisão recorrida considerado todos os factos que, de acordo com os factos assentes, são relevantes, a saber, procedimento reiterado desde 2006, necessidade de prevenção e de dissuasão, procedimento posterior assegurou os cuidados de saúde ao utente, difícil situação económica da arguida e a ausência de antecedentes desta, apenas podemos concluir que nenhuma censura, no quadro da matéria que esta Relação pode conhecer, merece a douta sentença recorrida.
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IV–Dispositivo
Por todo o exposto, acordam os juízes que compõem a Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso apresentado e, em consequência, manter a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelo recorrente que se fixam em 3 (três) U.C.
Notifique.
Acórdão elaborado pelo 1º signatário em processador de texto que o reviu integralmente sendo assinado pelo próprio e pela Veneranda. Juíza Adjunta.

Lisboa e Tribunal da Relação, 19 de Maio de 2020
Rui Miguel de Castro Ferreira Teixeira
-Relator -
Ana Isabel Pessoa
-1ª Adjunta -